Desafios na comunicação entre homens e seus médicos de família

Communication challenges between men and family doctors

Desafíos en la comunicación entre hombres y sus médicos de familia

Guilherme Coelho Dantas Wagner dos Santos Figueiredo Marcia Thereza Couto Sobre os autores

Resumos

O artigo discute aspectos da comunicação na relação médico(a) + homem usuário no contexto de serviços com Estratégia de Saúde da Família (ESF). A presente pesquisa qualitativa foi realizada em três fases distintas e articuladas, com triangulação de técnicas (entrevistas semiestruturadas e grupos focais) e com homens usuários e médico(a)s de Família e Comunidade (MFC) em serviços de saúde em Florianópolis, SC, Brasil. As análises apontam que a busca por consulta é guiada por sintomas e/ou pressão de familiares e pela expectativa por exames que comprovem estarem saudáveis. O(a)s MFC incentivam o autocuidado sem efetivamente convencer os usuários. A troca frequente de médico(a) é um forte entrave para o vínculo e a comunicação. O estudo contribui para o debate sobre a relação médico(a) + pessoa em segmento da população reticente e pouco envolvido com o autocuidado e a prevenção.

Palavras-chave
Saúde do homem; Barreiras de comunicação; Relações médico-paciente; Pesquisa qualitativa; Medicina de Família e Comunidade


This article discusses aspects of communication in the doctor-male patient relationship in the context of family health strategy services. A qualitative study was undertaken with family and community doctors (FCDs) in health services in Florianópolis, Brazil in three distinct stages using triangulation techniques (semi-structured interviews and focus groups). The findings show that seeking an appointment was guided by symptoms and/or family pressure and the expectation of receiving examination results that show that the patient is healthy. The FCDs encouraged self-care without effectively convincing the patients. The frequent change of doctors strongly hampered the creation of doctor-patient bonds and communication. This study contributes to the discussion about doctor-patient relationships in a segment of the population that is reticent and not very engaged in self-care and prevention.

Keywords
Men’s health; Communication barriers.; Doctor-patient relations; Qualitative research; Family and Community Medicine


El artículo discute aspectos de comunicación en la relación médico(a) + hombre usuario en el contexto de servicios con Estrategia de Salud de la Familia (ESF). Investigación cualitativa realizada en tres fases distintas y articuladas, con triangulación de técnicas (entrevistas semiestructuradas y grupos focales), con hombre usuarios y Médicos(as) de Familia y Comunidad (MFC) en servicios de salud en Florianópolis, Estado de Santa Catarina, Brasil. Los análisis señalan que la búsqueda de la consulta es dirigida por síntomas y/o presión de familiares y por la expectativa de realización de análisis que demuestren que están saludables. Los(las) MFCs incentivan el autocuidado, sin efectivamente convencer a los usuarios. El cambio frecuente de médico(a) es un fuerte obstáculo para el vínculo y la comunicación. El estudio contribuyó para el debate sobre la relación médico(a)+persona en un segmento de la población reticente y poco involucrado en el autocuidado y la prevención.

Palabras clave
Salud del hombre; Barreras de comunicación; Relaciones médico-paciente; Investigación cualitativa; Medicina de Familia y Comunidad


Introdução

A relação homens-saúde começa a ter destaque em investigações internacionais na década de 1980, especialmente a partir do reconhecimento do paradoxo no qual ao mesmo tempo que os homens detêm poder e prestígio frente às mulheres na sociedade também apresentam sobretaxas de mortalidade para a grande maioria das causas de morte11 Couto MT, Gomes R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2569-2578.. No campo da Saúde Coletiva no Brasil, observa-se o incremento da discussão de gênero e das masculinidades a partir dos anos 200022 Araújo MD, Schraiber LB, Cohen DD. Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):805-818.. No curso das pesquisas iniciais sobre homens e cuidado à saúde no país, aspectos relativos ao autocuidado reduzido, o reforço de comportamentos de riscos danosos à saúde de si e de outros e a baixa procura e adesão a serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) geraram interesse político por parte do Ministério da Saúde (MS) em elaborar a Política de Atenção Integral à saúde do Homem (PNAISH), oficialmente lançada em 200933 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departamento de ações programáticas estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde do homem. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.. Essa política estabeleceu, desde sua origem, a APS como eixo central de suas ações.

A PNAISH tem enfrentado desafios e dificuldades desde sua formulação pela escassez de recursos alocados, pelo limitado envolvimento de grupos de interesse da sociedade civil e pelas críticas oriundas de especialistas acerca da não incorporação das discussões de gênero, o que resultou na incorporação do homem como objeto, ao invés de sujeito44 Medrado B, Lyra J, Azevedo M. Eu não sou só próstata, eu sou um Homem: por uma política pública de saúde transformadora da ordem de gênero. In: Gomes R, organizador. Saúde do homem em debate. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. p. 39-74.,55 Leal AF, Figueiredo WS, Silva GSN. O percurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Homens (PNAISH), desde a sua formulação até sua implementação nos serviços públicos locais de atenção à saúde. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2607-2616.. Estudos sobre a implementação da PNAISH, como o de Leal et al.55 Leal AF, Figueiredo WS, Silva GSN. O percurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Homens (PNAISH), desde a sua formulação até sua implementação nos serviços públicos locais de atenção à saúde. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2607-2616. e de Moura et al.66 Moura EC, Santos WD, Neves AC, Gomes R, Schwarz E. Atenção à saúde dos homens no âmbito da Estratégia Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2014; 19(2):429-438., revelam que os profissionais da APS se queixam da sobrecarga das equipes, estrutura inadequada para o atendimento e falta de profissionais médicos, bem como o pouco conhecimento dos gestores sobre a própria política.

Não obstante tais desafios, a APS se configura como a porta preferencial do sistema de saúde do país. Entretanto, no caso da população masculina, Boccolini e Souza Jr77 Boccolini CS, Souza Junior PR. Inequities in healthcare utilization: results of the Brazilian National Health Survey, 2013. Int J Equity Health. 2016; 15(1):150. mostram que homens pobres, com menor nível educacional e autodeclarados não brancos têm maior probabilidade de nunca terem passado por uma consulta médica ou de dentista, nunca terem verificado sua pressão arterial ou nunca terem medido sua glicemia.

Um dos aspectos que orienta a prática da APS é a relação entre os profissionais e as pessoas, caracterizado pela noção de vínculo. Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), o vínculo prevê a construção de relações de afetividade e confiança que permitem a construção de um processo de corresponsabilização pelo cuidado em saúde ao longo do tempo88 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. 4a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Vínculo, portanto, tem importância inequívoca e necessária para o funcionamento da APS, mas ainda precisa de maior investimento conceitual99 Barbosa MI, Bosi ML. Vínculo: um conceito problemático no campo da Saúde Coletiva. Physis. 2017; 27(4):1003-1022..

Diante desse quadro, a dimensão comunicacional na construção do vínculo entre homens e profissionais de saúde na APS é condição para um cuidado adequado dessa população, na medida em que envolve responsabilização e longitudinalidade da prática de saúde99 Barbosa MI, Bosi ML. Vínculo: um conceito problemático no campo da Saúde Coletiva. Physis. 2017; 27(4):1003-1022.. Contudo, trata-se ainda de uma temática pouco explorada na literatura sobre homens e cuidado à saúde. Afinal, as condições que perpetuam o ciclo de invisibilidade do homem no sistema de saúde1010 Dantas GC. Saúde do homem. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de medicina de família e comunidade. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 673-679. ainda estão bastante presentes na medida em que a PNAISH não foi efetiva em capacitar os profissionais de saúde a adaptarem sua linguagem e estratégias de educação e saúde para esse segmento. Em síntese, como pode se dar o vínculo com aquele que se desconhece e para o qual não se dispõe de ferramentas para comunicação eficaz? Goodyear-Smith e Buetow1111 Goodyear-Smith F, Buetow S. Power issues in the doctor-patient relationship. Health Care Anal. 2001;9(4):449-462. defendem que a relação médico-paciente produtiva promove autonomia e responsabilidade mútua. Além disso, com a consideração da perspectiva dos pacientes como prioridade, alcança-se melhores resultados. Isso implica em resgatar aspectos promotores de saúde presentes no processo de comunicação, em especial, a comunicação afetiva (uso da empatia), transmitida de forma verbal e não verbal no contexto clínico assistencial1212 Brink-Muinen A. The role of gender in healthcare communication. Patient Educ Couns. 2002; 48(3):199-200..

Considerando-se o referencial das masculinidades, apoiado em uma perspectiva relacional de gênero1313 Connell RW, Messerschmidt JW. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gend Soc. 2005; 19(6):829-859. para a compreensão da relação homens-saúde e o fato de que os serviços de APS são fundamentais como resposta às necessidades de saúde dos homens, neste artigo discutiremos a relação médico(a) + pessoa. Adotamos a denominação proposta por Lopes e Ribeiro1414 Lopes JM, Ribeiro JA. A pessoa como centro do cuidado na prática do médico de família. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015; 10(34):1-3., substituindo a tradicional denominação “relação médico-paciente”, cuja carga simbólica vinculada à palavra “paciente” subentende passividade e pouca autonomia em uma relação historicamente assimétrica1515 Caprara A, Franco ALS. Relação médico-paciente e humanização dos cuidados em saúde: limites, possibilidades, falácias. In: Deslandes SF, editor. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. p.85-108.. Além disso, optamos por trocar o hífen, que separa, pelo sinal de adição para marcar o vínculo e a interação esperada entre os membros dessa relação.

Diante do exposto, o objetivo deste artigo é explorar a comunicação na relação médico(a) + homem usuário no âmbito das experiências de ambos os sujeitos no cotidiano de unidades de saúde vinculadas à Estratégia de Saúde da Família (ESF) a partir de aspectos relacionados às motivações dos homens para buscar serviços, à consulta médica e à invisibilidade de suas necessidades e demandas na APS.

Metodologia

Este trabalho deriva de investigação mais ampla, na modalidade pesquisa qualitativa aplicada à saúde, acerca das dimensões comunicacionais na prática clínica entre médico(a)s de Família e Comunidade (MFC) e homens usuários da APS no município de Florianópolis, SC, caracterizado como de porte médio, com um Índice de Desenvolvimento Humano elevado e que conta com 74% de cobertura da ESF.

A originalidade da metodologia na produção dos dados empíricos se deu pela abordagem qualitativa com utilização da triangulação de técnicas (entrevistas semiestruturadas e grupos focais) em três fases temporalmente distintas. Optou-se por utilizar entrevistas semiestruturadas pela possibilidade de captar os relatos de experiência narrados, representados e recontados pelos participantes1616 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista Narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 90-105.. A técnica de grupos focais foi selecionada, pois permite a produção de sentidos, expressos em percepções e opiniões diferentes, a partir do contexto de interação dos participantes1717 Gaskell G. Entrevistas Individuais e grupais. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 64-89.. A diacronia na produção dos dados ocorreu de modo articulado. Na primeira fase, foram entrevistados 18 homens adultos, que relataram suas concepções de saúde-doença entremeadas ao exercício de suas masculinidades, o impacto da frequente troca de médicos na relação com o serviço, a atenção dividida do profissional entre várias atribuições e a dimensão da consulta que não se limita à abordagem técnica. Na segunda fase, foram entrevistados quatro médico(a)s, a partir de roteiro elaborado com os achados e análises da primeira fase, em temas que expressavam situações que afetavam a relação médico + pessoa. Foram produzidas vinhetas (pequenos excertos de falas dos usuários) que foram apresentadas por escrito aos entrevistado(a)s com o objetivo de explorar abordagens que pudessem mitigar os obstáculos ou barreiras da relação médico(a) + pessoa na APS. Na terceira fase, os resultados obtidos nas entrevistas com o(a)s médico(a)s foram compartilhados em grupo focal e entrevistas semiestruturadas com os usuários participantes da primeira fase, visando discutir a (não) adequação das proposições do(a)s médico(a)s.

A pesquisa foi desenvolvida em serviços localizados em dois bairros, um da região central, aqui denominado Centro de Saúde (CS) Acosta, com grande contingente de estudantes, acesso a diversos serviços públicos e privados e servido por densa malha de transporte público; e outro denominado CS Bagé, que atende duas áreas bem distintas: uma de alto poder aquisitivo e idade populacional média acima dos 45 anos e a outra de nível socioeconômico mais baixo, maior variação etária e população mais dependente dos serviços públicos de Saúde e Educação.

Os critérios de inclusão dos serviços contemplaram: estar vinculado a um distrito no qual o pesquisador responsável não atuou como MFC, ter em suas equipes médicos de ambos os sexos e atender populações de perfis diversos. Para a participação dos médico(a)s, utilizou-se o critério de possuírem título de especialista ou residência em MFC, atuar há pelo menos dois anos na unidade de saúde e/ou ter experiência na preceptoria de estudantes de Medicina e residentes de MFC. Finalmente, quanto aos usuários, foram convidados homens entre 20 e 59 anos que se consultaram nos últimos 12 meses, visando conhecer suas experiências na consulta médica, e homens da mesma faixa etária que não se consultaram nos últimos dois anos.

Ao todo, foram entrevistados 18 homens na primeira fase da pesquisa, sendo 11 do CS Acosta e sete do CS Bagé. Na segunda fase, foram entrevistados dois médico(a)s de cada serviço participante. Finalmente, na terceira fase, foram realizadas cinco entrevistas semiestruturadas e um grupo focal com quatro participantes da primeira fase.

As entrevistas da primeira fase ocorreram entre junho de 2017 e março de 2018, sendo que oito foram realizadas nos serviços saúde, seis no domicílio e quatro em locais públicos. As entrevistas com o(a)s médico(a)s ocorreram de outubro a dezembro de 2018, sendo duas realizadas no domicílio, uma em local público e uma no serviço. A terceira fase ocorreu em março de 2019, sendo que o grupo focal ocorreu no CS Acosta e três entrevistas ocorreram no domicílio, uma no serviço e uma em local público.

Figura 1
Fluxograma: Fases da pesquisa empírica

Os locais de realização da pesquisa empírica, nas três fases, foram definidos segundo preferências dos participantes. O material produzido foi gravado em áudio digital, com 23 horas de entrevistas e duas horas de grupo focal. Na sequência, o material foi transcrito na íntegra e foi realizada a verificação da acurácia das transcrições pelo pesquisador responsável.

A análise do material empírico utilizou o método de interpretação de sentidos1818 Gaskell G. Entrevistas Individuais e grupais. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 64-89., percorrendo os seguintes passos: leitura compreensiva, visando impregnação, visão de conjunto e apreensão das particularidades do material da pesquisa; identificação das categorias; identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos depoimentos; busca de sentidos mais amplos (socioculturais) subjacentes às falas dos sujeitos da pesquisa; diálogo entre as ideias problematizadas, informações provenientes de outros estudos acerca do assunto e referencial teórico do estudo; e elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos. Destaca-se que, no tocante ao grupo focal, por sua especificidade de buscar o caráter coletivo da produção de sentido, a análise privilegiou também consensos e divergências identificadas.

Neste artigo, apresentaremos a análise de três categorias prévias relacionadas às experiências dos homens e dos médico(a)s nos serviços de APS nas três fases da pesquisa: motivações para buscar o serviço e a consulta médica; invisibilidade das necessidades e demandas dos homens; e troca frequente de médico(a)s. Essas serão discutidas a partir da articulação dos referenciais de gênero (masculinidades) e comunicação em Saúde.

O estudo foi conduzido após aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Escola de Saúde Pública da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, SC (parecer n. 1.913.359). As entrevistas e o grupo focal foram realizados após esclarecimento, leitura, verificação da compreensão e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes. Os nomes dos participantes e dos serviços de saúde são fictícios para garantir o anonimato e a confidencialidade dos participantes.

Resultados e discussão

Caracterização dos participantes

A média de idade dos participantes foi de 43 anos. Dos 18, sete nasceram em Florianópolis, SC, quatro no interior do estado de Santa Catarina, cinco em outros estados e dois fora do Brasil. Quanto ao estado civil, há oito solteiros, oito casados, um separado e um viúvo. Nove deles têm filhos. Do total, 11 trabalham, quatro estão aposentados, dois estudam e um está afastado temporariamente por doença. Quanto à escolaridade, quatro não completaram o Primeiro Grau, oito completaram o Segundo Grau, um não completou o Terceiro Grau e cinco completaram o Terceiro Grau. Em termos de autorreferência de raça/cor, 15 são brancos, dois pardos e um negro; e quanto à orientação sexual referida, 14 são heterossexuais e quatro homossexuais.

Quanto ao perfil do(a)s médico(a)s, a média de idade é de 36 anos e atuam na ESF há 5 anos, em média. Três deles fizeram residência em Medicina de Família e Comunidade e um obteve título de especialista em MFC. O quadro 2 compara este perfil com aquele dos demais MFC da rede.

Quadro 1
Perfil comparativo do(a)s médico(a)s de Família e Comunidade da rede e entrevistados

As experiências dos homens e dos médico(a)s nos serviços de APS

Motivações para buscar o serviço e a consulta médica

Esta categoria visa discutir a interseção do binômio saúde e doença e alguns aspectos do cuidado na sua interface com as masculinidades a partir das experiências mais amplas vivenciadas na APS pelos homens e médico(a)s, como forma de discutir relação médico(a) + pessoa.

É ampla a gama de fatores que levam os homens à consulta. Apenas quatro não se consultaram no último ano. A maioria procurou o serviço diante de uma necessidade presente (sintoma) ou doença existente, aqui definidos como proativos em relação ao autocuidado. Ainda assim, o discurso denotava temor em procurar o serviço ou a consulta com médico(a) por receio de se descobrirem doentes. Entre os quatro que não se consultaram no ano anterior, apenas Ângelo, 58, comerciário, assumiu ter cedido a pressão da esposa. Vilson, 57 anos, casado, demonstrou atitude proativa em seu acompanhamento regular com cardiologista e severa crítica aos amigos que não o fazem; e Vinicius, 40 anos, casado, procurou quando teve quadro sugestivo de depressão. Por fim, Vitor, 40 anos, solteiro e profissional de Saúde atuando em um hospital, demonstrou amplo conhecimento teórico no tema e quanto ao sistema de Saúde, mas isso não se traduziu em se consultar:

Exatamente acabo não fazendo, de acordo com o meu protocolo. Mas é questão de tempo e também comodidade, no caso eu faço caminhada... então como aparentemente estou bem de saúde, acabo não solicitando alguns exames pra fazer um check-up, né?

(Vitor)

Observa-se, em muitos, uma aproximação cautelosa ao serviço e às consultas clínicas. Robertson1919 Robertson S. Theories of masculinities and men’s health-seeking practices. Nowhere Man’s Press. 2009; 9(2012):149-172. caracteriza essa atitude como uma tentativa de manter a performance masculina hegemônica intacta. Além disso, para eles, apresentar sintomas propicia a justificativa para se consultar, pois, em última análise, o homem ainda não considera legítima sua presença no consultório quando assintomático. Outro aspecto relacionado à cautela em busca do cuidado por meio da consulta é o receio de que venham a sofrer restrições e até proibições quanto a manter hábitos que trazem prazer em seu dia a dia2020 Courtenay WH. Constructions of masculinity and their influence on men’s well-being: a theory of gender and health. Soc Sci Med. 2000; 50(10):1385-1401.. Afinal, a Medicina ainda se utiliza de tradicionais padrões da educação sanitária, nos quais o estímulo ao cuidado em saúde passa pela ameaça de morte, na medida em que explora os medos da população2121 Schraiber LB, Figueiredo WD, Gomes R, Couto MT, Pinheiro TF, Machin R, et al. Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos homens. Cad Saude Publica. 2010; 26(5):961-970.. Essa estratégia de comunicação busca imobilizar o homem, a partir do conhecimento médico e que é estranho ao setting, e vai de encontro à pretensa formação de vínculo2222 Soares JCRS, Camargo KR Jr. A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde. Interface (Botucatu). 2007; 11(21):65-78..

Na segunda fase da investigação, as experiências dos homens na primeira fase foram apresentadas aos quatro MFCs em forma de vinhetas. A médica Aurora, por exemplo, reflete sobre aspectos envolvidos na tomada de decisão quanto à consulta médica por parte dos homens atendidos, em acordo com a percepção dos usuários:

[...] alguns não querem vir [consultar] também pra não descobrirem nada, que fique dependente do serviço, de ficar vindo várias vezes. Além da questão do trabalho, que a pessoa acaba priorizando outras coisas em relação à saúde.

(Aurora)

Amadeu, 34 anos, operador de telemarketing, destacou na terceira fase da pesquisa o tensionamento entre a proatividade na busca da consulta e a pressão do mercado de trabalho desfavorável, revelando que a tomada de decisão é influenciada pelo aspecto cultural (“ser homem”) e pelas contingências socioeconômicas:

[...] mas vou complementar aqui a fala da médica [Aurora]. Não é só isso, não é só questão cultural, também tem a questão estrutural... eu penso que tem essa vulnerabilidade socioeconômica que não tem como contornar, porque a pessoa, na questão de priorizar o trabalho, precisa ter trabalho...

(Amadeu)

A preocupação de Amadeu encontra ressonância na análise de Hone et al.2323 Hone T, Mirelman AJ, Rasella D, Paes-Sousa R, Barreto ML, Rocha R, et al. Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. Lancet Glob Health. 2019; 7(11):e1575-83. acerca do período de declínio econômico no Brasil entre 2012 e 2016. Exacerbada pela precarização do trabalho, observa-se no período a confluência entre recessão e excesso de mortes, sendo os homens o grupo mais atingido, especialmente os negros ou pardos, entre 30 e 59 anos de idade.

Nesse sentido, o MFC Raul problematiza, a partir de sua experiência clínica, o seu papel diante da carga que o homem se impõe ao privilegiar o trabalho em detrimento do cuidado a saúde:

Mas, como médico, considero o homem como vítima desse sistema, da sua dificuldade de se desvencilhar das várias obrigações: “tem que sustentar casa”, etc., e o restante deixa de ser importante. A gente precisa perceber na nossa vida e levar para o consultório. O que dá sentido para vida?

(Raul)

Na terceira fase do estudo, quando esta colocação do médico Raul foi apresentada a Augusto (27 anos, antropólogo e economista), ele demonstra ambivalência: mostra-se proativo em relação à busca de informação dentro e fora da consulta para sua doença celíaca, diagnosticada há cinco anos, mas reproduz a postura do polo reativo quando, mesmo ciente dos riscos, coloca o trabalho acima do cuidado com sua saúde. Neste caso, vê-se que o trabalho vai muito além de garantir a subsistência ou reconhecimento do valor do homem pela sociedade: o trabalho define a identidade, como observado no estudo de Dos Santos et al.2424 Dos-Santos EM, Figueredo GA, Mafra AL, Reis HF, Louzado JA, Santos GM. Saúde dos homens nas percepções de enfermeiros da estratégia saúde da família. Rev APS. 2017;20(2):231-238..

É, sou obrigado, doença celíaca e [intolerância à] lactose, eu tenho que me alimentar bem, eu tenho que fazer minha comida, mas eu admito que principalmente a questão psicológica eu provavelmente passo demais, às vezes, do limite de trabalho, de cansaço, de estresse. Por sorte nunca me deu nada, o que me faz continuar focando no erro.

(Augusto)

Assim, o trabalho, enquanto dimensão de gênero valorizada para a afirmação identitária dos homens, age como um empecilho para uma melhor relação dos homens com o(a)s médico(a)s. Percebemos que a relação estabelecida entre os homens e o trabalho, a partir do referencial das masculinidades, tem construído vínculos mais sólidos em detrimento das estratégias de cuidado e proteção. Isto é, os homens permanecem mais próximos e arraigados às referências sociais relacionadas ao trabalho do que às relacionadas a seu próprio cuidado.

A falta de uma comunicação mais acolhedora que reconheça as singularidades do modo de ser homem (e sua relação com o trabalho) dificulta uma maior interação e vínculo entre profissionais e usuários. Dessa forma, para a promoção de um vínculo/responsabilização dos homens com a ideia de cuidado, os médicos e os outros profissionais de saúde precisam reconhecer em suas práticas as dimensões socioculturais de gênero valorizadas pelos homens. Ou seja, parece ser necessário uma mudança na relação médico + homem usuário, com a reversão do modelo comunicacional em vigor nos serviços de saúde2525 Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS, ABRASCO; 2003. p. 89-111. e a incorporação de referências das masculinidades nas interações realizadas.

A invisibilidade das necessidades e demandas dos homens

A dimensão da invisibilidade das necessidades e demandas dos homens na APS tem sido estudada de forma extensa2626 Couto MT, Pinheiro TF, Valença O, Machin R, Silva GS, Gomes R, et al. O homem na atenção primária à saúde: discutindo (in) visibilidade a partir da perspectiva de gênero. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):257-270.,2727 Toneli MJ, Souza MG, Müller RD. Masculinities and health practices: portraits of a research experience in Florianopolis (SC), Brazil. Physis. 2010; 20(3):973., mas pouco problematizada quanto ao seu impacto na relação médico(a) + pessoa. Quanto à postura dos profissionais, independentemente do sexo, estudos revelam que alguns podem se mostrar menos atentos na identificação de problemas de saúde por conta dos estereótipos de gênero e que tais estereótipos retroalimentam a não responsabilização dos homens usuários quanto ao cuidado em saúde2828 Douglas FC, Greener J, Van Teijlingen E, Ludbrook A. Services just for men? Insights from a national study of the well men services pilots. BMC Public Health. 2013; 13(1):425.,2929 Machin R, Couto MT, Silva GSN, Schraiber LB, Gomes R, Figueiredo WS, et al. Concepções de gênero, masculinidade e cuidados em saúde: estudo com profissionais de saúde da atenção primária. Cienc Saude Colet. 2011; 16(11):4503-4512..

O(a)s médico(a)s, quando provocados sobre a questão da invisibilidade das demandas dos homens no serviço e na consulta, demostraram reconhecer a importância da questão. Alguns, inclusive, traçam diagnósticos e buscam medidas para mitigar o problema. A médica Alice descreve como adapta sua abordagem de comunicação conforme a idade dos homens atendidos:

[...] na verdade, eu falo: “olha, nessa de ficar relaxado, ficar lá fora trabalhando, então tá aí, não tem como depois, no futuro, né, tem que se cuidar agora”. Então eu vejo como um neon [alerta], quando ele chega mais velho me contando isso, na verdade, eu conforto e falo “não, mas ainda tem tempo, vamos se cuidar agora, né?”.

(Alice)

Virgílio, 36 anos, durante a fase três da pesquisa, elogia a proposta motivacional de Alice: “[...] ela está realmente tendo uma abordagem cuidadosa e adequando diante das circunstâncias”. Entretanto, Vanderlei traz percepção diversa: embora admita ter ouvido esse tipo de orientação, refuta sua eficácia:

Eu acho que sim, é um incentivo, né, mas só que é aquela coisa, eu não digo que são todos iguais a mim, mas eu era assim eu não ligava muito para que o médico dizia, não prestava muito atenção, até inclusive hoje tem muita coisa que o MFC me fala, assim, sabe, e eu digo que vou fazer e não faço.

(Vanderlei)

Essa fala revela uma dimensão singular, mas nem sempre percebida pelos profissionais de Saúde no contexto clínico-assistencial. Fustigados pelas diversas demandas dentro e fora do consultório, superestimam suas prescrições como se fossem suficientes para abarcar a complexidade do processo saúde-doença. Tal equívoco também ocorre em relação às mulheres atendidas, mas provavelmente em menor proporção pelo fato de os profissionais da saúde as conhecerem há mais tempo, além de terem outras oportunidades de retomar o assunto na consulta de filhos ou parentes idosos.

Vanderlei, que é acompanhado pelo mesmo médico de Família há cinco anos, reconhece a mensagem recebida, mas ressalta sua autonomia de escolha diante do adoecimento. Portanto, adoecer não resulta de simples ignorância, como se costuma apontar nas equipes de Saúde, que rotulam os homens como difíceis, resistentes e teimosos. O adoecimento é mediado pelas circunstâncias de vida, de trabalho e de escolaridade, frequentemente desfavoráveis. Como um fenômeno social complexo e multidimensional, cabe ao profissional verificar se a proposta comunicada, muitas vezes de forma pontual e alienada daquele que atende, virá a ser aceita e incorporada enquanto mudança ou adaptação preconizada.

Relação médico + pessoa e a troca frequente do médico

A continuidade do cuidado, por meio da sequência de consultas, propicia a formação do vínculo, o que permanece como desafio primário no cotidiano das ESF e a ser vencido dentro da PNAISH, que tem como uma de suas diretrizes o reforço da Política de Humanização do Sistema Único de Saúde3030 Pasche DF, Passos E, Hennington EA. Cinco anos da política nacional de humanização: trajetória de uma política pública. Cienc Saude Colet. 2011; 16(11):4541-4548.. Nesse sentido, Dantas1010 Dantas GC. Saúde do homem. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de medicina de família e comunidade. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 673-679. sintetizou o ciclo de invisibilidade masculina no sistema de saúde, no qual a ausência do homem na APS resulta no desconhecimento dos profissionais acerca das crenças dos homens sobre o processo saúde-doença, bem como suas motivações e possibilidades de autocuidado. No polo dos médicos, é raro que disponham e coloquem em prática estratégias visando à efetiva comunicação e que promovam o vínculo e a adesão a um Projeto Terapêutico Singular segundo as premissas da longitudinalidade do cuidado. O desafio para destravar esse ciclo se agiganta à medida que os serviços de APS se encontram pressionados pela alta demanda, que os empurra a funcionar em um padrão queixa-conduta, inviabilizando a reflexão no contexto da interação de profissionais e homens atendidos. Dessa forma, os homens, embora de modo não exclusivo, permanecem desconhecidos e alheios ao que a APS poderia proporcionar. A tentativa de quebrar esse ciclo passaria por atividades de promoção de saúde nos locais frequentados pelos homens, o tem sido realizado com sucesso em diversas iniciativas no Brasil3131 Strey M, Von Mühlen Bk, Kohn KC. Caminhos de homens: gênero e movimentos. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2014. e na Europa3232 Robertson S, Baker P. Men and health promotion in the United Kingdom: 20 years further forward? Health Educ J. 2017; 76(1):102-113.. Contudo, tais mudanças dependem de gestores sensíveis e de equipes atentas e treinadas aos exercícios de masculinidades e à sua implicação nos cuidados de saúde.

Essa dimensão é exemplarmente visível na questão da troca frequente de médico(a) no contexto dos serviços de APS e em seu impacto na relação médico(a) + pessoa. Pertencentes a um segmento da população que, historicamente, frequenta os serviços de saúde aquém do preconizado, principalmente na APS, os homens entrevistados se queixaram enfaticamente da questão, especialmente quando suas enfermidades já se encontram em estágio mais avançado, contexto que não ocorre apenas no Brasil33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departamento de ações programáticas estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde do homem. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.. Considerando-se que é ao longo do seguimento do cuidado que o vínculo se fortalece – à medida que cada um elabora e efetiva códigos e ações visando ao engajamento terapêutico –, tempo e timing são fatores delicados no molde e refino da relação médico(a) + pessoa3333 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002.. O tempo entremeia a sequência dos encontros que se colocam como degraus articulados, pois envolve a construção da confiança. O timing se aprende com o tempo ao se perceber o momento adequado de se aproximar com perguntas ou colocações que podem estabelecer e fortalecer o vínculo. Toda essa engrenagem que envolve aspectos técnicos e subjetivos do cuidado pode ser desfeita quando ocorre a substituição de médico(a)s. Nesse sentido, deve-se incluir a preocupação com a linguagem não verbal da comunicação, posto que esses homens não estão afeitos ao ritmo das consultas e às diversas demandas que interrompem seu fluxo. Esse aspecto foi enfatizado pelo MFC Rildo, que se preocupa em explicitar suas ações aos pacientes enquanto é pressionado a responder às inúmeras chamadas por parte do serviço ao longo do dia, muitas das quais durante o atendimento.

André, 37 anos, que já havia desenvolvido familiaridade com a abordagem da MFC acompanhando sua mãe nas consultas, ressalta sua experiência na cidade, desde 2014, com a troca de profissionais: “[...] eu tive uma atenção maior nos últimos dois anos, assim, que foi até legal, enfermeiros supercompetentes; mas de médico eu tive várias mudanças... eu tive atendimentos com médicos que foram muito bons, mas foram poucas consultas”.

Mesmo Vanderlei, 57 anos, que veio a estabelecer vínculo com seu médico de Família após o infarto, em uma relação de cinco anos – algo raro entre os entrevistados –, ressalta o aviso ao médico de que não queria ser atendido por estudantes ou médico(a)s residentes.

[Médico residente em MFC] lê o prontuário e dali ele começa a me perguntar..., então, o que acontece aí ele vai lá e passa para o MFC, aí depois ele vem ou o [meu médico] vem e fala pra mim, né? Ou então o [meu médico] manda dizer pra mim o que eu tenho que fazer, aí ele [residente] diz assim: “[Seu médico] mandou pedir para o senhor fazer isso”. Eu não gosto, eu não gosto, porque eu gosto mesmo é de consultar com ele, né, não gosto que atrapalhem.

Vanderlei conclui sobre a relação estabelecida com seu médico: “Sim, é assim eu e o [meu médico] a gente, sei lá, a gente se entende bem pra caramba, tanto que ele uma vez eu estava meio atrapalhado, aí ele me aconselhou um monte. Então ele é o médico, meu conselheiro, ele é tudo...”.

Diante desses relatos produzidos na primeira fase da pesquisa, Rildo, que trabalhou por cinco anos no mesmo CS, comenta: “[...] a troca representa prejuízo enorme para os pacientes. Eu estou perdendo quatro anos e meio de trabalho, “eu sou seu médico, eu sou a pessoa que cuida de você, confia em mim pra criar esse vínculo’, né?”.

Como síntese interpretativa, destaca-se a contradição, reconhecida por homens usuários e médico(a)s, entre o atributo da longitudinalidade do cuidado na APS3333 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002.versus a rotatividade de médicos. A APS tem como seus atributos essenciais a atenção ao primeiro contato, a integralidade, a coordenação do cuidado e a longitudinalidade3030 Pasche DF, Passos E, Hennington EA. Cinco anos da política nacional de humanização: trajetória de uma política pública. Cienc Saude Colet. 2011; 16(11):4541-4548., sendo esta última considerada característica central e exclusiva da APS3434 Cunha EM, Giovanella L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciencia Saude Colet. 2011;16 Supl 1:1029-1042.. A importância da continuidade, reconhecida por homens usuários e médico(a)s, dá-se em um processo não linear e muito menos livre de obstáculos, na medida em que a sequência de consultas fomenta o vínculo, base para tecer a construção da relação e, com isso, a adesão a um plano de cuidado. Por outro lado, a queixa recorrente quanto a essa rotatividade3535 Medeiros CRG, Junqueira AGW, Schwingel G, Carreno I, Jungles LAP, Saldanha OMFL. A rotatividade de enfermeiros e médicos: um impasse na implementação da Estratégia de Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2010; 15 Supl 1:1521-1531. tem sido percebida como fator debilitante na busca da integralidade visando à consolidação de uma APS qualificada3636 Sancho LG, Carmo JM, Sancho RG, Bahia L. Rotatividade na força de trabalho da rede municipal de saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais: um estudo de caso. Trab Educ Saude. 2011; 9(3):431-447.. A troca frequente de profissionais guarda relação direta com o que é explícito nas falas dos usuários: a impossibilidade de estabelecer confiança, fundamental para a boa comunicação e para a relação médico(a) + pessoa.

Thom e Campbell3737 Thom DH, Campbell B. Patient-physician trust: an exploratory study. J Fam Pract. 1997; 44(2):169-178. e Mikesell3838 Mikesell L. Medicinal relationship: caring conversation. Med Educ. 2013; 47(5):443-452., ao definirem a confiança como a crença de que o médico(a) irá fazer aquilo que é melhor para o paciente, mostram que esta é fundamental para a satisfação dos usuários e relevantes na condução da conversação médico(a) + pessoa. Aspectos como compreensão da experiência individual do paciente, expressão de afeto, comunicação clara e completa, construção de parceria, demonstração de respeito e honestidade com o paciente se fazem presentes como modelos ideais nas proposições da Clínica Ampliada e Compartilhada3939 Bedrikow R, Campos GWS. História da clínica e atenção básica: o desafio da ampliação. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2014. e do Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP)4040 Stewart M, Brown JB, Weston WW, McWhinney IR. Patient-centered medicine: transforming the clinical method (Patient-Centered Care Series). Londres: Radcliffe Publishing; 2014.. Apesar de amplamente defendida como abordagem da MFC1111 Goodyear-Smith F, Buetow S. Power issues in the doctor-patient relationship. Health Care Anal. 2001;9(4):449-462., estas ainda são pouco incorporadas na prática, dadas as dificuldades e limitações do contexto em que usuários e médico(a) estão inseridos.

Considerações finais

O presente estudo, ao triangular técnicas de produção de dados qualitativos e se utilizar de desenho metodológico em fases temporais distintas e articuladas com homens usuários e médico(a)s de MFC, mostra a complexidade de aspectos envolvidos na comunicação e na relação médico(a) + pessoa (homem) no contexto da APS em Florianópolis, SC.

A compreensão das falas e dos lugares sociais dos participantes da investigação perpassa temores pessoais, experiências prévias e a assimetria dos sujeitos em relação. Considerando tais dimensões, a partir da discussão de três categorias, amplamente presentes na literatura que trata da relação masculinidades-saúde, mas pouco exploradas na dimensão comunicacional e na da relação médico(a) + pessoa, o trabalho buscou aproximar as duas extremidades (profissionais e usuários) que pouco se tocam e se encaram, apesar de lidarem com inúmeras questões íntimas e preciosas, já que o sofrimento e as necessidades de saúde, expressos no adoecimento e na vida, estão em constante (re)produção.

Os homens, em sua diversidade, ainda são um vasto domínio a ser conhecido e integrado no cuidado à saúde proposto pela APS. Nesse sentido, os resultados e discussões apresentados reforçam que os estereótipos de gênero relativos à masculinidade têm sido nocivos para a aproximação dos homens aos serviços; para o conhecimento mútuo de médico(a)s e usuários; e para a efetiva comunicação entre estes e os profissionais da assistência. A invisibilidade de suas necessidades e demandas ainda é presente, mas ganhou cara e contornos que podem ser descritos e aprimorados. A quebra desse ciclo dentro do sistema conta com a política nacional voltada para o seu cuidado, que tem sido instrumental para alcançar algumas melhorias, mesmo reconhecendo suas limitações; além da proatividade de alguns médico(a)s genuinamente interessado(a)s em estabelecer um cuidado centrado na pessoa e culturalmente informado.

As dimensões do cuidado longitudinal e do vínculo se mostraram estratégicas, especialmente quando se considera que historicamente os homens se colocam distantes das Unidades de Saúde, desconhecendo, portanto, os códigos subjacentes à dinâmica dos serviços. Somado a isso, dificuldades na comunicação de diversas ordens criam barreiras para o acolhimento adequado de suas demandas, resultando em maior empecilho para o estabelecimento de uma relação que se pretende sólida. Nos casos de rotatividade e afastamento do profissional médico, observou-se a quebra do vínculo, o que contribui para perpetuar o modelo biomédico no qual o médico(a) e a doença se tornam centrais, enquanto a pessoa e suas necessidades de saúde se tornam secundárias. Portanto, para que se evite tais perdas e se alcance a produção de cuidado, como proposto pela ESF, cabe aos profissionais e gestores orientarem suas ações e reflexões em torno do respeito e comprometimento frente a seus princípios.

Em suma, a prática da MFC privilegia a excelência da relação médico + pessoa para alcançar tal objetivo. Para tanto, necessita da atenção integral e dedicação de seus profissionais. É uma prática artesanal e forjada na rotina e no conhecimento adquirido sobre as pessoas, seus familiares, vizinhos e comunidade, o que catalisa a formação do vínculo ao longo do tempo. A falta de acolhimento, demanda excessiva ou pouca clareza sobre as prioridades e possibilidades de resposta às outras demandas do serviço, que se intensificam à medida que ocorre a troca frequente de médico(a)s, dificultam o alcance dos objetivos aos quais a ESF se destina.

Considerando-se que a discussão empreendida também contribui para o debate sobre o exercício da prática clínica e a relação médico(a) + pessoa em um segmento da população reticente e pouco envolvido com o autocuidado e a prevenção, o estudo avança em termos da produção de conhecimento sobre a relação homens-saúde-doença-cuidado. Não obstante, ainda são enormes os desafios que visam desfazer preconceitos e distanciamentos mútuos entre homens e médico(a)s, para que efetivamente estes possam, dia a dia, discutir e construir essa relação.

Referências

  • 1
    Couto MT, Gomes R. Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2569-2578.
  • 2
    Araújo MD, Schraiber LB, Cohen DD. Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):805-818.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à saúde. Departamento de ações programáticas estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde do homem. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.
  • 4
    Medrado B, Lyra J, Azevedo M. Eu não sou só próstata, eu sou um Homem: por uma política pública de saúde transformadora da ordem de gênero. In: Gomes R, organizador. Saúde do homem em debate. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. p. 39-74.
  • 5
    Leal AF, Figueiredo WS, Silva GSN. O percurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Homens (PNAISH), desde a sua formulação até sua implementação nos serviços públicos locais de atenção à saúde. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2607-2616.
  • 6
    Moura EC, Santos WD, Neves AC, Gomes R, Schwarz E. Atenção à saúde dos homens no âmbito da Estratégia Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2014; 19(2):429-438.
  • 7
    Boccolini CS, Souza Junior PR. Inequities in healthcare utilization: results of the Brazilian National Health Survey, 2013. Int J Equity Health. 2016; 15(1):150.
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. 4a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
  • 9
    Barbosa MI, Bosi ML. Vínculo: um conceito problemático no campo da Saúde Coletiva. Physis. 2017; 27(4):1003-1022.
  • 10
    Dantas GC. Saúde do homem. In: Gusso G, Lopes JMC, organizadores. Tratado de medicina de família e comunidade. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 673-679.
  • 11
    Goodyear-Smith F, Buetow S. Power issues in the doctor-patient relationship. Health Care Anal. 2001;9(4):449-462.
  • 12
    Brink-Muinen A. The role of gender in healthcare communication. Patient Educ Couns. 2002; 48(3):199-200.
  • 13
    Connell RW, Messerschmidt JW. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gend Soc. 2005; 19(6):829-859.
  • 14
    Lopes JM, Ribeiro JA. A pessoa como centro do cuidado na prática do médico de família. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015; 10(34):1-3.
  • 15
    Caprara A, Franco ALS. Relação médico-paciente e humanização dos cuidados em saúde: limites, possibilidades, falácias. In: Deslandes SF, editor. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. p.85-108.
  • 16
    Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista Narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 90-105.
  • 17
    Gaskell G. Entrevistas Individuais e grupais. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 64-89.
  • 18
    Gaskell G. Entrevistas Individuais e grupais. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2015. p. 64-89.
  • 19
    Robertson S. Theories of masculinities and men’s health-seeking practices. Nowhere Man’s Press. 2009; 9(2012):149-172.
  • 20
    Courtenay WH. Constructions of masculinity and their influence on men’s well-being: a theory of gender and health. Soc Sci Med. 2000; 50(10):1385-1401.
  • 21
    Schraiber LB, Figueiredo WD, Gomes R, Couto MT, Pinheiro TF, Machin R, et al. Necessidades de saúde e masculinidades: atenção primária no cuidado aos homens. Cad Saude Publica. 2010; 26(5):961-970.
  • 22
    Soares JCRS, Camargo KR Jr. A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde. Interface (Botucatu). 2007; 11(21):65-78.
  • 23
    Hone T, Mirelman AJ, Rasella D, Paes-Sousa R, Barreto ML, Rocha R, et al. Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. Lancet Glob Health. 2019; 7(11):e1575-83.
  • 24
    Dos-Santos EM, Figueredo GA, Mafra AL, Reis HF, Louzado JA, Santos GM. Saúde dos homens nas percepções de enfermeiros da estratégia saúde da família. Rev APS. 2017;20(2):231-238.
  • 25
    Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS, ABRASCO; 2003. p. 89-111.
  • 26
    Couto MT, Pinheiro TF, Valença O, Machin R, Silva GS, Gomes R, et al. O homem na atenção primária à saúde: discutindo (in) visibilidade a partir da perspectiva de gênero. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):257-270.
  • 27
    Toneli MJ, Souza MG, Müller RD. Masculinities and health practices: portraits of a research experience in Florianopolis (SC), Brazil. Physis. 2010; 20(3):973.
  • 28
    Douglas FC, Greener J, Van Teijlingen E, Ludbrook A. Services just for men? Insights from a national study of the well men services pilots. BMC Public Health. 2013; 13(1):425.
  • 29
    Machin R, Couto MT, Silva GSN, Schraiber LB, Gomes R, Figueiredo WS, et al. Concepções de gênero, masculinidade e cuidados em saúde: estudo com profissionais de saúde da atenção primária. Cienc Saude Colet. 2011; 16(11):4503-4512.
  • 30
    Pasche DF, Passos E, Hennington EA. Cinco anos da política nacional de humanização: trajetória de uma política pública. Cienc Saude Colet. 2011; 16(11):4541-4548.
  • 31
    Strey M, Von Mühlen Bk, Kohn KC. Caminhos de homens: gênero e movimentos. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2014.
  • 32
    Robertson S, Baker P. Men and health promotion in the United Kingdom: 20 years further forward? Health Educ J. 2017; 76(1):102-113.
  • 33
    Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2002.
  • 34
    Cunha EM, Giovanella L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciencia Saude Colet. 2011;16 Supl 1:1029-1042.
  • 35
    Medeiros CRG, Junqueira AGW, Schwingel G, Carreno I, Jungles LAP, Saldanha OMFL. A rotatividade de enfermeiros e médicos: um impasse na implementação da Estratégia de Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2010; 15 Supl 1:1521-1531.
  • 36
    Sancho LG, Carmo JM, Sancho RG, Bahia L. Rotatividade na força de trabalho da rede municipal de saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais: um estudo de caso. Trab Educ Saude. 2011; 9(3):431-447.
  • 37
    Thom DH, Campbell B. Patient-physician trust: an exploratory study. J Fam Pract. 1997; 44(2):169-178.
  • 38
    Mikesell L. Medicinal relationship: caring conversation. Med Educ. 2013; 47(5):443-452.
  • 39
    Bedrikow R, Campos GWS. História da clínica e atenção básica: o desafio da ampliação. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.
  • 40
    Stewart M, Brown JB, Weston WW, McWhinney IR. Patient-centered medicine: transforming the clinical method (Patient-Centered Care Series). Londres: Radcliffe Publishing; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2020
  • Aceito
    11 Jan 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br