Quem inventou a fome são os que comem**Da obra “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus, 1960.: da invisibilidade à enunciação – uma discussão necessária em tempos de pandemia

It is those who eat who invented hunger**From the work Quarto de Despejo by Carolina Maria de Jesus, 1960.: from invisibility to enunciation – a much needed discussion in times of pandemic

Quienes inventaron el hambre son los que comen**De la obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, 1960.: de la invisibilidad a la enunciación – una discusión necesaria en tiempos de pandemia

Maria Fernanda Petroli Frutuoso Cássio Vinícius Afonso Viana Sobre os autores

Resumos

Este texto tem o objetivo de discutir a importância da enunciação da fome com base na emergência da pandemia de Covid-19. Para tanto, apresenta um breve histórico sobre o uso dos termos fome e (in)segurança alimentar e nutricional, partindo da pioneira experiência brasileira de Josué de Castro e do pressuposto que nomear ou não a ausência regular de comida em quantidade suficiente para manutenção da vida como fome é um ato ético-político, com implicações diretas na construção de programas e políticas públicas para garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Discute a concomitância da fome estrutural e conjuntural, que aponta para a nomeação da fome, não somente como conceito, mas como experiência, um dos caminhos de resistência para os conceitos técnicos, as teorias conformistas ou as produções colonialistas daqueles que comem.

Palavras-chave
Fome; Alimentação; Sociedade; Segurança alimentar e nutricional; Pandemia


This text discusses the importance of the enunciation of hunger during the health emergency caused by the Covid-19 pandemic. To this end, we present a brief overview of the use of the terms hunger and food and nutrition (in)security, drawing on the pioneering experience of the Brazilian doctor Josué de Castro and the assumption that naming or not the absence of regular food in sufficient quantities to sustain life as hunger is a political and ethical act that has direct implications on the construction of public programs and policies to guarantee the human right to adequate food and food and nutritional security. We discuss the concomitance of structural and systemic hunger, not only as a concept, but also as an experience, and as one of the pathways to resistance against technical concepts, conformist theories and colonialist production.

Keywords
Hunger; Diet; Society; Food and Nutrition Security; Pandemic


Este texto tiene el objetivo de discutir la importancia de la enunciación del hambre a partir del surgimiento de la pandemia de Covid-19. Para ello, presenta un breve historial sobre el uso de los términos hambre e (in)seguridad alimentaria y nutricional, partiendo de la pionera experiencia brasileña de Josué de Castro y de la presuposición de que nombrar o no la ausencia regular de comida en cantidad suficiente para el mantenimiento de la vida como hambre es un acto ético-político, con implicaciones directas para la construcción de programas y políticas públicas para garantía del Derecho Humano a la Alimentación Adecuada y Seguridad Alimentaria y Nutricional. Discute la concomitancia del hambre estructural y coyuntural que señalan para el nombramiento del hambre, no solo como concepto, sino como experiencia, como uno de los caminos de resistencia para los conceptos técnicos, las teorías conformistas o las producciones colonialistas de quienes comen.

Palabras clave
Hambre; Alimentación; Sociedad; Seguridad Alimentaria y Nutricional; Pandemia


“A fome, o verme, a brutalidade boçal ainda causam muitas tragédias por aí(...)”(c(c)Trecho da canção “É”, Gilberto Gil (1977).)

Este trabalho se coloca como um convite para pensar a fome presente nos territórios vulnerabilizados em tempos de pandemia e para ampliar nossos enunciados por meio das experiências territoriais, em composição à análise sistêmica dos fatores que produzem a fome.

Fome significa "vontade e necessidade de comer; escassez de alimentos básicos, que provoca carestia e miséria generalizada; apetite ou desejo ardente por algo"1Caparrós M. A fome. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2016. (p. 21), e configura-se como fenômeno complexo da agenda pública mundial de alimentação e nutrição. Neste artigo, a fome é abordada como expressão da violação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no que se refere à instabilidade em garantir a ingestão de quantidade suficiente de alimentos, na presença das contradições dos sistemas alimentares decorrentes do modo de produção capitalista da comida.

Diante de indicadores populacionais brasileiros que apontaram a redução da fome, em 20132Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar. Rio de Janeiro: IBGE; 2014., com consequente aumento em 20173Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020., e a necessidade imperativa de discussão sobre o acesso à terra e à água potável, bem como sobre a produção, distribuição e consumo de alimentos, entre outros, como pensar e nomear a fome como um problema extremamente relevante para o país?

Nomear a fome não somente como conceito, mas experiência, nos parece ser um dos caminhos de resistência para os conceitos técnicos, as teorias conformistas ou as produções colonialistas daqueles que comem. Ora, o que nos parece interessante travar é uma luta para a (re)sensibilização da palavra, para o confronto com esse vazio, reconhecendo os avanços na construção de políticas que interferiram estruturalmente na questão. A baixa prevalência da fome nos diz de um lugar de leitura: o lugar dos números. Qual tem sido nossa relação com outros lugares de leitura, o da convivência com essa experiência ou com aqueles que carregam a responsabilidade da fome injustamente?

Se partirmos do pressuposto de que aqueles que produzem os indicadores, aqueles que teorizam sobre a fome, aqueles que a medem, aqueles que inclusive desenham e implementam as políticas públicas que se interlaçam com o cenário da fome estão saciados, há algo dessa experiência que não está visibilizado. E essa ausência, historicamente, vai deslocando a palavra para o mesmo cenário: o da invisibilidade. Quando é que começaremos a escapar da experiência dolorosa de reconhecer que temos milhares de pessoas com fome no nosso país?

"O maior espetáculo do pobre na atualidade é ter o que comer"(d(d)Da obra “Provérbios” de Carolina Maria de Jesus, 1963, p.50.)

Por meio de uma leitura fatalista da história da humanidade, resultante de um processo de seleção natural e regulação demográfica, até meados do século 20 a fome era considerada um tabu. Essas ideias, disseminadas e defendidas por Thomas Malthus, apontavam a fome como lei natural da vida, como forma de reduzir o número de pessoas e de garantir o equilíbrio diante do aumento da população, da limitação da terra e da produção de alimentos4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013..

A teoria malthusiana teve força até a Segunda Guerra Mundial, cenário que contribuiu para dar visibilidade à fome e provocar as primeiras articulações internacionais integradas para combatê-la, como a criação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 19464Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013..

À época da Segunda Guerra começa a ser usado, com maior frequência, o termo Segurança Alimentar, que surgiu na Europa durante a Primeira Guerra Mundial com vistas a discutir e diminuir a vulnerabilidade dos países em produzir a própria alimentação diante de conflitos políticos ou militares. Partindo da concepção de que condições de insegurança alimentar - ou de fome - relacionam-se à insuficiente disponibilidade de alimentos, começaram a ser organizadas iniciativas assistencialistas de doação com excedentes da produção alimentar de países ricos4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013..

A produção de conhecimento sobre a fome e os esforços para a inclusão desse tema como prioridade de discussão mundial teve a contribuição da experiência brasileira e das proposições de Josué de Castro, médico recifense e estudioso da geografia humana que descreveu a fome como um conceito múltiplo, com gradientes de gravidade, intensidade, magnitude e cronicidade.

Em 1932, Castro realizou o primeiro inquérito nutricional brasileiro: As Condições de Vida das Classes Operárias no Recife5Castro J. As condições de vida das classes operárias no Nordeste. 2a ed. São Paulo: Brasiliense; 1959., com base no orçamento e no padrão de consumo alimentar de famílias de operários. A primeira edição da obra “Geografia da fome”, em 1946, surge no contexto político brasileiro do Estado Novo (1937-1945), momento de transição político-econômica e social que foi pano de fundo para a consolidação da sociedade capitalista urbano-industrial no país. O médico foi membro de um grupo de profissionais que inseriu a discussão da Nutrição em uma vertente social, com ênfase na abordagem e leitura coletivas, na população, na sociedade, na economia e na disponibilidade de alimentos6Vasconcelos FAG. Combate à fome no Brasil: uma análise histórica de Vargas a Lula. Rev Nutr. 2005; 18(4):439-57., ampliando a discussão da área de Nutrição - e da fome - para análises conjunturais políticas.

As contribuições de Castro5Castro J. As condições de vida das classes operárias no Nordeste. 2a ed. São Paulo: Brasiliense; 1959.,7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984. vão aprofundar o debate e a sistematização da discussão da temática. De acordo com o médico, a fome é um fenômeno complexo e que pode ser expresso ou reconhecido de diferentes maneiras: pode ser individual ou coletivo; endêmico ou epidêmico; parcial (oculto) ou total. Ele explicita: a fome endêmica seria a manifestação coletiva e crônica que mostra seus efeitos, em grupos humanos, de forma perene, enquanto a fome epidêmica seria efêmera, intermitente. Já a fome total relaciona-se à fome coletiva que atinge grupos em quase absoluta inanição, em áreas de extrema miséria; e a fome oculta seria a “falta permanente de alimentos e/ou nutrientes nos regimes habituais, quando grupos inteiros de pessoas se deixam morrer lentamente apesar de comerem todos os dias”7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984. (p. 26).

O autor articula os diferentes tipos de deficiências de nutrientes a fatores naturais, sociais, culturais e históricos, por meio da aproximação de referenciais clínicos e epidemiológicos. Os determinantes da fome seriam, de forma simplificada, os flagelos naturais e a desigualdade social, provocadores de situações de insuficiência tanto na quantidade quanto na qualidade da dieta7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984.. A associação da fome ao acesso – ou não – aos alimentos já produz deslocamentos importantes para a discussão, quando é necessário compreender os efeitos do sistema econômico vigente nas possibilidades concretas de uma dieta, isto é, para abarcar a complexidade de um prato de comida na mesa do cidadão é preciso discutir que sistema produz determinado consumo de alimentos.

Essa relação estrutural da fome pode, assim, ser reconhecida em efeitos cada vez mais amplos que seguem interligados e ramificados: doenças mais ou menos visíveis/explícitas que contribuem para uma gama diversa de consequências para a vida de pessoas em situação de fome e sua repercussão sistêmica. A fome das crianças costuma ser efeito da fome dos pais, visto que a manutenção do status quo é condicionante da permanência do capitalismo.

Na linha de compreender os sistemas que geram e produzem a fome, tomando como exemplo a classe operária do Recife, Josué de Castro apontou os processos desordenados de urbanização e marginalização de parte da população, residente em mocambos localizados nos mangues e periferia da cidade, fugida das secas periódicas do sertão nordestino e dos salários insuficientes das usinas açucareiras. Esses cenários contribuiriam para um consumo calórico diário insuficiente, uma dieta monótona (farinha com feijão, charque, café e açúcar), baixo consumo de alimentos protetores (como leite, carne e frutas), lipídios, cálcio e ferro7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984.. Essas características vão ser reconhecidas por ele, e por aqueles que sucederam seus trabalhos, como "péssima qualidade da alimentação operária, sendo seu regime impróprio sob todos os aspectos". O autor sugere que "só há uma maneira de alimentar-se pior do que essa: é não comer nada. É por isso que essa gente não fala em alimentar-se, mas em enganar a fome"5Castro J. As condições de vida das classes operárias no Nordeste. 2a ed. São Paulo: Brasiliense; 1959. (p.87-8).

Em uma análise de conjuntura da produção desse cenário do Nordeste açucareiro – um regime alimentar impróprio, com a presença de fome e de carências nutricionais –, reconhece-se que esses efeitos são fruto da colonização e da introdução da cultura da cana-de-açúcar que, ao assumir proporções de monocultura, impediam a diversificação da alimentação da maioria da população da região. Josué de Castro foi pioneiro ao demonstrar que a fome é decorrente das desigualdades sociais, incluindo a distribuição de terras: no cenário supracitado, a lógica latifundiária ocupava os espaços da produção de alimentos para subsistência.4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013.,5Castro J. As condições de vida das classes operárias no Nordeste. 2a ed. São Paulo: Brasiliense; 1959.,7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984. Ao mesmo tempo, o autor afirmava a fome como expressão de desigualdades sociais relacionadas a gênero, classe social, idade, grupo étnico e geografia.

Baseando-se nas experiências dos cultivos tradicionais de comunidades quilombolas e sertanejas, Josué de Castro defendeu a agricultura de sustentação para o combate ao latifúndio improdutivo e à fome, que contribuiria para a variedade alimentar por meio de relações produtivas de cooperação e sustentáveis econômica, social, ambiental e culturalmente8Schappo S. Josué de Castro e a agricultura de sustentação em Geografia da Fome. Sociologias. 2014; 16(35):306-38..

Tais ideias contrapõem uma das teorias explicativas para a fome - a da diminuição da disponibilidade de alimentos (food availability decline) - que considera a questão como decorrente da produção insuficiente de alimentos, que poderia ser revertida por um sistema alimentar com grandes corporações agrárias que garantiriam a exploração da terra, o aumento da produtividade e a redução de preços de alimentos. Essa vertente dialoga com a teoria neomalthusiana que defende o controle do crescimento populacional, especialmente nos locais onde a prevalência de fome é elevada9Contreras J, Gracia M. Segurança e insegurança alimentar. In: Contreras J, Gracia M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 333-87..

Carolina Maria de Jesus, escritora que inspira o título deste trabalho, dialoga profundamente com Castro quando afirma que "quem inventou a fome são os que comem". Ao reconhecer a fome como um efeito de uma sociedade latifundiária, capitalista e desigual, a escritora atribui a fome aos seus responsáveis: os patrões, aqueles que comem. Eles é que inventam a fome, a sustentam, a mantêm e lucram com ela.

A produção intelectual que contribui para essas leituras nos faz uma denúncia imediata: teorias colonialistas por meio "daqueles que comem", com visões unilaterais que servem a eles mesmos. Visões essas que desresponsabilizam a produção e as decisões que criam as condições para a fome e, imediatamente, passam a destinar essa responsabilidade para aqueles que sentem essa sensação. Nessa leitura, a culpa da fome seria daqueles que não comem e a invenção dessa fome seria de responsabilidade demográfica, e não por decisões políticas que imprimiram relações desiguais de acesso, produção e consumo de alimentos.

O alimento como mercadoria: "nunca jamais se viu tanto peixe assim (...) olha o arrastão entrando no mar sem fim"(e(e)Trecho da canção “Arrastão”, de Vinícius de Moraes e Edu Lobo (1965).)

Se recuperarmos um panorama histórico desde as primeiras contribuições de Josué de Castro para problematizar as teorias que relacionam a fome à insuficiente produção de alimentos, ainda que tenhamos observado avanços econômicos, sociais e sanitários nas últimas décadas – como o crescimento do setor agrícola e a produção global de alimentos teoricamente suficiente para satisfazer a demanda da população mundial –, não há garantia de que todas as pessoas tenham acesso aos alimentos em quantidade e qualidade suficientes no Brasil e no mundo.

Paradoxalmente, embora a fome tenha acompanhado a história da humanidade, como afirma Castro7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984. (p. 5): "eis um problema tão velho quanto a própria vida", e esteja em foco nos períodos de escassez de alimentos, ela perde a visibilidade e se incorpora a uma sociedade de abundância, na qual há enorme produção de alimentos9Contreras J, Gracia M. Segurança e insegurança alimentar. In: Contreras J, Gracia M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 333-87.,10Poulain JP. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. 2a ed. Florianópolis: Editora da UFSC; 2013.. Nessa perspectiva, teorias críticas com enfoque dialético discutem a fome como patologia social, por meio de políticas macroeconômicas e das relações assimétricas no mercado entre as economias capitalistas4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013.,9Contreras J, Gracia M. Segurança e insegurança alimentar. In: Contreras J, Gracia M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 333-87..

A sociedade de abundância tem relação direta com o cenário epidemiológico nutricional da população, o que coloca o desafio de (re)pensarmos a questão da fome diante da mudança dos efeitos visíveis em que ela estaria se manifestando. Na população brasileira, à época dos trabalhos de Josué de Castro, entre 1930 e 1970, o cenário era predominantemente caracterizado por doenças carenciais (desnutrição energético-proteica, deficiência de vitamina A, anemia ferropriva, entre outras). A partir das duas últimas décadas do século 20, aumentou o número de casos de doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à alimentação (obesidade, diabetes, hipertensão, certos tipos de câncer etc.), haja vista a mudança do cenário político econômico no Brasil e no mundo, no qual a população, no geral, obteve maior poder de compra e acesso aos alimentos11Pérez-Escamilla R. Food security and the 2015–2030 sustainable development goals: from human to planetary health. current developments in nutrition. Curr Dev Nutr. 2017; 1(7):e000513..

Apesar de as doenças carenciais e as doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à alimentação apresentarem causas complexas, possuem em comum a presença de dietas nutricionalmente inadequadas que resultam em diversas formas de má nutrição11Pérez-Escamilla R. Food security and the 2015–2030 sustainable development goals: from human to planetary health. current developments in nutrition. Curr Dev Nutr. 2017; 1(7):e000513.. O desenvolvimento da indústria alimentícia e os processos de urbanização interferiram diretamente nos padrões de produção e consumo de alimentos: ampliou-se a distância entre produtores e consumidores, aumentou-se a disponibilidade e a demanda por alimentos ultraprocessados de maior densidade calórica, menos variados e mais baratos12Food and Agriculture Organization. The state of food security and nutrition in the world 2019. Safeguarding against economic slowdowns and downturns. Rome: FAO; 2019.. Com o aumento da prevalência de sobrepeso e obesidade diante de dietas inadequadas, com deficiências de nutrientes, a proposição de Josué de Castro sobre a fome oculta permanece.

Pensar no manejo desse cenário implica reforçar o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN):

[...] direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis13Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.346, de 15 de Setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União. 18 Set 2006.. (p. 1*)

Também implica a necessidade de pensar os sistemas alimentares incorporando a noção de sindemia global, caracterizada pelas pandemias de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas – com seus efeitos sobre a saúde e os sistemas naturais14Swinburn BA, Kraar VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission Report. Lancet. 2019; 393(10173):791-846.. É pensar na alimentação como problema complexo, multifatorial e de rede interligada, incluindo a estabilidade em manter uma dieta adequada quanti e qualitativamente.

No campo dessas garantias, somente em 2010 a alimentação foi incluída como direito social fundamental na Constituição Federal do Brasil15Brasil. Emenda Constitucional nº 64, de 4 de Fevereiro de 2010. Altera o art. 6º da Constituição Federal para introduzir a alimentação como direito social. Diário Oficial da União. 4 Fev 2010.. Nas sociedades capitalistas urbano-industriais, coloca-se o desafio de lidar com a alimentação – e suas consequências – tanto na perspectiva de uma parte da população que atinge um patamar de consumo e acesso aos alimentos (não necessariamente adequados) como da parte que permanece em condições degradantes de existência humana, sem acesso diário à quantidade suficiente de comida.

Discutir os sistemas alimentares requer abordar a complexidade de produção, distribuição e comercialização dos alimentos que, cada vez mais, dependem de fluxos comerciais globais. A concentração de propriedade e tecnologia controla não só a produção de alimentos como toda a cadeia alimentar (maquinário agrícola, pesticidas, sementes; comercialização de matérias-primas - commodities; processamento, transporte, distribuição e vendas no varejo de alimentos). É nesse cenário que se inserem as empresas transnacionais que servem, exclusivamente, ao mercado mundial e globalizado com grande consolidação a partir da metade do século 204Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013., o que guarda íntima relação com uma perspectiva neoliberal de entendimento e combate à fome:

Para combater a fome, é preciso incrementar a produtividade, o que só é possível sob duas condições: uma industrialização levada ao limite, mobilizando um máximo de capital e as tecnologias mais avançadas – os bens disponíveis não atendem às necessidades existentes e eliminando, como corolário, a miríade de pequenas explorações reputadas "improdutivas" da agricultura familiar e de víveres; segunda, a liberalização tão completa quanto possível do mercado agrícola mundial4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013.. (p. 157-8)

Uma ilustração breve da atuação das sociedades transcontinentais está na produção de bioetanol: produzido com a cana-de-açúcar, apresenta a justificativa de substituir a energia fóssil e o consequente dano aos homens e ao meio ambiente, grandes extensões de terra servem à produção desse tipo de combustível, com elevada demanda de água e energia4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013.. Em Pernambuco, grandes proporções de terras atendem à produção canavieira antes ocupada por pequenos plantadores de cereais e leguminosas que migraram para Recife, a capital, ou se tornaram cortadores de cana explorados. Trata-se do modelo capitalista do monopólio agrícola da terra e da produção intensiva de matérias-primas que fomenta não só a pobreza rural como a urbana7Castro J. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10a ed. Rio de Janeiro: Edições Antares; 1984.. Desse contexto se pode depreender que as análises de Josué de Castro sobre o Nordeste açucareiro se mantêm.

A produção de alimentos – suficiente para alimentar a população mundial – atende ao comércio internacional, que destina as matérias-primas e os insumos alimentares básicos aos mercados mais lucrativos, como a produção de alimentos para consumo animal e biocombustíveis e o uso na especulação financeira de commodities e controle da balança comercial de exportação/importação4Ziegler J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez; 2013.,16Machado PP, Oliveira NRF, Mendes AN. The indigestible system of food as commodity. Saude Soc. 2016; 25(2):505-15.. Interessa colocar luz sobre a ideia de que monitorar indicadores relacionados à produção/disponibilidade agrícola não implica defender somente o aumento da produção por meio de novas tecnologias, mas sim ampliar o olhar para as relações de poder que resultam no insuficiente acesso dos mais pobres aos alimentos já produzidos e que são majoritariamente responsáveis pela produção estrutural da fome. Trata-se, portanto, de uma discussão que envolve a inclusão social e a sustentabilidade, como também a perversidade das transações comerciais regionais e mundiais. Como pontuam Contreras e Gracia9Contreras J, Gracia M. Segurança e insegurança alimentar. In: Contreras J, Gracia M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 333-87., o risco é restringir a fome a um problema técnico, sob a lente dos campos disciplinares e, portanto, tecnicamente solucionável, como uso de tecnologias para aumento da produção de alimentos, controle da natalidade e do aumento populacional, prevenção e apoio em catástrofes naturais, entre outros.

Em meio à pandemia, "não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa"(f(f)Da obra “Inumeráveis” de Edson Padovani, 2020. Memorial on-line dedicado à história das vítimas do corona vírus no Brasil.)

Das perspectivas apresentadas brevemente até aqui, desdobram-se inúmeras problematizações e nos interessa levantar, longe de abarcar completamente e de esgotar a discussão, algumas questões que emergem da complexa pauta da fome no Brasil que se coloca com base na emergência internacional relacionada à pandemia da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)17World Health Organization. Director-General’s statement on IHR Emergency Committee on Novel Coronavirus (2019-nCoV) [Internet]. Genebra: WHO; 2020 [citado 3 Mar 2020]. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-statement-onihr-emergency-committee-on-novel-coronavirus-(2019-ncov)
https://www.who.int/dg/speeches/detail/w...
em janeiro de 2020.

Caparrós1Caparrós M. A fome. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2016. aponta que a fome conjuntural - aguda, visível, produzida repentinamente por catástrofes naturais e conflitos - responde ao contexto da sociedade contemporânea e dá visibilidade às ações políticas e humanitárias emergenciais, enquanto a fome estrutural - crônica, permanente, provocada pela produção/acesso insuficiente aos alimentos - aparenta não ter espaço nesta sociedade, uma vez que, silenciosa, parece aproximar-se da normalidade.

O contexto da pandemia e as recomendações de isolamento social no país explicitam as brutais desigualdades sociais e a concomitância das fomes estrutural e conjuntural que, imbricadas, nos trazem a questão: o que queremos dizer quando (não) falamos em fome? Com essa questão, vamos ao encontro de Caparrós1Caparrós M. A fome. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2016. afirmando que com o uso de termos técnicos, ainda que menos ofensivos e mais precisos para definir um problema, se furta da emoção e da disseminação do conhecimento. Assim, defendemos e investimos na posição política de nomear a fome fazendo disso um contraponto à "normalidade insidiosa de vidas nas quais não comer o necessário é o mais habitual"1Caparrós M. A fome. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2016. (p. 33).

Tomando a perspectiva da fome estrutural no Brasil, reconhece-se o avanço da experiência brasileira no declínio da magnitude da insegurança alimentar no país, por meio da construção de políticas públicas de proteção social e de alimentação e nutrição, que reduziram a quantidade da população em situação de pobreza e de extrema pobreza e consequentemente diminuíram a prevalência de desnutrição com melhorias na escolaridade materna, programas de transferência condicionada de renda e apoio à agricultura familiar, entre outros18Sousa LRM, Segall-Corrêa AM, Ville AS, Melgar-Quiñonez H. Food security status in times of financial and political crisis in Brazil. Cad Saude Publica. 2019; 35(7):e00084118.,19Vasconcelos FAG, Machado ML, Medeiros MAT, Neves JA, Recine E, Pasquim EM. Public policies of food and nutrition in Brazil: from Lula to Temer. Rev Nutr. 2019; 32:e180161.. Também são reconhecidos o intenso e histórico debate brasileiro e o avanço na governança da SAN, com a participação da academia e da sociedade civil em espaços como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) na formulação/implementação de políticas públicas federais, por exemplo, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e a construção de arcabouços legais de combate à fome18Sousa LRM, Segall-Corrêa AM, Ville AS, Melgar-Quiñonez H. Food security status in times of financial and political crisis in Brazil. Cad Saude Publica. 2019; 35(7):e00084118.

Vasconcelos FAG, Machado ML, Medeiros MAT, Neves JA, Recine E, Pasquim EM. Public policies of food and nutrition in Brazil: from Lula to Temer. Rev Nutr. 2019; 32:e180161.
-20Silva ACF, Recine E, Johns P, Gomes FS, Ferraz MA, Faerstein E. History and challenges of Brazilian social movements for the achievement of the right to adequate food. Glob Public Health. 2019; 14(6-7):875-83..

Ora, não nos parece coincidência que os avanços nas políticas públicas de combate à fome no Brasil estejam, também, relacionados ao apelo do Programa Fome Zero, que enunciava o problema da fome, sua magnitude e a complexidade das políticas públicas de SAN no país. Pontuamos aqui o fato de que nomear o problema da fome como fome é uma decisão política do debate visibilidade/enunciação que, no caso do Programa Fome Zero, ao escolher o termo fome em detrimento de outros termos, como desnutrição ou insegurança alimentar, pode ter acarretado um alcance e uma eficácia diferente de outros programas com a mesma temática. Qual o apelo e os significados que as ações políticas podem gerar para a população com base na forma com que são nomeadas? O apelo e os significados seriam os mesmos se esse programa fosse chamado de "Desnutrição Zero" e/ou "Insegurança Alimentar Zero"? Nomear a fome remete a algo que muitos brasileiros sabem o que significa - como experiência -, o que não necessariamente acontece quando usamos outros termos e/ou conceitos.

Dados nacionais, de 2013-2014, medidos pela percepção de insegurança alimentar e nutricional em nível domiciliar, apontam que 3,2% da população apresentava insegurança alimentar grave que inclui as situações de fome: quando alguém fica um dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos. A insegurança alimentar era maior entre a população rural, regiões Norte e Nordeste, nos domicílios com a presença de menores de 18 anos, de negros e com mulheres como chefes de família2Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: segurança alimentar. Rio de Janeiro: IBGE; 2014.. Dados recentes apontam que a insegurança alimentar grave triplicou (de 4% em 2013 para 12% em 2017), sendo mais frequente entre os mais pobres e em situações mais precárias de emprego, apoio social e escolaridade decorrentes da crise no país3Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020..

Ainda que o Brasil tenha, em 2014, sido declarado fora do Mapa da Fome, José Graziano21Graziano J. O problema da fome não está na produção de alimentos - entrevista. Rev Radis. 2018; 186:23-4., ex-diretor geral da FAO, nos chama a atenção para:

A cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meia-idade, com muitas crianças e que vive no meio rural. Em geral, o marido migra e não a leva, resultando em grande parte no abandono da família. Essa mulher, com muitos filhos, já de uma idade mediana e que foi abandonada, tem de ser beneficiária de mecanismo de proteção social – se não, jamais irá deixar tal condição, assim como os seus filhos. Essa é a geração que está sendo comprometida pela ausência de políticas sociais. Então, por mais deficiências que possam ter programas de transferência de renda – e que geralmente não têm, pois são facilmente corrigidos –, não se justifica deixar sem um mínimo atendimento às pessoas que não têm condições de ter acesso à alimentação. Apesar disso, uma outra cara da fome brasileira, como revelado na última PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], está também na periferia dos centros urbanos, onde se encontra um grande número de famílias sem emprego estável21Graziano J. O problema da fome não está na produção de alimentos - entrevista. Rev Radis. 2018; 186:23-4.. (p. 24)

O contexto da pandemia trouxe à tona a ainda existente e crescente fome estrutural no país, a despeito dos indicadores que apontam tendência de diminuição e da enorme extensão territorial e produção agrícola, que coloca o Brasil entre um dos maiores produtores mundiais de alimentos. O risco de aumento da fome no país já havia sendo alertado em discussões e documentos de organizações da sociedade civil e da academia, diante de reformas, como a trabalhista, com aumento do desemprego, da pobreza e da desigualdade social; cortes e congelamentos de gastos públicos com impacto direto em políticas públicas18Sousa LRM, Segall-Corrêa AM, Ville AS, Melgar-Quiñonez H. Food security status in times of financial and political crisis in Brazil. Cad Saude Publica. 2019; 35(7):e00084118.,22Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030. Relatório Luz da agenda 2030 de desenvolvimento sustentável: síntese [Internet]. Brasília: INESC; 2019 [citado 25 Jan 2019]. Disponível em: http://actionaid.org.br/wp-content/files_mf/1499785232Relatorio_sintese_v2_23jun.pdf
http://actionaid.org.br/wp-content/files...
. Ilustram esse cenário as disputas recentes relacionadas ao agronegócio que desmontam as estruturas públicas de produção, distribuição e abastecimento de alimentos, reavivam as análises de Josué de Castro e reforçam a sindemia global14Swinburn BA, Kraar VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission Report. Lancet. 2019; 393(10173):791-846.: o incentivo à monocultura e ao monopólio dos mercados agrícolas, a liberação do uso de agrotóxicos, as práticas ilegais de desmatamento e emissão de gases do efeito estufa – sob a justificativa de que "Agro é tech e agro é pop"(g(g)https://www.brasilagro.com.br/conteudo/o-agro-nao-e-pop-por-joao-rosa.html).

A fome estrutural restrita aos corpos marginalizados apontados por Graziano21Graziano J. O problema da fome não está na produção de alimentos - entrevista. Rev Radis. 2018; 186:23-4. - população rural e periférica dos centros urbanos - ganha mais visibilidade com a pandemia: como um exorcismo da palavra, que sai de dentro do corpo para ser enunciada nas relações dele com a sociedade e, nesse caso, especialmente com o mercado. Tal deslocamento vai reforçar a discussão de fome e os fatores histórico-sociais que atravessam esses corpos em relação a classe, raça e gênero certamente vão rechear os dados, de maneira mais complexa e real, e ampliar as análises sociais e conjunturais da fome no contexto dentro e fora da pandemia.

A perspectiva da fome conjuntural, em tempos de isolamento social como estratégia de mitigação da pandemia, dá visibilidade a ações políticas e humanitárias emergenciais e denunciam, nas manchetes de jornais, uma "fome de proporções bíblicas"(h(h)https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2020/04/22/interna_mundo,847117/covid-19-crise-pode-causar-fome-de-proporcoes-biblicas-diretor-da-onu.shtml) e o "retrocesso de vinte anos no combate à fome no mundo"(i(i)https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/covid-19-pode-causar-retrocesso-de-20-anos-no-combate-fome-no-mundo).

O isolamento social limita o acesso à renda e aos alimentos – e ao gás de cozinha – e escancara, entre outras, a insegurança alimentar e nutricional e a fome dos estudantes que, com a interrupção das atividades educacionais, se distanciaram da alimentação ofertada pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e pelo Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), abrangentes políticas públicas de combate à fome e garantia da SAN em creches, escolas e universidades; a fome de muitas famílias que, dependentes de trabalho informal e precarizado, não conseguem recursos para a manutenção das necessidades básicas cotidianas, como a alimentação; e a fome da população em situação de rua, apartada de condições dignas de vida.

A discussão e as decisões sobre a fome ganham complexidade por meio de corpos em risco na busca de comida e/ou recursos e na luta pela vida que não se distancia dos contornos do mercado neoliberal. Como exemplo, a adaptação da venda de restaurantes comerciais por delivery, ainda que possa garantir a sobrevivência desse setor, evidenciam o trabalho já precarizado pela reforma trabalhista recente, de entregadores de plataformas virtuais que se mantêm trabalhando em condições mais insalubres de exposição ao vírus23Oliveira TC, Abranches MV, Lana RM. Food (in)security in Brazil in the context of the SARS-CoV-2 pandemic. Cad Saude Publica. 2020; 36(4):e00055220..

Retomando brevemente a discussão dos sistemas alimentares, no que diz respeito à sindemia e aos fluxos comerciais globais, a pandemia reforça a necessidade de criar sistemas alimentares agroecológicos, sustentáveis e resistentes, como bem público24Ipes-food. COVID-19 and the crisis in food systems: symptoms, causes, and potential solutions [Internet]. Ipes-food; 2020 [citado 2 Maio 2020]. Disponível em: http://www.ipes-food.org/_img/upload/files/COVID-19_CommuniqueEN.pdf
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. Em tempos de pandemia, ampliam-se as ameaças à agroecologia como modo de produção de alimentos contra-hegemônico, que valoriza os circuitos curtos e locais de produção/comercialização de alimentos e o seu acesso pelas famílias mais vulneráveis. A agroecologia é campo de disputa diante da agricultura industrial e da visibilidade das grandes empresas transnacionais nas campanhas midiáticas emergenciais de ajuda humanitária e das grandes redes de supermercados e atacadistas, que não se furtam da prática de preços abusivos, com impacto direto sobre a população vulnerável.

As ações políticas emergenciais, determinadas pela elite política e econômica, incluem reforço à rede de apoio socioassistencial e auxílio emergencial reforçando a violação dos direitos básicos historicamente posta às minorias. Os enunciados sobre a produção de conhecimento - e soluções - para a pandemia de Covid-19 têm o forte caráter normativo e emergencial, necessário para o alcance de impactos imediatos, mas insuficiente e limitado para dar conta da complexidade dos problemas invisíveis ao poder local/global porque "são endêmicos, não mudam com rapidez as taxas de morbimortalidade da população e têm reduzido potencial de propagação em direção aos países ricos"25Ventura DFL, Ribeiro H, Giulio GM, Jaime PC, Nunes J, Bógus CM, et al. Challenges of the COVID-19 pandemic: for a Brazilian research agenda in global health and sustainability. Cad Saude Publica. 2020; 36(4):e00040620..

Entre esses problemas, a insegurança alimentar e nutricional e a fome se destacam e, a despeito do enfraquecimento e das disputas relacionadas à participação da sociedade civil nos espaços de discussão e desenho de políticas públicas de alimentação e nutrição com a extinção do Consea(j(j)A medida provisória (MP) n. 870 de 1 de janeiro de 2019 revoga inciso e artigo da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, extinguindo o Consea. A extinção foi aprovada pelo Congresso Nacional em 24 de setembro de 2019.), a organização da sociedade civil tem contribuído para o enfrentamento emergencial da fome e é dos territórios das ruas e da periferia – territórios da vida – que emergem as iniciativas de apoio e articulação comunitária, gestão coletiva, solidariedade e compartilhamento de comida. Como referido anteriormente, a responsabilidade do combate à fome recai sobre aqueles que a sentem e não sobre aqueles que a inventaram.

Nesse cenário, é urgente construir possibilidades de compreensão e análise crítica da produção da experiência de sentir/viver com fome, diretamente nos territórios vulnerabilizados, e propor ações que desloquem essa insensibilidade à temática. Sensibilizar, talvez, seja uma maneira de trazer urgência para o confronto com essa sensação. Como Carolina Maria de Jesus, reconhecemos que é tempo de técnicos, gestores, intelectuais e patrões assumirem a responsabilidade sobre a invenção da fome, e aliar-se àqueles que sentem e vivem essa experiência, para melhor compreendê-la e construir estratégias que, de fato, a combatam. Ou como diria Chico Buarque: "você que inventou de inventar toda escuridão (...) ora tenha a fineza de 'desinventar'"(k(k)Trecho da canção “Apesar de você”, Chico Buarque (1970).).

  • Frutuoso MFP, Viana CVA. Quem inventou a fome são os que comem: da invisibilidade à enunciação – uma discussão necessária em tempos de pandemia. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200256 https://doi.org/10.1590/interface.200256
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    Da obra “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus, 1960.
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    From the work Quarto de Despejo by Carolina Maria de Jesus, 1960.
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    De la obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, 1960.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2020
  • Aceito
    19 Nov 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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