Diálogos epistêmicos em Saúde Coletiva: a narrativa arendtiana como aporte teórico-metodológico para pesquisa sobre processos formativos em Saúde

Epistemological dialogue in Public Health: Arendtian narrative as theoretical and methodological contribution to research investigating health education and training

Diálogos epistémicos en Salud Colectiva: la narrativa arendtiana como aporte teórico-metodológico para investigación sobre procesos formativos en salud

Bruno Pereira Stelet Sobre o autor

Resumos

Um dos grandes desafios do campo da Saúde Coletiva tem sido encontrar estratégias de realização de estudos qualitativos sem furtar-se do rigor metodológico. A utilização de abordagens narrativas como ferramenta de pesquisa se constituiu como uma aposta para auxiliar na compreensão da experiência humana frente aos complexos processos de saúde-adoecimento. Neste artigo, assumimos o desafio de aproximar o pensamento filosófico de Hannah Arendt ao campo da Saúde Coletiva, refletindo sobre a formação em Saúde e tendo como base a ideia da pluralidade humana. No fim, abriremos chaves para a concepção arendtiana de “narrativa” que pode servir, ao mesmo tempo, como referencial epistemológico e metodológico para pesquisa qualitativa em Saúde Coletiva, em especial, sobre processos formativos em Saúde.

Palavras-chave
Narrativas em Saúde; Pesquisa qualitativa; Hannah Arendt; Metodologia


Identifying qualitative methods that ensure methodological rigor is a major challenge in the field of public health. The use of narrative approaches as a research tool can help understand human experience in the face of complex health and disease processes. This article applies the philosophical thinking of Hannah Arendt to the field of public health, reflecting on health education and training based on the idea of human plurality. We provide insights into the Arendtian concept of “narrative”, which can also serve as an epistemological and methodological frame of reference for qualitative research in the field of public health, especially for studies investigating health education and training.

Keywords
Health narratives; Qualitative research; Hannah Arendt; Methodology


Uno de los grandes desafíos del campo de la Salud Colectiva ha sido encontrar estrategias de realización de estudios cualitativos, sin dejar de lado el rigor metodológico. La utilización de abordajes narrativos como herramienta de investigación se constituyó como una apuesta para auxiliar en la comprensión de la experiencia humana frente a los complejos procesos de salud-enfermedad. En este artículo asumimos el desafío de aproximar el pensamiento filosófico de Hannah Arendt al campo de la Salud Colectiva, reflexionando sobre la formación en salud y teniendo como base la idea de la pluralidad humana. Al final, abriremos claves para la concepción arendtiana de “narrativa” que puede servir, al mismo tiempo, como factor de referencia epistemológico y metodológico para la investigación cualitativa en Salud Colectiva, en especial sobre procesos formativos en salud.

Palabras clave
Narrativas en salud; Investigación cualitativa; Hannah Arendt; Metodología


O campo da Saúde Coletiva foi constituído como campo multidisciplinar, com uma crescente prática interdisciplinar, cuja construção teórico-metodológica de objetos de estudo é muitas vezes transdisciplinar, justamente por dispor de um aporte de diferentes vertentes das ciências sociais, das ciências exatas e das ciências da saúde11 Luz MT. Demanda em saúde: construção social no campo multidisciplinar da saúde coletiva. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em Redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2006. p. 27-34..

Nesse sentido, partimos do pressuposto de que não há somente uma única tradição metodológica nesse campo, tendo em vista a pluralidade do objeto saúde. Isso nos coloca a tarefa de traçar criativamente estratégias de realização de estudos, sem furtar-nos do rigor ao fazer escolhas metodológicas que permitam contemplar o objeto. Os processos metodológicos pressupõem escolhas epistemológicas, ou seja, tomadas de decisão na construção do conhecimento, o que confere ao pesquisador responsabilidade sobre o assunto. Isso posto, assumimos que método científico e objeto de pesquisa devem ser pensados em um movimento dialógico e processual. Não há um ótimo método a priori.

Compreender a experiência humana pressupõe uma tarefa de grande complexidade, visto que o humano se constitui em singularidade que pensa, sente e expressa sua existência na linguagem – que é fluida, processual, semelhante e distinta ao mesmo tempo –, o que exclui a possibilidade de explicar os fenômenos narrativos como se eles mesmos fossem verdades absolutas e universais. Isso justifica a construção sociofilosófica de abordagem qualitativa em muitas pesquisas no campo da Saúde Coletiva.

A valorização da pesquisa qualitativa nesse campo relaciona-se diretamente à própria transformação da Saúde Pública, desde metade do século passado, no encontro com as ciências sociais e seus métodos de pesquisar. Estudos sobre representação social do processo saúde-doença e cotidiano das instituições, influenciados pela Antropologia e por abordagens etnográficas, contribuíram para uma diversificação de referenciais teóricos para além da tradicional hegemonia estruturalista do campo22 Onocko Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6..

Com as mudanças sanitárias ocorridas no Brasil tanto nas políticas quanto na concepção e na atenção à saúde, tendo como marco o Sistema Único de Saúde (SUS), abordagens metodológicas tradicionais de pesquisa tornam-se insuficientes para compreender e prestar visibilidade aos saberes e práticas da área da Saúde.

A partir dos anos 2000, observa-se maior importância na adoção de abordagens narrativas33 Brockmeier J, Harré R. Narrativa: problemas e promessas de um paradigma alternativo. Psicol Reflex Crit. 2003; 16(3):525-35. em temas relacionados à subjetividade do encontro clínico44 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, ABRASCO; 2009.

5 Luz MT. Questões centrais do campo da Saúde Coletiva no Brasil atual: repercussões no ensino e no cuidado, contribuição ao X Seminário do LAPPIS. In: Pinheiro R, Silva Junior AG, organizadores. Por uma sociedade cuidadora. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2010. p. 393-404.
-66 Barros MEB, César JM. Ação formativa no cultivo de um ethos como competência. In: Pinheiro R, Silva Junior AG. Cidadania no cuidado: o universal e o comum na integralidade das ações de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2011. p. 183-96. e em estudos sobre itinerários terapêuticos77 Bellato R, Araújo LFS, Castro P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Silva Junior AG, Mattos RA, organizadores. Atenção básica e integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2008. p. 167-88.,88 Pinheiro R, Martins PH. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, LAPPIS; 2011.. Todavia, o modo mais comum de se estudar narrativas pertence ao campo da linguística, no qual inúmeros autores se detiveram no entendimento do ato de narrar. Camasmie99 Camasmie AT. Narrativa de histórias pessoais: um caminho de compreensão de si mesmo à luz do pensamento de Hannah Arendt [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007. cita teóricos da Semiótica(b(b)São considerados fundadores da semiótica contemporânea o filósofo Charles S. Peirce (1839-1914) e o linguista Ferdinand de Saussure (1857-1913). A semiótica é uma disciplina que estuda as estruturas dos diversos sistemas de signos, mais especificamente, as línguas e suas linguísticas, entre as quais se inclui a narrativa.) que entendem a narrativa como uma modalidade específica do discurso, sendo analisado o sentido do que é narrado, atendo-se especificamente ao aspecto estrutural da narrativa, pouco ocupando as relações entre os sujeitos que narram, nem valorizando como os significados dessa atividade se inserem na vida humana.

As narrativas, fora de seu esquema tradicionalmente vinculado a estudos etnográficos, nos quais tomam um caráter mais descritivo e cronologicamente arranjado, poderiam contribuir na pesquisa qualitativa em saúde coletiva se explorássemos sua capacidade de dispositivo poroso de comunicação, se tentássemos “densificá-las”, se construíssemos novos olhares narrativos22 Onocko Campos RT, Furtado JP. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica. 2008; 42(6):1090-6.. (p. 1095)

Este texto é desdobramento de estudos que envolveram a dissertação de mestrado “Sobre repercussões de atividades extensionistas na construção de valores e virtudes durante a formação em medicina”1010 Stelet BP. Sobre repercussões de atividades extensionistas na construção de valores e virtudes durante a formação em medicina [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, UERJ; 2013. e a tese de doutorado “Medicina Narrativa e Medicina Baseada em Evidências na formação médica: contos, contrapontos, conciliações”1111 Stelet BP. Medicina narrativa e medicina baseada em evidências na formação médica: contos, contrapontos, conciliações [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz; 2020., nos quais buscamos estabelecer um diálogo epistemológico(c(c)Pinheiro12 afirma que uma abordagem que concilie filosofia, ciências sociais e saúde é justamente a aposta em uma epistemologia dialógica, em que a articulação de conteúdos – como os da filosofia e da política, por exemplo – apresenta-se produtiva e necessária ao desenvolvimento de uma maior capacidade de compreender o humano e seus fenômenos no mundo.) de natureza interdisciplinar, no sentido de trazer elementos filosóficos ao campo da Saúde Coletiva. Na pesquisa de mestrado, foi utilizada a abordagem narrativa como ferramenta metodológica para construir narrativas de experiências de estudantes de Medicina em atividades extensionistas. Em certa medida, havia uma hipótese de que elementos vivenciados na extensão universitária possibilitavam um exercício ético em saúde dificilmente atingidos em salas de aula. Mais do que instrumento metodológico, as narrativas transformaram-se em produto do estudo para dar visibilidade a itinerários formativos dos estudantes.

Compreender os aspectos narrativos para além da metodologia permitiu desvelar o campo da Medicina Narrativa, que passou a ser objeto de pesquisa de doutorado1111 Stelet BP. Medicina narrativa e medicina baseada em evidências na formação médica: contos, contrapontos, conciliações [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz; 2020. e permitiu traçar o contexto de emergência e o arcabouço teórico das relações entre Literatura, Antropologia Médica e Filosofia para o ensino médico e para a formação em Saúde em geral.

Na esteira desse percurso, desenhando o objetivo deste texto e assumindo o desafio de aproximar o pensamento filosófico de Hannah Arendt ao campo da Saúde Coletiva, abriremos chaves para a concepção arendtiana de narrativa que nos tem servido, ao mesmo tempo, como referencial epistemológico e metodológico para pesquisa social, em especial para analisar itinerários formativos na área da Saúde.

A narrativa arendtiana como escolha metodológica

Aqui, propomo-nos a uma dupla tarefa: refletir sobre uma metodologia de pesquisa que valorize a exposição do sujeito em fazer aparecer seus pensamentos acerca de suas experiências no mundo e constituir nexos com a perspectiva narrativa de Hannah Arendt, ou seja, abordar a ação narrativa em uma dimensão política1313 Kristeva J. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Rocco; 2002..

Por meio do discurso narrativo, os seres humanos expressam conteúdos permanentemente sobre si e sobre os outros, enredando suas histórias e manifestando-se narrativamente no mundo. Como afirma Arendt, “a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos aparecem uns para os outros, certamente não como objetos físicos, mas qua homens”1414 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. (p. 220).

Como o falar e o agir só aparecem em meio a outros, na pluralidade do espaço público, a narrativa enquanto atividade política só se pode materializar aí, pois “nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador”1515 Arendt H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2009. (p. 35). Ao afirmar que o ser humano, para assegurar-se como humano, necessita da companhia de outros que constituem o mundo, a filósofa evidencia a dupla condição humana: ser singular e plural simultaneamente. “Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos.”1414 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. (p. 26).

Em outras palavras, qualquer ato humano, para aparecer no mundo, necessita de outros homens porque, sem isso, perderia seu sentido político. É no âmbito público que os homens podem ser vistos e ouvidos pelos outros. Assim, para que algo se materialize como realidade, precisa “vir a público”, precisa ser visto e ouvido não só pelo sujeito, mas também por outros que compartilham no mundo, sendo “a presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”1414 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. (p. 61).

O espaço da visibilidade é onde de fato o humano singulariza-se. No discurso e na ação, o sujeito revela “o que” é – seus dons, qualidades, talentos e defeitos – e ao mesmo tempo exibe “quem”(d(d)“No momento em que queremos dizer quem alguém é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que alguém é; enleamo-nos em uma descrição de qualidades que a pessoa necessariamente partilha com as outras que lhe são semelhantes; [...] Essa frustração tem a mais estreita afinidade com a notória impossibilidade filosófica de se chegar a uma definição do homem, uma vez que todas as definições são determinações ou interpretações de o que o homem é e, portanto, de qualidades que ele possivelmente poderia ter em comum com outros seres vivos, enquanto sua diferença específica seria encontrada determinando-se que tipo de ‘quem’ ele é”14 (p. 226-7).) é, sua singularidade única em meio à pluralidade humana. “Só no completo silêncio e na total passividade pode alguém ocultar quem é.”1414 Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. (p. 192). Contar a vida seria, em suma, o ato essencial para dar-lhe significado.

Segundo Aguiar1616 Aguiar OA. Pensamento e narração em Hannah Arendt. In: Moraes EJ, Bignotto N, organizadores. Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG; 2001. p. 215-26., o maior inspirador de Arendt na questão da “política da narrativa” é o filósofo contemporâneo daquela, Walter Benjamin, para o qual a comunicação e a oralidade também são questões centrais. O autor entende a narrativa como expressão da experiência e afirma que ela é uma forma artesanal de comunicação, que “não está interessada em transmitir o ‘puro em-si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”1717 Benjamin W. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. 7a ed. Rouanet SP, tradutor. São Paulo: Brasiliense; 1994. p. 197-221. (p. 205). Essa característica da narrativa talvez se aproxime da práxis aristotélica, na qual a ação (a fala), o sujeito que age (o narrador) e a finalidade do agir (a narrativa em si) coincidem, ou seja, o amálgama que surge da fala e da experiência, como sabedoria prática, encontra-se configurado na ação narrativa. No entanto, Aguiar afirma:

Para ele [Benjamin], a narração possui uma dimensão utilitária, sempre propõe “um ensinamento moral, uma sugestão prática”, “conselhos” e grande maioria dos seus intérpretes entende a narrativa como voz dos marginalizados. [...] [Em Arendt] storytelling é, antes de mais nada, encontrar e trazer à luz o sentido nas indeterminadas e “caóticas” experiências humanas1616 Aguiar OA. Pensamento e narração em Hannah Arendt. In: Moraes EJ, Bignotto N, organizadores. Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG; 2001. p. 215-26.. (p. 224)

O pensar narrativo é crítico porque ele enseja, antes de mais nada, a troca de experiências: o storyteller (narrador ou contador de história) transforma a experiência em história. Kristeva1313 Kristeva J. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Rocco; 2002. ressalta a figura do espectador arendtiano ao afirmar que o ator, em pessoa, sozinho, ainda que seu feito seja heroico, não constitui a ação maravilhosa, pois, para sê-lo, a ação precisa ser compartilhada na memória dos outros.

Onde reside a memória? São os espectadores que “concluem” a história; e isso graças ao pensamento vindo após o ato. [...] Não são os atores, mas os espectadores, se são capazes de pensamento e lembrança, que fazem da polis uma organização criadora de memória e/ou de histórias(s).1313 Kristeva J. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Rocco; 2002. (p. 76-7)

O valor da experiência está presente em boa parte dos escritos de Benjamin, em que ele procura conciliar experiência e memória para, a partir delas, tratar da importância da narrativa. Ou seja, a experiência existencial, proposta pelo autor, parte da memória do narrador para que este possa construir a história a ser contada1818 Gagnebin JM. História e narração em Walter Benjamin. 2a ed. São Paulo: Perspectiva; 2007.. Nessa perspectiva, a memória passa a se constituir em um modo de experiência; um modo de ser e de existir do narrador, e não somente um arquivo de informações. Isso se evidencia na atividade do contar lembranças, quando o que aparece são experiências de relações com as pessoas e coisas. Os fatos narrados jamais são destituídos de alguma experiência com um outro, pois sempre ocorreram com alguém, em algum lugar, em algum tempo.

A ação de recordar adquire, então, uma conotação de trazer os acontecimentos do invisível ao desvelamento. “A lembrança – por meio da qual tornamos presente para o nosso espírito o que de fato está ausente e pertence ao passado – revela o significado, na forma de uma história”1515 Arendt H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2009. (p. 153). A narrativa, em vez de ser uma lembrança acabada de uma experiência, reconstrói-se à medida que é narrada. Narrar alguma coisa, nesse sentido, corresponde à elaboração benjaminiana de “intercambiar experiências”.

A memória permite que o passado seja relembrado na narrativa de experiências, e não simplesmente como lembrança a ser contada. Para que a recordação de experiências seja compreendida como ação política – tanto em Benjamin quanto em Arendt –, a lembrança precisa se dar como atividade de compreensão de si em uma dimensão reconciliadora. Segundo Assy1919 Assy B. Vida insustentável e reconciliação da narrativa - espaço público como natalidade metafórica em Hannah Arendt. Rev Fac Direito UFPR. 2008; 47:81-9. (p. 81), “ao contar nossa própria história, podemos nos tornar o protagonista de quem somos e, assim, nos reconciliar com nossas experiências de vida”(e(e)Tradução nossa do trecho em inglês “By telling our own story, we may become the protagonist of who we are and thereby, as an outcome, we can reconcile ourselves with our life experiences”.).

Pelo fato de derivarem de experiências vividas por seres humanos, as narrativas devem permanecer vinculadas a essas experiências. Por outro lado, o que se torna manifesto quando falamos de experiências vividas nunca é a experiência em si, mas tudo o que diz respeito a ela quando pensamos sobre ela.

Pensar para Arendt tem um significado muito especial. Pensar não se equipara aos atributos clássicos da racionalidade científica, como uma faculdade cognitiva cujo critério é a verdade, onde os conceitos são apreendidos por meio de percepções passivas e que objetivamente levarão a um conhecimento verificável(f(f)Tradução nossa do trecho em inglês “Thinking for Arendt has a very particular meaning. Thinking is not equated with the classical attributes of rationality as a cognitive faculty whose criterion is truth and which apprehends concepts through passive perceptions leading to objectively verifiable knowledge”.)1919 Assy B. Vida insustentável e reconciliação da narrativa - espaço público como natalidade metafórica em Hannah Arendt. Rev Fac Direito UFPR. 2008; 47:81-9.. (p. 83)

É a partir da experiência que o pensamento se elabora e na história contada que pensamento e experiência são compartilhados. A narrativa contempla, ao mesmo tempo, a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo outro, o ouvinte. Este, por sua vez, ao contar aquilo que ouviu, transforma-se ele mesmo em narrador, por já ter agregado à sua experiência a história ouvida. O fato de a narrativa manter percepções presentes na experiência narrada e conservar os valores – interpretados pelo ouvinte como virtudes aparentes – corrobora a narração como metodologia coerente com diferentes tipos de objeto e objetivos de pesquisas qualitativas.

Segundo Gagnebin1818 Gagnebin JM. História e narração em Walter Benjamin. 2a ed. São Paulo: Perspectiva; 2007., ao se trabalhar com as narrativas dos sujeitos das pesquisas, estaremos não só participando da sua história, expressa na experiência refletida, mas estaremos, ainda, participando da sua reconstrução, por meio da profusão de significados, em função do seu não acabamento essencial.

O entrevistado-narrador precisa ser entendido como um sujeito que busca no ato de contar as situações que muitas vezes queria ter tido ou que só descobriu depois. Com esta elucidação, demarca-se que uma narrativa não é a verdade tal como aconteceu, mas uma interpretação da pessoa que também será por nós interpretada. Nesse sentido, a abordagem científica que parte de narrativas compartilha alguns dos princípios metodológicos da investigação qualitativa, mas que introduz algumas rupturas, como o fato de que a experiência vivida não é algo a ser captada, mas criada no próprio processo investigativo2020 Rabelo AO. A importância da investigação narrativa na educação. Educ Soc. 2001; 32(114):171-88..

Schraiber2121 Schraiber LB. O médico e suas Interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec; 2008. aponta que investigações que se utilizam de narrativas trazem aspectos polêmicos quanto à sua tecnicabilidade, principalmente devido a fatores como “o instrumento de coleta de dados muito amplo, sua definição sob princípios operativos muito genéricos e a grande dose de decisões pessoais do pesquisador no curso de sua utilização no trabalho de campo” (p. 60). De fato, na bibliografia consultada, os métodos de investigação narrativa se apresentam de diversas maneiras – história oral, relato oral, história de vida focal e depoimento pessoal – que, guardadas as devidas nuances, Minayo2222 Minayo MCC. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2007. chama de “abordagens compreensivas nas pesquisas em saúde”. Apesar da grande contribuição para os saberes e as práticas em saúde, tais abordagens receberam e ainda recebem críticas de outras correntes de pensamento.

Por isso, entendo e defendo que os questionamentos trazidos pelas teorias compreensivas para o campo da saúde, quando não são tomadas em suas vertentes reducionistas, têm sido fundamentais para a promoção das interações entre todos os agentes do setor, para compreensão de fenômenos focalizados, locais e específicos e para humanizar o sistema de saúde2222 Minayo MCC. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2007.. (p. 106)

Dessa forma, os mesmos elementos polêmicos talvez sejam eles mesmos os mais produtivos – em termos científicos – na medida em que, por sua natureza, permitem melhor explorar a subjetividade como objeto de conhecimento, justamente por promover o resgate de dimensões subjetivas dos processos sociais, externalizando o pensamento sob a forma de narrativa.

Esse aspecto também é corroborado por Assy1919 Assy B. Vida insustentável e reconciliação da narrativa - espaço público como natalidade metafórica em Hannah Arendt. Rev Fac Direito UFPR. 2008; 47:81-9., quando a autora ressalta que na linguagem podemos encontrar o elo que Arendt estabelece entre o mundo das coisas que aparecem e a interioridade invisível do humano.

[...] pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao discurso e para os quais a linguagem, sem qualquer esforço especial, já encontrou uma morada adequada, ainda que provisória, no mundo audível. Se falar e pensar nascem da mesma fonte, então o próprio dom da linguagem poderia ser tomado como uma espécie de prova, ou talvez mais como um sinal de que o homem é naturalmente dotado de um instrumento capaz de transformar o invisível em uma “aparência”1515 Arendt H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2009.. (p. 128-9)

Schraiber2121 Schraiber LB. O médico e suas Interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec; 2008. afirma que a natureza metodológica baseada em narrativas – especialmente seus estudos sobre o médico e seu trabalho – permitiu não somente conhecer o pensamento de personagens técnicos acerca de processos sociais, mas também revelar aspectos éticos em sua forma de pensar: a produção de narrativas mais livres, reconstituindo esse pensamento, “fez emergir o valorizado e o desqualificado, bem como o problemático e o natural, para as percepções singulares e para seu conjunto, o pensamento médico”2121 Schraiber LB. O médico e suas Interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec; 2008. (p. 73).

Tais considerações sobre o uso de narrativas em pesquisas foram fundamentais para compreender o papel da experiência em percursos formativos de graduandos de Medicina durante o estudo realizado no mestrado1010 Stelet BP. Sobre repercussões de atividades extensionistas na construção de valores e virtudes durante a formação em medicina [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, UERJ; 2013. em Saúde Coletiva. O objetivo geral consistiu em analisar as experiências de estudantes de Medicina – a partir de suas narrativas – sobre a participação em atividades extensionistas e suas repercussões na construção de valores éticos na formação médica. Em outras palavras, a proposta foi de reconstruir narrativas de estudantes de Medicina sobre suas experiências em extensão universitária de modo a sublinhar os modos pelos quais as noções de moral, ética, virtudes e valores são também produzidas.

Durante a pesquisa, surgiram muitas dúvidas sobre a utilização das narrativas. Quantas pessoas entrevistar? Quantas histórias seriam suficientes? Como permitir que os participantes da pesquisa ficassem à vontade para contar as histórias? Algumas narrativas foram coletadas em apenas um encontro, enquanto outras necessitaram de mais encontros. Os critérios que estabeleceram a quantidade de histórias e o tempo para cada entrevista seguiram a percepção do pesquisador em relação à saturação dos temas suscitados nas narrativas.

Ao longo da investigação, outros critérios para além da saturação foram sendo formulados, pois não podiam ser antecipados: a melhor maneira de se obter um relato narrativo ou o momento adequado para encerrá-lo foram decisões tomadas no desenrolar das entrevistas, já que algumas questões estavam previamente traçadas pelo pesquisador, enquanto outras novas surgiram na própria interação com os sujeitos da pesquisa.

Associar, repetir, refazer as histórias e surpreender-se com a lembrança e o esquecimento foram constantes nas entrevistas narrativas. Mesmo que o pesquisador tivesse uma ideia geral da história a ser contada sobre a graduação em Medicina e que cada participante da pesquisa tivesse suas próprias recordações, no encontro da entrevista ambas foram refeitas: a maneira de contar, a pluralidade de perspectivas, novos fatos e novas formulações sobre os efeitos da extensão universitária foram sendo produzidos de maneira totalmente original pela narrativa.

Apesar de a confecção de um roteiro de entrevista ter servido de guia, este foi modificado permanentemente no desenrolar das entrevistas, de acordo com a avaliação subjetiva de cada diálogo. O roteiro, flexível, pressupunha alguns aspectos a serem tratados durante a entrevista, sempre pautados nas memórias, práticas e reflexões acerca das experiências do sujeito: a trajetória do sujeito até a entrada na faculdade de Medicina; a formação em Medicina em termos gerais; a participação em projetos de extensão universitária; a relação entre extensão universitária e a formação em Medicina; e a relação graduação-pesquisa-extensão. A busca pela compreensão de suas experiências foi constituindo nexos e elementos que faziam aparecer em suas narrativas os efeitos próprios dessas vivências refletidas – o que por vezes surpreendia o próprio narrador. Ou seja, houve momentos em que os entrevistados eram tomados de surpresa ao refletirem sobre suas experiências no próprio ato de narrá-las. O pesquisador estimulou a descrição de casos e histórias marcantes, de maneira a enriquecer as narrativas a serem construídas.

O gravador foi utilizado como instrumento fundamental para facilitar a transcrição do material coletado. A gravação permitiu ainda um maior aprofundamento dos elementos comunicacionais: pausas de dúvida, entonação de crítica ou ironia, entusiasmo, assim como fatos e reflexões trazidas pelo narrador que compuseram de maneira essencial a narrativa a ser produzida.

Transcrever as gravações foi transformar com a máxima fidelidade a oralidade para a escrita. Isso constituiu um processo trabalhoso e custoso. Apoiados em Dutra2323 Dutra E. A narrativa como uma técnica de pesquisa fenomenológica. Estud Psicol. 2002; 7(2):371-8., quanto aos procedimentos metodológicos narrativos, as entrevistas devem ser gravadas, transcritas e literalizadas. Meihy e Holanda2424 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. 2a ed. São Paulo: Contexto; 2010. conceituam o processo de literalização por meio do termo “transcriação”(g(g)“Haroldo de Campos, poeta brasileiro, emprestou a ideia de recriação, dinamizando o processo de tradução de um idioma para outro. A isso chamou ‘transcriação’. A tradução do oral para o escrito, assim como uma tradução entre idiomas diferentes, não se opera com uma simples transcrição, especialmente quando se trata de um texto subjetivo. […] Pessoas do Núcleo de Estudos em História Oral da USP se valeram do mesmo processo e o aplicaram às entrevistas em história oral.”24 (p. 134).).

O conceito de transcriação é uma mutação, “ação transformada, ação recriada” de uma coisa em outra, de algo que, sendo um estado da natureza, se transforma em outro. A beleza da palavra composta por “trans” e “criação” sugere uma sabedoria que ativa o sentido íntimo do ato de transcriar. Fala-se de geração, mas não de cópia ou reprodução. Nem de paródia ou imitação. O senso estético encontra aí o colo que abriga aproximações sempre evocadas entre literatura e história oral2424 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. 2a ed. São Paulo: Contexto; 2010.. (p. 133)

Transcriação para uma produção científica da experiência

A transcriação é o momento de “alargamento da imaginação” do próprio pesquisador em direção ao sujeito entrevistado. A transcriação aproxima o pesquisador dos significados e intenções que o narrador quer contar. A passagem do oral para o escrito compreende, antes de tudo, o bom entendimento do que foi falado, para que não se perca de vista o referencial do outro, o narrador. Metáforas, exemplos e trejeitos linguísticos devem permanecer no texto final para que a narrativa transcriada seja ao mesmo tempo outra e a mesma, como uma tradução.

Ao construir narrativas por esse método, foi possível produzir nexos de coerência entre esse processo e a narrativa arendtiana. Isso porque, ao transcriar narrativas, o transcriador precisa reconhecer o outro e suas singularidades narradas em forma de histórias; e, ainda, exercitar alargar a imaginação e o pensamento de modo a caber o storyteller-entrevistado no texto a ser transcriado.

O processo de transcriação foi bastante gratificante. Primeiro, porque dessa maneira o pesquisador pôde trazer, mesclado à estratégia metodológica, o prazer da atividade literária. Segundo porque, ao transcriar as entrevistas, pôde atentar-se à humanidade das narrativas, às histórias e às memórias carregadas de emoção e significado, valorizando, dessa maneira, as experiências e os valores dos sujeitos. Ainda, a partir dos significados que se revelaram na experiência narrada e como produto das reflexões feitas pelo pesquisador na sua trajetória de vida pessoal e profissional, o processo de transcriação revelou-se como diálogo textual entre o pesquisador e os sujeitos participantes deste estudo.

Posteriormente, as narrativas transcriadas foram revistas pelos sujeitos, em um movimento de devolução ao entrevistado da narrativa compartilhada. Esse foi um momento interessante, pois os narradores precisam apreciar a narrativa e corrigir o que fosse necessário para que pudessem validar as história de maneira a se reconhecerem no texto. Nenhum dos sujeitos solicitou modificações importantes no texto final, exceto por questões temporais ou de conexão de fatos. No processo de validação da narrativa, alguns entrevistados manifestaram gratidão por sentirem-se representados plenamente nos textos narrativos transcriados.

Cabe ressaltar, como afirma Schraiber2525 Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Rev Saude Publica. 1995; 29(1):63-74., que as narrativas nas pesquisas têm duplo caráter: são material empírico coletado e transcriado para interpretação do pesquisador e, ao mesmo tempo, resultado e produto do estudo. Meihy e Holanda2424 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. 2a ed. São Paulo: Contexto; 2010. radicalizam ao considerar as narrativas em si como resultados interpretativos das histórias.

Apoiados em Rabelo2020 Rabelo AO. A importância da investigação narrativa na educação. Educ Soc. 2001; 32(114):171-88., sustentamos que a abordagem narrativa em pesquisa ganha potência ao pensar sobre as experiências dos sujeitos no campo da Educação e do cuidado em Saúde, uma vez que, ao efetuar um olhar mais detido sobre o seu processo formativo ou de saúde-adoecimento, os sujeitos criam a oportunidade de refazer o seu percurso na forma de memória-lembrança. Isso permite que os desdobramentos desse tipo de proposta metodológica se revelem para estampar novos significados às experiências passadas com a aposta na reformulação de práticas futuras.

Narrativa na pesquisa e a valorização da singularidade em processos formativos em Saúde

A utilização de narrativas em pesquisas sobre formação em Saúde possibilita criar espaços potentes para radicalizar a educação como processo político de produção de subjetividades: se a faculdade humana de pensar está imbuída de um sentimento de pluralidade, em que o outro precisa ser reconhecido por meio de suas narrativas e incluído ao pensamento em um exercício de reflexão-alteridade; o pensar arendtiano evoca também uma consciência de si, produzindo um senso crítico sobre quem somos, e não apenas o que somos.

Quando o pesquisador se interessa pela história do sujeito – por exemplo, perguntando “Me conta melhor essa história?” ou “Me conta como isso aconteceu?” –, permite-se dar visibilidade aos sujeitos entrevistados, não apenas enquanto sujeitos de opinião (doxa), mas também enquanto sujeitos narrativos: em suas histórias contadas, aparecerão seus medos, paixões, valores e saberes, fazendo-os aparecer a eles mesmos.

Uma repercussão ético-política na formação em Saúde remete diretamente à construção de narrativas por meio do encontro com o outro, não apenas em relação a suas experiências de sofrimento, mas também às experiências de resiliência, de superação e de luta. De certa forma, mediados pelas histórias, pela narratividade e pelo cuidado em Saúde, os encontros permitem que os sujeitos se façam aparecer.

Na pesquisa narrativa, as histórias marcantes importam porque trazem em si uma potência reflexiva tanto para quem ouve (ou lê) quanto para quem conta. Para além do dado da pesquisa, a narrativa parece mobilizar a faculdade humana do pensamento associada à imaginação e à memória.

Como em um exercício de alargar a imaginação e o pensamento em saúde por meio da experiência do encontro – e reconhecê-lo nas intercessões da construção de narrativas –, finalizamos com uma narrativa produzida durante a pesquisa1010 Stelet BP. Sobre repercussões de atividades extensionistas na construção de valores e virtudes durante a formação em medicina [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, UERJ; 2013.. Foi solicitado a um estudante de Medicina que contasse uma história marcante para ele, vivenciada em alguma atividade extensionista, portanto, fora da sala de aula tradicional. A ideia era que o estudante narrasse uma experiência significativa do ponto de vista da formação no âmbito da extensão universitária:

Eu me lembrei de uma situação que ficou marcante. A gente estava numa atividade de extensão que era um grupo de conversas e cuidados com pessoas portadoras de HIV. Um belo dia, um dos participantes traz uma pessoa que estava internada no hospital universitário... a pessoa entra com a roupa da internação, aquele aventalzinho, com o acesso venoso no braço e tudo... era uma travesti. Estava bem adoecida, extremamente frágil, emagrecida. Mas a pessoa entra, ao mesmo tempo fragilizada pela situação de estar doente e internada, mas cheia de dignidade. Ela tinha sido acolhida por um dos participantes do grupo e veio para a reunião com toda a dignidade dela, veio contar a história dela, compartilhar, trocar experiências... para mim, aluno, ver aquela situação de autonomia, de dignidade das pessoas foi muito significante... a dignidade não é ensinada como um sinal de recuperação, um sinal de saúde... isso foge dos nossos parâmetros clínicos. Óbvio que fui ter clareza dessa percepção mais tarde com outras situações, outras vivências que vão dando sentido... mas essa situação foi bem impactante. Outros participantes que já tinham vivido essa experiência de adoecimento, que já tinham vivido situações muito próximas da morte, então estavam fazendo papel de cuidadores. Quem descobria que era HIV positivo estando internado, ajudavam, acolhiam, faziam visitas, uma coisa bem humana... lógico que eram pessoas que tinham disponibilidade, pessoas que já tinham um espírito meio militante sobre a causa, se é que se pode dizer isso. E eu como estudante, vivendo uma situação como essa, como exemplo, foi um grande aprendizado... nas aulas a gente não aprende isso. Isso rarissimamente é discutido... triste pensar que poucos estudantes têm acesso a essas situações... [Estudante de Medicina]1010 Stelet BP. Sobre repercussões de atividades extensionistas na construção de valores e virtudes durante a formação em medicina [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, UERJ; 2013.. (p. 150)

Com a narrativa acima, é possível dar visibilidade à experiência do estudante em uma atividade de extensão agregando à formação em Medicina um aprendizado que se distingue do pressuposto no currículo médico ou do que se assimila nas salas de aula. No valor das narrativas, pode-se apostar no desenvolvimento de virtudes para o exercício do cuidado integral em Saúde.

Agradecimentos

Agradeço à minha orientadora do mestrado, professora Roseni Pinheiro, e ao meu orientador do doutorado, professor Luis David Castiel.

  • (b)
    São considerados fundadores da semiótica contemporânea o filósofo Charles S. Peirce (1839-1914) e o linguista Ferdinand de Saussure (1857-1913). A semiótica é uma disciplina que estuda as estruturas dos diversos sistemas de signos, mais especificamente, as línguas e suas linguísticas, entre as quais se inclui a narrativa.
  • (c)
    Pinheiro1212 Pinheiro R. Cuidado como um valor: um ensaio sobre o (re)pensar a ação na construção de práticas eficazes de integralidade em saúde. In: Pinheiro R. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS, UERJ, ABRASCO; 2007. p. 15-28. afirma que uma abordagem que concilie filosofia, ciências sociais e saúde é justamente a aposta em uma epistemologia dialógica, em que a articulação de conteúdos – como os da filosofia e da política, por exemplo – apresenta-se produtiva e necessária ao desenvolvimento de uma maior capacidade de compreender o humano e seus fenômenos no mundo.
  • (d)
    “No momento em que queremos dizer quem alguém é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equívoco de dizer o que alguém é; enleamo-nos em uma descrição de qualidades que a pessoa necessariamente partilha com as outras que lhe são semelhantes; [...] Essa frustração tem a mais estreita afinidade com a notória impossibilidade filosófica de se chegar a uma definição do homem, uma vez que todas as definições são determinações ou interpretações de o que o homem é e, portanto, de qualidades que ele possivelmente poderia ter em comum com outros seres vivos, enquanto sua diferença específica seria encontrada determinando-se que tipo de ‘quem’ ele é”14 (p. 226-7).
  • (e)
    Tradução nossa do trecho em inglês “By telling our own story, we may become the protagonist of who we are and thereby, as an outcome, we can reconcile ourselves with our life experiences”.
  • (f)
    Tradução nossa do trecho em inglês “Thinking for Arendt has a very particular meaning. Thinking is not equated with the classical attributes of rationality as a cognitive faculty whose criterion is truth and which apprehends concepts through passive perceptions leading to objectively verifiable knowledge”.
  • (g)
    “Haroldo de Campos, poeta brasileiro, emprestou a ideia de recriação, dinamizando o processo de tradução de um idioma para outro. A isso chamou ‘transcriação’. A tradução do oral para o escrito, assim como uma tradução entre idiomas diferentes, não se opera com uma simples transcrição, especialmente quando se trata de um texto subjetivo. […] Pessoas do Núcleo de Estudos em História Oral da USP se valeram do mesmo processo e o aplicaram às entrevistas em história oral.”2424 Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. 2a ed. São Paulo: Contexto; 2010. (p. 134).

  • Stelet BP. Diálogos epistêmicos em Saúde Coletiva: a narrativa arendtiana como aporte teórico-metodológico para pesquisa sobre processos formativos em Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200584 https://doi.org/10.1590/interface.200584

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2020
  • Aceito
    24 Fev 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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