“O motor é a gente mesmo”: cuidado em saúde dos trabalhadores da reciclagem

“We are the engine”: recycling workers’ healthcare

“El motor somos nosotros mismos”: cuidado de salud de los trabajadores del reciclaje

André Filipak Sabrina Stefanello Jaqueline Midori Okada Marian Hennings Hunzicker Deivisson Vianna Dantas dos Santos Sobre os autores

Resumos

O catador de materiais recicláveis é excluído pelo tipo de atividade que realiza, em condições inadequadas e sem reconhecimento social. O objetivo desta pesquisa foi compreender o processo saúde-doença-cuidado de pessoas que trabalham com reciclagem para auxiliar na formação de estratégias de acolhimento dessa população na Atenção Primária. Trata-se de um estudo exploratório descritivo de base qualitativa, tendo sido realizadas oito entrevistas com trabalhadores da reciclagem e análise hermenêutica gadameriana. A análise evidenciou três grandes núcleos argumentais: cotidiano do trabalho, riscos ocupacionais e relação com os serviços de saúde. A reciclagem para muitos trabalhadores é uma última opção de sobrevivência dentro das regras sociais do mundo do trabalho; e a possibilidade de trabalhar, apesar de todas as suas dificuldades, esforços e sobrecargas, é vista como uma forma digna de sobrevivência e valorizada como um dos maiores bens de suas vidas.

Catadores; Populações vulneráveis; Uso de resíduos sólidos; Processo saúde-doença; Acesso aos serviços de saúde


Recycling collectors are excluded for the activity they perform (in inadequate conditions and with no social recognition). The objective of this research was to understand the health-disease-care process of people who work with recycling to help build strategies to welcome this population in Primary healthcare. It was an exploratory, descriptive, and qualitative study where eight interviews were conducted with recycling workers. The analysis was conducted based on Gadamer’s hermeneutics. The analysis evidenced three large argumentative nuclei: work routine, occupational risks, and health service relation. For most workers, recycling is their last resort to survive in the social rules of the occupational world, despite all its difficulties, efforts, and burdens. It is considered a dignified way of survival and valued as one of the greatest assets in their lives: the possibility to work.

Garbage collectors; Vulnerable population; Use of solid waste; Health-disease process; Access to healthcare


El recogedor de materiales reciclables es excluido por el tipo de actividad que realiza, en condiciones inadecuadas y sin reconocimiento social. El objetivo de este estudio fue entender el proceso salud-enfermedad-cuidado de personas que trabajan con reciclaje para auxiliar en la formación de estrategias de acogida de esta población en la Atención Primaria. Estudio exploratorio descriptivo de base cualitativa, habiéndose realizado ocho entrevistas con trabajadores del reciclaje y un análisis utilizando la hermenéutica gadameriana. El análisis mostró tres grandes núcleos argumentales: cotidiano del trabajo, riesgos ocupacionales y relación con los servicios de salud. Para muchos trabajadores, el reciclaje, es una última opción de supervivencia dentro de las reglas sociales del mundo del trabajo y, a pesar de todas sus dificultades, esfuerzos y sobrecargas, es vista como una forma digna de supervivencia y valorizada como uno de los mayores bienes de sus vidas: la posibilidad de trabajar.

Recogedores; Poblaciones vulnerables; Uso de residuos sólidos; Proceso salud-enfermedad; Acceso a los servicios de salud


Introdução

Os resíduos sólidos têm sido um problema na gestão ambiental urbana de diversas cidades tanto nos países desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento, onde uma porção significativa da população pobre urbana é envolvida na coleta e reciclagem dos resíduos como fonte de renda, sendo tais indivíduos conhecidos como “carrinheiros” ou “catadores”11. Mannarino CF, Ferreira JA, Gandolla M. Contribuições para a evolução do gerenciamento de resíduos sólidos urbanos no Brasil com base na experiência Européia. Eng Sanit Ambient. 2016; 21(2):379-85.,22. Moreno-Sánchez RDP, Maldonado JH. Surviving from garbage: the role of informal waste-pickers in a dynamic model of solid-waste management in developing countries. Environ Dev Econ. 2006; 11(3):371-91..

Os catadores de materiais recicláveis considerados pertencentes ao setor informal da economia têm participado dos sistemas de gerenciamento de resíduos sólidos das cidades desde os anos 1980. Eles coletam, selecionam e vendem materiais recicláveis, atuando em ruas, lixões, aterros sanitários e unidades de triagem ou cooperativas, estando em sua maioria imersos no mercado informal de trabalho. A atividade de catação consiste basicamente em recolher dos resíduos aquilo que pode ser reaproveitado, como garrafas de plástico, vidro, ferro, papel e papelão, até adquirirem uma quantidade suficiente para a venda. O trabalho executado pelos catadores possibilita que materiais retornem ao ciclo produtivo como matéria-prima em vez de serem descartados em aterro sanitário33. Galon T, Marziale MHP. Condições de trabalho e saúde de catadores de materiais recicláveis na América Latina: uma revisão de escopo. In: Pereira BCJ, Goes FL. Catadores de materiais recicláveis: um encontro nacional. Rio de Janeiro: Ipea; 2016. p. 169-99.

4. Sabedot S, Pereira Neto TJ. Desempenho ambiental dos catadores de materiais recicláveis em Esteio (RS). Eng Sanit Ambient. 2017; 22(1):103-9.
-55. Andrade A. O trabalho de catadores de resíduos potencialmente recicláveis em Caxias do Sul: impactos na saúde e na qualidade ambiental [tese]. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul; 2016..

O catador urbano é tido como a base da cadeia produtiva da reciclagem e ator fundamental nesse processo, mas sua atuação é cercada de situações paradoxais: são incluídos socialmente por ter um trabalho, mas excluídos da sociedade pelo tipo de atividade precária, realizada em condições inadequadas, sem reconhecimento social e com ausência total de garantias trabalhistas. Além disso, são estigmatizados sob diferentes aspectos, sendo citados como atores socioeconomicamente invisíveis, marginalizados, excluídos, vulneráveis e sujeitos a doenças, traumas físicos, intempéries e excesso de horas de trabalho44. Sabedot S, Pereira Neto TJ. Desempenho ambiental dos catadores de materiais recicláveis em Esteio (RS). Eng Sanit Ambient. 2017; 22(1):103-9.,66. Braga NL, Lima DMA, Maciel RH. Não tinha trabalho, mas tinha reciclagem: sentidos do trabalho de catadores de materiais recicláveis. Temas Psicol. 2015; 23(4):1051-9..

A atividade de catador não detém uma posição estabelecida no âmbito das estatísticas oficiais. Conforme o Censo Demográfico de 2010, constatou-se a existência de 387.910 pessoas em todo o território brasileiro que se declararam catadoras como sua ocupação principal. São em sua maioria do sexo masculino e de cor/raça negra, com relações de trabalho fortemente marcadas pela informalidade, com baixa escolaridade, baixa cobertura previdenciária e residentes em áreas urbanas com deficiências de infraestrutura domiciliar graves77. Martins CH. Catadoras/recicladoras na Região Metropolitana de Porto Alegre: organização do trabalho e identidade ocupacional. Mulher Trab. 2005; 5:65-79.

8. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Situação social das catadoras e dos catadores de material reciclável e reutilizável – Brasil. Brasília: Ipea; 2013.
-99. Lisboa C. Os que sobrevivem do lixo. Desafios Desenvolv. 2013; 10(77):58-63..

Ao revirarem lixeiras à procura do que pode ser sua matéria-prima, os catadores ficam em contato direto e diário com materiais que podem provocar sérios danos à sua saúde. Têm os seus corpos expostos a contaminação de produtos químicos; lixo hospitalar; animais mortos; contaminação por via oral de gases e odores emanados por resíduos; risco de picadas de insetos e mordedura de animais; contato com materiais perfurocortantes; e risco de acidentes por atropelamento em vias públicas. Danos à saúde mental também são constantes, pois esses sujeitos sofrem em seu cotidiano discriminação e humilhação pelo trabalho que realizam, com agressões verbais focadas nos estigmas que esses trabalhadores carregam: “mendigos”, “marginais” e “sujos”, “ladrões”1010. Oliveira DAM. Percepção de riscos ocupacionais em catadores de materiais recicláveis: estudo em uma cooperativa em Salvador-Bahia [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2011.

11. Cavalcante S, Franco MFA. Profissão perigo: percepção de risco à saúde entre os catadores do Lixão do Jangurussu. Rev Mal-Estar Subj. 2007; 7(1):211-31.
-1212. Zacarias IR, Bavaresco CS. Conhecendo a realidade dos catadores de materiais recicláveis da Vila Dique: visões sobre os processos de saúde e doença. Textos Contextos (Porto Alegre). 2009; 8(2):293-305..

Pelo conjunto de aspectos elencados anteriormente, os trabalhadores da reciclagem são considerados uma população vulnerável e sua atenção à saúde deve levar em consideração esses fatores para o planejamento de ações. O modelo ideal para o enfrentamento de situações de saúde para populações vulneráveis, como o caso dos trabalhadores da reciclagem, é a Atenção Primária à Saúde (APS)1313. Bortoli MA. Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos. Rev Katálysis. 2009; 12(1):105-14.,1414. Giovanella I, Mendonça MHM. Atenção primária à saúde: seletiva ou coordenadora dos cuidados? Rio de Janeiro: CEBES; 2012..

Uma importante característica da APS é a compreensão da saúde como inseparável do desenvolvimento econômico e social – como discutido na conferência de Alma-Ata –, o que implica em atuação dirigida para a comunidade. Reconhecer a determinação social do processo saúde-doença exige a articulação com outros setores de políticas públicas, desencadeando e mediando ações intersetoriais para o desenvolvimento social integrado e a promoção da saúde1414. Giovanella I, Mendonça MHM. Atenção primária à saúde: seletiva ou coordenadora dos cuidados? Rio de Janeiro: CEBES; 2012..

Um dos atributos essenciais da APS é o Primeiro Contato, que implica em acessibilidade e uso do serviço a cada novo problema ou novo episódio de um problema pelo qual as pessoas buscam atenção à saúde. Outro importante atributo é a Integralidade – as unidades de atenção primária devem fazer arranjos para que o usuário receba todos os tipos de serviços de acordo com a sua necessidade, sendo alguns ofertados dentro do serviço de APS e outros em diversos serviços que compõem o sistema de saúde1515. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2002.,1616. Fausto MCR, Matta GC. Atenção primária à saúde: histórico e perspectivas. In: Morosini MVGC, Corbo AD, organizadores. Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2007. p. 43-68..

O catador de material reciclável, sendo indivíduo parte de uma população à margem da sociedade, sofre influência de maneira radical no processo saúde-doença, determinando condições de vulnerabilidade que interferem na capacidade de acesso aos serviços de saúde. Portanto faz-se necessário que os profissionais dos serviços de saúde, especificamente da APS, apropriem-se dessa realidade e conheçam a visão desses sujeitos sobre a produção de saúde-doença-cuidado para evidenciá-la e proporcionar um olhar ressignificado qualificando as ações em saúde.

O objetivo desta pesquisa foi compreender o processo saúde-doença-cuidado de pessoas que trabalham com reciclagem no município de Curitiba, reconhecendo na narrativa dos sujeitos como se experiencia o processo de adoecimento e a vivência das possíveis respostas a esse fenômeno; e investigando como ocorre o acesso ao serviço de saúde por esses trabalhadores. Procura-se dessa forma elementos para auxiliar o acolhimento desses trabalhadores na APS.

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório descritivo de base qualitativa, utilizando como ferramenta entrevistas com pessoas que trabalham com reciclagem em uma comunidade de Curitiba, seguidas de análise das narrativas usando a hermenêutica gadameriana1717. Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990..

Para recrutamento dos trabalhadores foi procurada a associação Eco Cidadão do bairro Boqueirão, uma associação de catadores. Nessa associação, os trabalhadores são contratados e recebem o pagamento semanal por peso de material separado. Após a apresentação da pesquisa, os trabalhadores foram convidados à participação voluntária pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Posteriormente, a cada entrevista foi solicitada indicação de outros trabalhadores, associados do Eco Cidadão ou não, moradores da mesma região. Foram incluídos trabalhadores maiores de 18 anos de idade, carrinheiros, catadores ou trabalhadores de galpão/cooperativa de reciclagem. Foram excluídos menores de idade e pessoas com prejuízo cognitivo grave.

O número final de entrevistados foi definido a partir da amostragem por saturação, que consiste na suspensão da inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na visão do pesquisador, redundância ou repetição, não sendo relevante persistir na coleta de dados1818. Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica. 2008; 24(1):17-27..

As entrevistas foram realizadas após assinatura do TCLE em um consultório da Unidade de Saúde responsável pela área onde se encontra tanto a associação Eco Cidadão quanto o domicílio dos entrevistados, cadastrados na Estratégia Saúde da Família. Foram realizadas em conjunto por dois autores da pesquisa, sendo um deles sempre o médico de Família e Comunidade responsável pelo atendimento clínico de todos os entrevistados, no período de maio a agosto de 2018.

Foram realizadas entrevistas abertas em profundidade a partir de questões disparadoras, permitindo a livre expressão dos entrevistados. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente integralmente transcritas, sendo suprimidas quaisquer informações que pudessem incorrer na identificação do indivíduo. Para manutenção do sigilo, foram determinados pseudônimos para a referência aos entrevistados (Onça-Pintada, Lobo-Guará, Tatu, Quati, Gralha-Azul, Bem-Te-Vi, Capivara e Pintado), representando a fauna local, escolhidos pelos próprios autores.

O roteiro de entrevista contou com questões relacionadas ao processo de trabalho, do adoecer, das repostas a este e da relação com o serviço de saúde. As transcrições foram transformadas em narrativas conforme os preceitos da hermenêutica gadameriana1717. Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990., que busca o significado a partir dos fenômenos emanados dos discursos; e a partir daí extraíram-se os núcleos argumentais que foram agrupados em categorias construídas conforme interpretação dos discursos. Para seguir essa dinâmica, foi feito um processo de leitura inicial superficial e, posteriormente, detalhado das transcrições; após, iniciou-se o processo de transformar os textos em narrativas, em que se manteve o sentido das falas originalmente criadas pelos participantes. Buscou-se também sintetizar os textos enfatizando ideias repetidas. Para o reconhecimento e comparação das respostas obtidas nas entrevistas, foram construídas grades de análise com as categorias encontradas nos discursos. As narrativas foram lidas diversas vezes para que fossem identificados seus núcleos argumentais e posteriormente foi montada uma grade de análise com todas as categorias obtidas, comparando-se os trechos extraídos do material. Os textos – na proposta metodológica feita – constituem os dados essenciais, a base para as interpretações e o meio de comunicação dos achados da pesquisa1919. Gadamer HG. Verdade e método. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 1997..

Como a intenção do trabalho foi compreender o processo saúde-doença-cuidado dos entrevistados, optou-se por descrever a estrutura da experiência vivida, incluindo o sentido que essa experiência tem para os indivíduos que dela participam. Isso se justifica, uma vez que apenas com o conhecimento das significações dos fenômenos do processo saúde-doença é possível, por exemplo, “entender mais profundamente certos sentimentos, ideias e comportamentos dos doentes, assim como de seus familiares e mesmo da equipe profissional de saúde”2020. Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saude Publica. 2005; 39(3):507-14. (p. 510).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Paraná e registrada na Plataforma Brasil, CAAE 80355317.0.0000.0102.

Resultados

Foram realizadas oito entrevistas com trabalhadores da reciclagem pertencentes à área de abrangência de uma mesma Unidade de Saúde de Curitiba (tabela 1).

Tabela 1
Caracterização dos trabalhadores da reciclagem entrevistados pertencentes à área de abrangência de uma mesma Unidade de Saúde

A análise das narrativas evidenciou três grandes núcleos argumentais: o cotidiano do trabalho, os riscos ocupacionais e a relação com os serviços de saúde.

O mundo (cotidiano) do trabalho da reciclagem

Os relatos caracterizam o cotidiano do trabalho como árduo, com grandes cargas, sem horário definido, com exigência física e com pouco retorno financeiro. Por outro lado, esse trabalho, pela sua autonomia, flexibilidade de horário e relação direta entre produção e ganho financeiro é percebido como um serviço gratificante, divertido e por vezes tido como o maior prazer da vida dos trabalhadores.

De manhã cedo eu saio 6, 7 horas, mais ou menos. Eu tenho um carrinho grande, a gente que empurra, não tem motor, o motor é a gente mesmo. É bem cansativo. (Pintado)

O que eu mais gosto de fazer da vida, é o que falei: puxar o carrinho. Eu tô feliz, eu tô na rua. (Gralha-Azul)

O trabalho é caracterizado como solitário e exigente, porém, apesar das dificuldades inerentes à forma de trabalhar, a autonomia do trabalhador é percebida como de grande valor, assim como são considerados benefícios a flexibilidade de horários, a total liberdade de agendas e processos, a não cobrança de terceiros por produtividade e a atividade física proporcionada pelo trabalho.

As narrativas trazem histórias comuns sobre como se começou a atuar com essa forma de trabalho: não havendo outras opções de trabalho disponíveis, encontra-se na reciclagem um trabalho que não pede nenhum pré-requisito, com material disponível em toda a cidade, possibilidade de ganhos financeiros e de aprendizagem fácil. Há um coleguismo entre os recicladores para ensinar a prática. É frequente o sentimento de incapacidade de obter outra forma de trabalho após tanto tempo como reciclador.

Além disso, há um discurso contraditório de valorização e elogio ao trabalho, ao mesmo tempo em que se critica as condições e os danos causados por ele. Essa contradição é frequente em várias narrativas dos entrevistados.

Hoje o serviço é muito melhor, eu sou meu patrão, ninguém me manda, cansa menos, para a saúde é muito melhor. O horário que eu trabalho melhorou bastante. [...] Reciclar é melhor do que estar jogando nos rios. (Quati)

Esse negócio de papelão, materiais aí, é só ilusão, isso aí é só pra você não ficar parado, pra você ter um dinheirinho no bolso, pra você poder comprar alguma coisa que falta ou algo assim. (Pintado)

O carrinho é pesado e a gente carrega muito. Pra mim é um entretimento. Mesmo sendo um serviço perigoso, a gente se diverte, porque acha o que fazer dele. Mas muitos só catam e não sabem aproveitar. (Onça-Pintada)

Nas entrevistas, existe um discurso recorrente sobre a distinção entre o que é ser trabalhador e ganhar a vida de forma desonesta, cometendo crimes ou mesmo pedindo comida nas casas. Os entrevistados valorizam sua retidão no trabalho, comparando-se àqueles que em situações semelhantes optam pela sobrevivência com atos ilícitos.

A gente tinha que ser tratado um pouco melhor, igual aos outros, não melhor, mas igual. O que aquele carrinheiro tem de diferente daqueles outros? Quantos que tão roubando aí, que tão tirando a vida por causa de um real, 50 centavos? A gente tem que trabalhar, quer ganhar dinheiro da gente honestamente. (Pintado)

Na rua a turma tira sarro da gente. Chama a gente de lixeiro, tudo quanto é coisa. É melhor ser lixeiro do que andar roubando, ou vendendo outras coisa. Que nem muitas mulher vende drogas, essas coisas. A gente ao menos tá trabalhando, tá livre de tudo quanto é coisa, a gente vai de cabeça erguida. (Onça-Pintada)

Riscos ocupacionais

Os trabalhadores elencam alguns riscos que o trabalho com a reciclagem os expõe: a sobrecarga física trazendo dores e cansaço; o risco de cortes e lesões na pele; contato com material hospitalar e com materiais cortantes; contaminação; risco de se contrair leptospirose e outras doenças contagiosas; estar sujeito às mudanças do clima; e os riscos de se trabalhar nas ruas, que envolvem atropelamentos e violência.

Apesar de elencar todos esses riscos, os trabalhadores minimizam e naturalizam os danos causados pelo trabalho. Surge nas narrativas a enunciação de riscos seguida por uma imediata negação da sua potencial gravidade, um asserenamento dos danos causados por eles; uma fala que parece fazer uma defesa da existência do risco como inerente ao trabalho, encarando-o como natural.

É bem cansativo de andar, mas a gente é assim acostumado em serviço pesado [...] corre risco de machucar, tem muitas pessoas que jogam às vezes um caco de vidro, injeção, que põe junto no reciclado. (Lobo-Guará)

Às vezes vem cada agulha, que eu não sei pra que aquelas agulha tão grande e grossa. Esse é o mais perigoso, as pequenininhas não dói tanto, mas uma agulha dessa, se cutucar o dedo é um perigo. Eu mesma cansei já de me cutucar, mas daí eu chego em casa e lavo bem minha mão e taco-lhe álcool, remédio, daí não arruína. (Onça-Pintada)

Meus problemas de pulmão e de dor nas costas foram tudo de peso, de dia inteiro trabalhando pesado. Com o trabalho de hoje não tem nada que não seja bom pra saúde, ele é muito bom pra saúde. (Quati)

A relação com os serviços de saúde

Todos os entrevistados são da área de abrangência de uma mesma Unidade de Saúde que modificou sua forma de acesso para ofertar melhor receptividade às demandas dos trabalhadores da reciclagem, pois essa é a forma de trabalho de boa parte dos seus usuários. Para isso, a unidade trabalha com o acesso avançado2121. Murray M, Tantau C. Same-day appointments: exploding the access paradigm. Fam Pract Manag. 2000; 7(8):45-50..

A unidade possui em seu quadro funcional uma equipe da Estratégia Saúde da Família atendendo há ١٤ anos a população de três mil moradores, dos quais estima-se que 250 trabalhem de alguma forma com a reciclagem segundo dados da própria equipe de saúde. Sendo pequena, a equipe em questão moldou sua forma de acesso e agenda a partir das discussões com os representantes da comunidade e com a gestão municipal, chegando a um modelo de acesso que permite o agendamento imediato para os atendimentos do dia mantendo o controle das condições crônicas e ações programáticas.

Ao adoecer, os trabalhadores da reciclagem relatam optar por aguardar a melhora ou tentar tratamentos próprios e, caso não haja melhora, procurar a Unidade de Saúde.

Quando eu fico doente eu venho no posto, mas é muito difícil. Eu tomo remédio caseiro. Eu invento remédio caseiro lá e tomo, só quando eu não melhoro que eu vou no médico. (Onça-Pintada)

Cada dia afastado do serviço por motivo de saúde é um dia a menos de ganho. Dessa forma, os relatos demonstram que dores, doenças e acidentes são subvalorizados e a busca pelo cuidado em saúde acontece em último caso.

Os recicladores relatam também serem bem atendidos na Unidade de Saúde e elencam como qualidades do atendimento o respeito, a não discriminação com sua profissão, o cuidado, a flexibilidade de horário para chegada e o pronto-atendimento às demandas.

Apesar dos atendimentos serem pontuais, todos relatam um bom vínculo com a equipe de saúde. Percebe-se que a construção do vínculo se deu pelos diversos encontros ao longo do tempo. Em outros locais de atendimento, como ambulatórios ou serviços de emergência, os recicladores omitem a sua profissão e referem que a forma com que se apresentam tem relação com o tipo de atendimento que recebem.

[...] tratam a gente como se fosse normal, como qualquer outra pessoa, independente se eu cato papel ou não, a gente é bem recebido da mesma forma. (Pintado)

Eu não sei se tem alguma diferença do pessoal que atende a gente com as outras pessoas que não fazem reciclagem. Não me olham diferente, não falam diferente com a gente. (Gralha-Azul)

Quando vamos em outros lugares não sei dizer, porque daí a gente não fala sobre isso [trabalhar com a reciclagem]. (Pintado)

Discussão

Ao se analisar o cotidiano do trabalho da reciclagem, percebeu-se uma forte crítica às características desgastantes do trabalho, contraposta a uma satisfação do trabalhador com aspectos do serviço da reciclagem. O asserenamento das críticas vem de trabalhadores já acostumados a outros serviços extenuantes. Em comparação ao trabalho com a reciclagem, esses trabalhadores não veem grande distinção nos riscos desse trabalho com aqueles ou uma necessidade de legitimação do trabalho de reciclagem como última opção de sobrevivência, como ressalta Zacarias1212. Zacarias IR, Bavaresco CS. Conhecendo a realidade dos catadores de materiais recicláveis da Vila Dique: visões sobre os processos de saúde e doença. Textos Contextos (Porto Alegre). 2009; 8(2):293-305., ao definir os recicladores como uma massa de trabalhadores que tem identificado no trabalho informal a possibilidade de garantir sua sobrevivência, mesmo que isso signifique jornadas intermináveis, desproteção de políticas previdenciárias e condições de trabalho muitas vezes insalubres.

O trabalho com a reciclagem traz um ganho em comparação a outras experiências dos recicladores e a chegada a ele traz benefícios reais (como autonomia do trabalho, flexibilidade de horários e ganho financeiro necessário à sobrevivência familiar)? Ou existiria um mecanismo de autoafirmação dentro da categoria de defesa de sua identidade de trabalhador, pois tal trabalho é a última alternativa de sustento dessas pessoas e o caminho final de uma vida de exclusão de uma população que “é composta de trabalhadores sem contrato, [...] desancada do mercado de trabalho e sem atributos para retornar às ocupações formais”2222. Bosi AP. A organização capitalista do trabalho “informal”: o caso dos catadores de recicláveis. Rev Bras Cienc Soc. 2008; 23(67):101-16. (p. 104)?

Há uma contraposição entre ser trabalhador de reciclagem e a criminalidade, sendo que a comparação faz uma defesa do trabalhador como alguém honesto, contraposto à desonestidade de roubar, traficar ou cometer outros atos ilícitos, ou mesmo pedir doações nas casas e nas ruas. O estigma de ser reciclador é ressaltado por Zacarias1212. Zacarias IR, Bavaresco CS. Conhecendo a realidade dos catadores de materiais recicláveis da Vila Dique: visões sobre os processos de saúde e doença. Textos Contextos (Porto Alegre). 2009; 8(2):293-305.:

trabalhar com o que não é mais importante para sociedade é carregar o estigma atribuído também de sobra, de excluído. Ao dividir o mesmo espaço socioambiental com pessoas ditas “incluídas”, os catadores sofrem abusos depreciativos, pois não são vistos enquanto homens e mulheres trabalhadores, chefes de família e que buscam neste espaço, muitas vezes por necessidade e não por opção, uma alternativa para viverem com a dignidade que for possível. (p. 299)

Para se afastar da marca de excluído, o trabalhador afirma-se como tal.

Os relatos trazem que doações são bem-vindas, em dinheiro ou em alimentos, demonstrando gratidão. Porém solicitar doações é visto como algo ruim, uma forma desonesta de sobrevivência, como trazido por Martins77. Martins CH. Catadoras/recicladoras na Região Metropolitana de Porto Alegre: organização do trabalho e identidade ocupacional. Mulher Trab. 2005; 5:65-79.:

[...] as perspectivas dos catadores de rua e dos carrinheiros são limitadas pela situação de clandestinidade ou de semiclandestinidade em que se eles se encontram, constituindo-se sua atividade em uma alternativa à marginalidade. Ainda assim, para vastos setores da população – os mais pobres dentre os pobres urbanos, com mais baixo status e com uma presença predominante de mulheres e crianças –, a coleta de lixo nas ruas representa, muitas vezes, a única fonte de sobrevivência77. Martins CH. Catadoras/recicladoras na Região Metropolitana de Porto Alegre: organização do trabalho e identidade ocupacional. Mulher Trab. 2005; 5:65-79.. (p. 70)

O valor da reciclagem como proteção ambiental é ressaltado por publicações e defensores dos processos de reciclagem, porém, apenas um dos entrevistados valoriza este aspecto no seu trabalho. O valor do trabalho está muito mais na sobrevivência individual das famílias, diferentemente do relatado por Martins77. Martins CH. Catadoras/recicladoras na Região Metropolitana de Porto Alegre: organização do trabalho e identidade ocupacional. Mulher Trab. 2005; 5:65-79., que afirma: nos relatos sobre as trajetórias de formação e de organização dos catadores/recicladores, percebe-se que a consciência de pertencer a um grupo, isto é, a determinação de sua identidade como uma nova categoria ocupacional ou profissional leva em consideração não apenas os ganhos materiais relativos às atividades de reciclagem, mas também os aspectos de resgate social dos trabalhadores e/ou de vínculo com o tipo de trabalho que estão executando, pela importância que ele representa como um serviço de cuidado com o meio ambiente.

Na análise dos riscos ocupacionais, surgem alguns dos presentes na literatura: sobrecarga física; cortes e lesões na pele; contato com material hospitalar e com outros materiais cortantes; contaminação, infecção por leptospirose e outras doenças contagiosas; mudanças do clima; atropelamentos; e violência. Não aparecem nos discursos alguns dos riscos levantado por Gutberlet2323. Gutberlet J, Baeder AM, Pontuschka NN, Felipone SM, Dos Santos TL. Participatory research revealing the work and occupational health hazards of cooperative recyclers in Brazil. Int J Environ Res Public Health. 2013; 10(10):4607-27. a partir de oficinas realizadas com catadoras, agrupando-os em: químicos, biológicos, físicos, relacionados a acidentes, ergonômicos e emocionais vulneráveis. Em nossas entrevistas não são citados os dois últimos, apesar de ser perceptível nas narrativas a carga de sofrimento emocional que a posição de reciclador gera.

A subestimação desses riscos e de suas consequências é frequente; os riscos são expostos pelos trabalhadores, e o discurso em seguida nomeia também os benefícios do trabalho, fazendo uma contraposição. Por se tratar de pessoas que encontraram na reciclagem uma última opção de sobrevivência, o trabalhador sente necessidade em fazer uma defesa desta, negando os riscos, da mesma forma em que se valoriza o trabalho apesar de sua característica desgastante. Em entrevistas sobre condições de saúde de uma população semelhante à de nossa pesquisa, Zacarias1212. Zacarias IR, Bavaresco CS. Conhecendo a realidade dos catadores de materiais recicláveis da Vila Dique: visões sobre os processos de saúde e doença. Textos Contextos (Porto Alegre). 2009; 8(2):293-305. encontrou, no primeiro momento da coleta, 80% dos entrevistados com relatos de nunca terem tido qualquer problema de saúde relacionado a patologias associadas ao trabalho. Foi preciso esmiuçar mais a pergunta, estabelecendo um diálogo mais próximo, para que essas pessoas se lembrassem do que já haviam passado e se questionassem sobre sua condição de saúde. Já Vasconcelos2424. Vasconcelos JPR. A saúde de catadores/catadoras de materiais recicláveis: do contexto de vida ao enfrentamento do cotidiano [dissertação]. Ceilândia: Universidade de Brasília; 2016. relata que a maioria reconhece a existência de algum risco no local de trabalho com o lixo. Apenas uma pequena parte das catadoras considera que já teve alguma doença provocada pelo trabalho com o lixo.

Os trabalhadores da reciclagem demonstram uma visão de que os serviços de saúde devem ter como enfoque o pronto atendimento das suas demandas para retornar à condição de trabalho; e o alívio das dores e dos sofrimentos agudos. Vasconcelos2424. Vasconcelos JPR. A saúde de catadores/catadoras de materiais recicláveis: do contexto de vida ao enfrentamento do cotidiano [dissertação]. Ceilândia: Universidade de Brasília; 2016. enuncia, quando considerado o contexto de saúde, que as catadoras, em alguns casos, relatam que ter saúde é não ter doença, mas sim ter condição para trabalhar. Em outro contexto, a definição de saúde se limita às suas necessidades e anseios para se sentirem bem, como: não sentir dor; não sentir nenhum desconforto; e não precisar de hospital, médico ou remédios.

Não há nas narrativas a visão da necessidade de cuidado longitudinal em saúde e atenção a situações crônicas de potencial gravidade ao futuro. As situações de vida e grande vulnerabilidade em que se encontram são tão severas que o olhar para si próprio, seu corpo e sua saúde, torna-se supérfluo? Para alguém com uma vida tão dura, pensar em cuidados crônicos de saúde e proteção ao futuro é um luxo não alcançável? A necessidade diária de sobrevivência impossibilita planos para o amanhã? Zacarias1212. Zacarias IR, Bavaresco CS. Conhecendo a realidade dos catadores de materiais recicláveis da Vila Dique: visões sobre os processos de saúde e doença. Textos Contextos (Porto Alegre). 2009; 8(2):293-305. encontrou em sua pesquisa o mesmo ao buscar medidas de prevenção em saúde entre catadores: para a maioria dos sujeitos desta pesquisa, não é presente o uso de meios ou instrumentos de proteção, apesar de conhecerem os riscos presentes na atividade que executam.

Apesar do olhar pontual de cuidado em saúde, os trabalhadores referem um bom vínculo com a unidade de saúde, construído a partir de encontros em situações de necessidade, quando percebem um atendimento que não os discrimina, compreendendo suas especificidades. Um dos maiores elogios ao serviço é a flexibilidade de horário e o pronto atendimento às necessidades em saúde. Isso dá-se pela forma de organização do acesso da unidade de saúde à qual estão vinculados, que organiza o seu atendimento no modelo de acesso avançado, que, segundo o proposto por Murray e Tantau2121. Murray M, Tantau C. Same-day appointments: exploding the access paradigm. Fam Pract Manag. 2000; 7(8):45-50., possui uma regra de ouro: “faça hoje o trabalho de hoje”. Essa regra permite que a pessoa seja atendida pelo seu médico no mesmo dia em que solicita o atendimento de qualquer natureza. Isso reduz o tempo de espera, aumenta a satisfação da equipe de APS e dos usuários e, no caso dos trabalhadores da reciclagem, permite a pronta resposta às suas demandas quando consideram necessário.

Para ofertar o atendimento a trabalhadores da reciclagem, os profissionais de saúde devem então trabalhar uma clínica de baixa expectativa centrada na construção de condições em saúde a partir do existente e possível de cada um.

O respeito à situação do trabalhador da reciclagem parte da premissa de que é ele o indivíduo que determina o que é o seu adoecer e a sua concepção de saúde, devendo ter o direito fundamental de manter as suas enfermidades e os seus sofrimentos em balanço com a sua situação de vida, guiando a relação com o profissional de saúde em busca de uma construção conjunta do processo saúde-cuidado para aquilo que é interessante ao maior afetado – o paciente –, sendo este um caminho possível encontrado nos atendimentos à saúde desta população. O foco da atenção ao trabalhador da reciclagem torna-se o sujeito e a clínica, e não os indicadores coletivos de atenção à saúde. Muda-se o foco da atuação profissional para a construção da saúde a partir dos desejos, anseios e buscas de cada indivíduo, na atitude de cuidar. Para isso, sugere Ayres2525. Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2001; 6(1):63-72.:

[...] não se deve diminuir em nada a importância do controle da doença, seja de sintomas, da patogênese, da infecção ou de epidemias. Mas deve ser revista sua exclusividade como critério normativo de sucesso das práticas de saúde. [...] Cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para cuidar há que se considerar e construir projetos; há que se sustentar, ao longo do tempo, uma certa relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente, moldados a partir de uma forma que o sujeito quer opor à dissolução, inerte e amorfa, de sua presença no mundo2525. Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2001; 6(1):63-72.. (p. 69)

Partindo dos achados desta pesquisa, pode ser sugerido às equipes de APS responsáveis pelo atendimento de trabalhadores da reciclagem que busquem adaptar suas agendas para flexibilizar os horários de chegada, focando seu atendimento a partir das demandas dos usuários, dando atenção pontual e resolutiva às situações para assim construir um vínculo duradouro com a população. Para essa construção, é necessário que haja uma escuta acolhedora, sem preconceitos, para que a população vulnerável compreenda que aquele espaço em saúde é o local para busca de atenção, como relata Vasconcelos2424. Vasconcelos JPR. A saúde de catadores/catadoras de materiais recicláveis: do contexto de vida ao enfrentamento do cotidiano [dissertação]. Ceilândia: Universidade de Brasília; 2016.:

A busca pelo cuidado em saúde das catadoras é marcada por uma peregrinação nos serviços públicos de saúde. A demora na marcação das consultas e cirurgias faz com que elas procurem serviços privados de saúde na tentativa de suprir suas necessidades2424. Vasconcelos JPR. A saúde de catadores/catadoras de materiais recicláveis: do contexto de vida ao enfrentamento do cotidiano [dissertação]. Ceilândia: Universidade de Brasília; 2016.. (p. 68)

Um serviço de APS que oferte disponibilidade de tempo, acesso, vínculo e resolutividade; sem barreiras de preconceito; e centrado no usuário deverá ser capaz de acolher plenamente a população de trabalhadores da reciclagem.

Para a análise da relação dos trabalhadores da reciclagem com os serviços de saúde em nossa pesquisa, é necessária a ressalva de que as entrevistas foram realizadas pelo médico de Família e Comunidade responsável pelo atendimento clínico de todos os entrevistados, e esta relação direta pode, por um lado, ter influenciado as respostas relativas ao trabalho desempenhado pelo serviço de saúde. Porém, por outro lado, permitiu a aproximação deste profissional aos entrevistados, pois já há um vínculo estabelecido, e entre ambos, o que potencializa a obtenção dos dados necessários às entrevistas qualitativas, como afirma Fraser2626. Fraser MTD, Gondim SMG. Da fala do outro ao texto negociado: discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Paidéia. 2004; 14(28):139-52.:

Por meio da interação verbal de entrevistado e entrevistador, é possível apreender significados, valores e opiniões e compreender a realidade social com uma profundidade dificilmente alcançada por outras técnicas [...]. Isto porque, no caso das entrevistas qualitativas, a relação estabelecida entre o entrevistador e o entrevistado permite um diálogo amplo e aberto favorecendo não apenas o acesso às opiniões e às percepções dos entrevistados a respeito de um tema, como também a compreensão das motivações e dos valores que dão suporte à visão particular da pessoa em relação às questões propostas2626. Fraser MTD, Gondim SMG. Da fala do outro ao texto negociado: discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Paidéia. 2004; 14(28):139-52.. (p. 150)

A relação entre o entrevistador e entrevistados pode ser vista ao mesmo tempo como limitação e potencialidade da metodologia proposta. Além desta, outra limitação é a de que a pesquisa tem por objetivo buscar a visão dos trabalhadores da reciclagem sobre o atendimento em saúde, não sendo possível produzir alguma forma de avaliação quantitativa do trabalho da equipe de APS. Por fim, o objetivo desta pesquisa é a compreensão do processo saúde-doença-cuidado dos trabalhadores da reciclagem; portanto, não é possível avaliar a partir desta dados epidemiológicos de doenças e acidentes dos recicladores.

A literatura internacional apresenta um vasto número de pesquisas, em especial, em países em desenvolvimento da Ásia, África e América do Sul, relatando os riscos aos quais os trabalhadores da reciclagem são expostos, quais agravos são mais frequentes nessa população e qual é sua condição de saúde, sendo em sua maioria estudos epidemiológicos2727. Cruvinel VRN, Marques CP, Cardoso V, Novaes MRCG, Araújo WN, Angulo-Tuesta A, et al. Health conditions and occupational risks in a novel group: waste pickers in the largest open garbage dump in Latin America. BMC Public Health. 2019; 19(1):581.,2828. Fazzo L, Minichilli F, Santoro M, Ceccarini A, Della Seta M, Bianchi F, et al. Hazardous waste and health impact: asystematic review of the scientific literature. Environ Health. 2017; 16:107.. Uma revisão sistemática cita estudos qualitativos como o presente, porém, de forma crítica, considerando que é uma metodologia de pesquisa que tende a trazer um viés em pesquisas epidemiológicas2929. Ncube F, Ncube EJ, Voyi K. A systematic critical review of epidemiological studies on public health concerns of municipal solid waste handling. Perspect Public Health. 2017; 137(2):102-8.. Acreditamos que nossa pesquisa pode contribuir para a compreensão do olhar do trabalhador da reciclagem a respeito de seu processo saúde-doença-cuidado.

Conclusão

A reciclagem para muitos trabalhadores é uma última opção de sobrevivência dentro das regras sociais do mundo do trabalho e, apesar de todas as suas dificuldades, esforços e sobrecargas, é também vista como uma forma digna de sobrevivência e valorizada como um dos maiores bens de suas vidas, pois fornece a esses indivíduos a possibilidade de trabalhar. Essa valorização leva-os a subestimar os riscos e danos causados pelo trabalho, o que impacta na sua relação com os serviços de saúde: a procura pela atenção à saúde é pontual, não longitudinal e com intenção de retomar a condição de saúde para poder seguir trabalhando. Para ofertar a atenção adequada, as equipes de APS responsáveis pelo atendimento dessa população devem adaptar suas agendas para flexibilizar os horários de chegada e dar atenção pontual às demandas trazidas com uma clínica de baixa expectativa para construir um vínculo duradouro com os trabalhadores, ofertando uma qualidade de serviço adequada aos seus interesses e mudando o foco da atuação profissional para a construção da saúde a partir dos desejos, anseios e buscas de cada indivíduo, na atitude de cuidar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2019
  • Aceito
    06 Jul 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br