Novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental

New subjectivation modes in nurse education in the area of Mental Health

Nuevos modos de subjetivación en la formación del enfermero en Salud Mental

Sumaya Giarola Cecilio Amanda Nathale Soares Laura Gazzinelli Colares Maria Flávia Gazzinelli Sobre os autores

Resumos

Trata-se de pesquisa cartográfica com o objetivo de analisar novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental. A produção dos dados ocorreu por meio de entrevista semiestruturada e observação não participante, desenvolvidas durante uma disciplina de Saúde Mental de um curso de Enfermagem, no primeiro semestre de 2019. Os dados produzidos foram ancorados na Filosofia da Diferença de Deleuze e Guattari. Pela sala de aula observada, novos modos de ensinar Enfermagem em Saúde Mental puderam ser suscitados. Modos esses que refletem uma postura ético-estético-política expressiva em um território de formação não preocupado em reproduzir formas e modelos, todavia em inventar novos modos de resistir ao que está instituído.

Palavras-chave
Enfermagem; Educação em enfermagem; Docente; Saúde Mental


This cartographic research aims to analyze new subjectivation modes in nurse education in the area of Mental Health. Data were collected by means of semi-structured interviews and non-participant observation, developed during a mental health discipline of a Nursing course that was offered in the first semester of 2019. The produced data were grounded on the Philosophy of Difference proposed by Deleuze and Guattari. Through the observed classroom, new ways of teaching about Nursing education in Mental Health emerged. These new ways reflect an expressive ethical-esthetic-political posture in an education territory that, instead of reproducing forms and models, invents new ways of resisting what is instituted.

Keywords
Nursing; Nursing education; Teacher; Mental health


Investigación cartográfica con el objetivo de analizar nuevos modos de subjetivación en la formación del enfermero en salud mental. La producción de los datos se realizó por medio de entrevista semiestructurada y observación no participante, desarrolladas durante una asignatura de salud mental de un curso de enfermería, en el primer semestre de 2019. Los datos producidos tenían como base la Filosofía de la Diferencia de Deleuze y Guattari. Llevando en consideración la sala de clase observada, fue posible suscitar nuevos modos de enseñanza sobre la formación en Enfermería en Salud Mental. Esos modos reflejan una postura ético-estética-política expresiva en un territorio de formación no preocupado en reproducir formas y modelos y sí en inventar nuevos modos de resistencia a lo instituido.

Palabras-clave
Enfermería; Educación en enfermería; Docente; Salud mental


Relato de um caso

A aula que observo é de uma disciplina ofertada na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG), aberta a diferentes cursos das mais distintas áreas. Chego cheia de expectativas e curiosidade. Fui informada pela professora de que o objetivo da aula é refletir sobre o protagonismo do usuário de Saúde Mental. Tão logo entro no corredor que me leva à sala de aula, sou tocada pela diferença. Existem três ou quatro pessoas sentadas do lado de fora, no corredor, aguardando a porta se abrir. Dentre elas, há uma senhora, com cerca de sessenta anos. Quando a vejo, logo penso: “Quem é ela?”. Preciso controlar meu impulso de julgar, mas não soa natural para mim a presença daquela senhora no espaço de ensino. Embora acredite que não existe um tempo determinado para aprender, minha expectativa é encontrar alunos jovens.

A porta se abre. Ajudo a senhora a se levantar. Entramos e nos sentamos. Ela sorri para mim, eu sorrio de volta. Ela veste uma canga por cima de uma calça legging e tem flores no cabelo. A professora entra em sala. Os alunos, gradualmente, vão chegando. Corpos altos, jovens, corpos de branco, de uniforme, corpos soltos. Outra senhora chega acompanhada de um senhor.

A aula começa e a professora pede que nos apresentemos. Quem são essas pessoas? Minha curiosidade floreia. De forma interessante, ela pede que ninguém se apresente como é de praxe […] sou isso... sou aquilo […]. Somos poupados desse momento. Em troca, a professora faz um convite para que todos se apresentem respondendo: “O que é protagonismo na Saúde Mental?”.

Alguns alunos respondem com ideias que, corriqueiramente, circulam entre as pessoas. Outros recitam partes de poemas e músicas, revelando ser essa uma prática frequente em aulas anteriores. A senhora de flor no cabelo responde: “Protagonismo é ser livre para escolher como viver, para viver a loucura.”

Em um misto de surpresa e admiração, descubro quem é ela: usuária de um serviço de Saúde Mental de Belo Horizonte, que, em seguida, é apresentada a todos: “Pessoal, essa é a Flor, responsável pela construção desta disciplina sobre Saúde Mental. Foi Flor, em companhia com outros usuários, quem pediu que cedêssemos um lugar de fala para os usuários.”

Presa às formas curriculares e às suas ordenações, busco apressadamente na ementa, no plano de ensino e nos métodos descritos, um sentido para o que se passa ali naquele momento. Demoro alguns minutos para conseguir me desprender dessa rigidez curricular e me deixar ser afetada pelo que acontecia.

A senhora com flores no cabelo comenta sobre a experiência de ser usuária do Sistema Único de Saúde (SUS) em Belo Horizonte. Fala sobre a política pública vigente em Saúde Mental. Como usuária, diz se preocupar com o nosso sistema de saúde, principalmente com os investimentos que o governo disponibiliza para esse setor. Ela relata que ouviu “vozes” alertando: “Os serviços de Saúde Mental estão em risco em Belo Horizonte e é necessário resistir ao desmonte do SUS. Os Centro de Atenção Psicossocial (Caps) não podem ter seus gastos cortados e precisam continuar abertos para todos os usuários.” Conta ainda: “Enviei uma carta ao presidente dizendo que estou preocupada com o financiamento do SUS e com o futuro dos usuários do Caps.”

Flor recorda as conquistas da Saúde Mental e discorre como o modelo da Atenção Primária à Saúde salvou os usuários dos manicômios e dos regimes de internação. Diz que encontrou força para lutar nas vozes que ouve.

A aula continua. Os alunos compartilham experiências próprias. Contam sobre os seus familiares. Dialogando com eles, Flor manifesta que os usuários do Caps precisam ser cuidados, ouvidos, tratados como pessoas normais. E pergunta: “Mas o que é mesmo loucura? Vocês estão me achando louca, por exemplo?”

Nesse momento, a professora intervém na mesma direção da Flor e deixa pairando no ar a pergunta: “E aí, pessoal, com qual conceito de loucura vocês têm trabalhado?”

Pensei comigo: a “loucura” (visão social e subjetiva) da Flor, na sala de aula, se torna sanidade. As vozes da esquizofrenia ganham espaço e geram a diferença que se faz forte e resistente em cada um.

A presença da Flor em sala de aula e o seu engajamento, por si sós, interrogam os conceitos já dados sobre a loucura. Se a Flor se torna tão lúcida aos olhos de todos, a ponto de nos problematizar o que temos validado na Ciência, o que é então a loucura? Como devemos lidar com ela no Caps e na sociedade?

O conhecimento que saía da Flor e se conectava com todos ali parecia se movimentar como um pólen, fazendo uma polinização cruzada e gerando vida. Vida dentro de cada um dos alunos e vida dentro de mim. Nesse movimento, vi a força do acontecimento. Um acontecimento não apenas para mim, mas para todos os alunos ali presentes, atentos, curiosos, ativos!

Mas não são apenas as vozes da senhora com flores no cabelo que dão coro à disciplina. Há uma outra senhora, irmã da Flor, que se faz ouvir. Não tem um “Cid-10”, mas sente o que é tê-lo. Ela relata a luta que trava desde que a sua irmã foi diagnosticada com esquizofrenia. Não denota nenhum tom amargo ou pesado ao fazê-lo. Demonstra certa força de resistência ao se voluntariar para desenvolver ações de apoio nos Caps de Belo Horizonte.

Sem que eu possa perceber, estamos todos discutindo sobre a rede de atenção em Saúde Mental, o Caps, as estratégias de combate ao estigma da Saúde Mental, como educar e ser educado pelos usuários de Saúde Mental e, também, sobre promoção da Saúde Mental. Sem slides, sem hierarquia, sem determinismos, sem verticalidade.

A aula, após três horas de discussão, chega ao fim. Não há sínteses ou conclusões. Só levo comigo a noção de que os encontros insuspeitos capazes de engendrar a produção de novos sentidos são o que importa nos processos formativos do enfermeiro em Saúde Mental.

Introdução

Ao inaugurarmos este artigo com o relato da cena observada, buscamos refletir sobre a formação do enfermeiro em Saúde Mental. Historicamente constituída em uma pauta excludente de cuidado, centrada em um modelo repressor asilar e manicomial, a formação do enfermeiro em Saúde Mental foi marcada por um ensino pautado em conteúdos focados no corpo doente, na ênfase no controle do indivíduo que é cuidado e por processos que esvaziam a potência do sujeito, categorizando-o com base no paradigma biomédico11 Pessoa Junior JM, Santos RCA, Clementino FS, Nascimento EGC, Miranda FAN. Formação em saúde mental e atuação profissional no âmbito do hospital psiquiátrico. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(3):e3020015. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003020015.
https://doi.org/10.1590/0104-07072016003...
,22 Amarante P, Nunes MO. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):2067-2074. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018.
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
.

As disciplinas de Saúde Mental, obrigatórias no currículo de Enfermagem a partir da década de 1940, pautaram-se, por muitos anos, em interfaces clínicas para a explicação dos distúrbios psíquicos e na centralidade do hospital como gestor do cuidado11 Pessoa Junior JM, Santos RCA, Clementino FS, Nascimento EGC, Miranda FAN. Formação em saúde mental e atuação profissional no âmbito do hospital psiquiátrico. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(3):e3020015. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003020015.
https://doi.org/10.1590/0104-07072016003...
,33 Olmos CEF, Rodrigues J, Lino MM, Lino MM, Fernandes JD, Lazzari DD. Ensino de enfermagem psiquiátrica e saúde mental face aos currículos brasileiros. Rev Bras Enferm. 2020; 73(2):e20180200. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0200.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
.

A partir do nascimento do SUS, aliado ao movimento da Reforma Psiquiátrica e à Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), novas forças passaram a transitar pelo modo hegemônico de formar o enfermeiro em Saúde Mental, abalando ementas, conteúdos e saberes11 Pessoa Junior JM, Santos RCA, Clementino FS, Nascimento EGC, Miranda FAN. Formação em saúde mental e atuação profissional no âmbito do hospital psiquiátrico. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(3):e3020015. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003020015.
https://doi.org/10.1590/0104-07072016003...
.

Desse modo, a nova política pública agitou as forças hegemônicas presentes na formação do enfermeiro em Saúde Mental e fez brotar novas discussões ancoradas no modelo de atenção psicossocial, à espreita de novos modos de subjetivação e novos sentidos sobre a loucura44 Cruz NFO, Goncalves RW, Delgado PGG. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab Educ Saude. 2020; 18(3):e00285117. Doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00285.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002...

5 Almeida JMC. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad Saude Publica. 2019; 35(11):e00129519. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00129519.
https://doi.org/10.1590/0102-311x0012951...
-66 Delgado PG. Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte. Trab Educ Saude. 2019; 17(2):e0020241. Doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00212.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002...
.

Todavia, em meados do ano 2015, o Ministério da Saúde passou a ser objeto de negociação política e, junto dele, os princípios do SUS. As conquistas começaram, desde então, a ser ameaçadas pelas desmontagens políticas da Seguridade Social no Brasil, com destaque para a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 201677 Brasil. Presidência da República. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de Dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 15 Dez 2016 [citado 14 Mar 2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
.

Os cortes nos financiamentos e o congelamento orçamentário iniciados nos últimos anos se mantêm presentes atualmente, reverberando em uma macropolítica que mantém a lógica neoliberal, que resulta em perdas e retrocessos para a Saúde Mental. Se não resistirmos a esse cenário, voltaremos a operar um cuidado em Saúde Mental que segrega e asfixia – e, com isso, coopera para assujeitamentos na formação do enfermeiro em Saúde Mental.

Nesse ponto, saímos em busca de agenciamentos desterritorializantes em uma sala de aula, como forma de não cedermos ao endurecimento provocado pela macropolítica governamental, e nos encontrarmos com novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental.

O relato do caso, ao iniciar este estudo, tem, dessa forma, potência de funcionar como dispositivo produtor de reflexões e problematizações e nos convocar a pensar nas possibilidades de traçar linhas de fuga e movimentos de singularização na formação88 Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-324. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0166.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.01...
. Operar linhas de fuga na formação do enfermeiro em Saúde Mental é caminhar por deslocamentos que desmontam as arquiteturas constituídas pelo poder e pela normatividade, favorecendo a produção de afetos e novos modos de existência99 Kastrup V, Barros RB. Movimentos-funções do dispositivo na pratica da cartografia. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. 5a ed. Porto Alegre: Sulina; 2009. p. 76-91.,1010 Souza EP, Oliveira ED. Educação (a distância) desterritorializada: uma proposta para a formação de docentes online. Renote (Porto Alegre). 2013; 11(1):1-12. Doi: https://doi.org/10.22456/1679-1916.41631.
https://doi.org/10.22456/1679-1916.41631...
.

O objetivo desta cartografia é, portanto, analisar novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental ao nos permitirmos responder à provocação: o que pode uma Flor em uma sala de aula?

Método

Destacamos que o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o protocolo CAAE-15836019.6.0000.5149, e é parte integrante dos dados da tese de doutorado da autora principal.

Com o intuito de rastrear novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental na Escola de Enfermagem da UFMG, escolhemos a cartografia. Ela foi escolhida pois os seus princípios rizomáticos contribuem para a captura dos processos de subjetivação existentes na formação do enfermeiro em Saúde Mental que se faz em conexões, forças, fluxos e linhas1111 Almeida LRX, Romagnoli RC. Linhas de (re)produção: um estudo sobre os processos de subjetivação envolvidos nas juventudes territorializadas como geração y. Psicol Rev (Belo Horizonte). 2017; 23(2):662-868. Doi: http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p662-686.
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017...
.

Não se trata de um método rígido, endurecido pela Ciência, mas sim de uma estratégia de análise processual da constituição de dispositivos e formações rizomáticas, apontando diferentes linhas e forças de um território1212 Brito MR, Chaves SN. Cartografia...: uma política de escrita. Rev Polis Psique. 2017; 7(1):167-180.,1313 Cintra AMS, Mesquita LP, Matumoto S, Fortuna CM. Cartografia nas pesquisas científicas: uma revisão integrativa. Fractal Rev Psicol. 2017; 29(1):45-53. Doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1/1453.
https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1...
.

Quando se inicia uma pesquisa cujo objetivo é a análise de processos de subjetivação – como é o caso desta cartografia –, já há, na maioria das vezes, um ou mais processos em curso. Dessa forma, o pesquisador-cartógrafo se encontra na difícil situação de começar pelo meio, entre pulsações.

A necessidade de adentrar na espessura processual do território da formação em Saúde Mental nos conduziu às duas vias escolhidas para explorá-lo e proporcionar a produção dos dados do estudo: entrevista e observação em campo.

A entrevista foi realizada no final do ano de 2019 com a docente coordenadora da disciplina de Saúde Mental da EEUFMG, que, após assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), respondeu a perguntas semiestruturadas do roteiro de pesquisa. O roteiro, constituído por duas perguntas abertas, ajudou a buscar os sentidos de aprendizado e de acontecimento no ensino na formação em Saúde Mental: “Como você pensa que o aprendizado acontece?” e “Fale sobre uma passagem que tenha suscitado acontecimentos em uma de suas experiências em sala de aula”.

As perguntas utilizadas tentaram partir do princípio de que todo acontecimento pode ser um agenciamento. O agenciamento incide nos estados de coisas que efetuam um acontecimento, remetendo-os a um acontecimento na sua face incorporal. Se acontecimentos que levam a agenciamentos acontecem, acontecem também processos de desterritorialização – de formas, de pensamentos, de falas, de conhecimentos – que apontam novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental.

O local escolhido para a realização da entrevista foi propício ao diálogo, à concentração, à anotação e à gravação para posterior transcrição.

Após a entrevista, uma sala de aula da docente – escolhida de modo aleatório – foi observada pela pesquisadora principal. Durante a observação, a pesquisadora fez anotações em um diário de bordo sobre o que foi sentido, percebido, visualizado e experienciado. A pesquisadora tentou se distanciar das esferas conclusivas, de expectativas e da inibição de uma atenção seletiva que poderia conduzir ao predomínio da recognição e ao fechamento dos elementos de surpresa presentes no processo observado99 Kastrup V, Barros RB. Movimentos-funções do dispositivo na pratica da cartografia. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. 5a ed. Porto Alegre: Sulina; 2009. p. 76-91..

A sala de aula observada e a produção de sentidos sobre aprendizado e acontecimento

É interessante, inicialmente, pensarmos sobre como uma flor aqui singulariza um conjunto de operações que realizamos para dar conta do que nos aconteceu durante a cena observada. Uma flor no cabelo nos chama a atenção, se torna na cena uma nominação e, em um movimento metonímico, nos convoca a transformá-la em nome próprio.

Flor, como nome próprio aqui, sugere, em menor escala, a designação de uma pessoa ou de um sujeito e, em maior escala, um efeito, um ziguezague, alguma coisa que se passa; marca um acontecimento e compõe um modo de individuação sem sujeito, que se difere do referenciamento de um indivíduo por meio de características identificantes.

Isso revela que, quando nos referimos à Flor aqui, nos interessamos menos pelo objeto dos seus cabelos e pelo seu nome e mais pelos movimentos ali experimentados; nos importamos menos com a síntese de uma subjetivação e mais com a composição de potências e de afetos não subjetivados1414 Deleuze G, Parnet C. Diálogos. 4a ed. Valência: Pre-Textos; 2004..

Como a marca de um acontecimento ali, na sala de aula, Flor desmonta a noção dominante de que apenas um docente com títulos, conhecimento ou valoração científica pode propor o que deve ser ensinado. Quando a professora se desloca, integralmente, do seu lugar de saber perante a turma, cedendo espaço a outro, percebemos um enfraquecimento nas relações de poder que comumente circulam nas salas de aula e buscam operar o aprendizado. Os saberes da professora e da Flor, embora pautados em racionalidades distintas, convivem e disputam legitimidade no espaço da sala de aula. Os saberes produzidos pela Flor, normalmente invisibilizados, pedem passagem para circular “entre” outros saberes.

Com a participação da Flor, a professora permite que as forças do saber-poder se movimentem pela sala de aula e se distanciem da racionalidade científica tão presente na formação generalista em Enfermagem. Essa racionalidade, que opera ordem e legitima saberes, reconhece o saber científico como universal, privilegia o controle de quem ensina e investe em um aprendizado por acúmulo de informações1515 Soares AN, Gazzinelli MF, Souza V. Experimentações de educação e saúde: mapeando a produção de sentidos na pós-graduação em Enfermagem. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190675. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.190675.
https://doi.org/10.1590/interface.190675...
,1616 Gazzinelli MF, Soares NA, Carneiro ACLL, Diemert D. Intercessões entre pesquisa clínica e educação: por uma produção do conhecimento inventiva. Curitiba: Editora CRV; 2018..

A professora relata, durante a entrevista, que a construção da proposta da disciplina aconteceu de maneira conjunta com outros docentes da EEUFMG e UFMG, de variados cursos, e com usuários dos serviços de Saúde Mental do Caps de Belo Horizonte – dentre eles, a Flor. A proposta era de que a discussão sobre Saúde Mental contasse com a participação ativa de quem deveria ter o direito de fala: a pessoa que usa o serviço de Saúde Mental e por ele milita. O pedido de construção dessa disciplina partiu dos próprios usuários que, em “um grito de socorro, se sentiram ameaçados pelas políticas vigentes a perder o espaço de assistência e cuidado que compartilhavam” (P-1).

Desde então, em meados de 2014, a disciplina acontece na EEUFMG e assume conteúdos ligados aos serviços de Saúde Mental, aos movimentos sociais, ao SUS e às suas políticas vigentes, sob a ótica, a fala e o corpo dos usuários – os protagonistas da disciplina e do sistema de Saúde Mental como um todo. Sobre a disciplina, a professora ainda explica:

Quando eles [usuários] assumem um conteúdo [na disciplina] a gente [docente] fica de suporte caso eles precisem, mas eles que vão decidir como é que isso [o tema da aula] vai ser trazido para a sala de aula, como é que isso vai ser discutido, eles pensam várias técnicas para discutir essa questão. E a gente [docente e usuários] senta depois, a gente avalia como é que foi e aí a gente vai repensando. Então eles são muito parte desse corpo docente e estão muito presentes na sala de aula [...] isso também é muito interessante do ponto de vista dos estudantes que ficam atentos ao sofrimento [mental do usuário], porque acaba que inevitavelmente alguma coisa dessa ordem aparece, então eles [alunos] também ficam muito atentos. (P-1)

A professora afirma que os usuários também são “parte desse corpo docente”, corpo como materialidade passível de afecções; além de integrarem as discussões, eles decidem sobre os conteúdos e as estratégias de ensino. Sobre a participação dos alunos, a professora relata que a disciplina sempre é iniciada por narrativas pessoais despertadas por algum recurso artístico, como uma poesia, um livro, um filme. A tônica da disciplina se mantém na direção de valorizar os atores ali envolvidos, ali presentes – em corpo, em memória, em sensações, em vivências. A sala de aula é construída como espaço em que usuários dos serviços de Saúde Mental e alunos experimentam o lugar geralmente atribuído aos docentes.

Em sintonia com o arranjo pedagógico experimentado em sala de aula, quando questionada sobre como acredita que o aprendizado acontece, a professora afirma que “o aprendizado acontece pelo desejo dos que estão envolvidos e pela intensa disposição em se conectarem uns com os outros.” (P-1). Pelos dizeres da professora, vemos como a sala de aula observada, de fato, é operada pela conexão – descrita pela professora como quando saberes distintos conversam entre si, confrontam-se, em um movimento em que todos ensinam e aprendem concomitantemente.

A professora descreve, ainda, que aprender pela (...) conexão – conectividade (...) (P-1) – permite novos e outros saberes, considerando que o saber científico é importante, mas não é onipresente e tampouco deve ser visto como soberano: “não que o saber científico não seja um saber importante, ele é um saber, mas ele é só mais um dentre uma multiplicidade de saberes” (P-1).

Operar uma aprendizagem pelo desejo e pela conectividade implica abrir-se para o imprevisto e para o impensado. Não há como prever que movimentos possam surgir do entrecruzamento entre os diferentes saberes. Nada precede esse movimento. Sua estreia se dá pelo encontro com o que se ouve, se vê, se vivencia e tem potência para engendrar singularizações. Sobre isso, podemos observar que o arranjo pedagógico experimentado pela docente, pela Flor e pelos alunos aponta uma sala de aula que desarranja os esquemas arborescentes e abre o aprendizado para o fluxo de forças rizomáticas.

Uma sala de aula aberta aos fluxos rizomáticos deixa de ser campo de reprodução de conhecimentos, de território de formação moral e de instrumentalização na relação com o conhecimento e passa a ser pensada como um campo de experimentação, com espaço para forças criadoras. Assim, contrapõe-se aos esquemas arborescentes que hierarquizam e categorizam o conhecimento, compartimentando-o dentro de especificidades. A proposta arborescente é marca de uma educação maior, a educação das grandes políticas públicas, das diretrizes e dos currículos nacionais, que tende a uma padronização e uma homogeneização da produção de conhecimento1717 Duarte JRR, Cestari LAS. As imagens do pensamento sobre diferenças do projeto pedagógico do curso de pedagogia da UESB. Rev Espac Curriculo. 2017; 10(3):384-397. Doi: https://doi.org/10.15687/rec.v10i3.31156.
https://doi.org/10.15687/rec.v10i3.31156...
,1818 Barreto RO, Carrieri AP, Romagnoli RC. O rizoma deleuze-guattariano nas pesquisas em Estudos Organizacionais. Cad EBAPE.BR. 2020; 18(1):47-60. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1679-395174655.
https://doi.org/10.1590/1679-395174655...
.

A sala de aula aberta aos fluxos rizomáticos, ou melhor, a sala de aula protagonizada por Flor, é mais um acontecimento do que um modo de fazer pedagógico. Ela é terreno para linhas de fuga quando permite que tanto docentes quanto discentes se encontrem com o estranho, com o não saber. O encontro dos discentes com a Flor em uma posição de “quem sabe” e “quem ensina” é um acontecimento suscitado pelo estranhamento, pela dúvida, pela novidade, pela potência do instituinte. Além disso, o conforto da docente em receber a Flor na posição de quem ensina nos fornece pistas de como não resistir a um acontecimento em sala de aula e de como confiar no não lugar que (des) forma uma nova situação de aprendizagem.

A professora, quando questionada na entrevista sobre uma passagem que tenha suscitado “acontecimentos” em uma de suas experiências em sala de aula, menciona a própria sala de aula observada pela pesquisadora-cartógrafa como exemplo e cita a experiência de ter a Flor como matéria-prima das subjetivações dos seus alunos. Ela explicita, ainda, que entende que um acontecimento é experimentado quando algo choca, gera incômodo e, em seguida, engendra algo novo que se distancia do instituído: “o acontecimento dificilmente pode ser algo calculado, previsto (...) é uma tensão criada entre as certezas que os alunos – ou eu – podem carregar” (P-1).

O abalo das certezas, mencionado pela professora, acontece na cena, por exemplo, quando Flor se mostra lúcida, apesar do seu diagnóstico de esquizofrenia; quando Flor confronta o seu diagnóstico clínico, mas, sobretudo, moral – aquele concebido pela sociedade e pela comunidade científica. Esse movimento, assim como outros experimentados na sala de aula, força os alunos a produzirem algum tipo de sentido (ou significado) para dar conta do que acontece a eles1919 Deleuze GD, Guattari F. Biographie croisée. 10a ed. Paris: Éditions La Decouvérte; 2009.,2020 Brito MR, Ramos MNC. Por um ensino e uma aprendizagem-acontecimento. Rev Ensaio (Belo Horizonte). 2014; 16(1):31-47.. Ao terem o pensamento confrontado, os alunos acabam expressando impressões, sentimentos ou novos conhecimentos sobre o assunto em questão: “o que acontece efetiva um movimento que se contraefetua, não fica perenizado, enclausurado em uma fôrma”2020 Brito MR, Ramos MNC. Por um ensino e uma aprendizagem-acontecimento. Rev Ensaio (Belo Horizonte). 2014; 16(1):31-47. (p. 35).

Nesse sentido, o acontecimento é algo que não pode ser palpado, tocado, já que é incorporal2121 Andrade PA. A filosofia do acontecimento em deleuze. O Manguezal (Sergipe). 2018; 1(2):6-18.. Embora muito do acontecimento se efetue e encarne na Flor, seu sentido a ultrapassa. Buscar esse sentido na Flor, em seu corpo, é como procurar vida nos órgãos e nas estruturas de uma flor. Sabemos quão inútil seria dissecá-la, despedaçá-la, em busca da vida que pretensamente existe em seu estigma, estilete e ovário. Não é neles que a vida se encontra, embora neles insista. Não está na Flor e no que ela representa e sim no que ela esparrama, espalha, reverbera, ecoa na sala de aula.

A sala de aula protagonizada por Flor “desmonta” o pensamento estruturado e leva a rupturas engendradas por constrangimentos ao conhecimento que está instituído. Tal postura pode suscitar linhas de fuga na formação em Enfermagem em Saúde Mental, uma vez que perturba os modos habituais pelos quais concebemos o que somos, o mundo em que vivemos, o modo como formamos enfermeiros nos dias atuais e, sobretudo, o modo como ensinamos sobre a loucura.

A sala de aula e os (novos) sentidos sobre a loucura

O fio condutor das discussões sobre os sentidos de loucura que transitam pela formação em Enfermagem em Saúde Mental é o tema da aula observada: o protagonismo do usuário do serviço de Saúde Mental.

Diante da pergunta “o que é protagonismo?”, os alunos são conduzidos a deslocar o conceito generalista de protagonismo para o conceito específico do campo da Saúde Mental.

O protagonismo2222 Pacheco SUC, Rodrigues SR, Benatto MC. A importância do empoderamento do usuário de CAPS para a (re)construção do seu projeto de vida. Mental (Barbacena). 2018; 12(22):72-89. nesse campo pode significar tanto o envolvimento da pessoa com sofrimento mental na cogestão do seu tratamento, quanto a sua potência de ação como sujeito político que participa, decide e controla socialmente a política pública de saúde – a qual, em um contexto micropolítico, expressa os sentidos de cultura, gênero, sexo e singularidade dos portadores de transtornos mentais.

Os alunos respondem o que é protagonismo por meio do exercício de improvisação. Sem uma leitura prévia, eles se sentem livres para dizer o que vem à mente, citam trechos de músicas e poemas como modo de fazer conexões entre protagonismo e vida. Uma música lembrada em sala de aula foi “Sufoco da Vida”, do grupo “Harmonia Enlouquece”.

Sufoco da vidaHarmonia EnlouqueceEstou vivendoNo mundo do hospitalTomando remédiosDe psiquiatria mentalEstou vivendoNo mundo do hospitalTomando remédiosDe psiquiatria mentalHaldol, DiazepamRohypnol, PrometazinaMeu médico não sabeComo me tornarUm cara normalMe amarram, me aplicamMe sufocamNum quarto trancadoSocorroSou um cara normalAsfixiado(...)

Assim como os alunos que usufruem da liberdade para imaginar em sala de aula, Flor deseja exercitar o protagonismo como sinônimo de liberdade para escolher como viver. Ao discorrer “protagonismo é ser livre para escolher como viver, para viver a loucura”, Flor diz sobre modos singulares de ser louco, que nada mais são do que parte e busca de existir.

Esse clamado por liberdade parece estar assentado em modos de operar o cuidado do sujeito com sofrimento mental por uma perspectiva mais psicossocial, presente na realidade de alguns serviços. Embora criticada pelas abordagens biomédicas, segundo as quais é “natural” a indicação de uma única via de enfrentamento da doença, a prática desses sujeitos de viver o adoecimento a seu modo tem sido considerada positiva por alguns profissionais da saúde, como “teimosia” em continuar existindo. Na abordagem biomédica, a loucura é assumida como um impeditivo, no sentido regulativo, para as possibilidades de vida. Na abordagem psicossocial, a loucura é acontecimento que insurge quando se é “autorizado” a agir compondo com o que se é2323 Oliveira EA, Martins CP. Sobre práticas de medicalização e “loucura”: algumas reflexões (in)disciplinadas. Rev Psicol Saude. 2020; 12(1):101-113. Doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v12i1.747.
https://doi.org/10.20435/pssa.v12i1.747...
,2424 Silva JLD, Valentim AF, Lyra J. Loucura em território: experimentando produção de saúde com beneficiários do programa De volta para casa. Rev Psicol Polit. 2020; 20(47):51-64..

Como exemplo do sentido de loucura como acontecimento, Flor inaugura a possibilidade de a loucura ensinar em uma sala de aula e acaba por mobilizar resistências aos efeitos da lógica excludente (loucura como perturbação, defeito, disfunção, desvio e incapacidade) com a qual ainda se olha para os sujeitos loucos. Flor ensina como a loucura pode ser território de luta a favor da natureza singular que vive em cada diagnóstico dado. Pela sua resistência e, inclusive, de pessoas da sua família, Flor anuncia novos modos possíveis para a sua existência e para lidar com as pessoas com sofrimento mental.

Quando Flor diz que as pessoas com sofrimento mental querem “ser cuidadas, ouvidas e tratadas como pessoas normais”, mesmo tendo um diagnóstico, ela explicita que, ao contrário do que corriqueiramente circula, as pessoas com sofrimento mental conseguem se relacionar com o outro, trabalhar, pensar, fazer escolhas, cuidar de si próprio. Quando Flor pergunta se nós a achamos louca, ela está se referindo a estar fora de si e de um estado de consciência. Nesse movimento, Flor sinaliza a necessidade de os alunos entenderem a pessoa com sofrimento mental para além de um fenômeno psíquico puro e individual.

O exercício de entender a pessoa com sofrimento mental além de um fenômeno psíquico é, também, um exercício de alteridade. Se a alteridade é tudo aquilo que se refere à diferença, ao outro, ao não idêntico, somos convidados a refletir sobre a sua presença na sala de aula da Flor. Reconhecer a alteridade na sala de aula em análise é um ato de (re) conhecimento do outro na sua diferença – reconhecemos Flor pela não semelhança dela conosco e isso, por si só, é um motor de indagações sobre nós, sobre a nossa vida, nossos conceitos2525 Dinis NF. Educação, cinema e alteridade. Educ Rev. 2005; (26):1-13. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-4060.384.
https://doi.org/10.1590/0104-4060.384...
.

A alteridade, pela experiência com a Flor, pode ser propulsora de novos modos de agir no mundo, na formação, no cuidar da loucura. Reconhecer algo ou alguém nesse movimento significa ter com eles um encontro que, em algum momento e em certa medida, já foi experimentado. Querer que a diferença seja exercitada nesse ato em que a memória é o traço requerido traz em si um paradoxo. Como é possível conhecer a diferença no outro sem inimizade, sem estranhamento e sem surpresa?

Compreendemos, pautados em Deleuze e Guattari, que o encontro com a Flor não chega apenas como uma relação de empatia com uma pessoa que, além do sofrimento mental, tem histórias e experiências que lhe são próprias. Chega como um encontro por nós desejado com o que nos arranca da condição de permanecermos os mesmos – um convite para uma experimentação de diferentes formas de estar no mundo2525 Dinis NF. Educação, cinema e alteridade. Educ Rev. 2005; (26):1-13. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-4060.384.
https://doi.org/10.1590/0104-4060.384...
.

Como um simples ato de boa vizinhança, sem muita violência interna, poderíamos reconhecer a Flor do mesmo modo que reconheceríamos a diferença em um estrangeiro, em uma adolescente grávida, em um homossexual. O exercício de alteridade é mais do que reconhecer a diferença do outro, é desejar encontros com o outro que nos tirem de uma identidade fixa e nos coloquem a produzir subjetivações outras2525 Dinis NF. Educação, cinema e alteridade. Educ Rev. 2005; (26):1-13. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-4060.384.
https://doi.org/10.1590/0104-4060.384...
.

Não nos cabe aqui, ou em outro lugar, lançar um novo conceito para a loucura. Mas nos cabe supor que, por aqui, ou melhor, pela sala de aula da Flor, novos modos de se ensinar sobre a loucura e sobre a formação em Enfermagem em Saúde Mental puderam ser suscitados. Modos esses que refletem uma postura ético-estético-política expressiva em um território de formação em Enfermagem em Saúde Mental não preocupado em reproduzir formas e modelos, mas em inventar novos modos de resistir ao que está instituído2323 Oliveira EA, Martins CP. Sobre práticas de medicalização e “loucura”: algumas reflexões (in)disciplinadas. Rev Psicol Saude. 2020; 12(1):101-113. Doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v12i1.747.
https://doi.org/10.20435/pssa.v12i1.747...
.

Em uma última colocação, a professora diz que a falha da EEUFMG para ela está no modo “único e hegemônico de pensar a educação, de pensar o ensinar e o aprender” (P-1). O caminho, para a professora, consiste em plantar uma dúvida no corpo docente sobre os modos pelos quais a formação tem sido operada nos dias atuais. Segundo ela, “qualquer docente aqui dentro desta escola, que tem um mínimo de capacidade de observação, já deve ter percebido que essa forma muito tradicional, formatada, não funciona” (P-1).

Considerações finais

Em síntese, podemos dizer que a sala de aula da Flor expressa campos de forças que se conectam em um movimento no qual os devires da professora, da Flor e dos alunos geram potência para linhas de fuga na formação em Enfermagem em Saúde Mental e na produção de sentidos sobre a loucura.

As reflexões suscitadas durante a observação e a análise da entrevista despertaram em nós, pesquisadoras, novos pensamentos sobre o papel do docente na formação de um enfermeiro em Saúde Mental, sobre modos de ensinar a loucura pautados na subjetividade, sobre como operar um ensino que suscite acontecimentos. Sentimos os nossos corpos vibrarem com as ideias que passaram a brotar em formato de desejo; o nosso “devir-enfermeira-docente” pulsou.

Perguntamo-nos: quem sabe a formação do enfermeiro em Saúde Mental não possa atuar mais com as forças que desorganizam o instituído? Quem sabe não se possa dar mais voz ao atrevimento de singularizar e menos ao de serializar a subjetividade? Por fim, mas longe de ser uma resposta, quem sabe a formação do enfermeiro em Saúde Mental não possa também ser traidora do instituído e se dedicar ao instituinte? Afinal, como diria Guattari2626 Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. Oliveira AL, Leão LC, tradutores. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora 34; 2006., “a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade que enriqueça de modo contínuo sua relação com o mundo” (p. 33).

Agradecimentos

À Roberta Romagnoli (PUC-MINAS) e à Teresa Kurimoto (EEUFMG), pelas contribuições substanciais neste trabalho.

  • Cecilio SG, Soares AN, Colares LG, Gazzinelli MF. Novos modos de subjetivação na formação do enfermeiro em Saúde Mental. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200688 https://doi.org/10.1590/interface.200688

Referências

  • 1
    Pessoa Junior JM, Santos RCA, Clementino FS, Nascimento EGC, Miranda FAN. Formação em saúde mental e atuação profissional no âmbito do hospital psiquiátrico. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(3):e3020015. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003020015.
    » https://doi.org/10.1590/0104-07072016003020015.
  • 2
    Amarante P, Nunes MO. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):2067-2074. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018.
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
  • 3
    Olmos CEF, Rodrigues J, Lino MM, Lino MM, Fernandes JD, Lazzari DD. Ensino de enfermagem psiquiátrica e saúde mental face aos currículos brasileiros. Rev Bras Enferm. 2020; 73(2):e20180200. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0200.
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0200
  • 4
    Cruz NFO, Goncalves RW, Delgado PGG. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trab Educ Saude. 2020; 18(3):e00285117. Doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00285.
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00285
  • 5
    Almeida JMC. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad Saude Publica. 2019; 35(11):e00129519. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00129519.
    » https://doi.org/10.1590/0102-311x00129519
  • 6
    Delgado PG. Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte. Trab Educ Saude. 2019; 17(2):e0020241. Doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00212.
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00212
  • 7
    Brasil. Presidência da República. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de Dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. 15 Dez 2016 [citado 14 Mar 2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm
  • 8
    Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-324. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0166.
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0166
  • 9
    Kastrup V, Barros RB. Movimentos-funções do dispositivo na pratica da cartografia. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. 5a ed. Porto Alegre: Sulina; 2009. p. 76-91.
  • 10
    Souza EP, Oliveira ED. Educação (a distância) desterritorializada: uma proposta para a formação de docentes online. Renote (Porto Alegre). 2013; 11(1):1-12. Doi: https://doi.org/10.22456/1679-1916.41631.
    » https://doi.org/10.22456/1679-1916.41631
  • 11
    Almeida LRX, Romagnoli RC. Linhas de (re)produção: um estudo sobre os processos de subjetivação envolvidos nas juventudes territorializadas como geração y. Psicol Rev (Belo Horizonte). 2017; 23(2):662-868. Doi: http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p662-686.
    » https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p662-686
  • 12
    Brito MR, Chaves SN. Cartografia...: uma política de escrita. Rev Polis Psique. 2017; 7(1):167-180.
  • 13
    Cintra AMS, Mesquita LP, Matumoto S, Fortuna CM. Cartografia nas pesquisas científicas: uma revisão integrativa. Fractal Rev Psicol. 2017; 29(1):45-53. Doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1/1453.
    » https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1/1453
  • 14
    Deleuze G, Parnet C. Diálogos. 4a ed. Valência: Pre-Textos; 2004.
  • 15
    Soares AN, Gazzinelli MF, Souza V. Experimentações de educação e saúde: mapeando a produção de sentidos na pós-graduação em Enfermagem. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190675. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.190675.
    » https://doi.org/10.1590/interface.190675
  • 16
    Gazzinelli MF, Soares NA, Carneiro ACLL, Diemert D. Intercessões entre pesquisa clínica e educação: por uma produção do conhecimento inventiva. Curitiba: Editora CRV; 2018.
  • 17
    Duarte JRR, Cestari LAS. As imagens do pensamento sobre diferenças do projeto pedagógico do curso de pedagogia da UESB. Rev Espac Curriculo. 2017; 10(3):384-397. Doi: https://doi.org/10.15687/rec.v10i3.31156.
    » https://doi.org/10.15687/rec.v10i3.31156
  • 18
    Barreto RO, Carrieri AP, Romagnoli RC. O rizoma deleuze-guattariano nas pesquisas em Estudos Organizacionais. Cad EBAPE.BR. 2020; 18(1):47-60. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1679-395174655.
    » https://doi.org/10.1590/1679-395174655
  • 19
    Deleuze GD, Guattari F. Biographie croisée. 10a ed. Paris: Éditions La Decouvérte; 2009.
  • 20
    Brito MR, Ramos MNC. Por um ensino e uma aprendizagem-acontecimento. Rev Ensaio (Belo Horizonte). 2014; 16(1):31-47.
  • 21
    Andrade PA. A filosofia do acontecimento em deleuze. O Manguezal (Sergipe). 2018; 1(2):6-18.
  • 22
    Pacheco SUC, Rodrigues SR, Benatto MC. A importância do empoderamento do usuário de CAPS para a (re)construção do seu projeto de vida. Mental (Barbacena). 2018; 12(22):72-89.
  • 23
    Oliveira EA, Martins CP. Sobre práticas de medicalização e “loucura”: algumas reflexões (in)disciplinadas. Rev Psicol Saude. 2020; 12(1):101-113. Doi: http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v12i1.747.
    » https://doi.org/10.20435/pssa.v12i1.747
  • 24
    Silva JLD, Valentim AF, Lyra J. Loucura em território: experimentando produção de saúde com beneficiários do programa De volta para casa. Rev Psicol Polit. 2020; 20(47):51-64.
  • 25
    Dinis NF. Educação, cinema e alteridade. Educ Rev. 2005; (26):1-13. Doi: https://doi.org/10.1590/0104-4060.384.
    » https://doi.org/10.1590/0104-4060.384
  • 26
    Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. Oliveira AL, Leão LC, tradutores. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora 34; 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2020
  • Aceito
    12 Maio 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br