Estratégias para potencialização das ações de promoção da saúde com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade

Strategies to enhance health promotion for vulnerable children and adolescents

Estrategias para potencializar las acciones de promoción de la salud con niños y adolescentes en situación de vulnerabilidad

Bruna Lima Selau Douglas Francisco Kovaleski Marina Bastos Paim Isadora Vieira Prates Sobre os autores

Resumos

Apostar em práticas dialógicas de Educação Popular em Saúde com os profissionais que atuam em organizações da sociedade civil se torna um caminho necessário para assegurar a promoção da saúde de crianças e adolescentes em vulnerabilidade. O objetivo deste trabalho é refletir sobre estratégias para potencialização da promoção da saúde para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em uma organização da sociedade civil. O estudo foi realizado por meio dos Círculos de Cultura, de Paulo Freire. Foram elaboradas quatro propostas no Círculo de Cultura, que incluem a participação democrática das crianças na escolha e no cuidado do ambiente físico, a criação de espaços de convivência e interação e a participação da comunidade. As reflexões assumiram um caráter político e educativo de formação de cidadãos democráticos, de respeito às diferenças, de desenvolvimento da autonomia, caminhando em direção à promoção da saúde.

Palavras-chave
Crianças; Adolescentes; Vulnerabilidade social; Círculo de Cultura; Promoção da saúde


Developing dialogic popular health education practices with professionals working in civil society organizations is a necessary pathway towards ensuring health promotion for vulnerable children and adolescents. The aim of this study was to reflect on strategies to enhance health promotion for vulnerable children and adolescents in a civil society organization. The study was performed using culture circles, conceived by Paulo Freire. Four proposals were developed in the culture circle, including the democratic participation of children in choosing and caring for the physical environment, the creation of spaces for interaction and engagement, and community participation. The reflections were of a political and educational nature, including aspects such as the formation of democratic citizens, respect for differences and the development of autonomy, moving towards health promotion.

Keywords
Children; Adolescents; Social vulnerability; Culture circle; Health promotion


Apostar por prácticas dialógicas de educación popular en salud con los profesionales que actúan en organizaciones de la sociedad civil pasa a ser un camino necesario para asegurar la promoción de la salud de niños y adolescentes en situación de vulnerabilidad. El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre estrategias para potenciar la promoción de la salud para niños y adolescentes en situación de vulnerabilidad en una organización de la sociedad civil. El estudio se realizó por medio de los Círculos de Cultura, de Paulo Freire. Se elaboraron cuatro propuestas en el Círculo de Cultura que incluyen la participación democrática de los niños en la elección y en el cuidado del ambiente físico, la creación de espacios para convivencia e interacción y la participación de la comunidad. Las reflexiones asumieron un carácter político y educativo, de formación de ciudadanos democráticos, de respeto de las diferencias, de desarrollo de la autonomía, caminando hacia la promoción de la salud.

Palabras clave
Niños; Adolescentes; Vulnerabilidad social; Círculo de cultura; Promoción de la salud


Introdução

A partir da Constituição de 1988, após um processo de lutas sociais, com a saída do país do regime militar, foram assegurados os direitos à educação, à saúde, à proteção, ao lazer e à cultura para crianças e adolescentes11 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.. Em 1990, foram editadas pelos órgãos de governo legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as Leis 8.080 e 8.142 do Sistema Único de Saúde (SUS), que garantem à criança e ao adolescente os direitos à vida e à saúde, bem como foram instituídas políticas públicas para orientar a assistência a essa população com o intuito de garantir seus direitos.

Nessa direção, foram criadas instâncias de participação e controle social a fim de compartilhar a responsabilidade pelo cuidado da infância de maneira descentralizada entre Estado e sociedade civil, viabilizando, assim, a união do Estado com a sociedade civil no intuito de proteger e cuidar da infância. Desse modo, as organizações da sociedade civil (OSCs) tornaram-se parte integrante do cuidado e da proteção de crianças e adolescentes em vulnerabilidade no Brasil.

Alguns projetos e OSCs procuram alternativas para proteger e cuidar de tais crianças e adolescentes em vulnerabilidade com estratégias diferentes, unindo o ensino e a saúde. Entretanto, para construir projetos sociais com vista à promoção da saúde por meio do terceiro setor, é necessário refletir sobre o trabalho exercido nesses espaços, buscando uma atuação baseada na garantia de direitos e na participação, combinando o desenvolvimento da autonomia das crianças e dos adolescentes com a construção comunitária e solidária da sociedade.

Nesse sentido, a atuação das OSCs deve ir na mesma direção dos princípios que estão inseridos nas práticas de promoção da saúde. Práticas que compreendem a saúde de maneira integral, que buscam o bem-estar e englobam a determinação social do processo saúde-doença com a necessária amplitude: biológica, psicológica, socioeconômica, educacional, cultural, política e ambiental22 Westphal MF. Promoção da saúde e prevenção de doenças. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Fiocruz; 2009. p. 635-67..

Foi a partir da Declaração de Alma Ata (1978) que a saúde deixou de ser compreendida apenas no âmbito individual, passando a englobar também os âmbitos social e político, colocando a determinação social de maneira central na compreensão do processo saúde-doença33 Paim MB. Ações de promoção à saúde desenvolvidas pelo nutricionista ligado ao núcleo de apoio à saúde da família, na atenção primária no município de Florianópolis/SC [trabalho de conclusão de curso]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2013.. Nessa direção, a promoção da saúde abrange também estratégias de educação em saúde para melhorar a qualidade de vida da população.

A educação em saúde já tem sido incorporada na função de centros educativos que atendem crianças e adolescentes e visam contribuir para o desenvolvimento integral e melhorar a qualidade de vida desse segmento44 Rodríguez-Torres ÁF, Páez-Granja RE, Altamirano-Vaca EJ, Paguay-Chávez FW, Rodríguez-Alvear JC, Calero-Morales S. Nuevas perspectivas educativas orientadas a la promoción de la salud. Educ Med Superior. 2017; 31(4):1-11.. Segundo Silva e Bodstein55 Silva CS, Bodstein RCA. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em Promoção da Saúde na Escola. Cienc Saude Colet. 2016; 21(6):1777-88., a educação em saúde direcionada para o contexto educacional de crianças e adolescentes pode ser:

[...] por um lado, modelos que visam à domesticação de condutas e comportamentos de alunos, e por outro, práticas educativas, relacionadas à educação popular de estímulo à capacidade crítica e autônoma dos sujeitos e exercício de controle das suas condições de saúde e vida em sintonia com os princípios da promoção da saúde. (p. 1778)

Por isso, é importante apostar em práticas educativas comprometidas com o diálogo, a cidadania e a democracia. Paulo Freire defendia que “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção e/ou para sua construção”66 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2003.(p. 47). Nessa perspectiva, apresenta-se a concepção da Educação Popular em Saúde (EPS), a qual preconiza um processo de ensino e de aprendizagem orientado por uma relação comunicativa, dialógica e de compartilhamento de saberes com o outro e com a comunidade.

Nesse sentido, assegurar práticas dialógicas de EPS de profissionais que atuam em OSCs com crianças e adolescentes em vulnerabilidade se torna um caminho necessário para a promoção da saúde nesses espaços, viabilizando a reflexão e a transformação das atividades educacionais e recreativas propostas por meio de cada contexto. A XIV Conferência Mundial de Educação em Saúde apontou a importância de ações de promoção da saúde em locais onde a educação é desenvolvida, e destacou ainda que esses são espaços ideais para aplicar as sugestões da Declaração de Alma Ata e da Carta de Ottawa no que tange à promoção da saúde nas comunidades77 Gonçalves FD, Catrib AMF, Cunha-Vieira NF, Souza-Vieira LJE. Health promotion in primary school. Interface (Botucatu). 2008; 12(24):181-92..

Pensando na Educação Popular em Saúde e tendo como foco os profissionais das OSCs em uma perspectiva crítica, interdisciplinar e dialógica, pode-se destacar a metodologia do Círculo de Cultura, proposta por Paulo Freire, que visa “ensejar uma vivência participativa com ênfase no diálogo, campo profícuo para a reflexão-ação na elaboração coletiva de uma proposta sistematizada para uma educação emancipatória”88 Monteiro EMLM, Vieira NFC. Educação em saúde a partir de círculos de cultura. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3):397-403. Doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000300008.
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201000...
(p. 398). O Círculo de Cultura foi proposto por Freire visando à qualificação no processo de alfabetização de jovens e adultos e tem como princípio desenvolver uma ação educativa como ato de recriação, de ressignificação99 Brandão Neto W, Silva MAI, Aquino JM, Lima LS, MonteiroI EMLM. Violência sob o olhar de adolescentes: intervenção educativa com Círculos de Cultura. Rev Bras Enferm. 2015; 68(4):617-25..

Considerando a importância de refletir sobre como se dá o atendimento nas OSCs voltado aos temas da saúde, da educação e da proteção das crianças em situação de vulnerabilidade, é preciso ir ao encontro das demandas populares em torno das OSCs para, junto com os profissionais, refletir sobre como sua atuação profissional pode contribuir na promoção da saúde das crianças e dos adolescentes em situação de vulnerabilidade. Por isso, o objetivo deste trabalho é refletir sobre estratégias para potencialização das ações de promoção da saúde com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade pelas trabalhadoras de uma organização da sociedade civil (OSC) em Florianópolis-SC.

O presente estudo é resultante de dissertação de mestrado em Saúde Coletiva intitulada: “(Re)pensando o Cuidado das Crianças e Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade: análise da promoção da saúde em uma Organização da Sociedade Civil”. Esta pesquisa foi realizada respeitando e considerando os aspectos éticos, conforme previsto na Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com número de projeto 3037.236.

Metodologia

Esta pesquisa é embasada na abordagem qualitativa, apresentando características da pesquisa participante, e foi conduzida em três momentos: a) aproximação da pesquisadora com a OSC onde ocorreu a pesquisa; b) realização das entrevistas; e c) execução do Círculo de Cultura. A primeira etapa foi composta pelo reconhecimento da entidade, que ocorreu primeiramente com a aproximação da pesquisadora com o cotidiano daquela e com a análise de documentos da instituição. No segundo momento, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as educadoras e as coordenadoras do local, com o intuito de compreender as ações de promoção da saúde já implementadas na instituição. No terceiro momento, foi realizado o Círculo de Cultura, tendo por objetivo elaborar estratégias para qualificar o atendimento das crianças e dos adolescentes visando à promoção da saúde dentro da OSC em análise.

As entrevistas abordaram o conceito de promoção da saúde para as entrevistadas, quais eram as atividades de promoção da saúde já existentes na OSC, qual era a importância do espaço para promoção da saúde e quais valores eram fomentados naquele espaço. Foram relatadas diversas atividades de promoção da saúde na instituição, mas levantou-se a necessidade de efetivação do trabalho intersetorial e de atividades em conjunto com a comunidade, além da implementação de uma educação que promova de fato uma reflexão crítica. Após as entrevistas com todas as profissionais, foi realizado o Círculo de Cultura. Neste artigo, será relatada apenas essa etapa do Círculo de Cultura a fim de aprofundar a análise; por isso, todas as falas são referentes a essa etapa da pesquisa.

Para preservar a identidade das crianças e da instituição, não há divulgação de informações que possibilitem a identificação da instituição e das pessoas envolvidas na pesquisa. A OSC, onde foi realizada a pesquisa, localiza-se no sul da cidade de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina. A instituição atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade encaminhados pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas). A faixa de renda das famílias atendidas compreende desde desempregados, sem nenhuma fonte monetária, até quem recebe no máximo dois salários mínimos (esse é o critério da OSC, estabelecido pela prefeitura municipal para o ingresso das crianças e dos adolescentes). A entidade é dirigida por grupos de moradores da comunidade local que se alternam de dois em dois anos.

A OSC estudada exerce uma função similar ao Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), que é considerado um serviço de proteção social básica da Política de Assistência Social. A missão da instituição é desenvolver atividades socioeducativas com oitenta crianças e adolescentes no contraturno escolar, proporcionando atividades pedagógicas, projetos culturais, práticas corporais, desportivas e artísticas. Além disso, busca viabilizar práticas comunitárias sobre as questões da criança e do adolescente para estimular o trabalho artesanal, a cultura local, a prevenção ao abuso de drogas, a conscientização da comunidade com relação à violência e à exploração que a criança e o adolescente sofrem na sociedade.

O interesse em desenvolver a pesquisa partiu da OSC, que buscava, por meio da reivindicação de seus representantes nos conselhos gestores (Conselho Municipal de Educação, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente), elaborar estratégias para qualificar o atendimento das crianças e dos adolescentes. A demanda da OSC somou-se à proximidade e ao interesse da pesquisadora para a definição do local da pesquisa. Com o consentimento da coordenadora e das educadoras, foi realizado o acompanhamento da atividade da OSC, e com base nessa vivência foram realizadas reflexões do Círculo de Cultura com a problematização e a criação de novas ações para promover a saúde das crianças e dos adolescentes.

Todas as profissionais contratadas do local participaram da pesquisa, com exceção das “oficineiras”, por terem contrato temporário de apenas três meses. Assim, o Círculo de Cultura foi composto por cinco profissionais: a) coordenadora administrativa; b) coordenadora pedagógica; c) duas pedagogas; e d) uma professora de educação física.

Foi realizada uma sessão do Círculo de Cultura, com duração de uma hora, em uma sala disponível na própria instituição, após o horário de trabalho. A sessão foi gravada e transcrita para análise posterior. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O Círculo de Cultura foi escolhido por ter o propósito de, partindo da realidade concreta, construir novas práticas em um processo de ensino e de aprendizagem em que todos(as) os(as) participantes podem contribuir de forma horizontal na busca de respostas para os problemas da realidade1010 Padilha P. O Círculo de Cultura na perspectiva da intertransculturalidade [Internet]. São Paulo: Instituto Paulo Freire; 2012 [citado 15 Jun 2021]. Disponível em: https://gepffaccat.files.wordpress.com/2012/10/o-cc3adrculo-de-cultura-na-persepectivaintertransculturalidade-paulo-roberto-padilha.pdf
https://gepffaccat.files.wordpress.com/2...
. O Círculo de Cultura almeja construir a reflexão por meio do seu significado social, tomando assim consciência do mundo vivido88 Monteiro EMLM, Vieira NFC. Educação em saúde a partir de círculos de cultura. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3):397-403. Doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000300008.
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. Segundo Monteiro e Vieira88 Monteiro EMLM, Vieira NFC. Educação em saúde a partir de círculos de cultura. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3):397-403. Doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000300008.
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, esse método constitui:

[...] uma estratégia da educação libertadora, o Círculo de Cultura é um lugar onde todos têm a palavra, onde todos leem e escrevem o mundo. é um espaço de trabalho, pesquisa, exposição de práticas, dinâmicas, vivências que possibilitam a elaboração coletiva do conhecimento. (p. 398)

A utilização do Círculo de Cultura como metodologia já está consolidada na área da Saúde e visa possibilitar uma vivência participativa com ênfase no diálogo, produzindo um campo propício para a reflexão-ação e a elaboração coletiva de uma proposta sistematizada para uma prática educativa emancipatória99 Brandão Neto W, Silva MAI, Aquino JM, Lima LS, MonteiroI EMLM. Violência sob o olhar de adolescentes: intervenção educativa com Círculos de Cultura. Rev Bras Enferm. 2015; 68(4):617-25.. Ainda segundo Monteiro e Vieira88 Monteiro EMLM, Vieira NFC. Educação em saúde a partir de círculos de cultura. Rev Bras Enferm. 2010; 63(3):397-403. Doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672010000300008.
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201000...
, o desenvolvimento do Círculo de Cultura consiste em três momentos: a) a investigação temática, em que as componentes do círculo buscam os temas centrais a serem discutidos; b) a tematização, que consiste na codificação e na decodificação desses temas; e c) a problematização, momento no qual se busca superar a primeira visão “mágica” com uma visão crítica, partindo para a transformação do contexto vivido.

O Círculo de Cultura deve ser uma atividade propositiva de reflexão-ação dentro da instituição. Por isso, com a participação de todos os integrantes do Círculo de Cultura, a análise dos dados ocorre no próprio encontro por meio da leitura cuidadosa dos temas, da reflexão e da interpretação dos temas propostos1111 Heidemann ITSB, Wosny AM, Boehs AE. Promoção da saúde na atenção básica: estudo baseado no método de Paulo Freire. Cienc Saude Colet. 2014; 19(8):3553-9.. Para a realização do Círculo de Cultura, foi construído um cartaz com uma questão mobilizadora e com os dados retirados das entrevistas e dos documentos da instituição para guiar a atividade e instigar os participantes. Com base na questão mobilizadora, os participantes decodificaram os significados dos temas, elaborando novas proposições de promoção da saúde para serem implantadas na instituição. As propostas construídas coletivamente foram o produto do Círculo de Cultura, que será debatido nos resultados.

Resultados e discussão

A Figura 1 apresenta o cartaz que guiou e auxiliou na construção do Círculo de Cultura. A pergunta mobilizadora utilizada foi: quais estratégias poderiam ser implementadas na OSC no próximo ano? A finalidade foi elaborar proposições de novas ações que visem à promoção da saúde das crianças e dos adolescentes da instituição, norteadas pelas políticas públicas brasileiras e de acordo com o olhar das trabalhadoras. Portanto, o Círculo de Cultura teve também o propósito de que as reflexões realizadas e as propostas elaboradas produzissem um retorno para a instituição e, consequentemente, para as crianças e os adolescentes atendidos.

Figura 1
Cartaz elaborado para guiar a atividade.

No Círculo de Cultura, foram identificados os problemas e as potencialidades da comunidade, as dificuldades vivenciadas pelas trabalhadoras e o que facilitava ou dificultava a inserção de atividades que visassem à promoção da saúde. Essas situações configuraram os temas debatidos. Dessa forma, os participantes decodificaram os significados dos temas elaborando novas proposições de promoção da saúde para serem implantadas na instituição. Para finalizar, foi produzido um cartaz em conjunto com as participantes do Círculo de Cultura trazendo as quatro propostas construídas coletivamente, como se pode visualizar na Figura 2. O material elaborado foi disponibilizado também para a instituição a fim de auxiliar na implementação das ações.

Figura 2
Cartaz as propostas elaboradas.

As propostas foram: a) planejar com as crianças os temas que vão ser trabalhados com flexibilidade bimestral partindo das realidades vivenciadas pelas crianças fora da OSC; b) criar grupos de responsabilidade com as crianças para organização e cuidado do espaço físico; c) criar espaços de convivência e interação entre os grupos de idades diferentes ou diferentes interesses; d) estreitar os laços com a comunidade.

Observa-se que nas propostas “a” e “b” está a inclusão da criança e do adolescente no planejamento das atividades (escolha dos temas a serem trabalhados) e no cuidado com o espaço e a organização da instituição. Essas propostas caminham em direção à inserção de uma cultura de visibilizar a voz e desenvolver a autonomia das crianças e dos adolescentes, agregando a responsabilidade para organizar e cuidar do espaço. Nessas propostas, a participação do público atendido torna-se peça-chave para a promoção da saúde.

De acordo com Pateman1212 Pateman C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992., a participação como prática educativa forma cidadãos com interesses coletivos e afeição por questões da política, além de contribuir para vivências de cooperação, integração e comprometimento com as decisões. A democracia participativa necessita de sujeitos que participem para além da escolha dos governantes, por isso a importância do processo formativo, pois, quanto mais as pessoas participam, mais tendem a continuar nesse caminho1313 Gohn MG. Educação não formal, aprendizagens e saberes em processos participativos. Investigar Educ. 2014; 2(1):35-50.. Além disso, conforme Bórquez, Shats e Carrillo1414 Bórquez DD, Shats NC, Carrillo NB. Child participation as an approximation to democracy: challenges from the Chilean experience. Rev Latinoam Cienc Soc Niñez Juv. 2018; 16(1):101-13., a democracia participativa precisa de maior participação principalmente de grupos minoritários, setores mais desfavorecidos e grupos mais vulneráveis, entre eles crianças e adolescentes.

Conforme o caderno de Concepção dos Centros de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (2017), a participação dos usuários é importante porque se associa à vivência da cidadania. Segundo esse caderno, a cidadania necessita ser aprendida, e para isso é preciso que as crianças e os adolescentes reconheçam o seu lugar de fala, mas também que legitimem a participação de todos e respeitem todos, permitindo que o outro expresse suas características, o que e como pensa, o que e como sente e deseja. A participação é sinônimo de compartilhamento de poder com as pessoas, e só aquele(a) que participa pode ser e se sentir cidadão(ã)1515 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social. Secretaria Nacional de Assistência Social. Departamento de Proteção Social Básica. Concepção de convivência e fortalecimento de vínculos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social; 2017.. Ainda segundo o caderno1515 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social. Secretaria Nacional de Assistência Social. Departamento de Proteção Social Básica. Concepção de convivência e fortalecimento de vínculos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social; 2017.:

Além da educação do cidadão e da garantia de legitimidade das decisões, a participação tem ainda uma terceira função, que é a de conferir às pessoas o sentimento de pertencimento àquela instituição da qual participa com poder decisório. Assim, estimular o fortalecimento de vínculos significa também garantir espaços participativos na tomada de decisão e fomentá-los como estratégia socioeducativa. Significa experimentar a solidariedade e partilhar um mundo comum. (p. 28)

Assim, a participação das crianças e dos adolescentes possibilitou a vivência do poder de escolha, da participação democrática de eleger os assuntos a serem trabalhados. Essas escolhas proporcionaram a inserção de assuntos pertencentes ao cotidiano das próprias crianças e adolescentes, o que produziu um vínculo maior com a OSC. E esses aspectos foram levantados pelas educadoras na discussão do Círculo de Cultura:

Não podemos ficar amarrados no planejamento e esquecer a realidade das crianças. É importante trabalharmos em conjunto com essa realidade e esses problemas que são levantados diariamente. (P1)

É importante instigar as crianças para que esse tema escolhido tenha relação com a realidade da comunidade, tipo algum problema que tenha na comunidade. [...] Pensar em temas na comunidade, senão fica tudo muito dentro dos muros da instituição. (P2)

Mas eu nunca consegui fazer isso. É meu sonho de vida, que eles consigam reconhecer os problemas. [...] Porque são eles que precisam chegar a essa reflexão, porque, se isso for mesmo um problema pra eles, eles vão chegar a uma solução. Aí pronto, eles vão pensar em alternativas para solucionar esses problemas. Mas o que acontece na realidade é que a gente apresenta um problema e já apresenta a solução, que desafio que tem nisso? (P3)

Além disso, na proposta “b”, o objetivo de cuidar do espaço propicia o sentimento de pertencimento ao local. Cria-se um vínculo de cuidado com o local e com o outro – com os colegas e os professores. Segundo Bydlowski et al.1616 Bydlowski CR, Lefèvre AMC, Pereira IMTB. Promoção da saúde e a formação cidadã: a percepção do professor sobre cidadania. Cienc Saude Colet. 2011; 16(3):1771-80., “os sentimentos de identidade e pertencimento conferem um sentido de comunidade, sendo também elementos necessários para a construção da cidadania em uma comunidade ou nação” (p. 1778). Nesse sentido, foi levantada também pelas educadoras a importância do pertencimento para a educação e para a saúde:

Pensar com eles o que deve ser feito para manter a organização da instituição e separar quem quer ficar em cada grupo, e depois, ao longo da semana, troca para que todos possam vivenciar todas as atividades, para eles se sentirem pertencentes a esse espaço, para eles cuidarem mais, isso aumenta o senso de responsabilidade e acaba educando. (P2)

Ajuda também a desenvolver a autonomia e o cuidado com o ambiente e com os colegas. Aprender a cuidar dos outros e de si. (P4)

Assim sendo, a participação democrática nas decisões da OSC e o cuidado da instituição são um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania e a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade1313 Gohn MG. Educação não formal, aprendizagens e saberes em processos participativos. Investigar Educ. 2014; 2(1):35-50.. Nesse processo, é fundamental incluir o entendimento e a importância da participação política das crianças e dos adolescentes para que seja uma formação de caráter emancipatório. A inclusão da participação das crianças e dos adolescentes nas escolhas e no cuidado da instituição é uma estratégia que visibiliza a voz e estimula a autonomia desses usuários.

Nessa perspectiva, essas propostas promovem saúde porque incluem a formação para a solidariedade, a equidade, a democracia, a cidadania, o desenvolvimento, a participação e a ação conjunta, auxiliando também na compreensão da importância do cuidar do outro e do cuidar de si. Esses valores são fundamentais para produzir ações de promoção da saúde1717 Costa RP, Misoczky MC, Abdala PRZ. Do dilema preventivista ao dilema promocionista: retomando a contribuição de Sérgio Arouca. Saude Debate. 2018; 42(119):990-1001.. Ademais, segundo Fleury-Teixeira et al.1818 Fleury-Teixeira P, Vaz FAC, Campos FCC, Álvares J, Aguiar RAT, Oliveira VA. Autonomia como categoria central no conceito de promoção de saúde. Cienc Saude Colet. 2008; 13 Suppl 2:2115-22., os mecanismos de deliberação participativa, as redes de proteção e cuidado recíproco, o respeito à diversidade de comportamentos são exemplos de estratégias produtoras de autonomia e essenciais na promoção da saúde.

A proposta “c” consiste na criação de espaços de convivência e interação entre os grupos de idades diferentes ou diferentes interesses. Essa proposta tem o intuito de promover o vínculo entre todas as crianças e os adolescentes da instituição, independentemente da idade, por meio da interação dos grupos de interesse. Assim, a proposta aposta na troca de saberes e experiências entre os próprios usuários como estratégia de ensino-aprendizagem. Além disso, a troca de afetos, vivências e aprendizados pode auxiliar no compartilhamento e na superação de problemas, no respeito às diferenças e na criação de laços entre as crianças maiores e menores.

Essas atividades, que apostam na troca entre as próprias crianças e adolescentes de diferentes idades como forma de aprender e ensinar, podem auxiliar na construção das identidades, potencializar as diferenças entre as pessoas que interagem e, ao mesmo tempo, construir a necessária coesão sociocultural de grupos que se articulam em torno de interesses comuns. Assim, a tarefa dos educadores, em uma perspectiva complexa, intercultural e inclusiva, considera os múltiplos contextos culturais, subjetivos, sociais e ambientais, organizando atividades com diferentes possibilidades de percursos de formação individuais e grupais, de modo simultâneo e articulado, que produzem múltiplos e complexos resultados socioeducacionais1919 Fleuri RM. Reformas curriculares: como desconstruir a subalternidade? Rev Teias. 2015; 16(40):99-117.. Conforme Fleuri1919 Fleuri RM. Reformas curriculares: como desconstruir a subalternidade? Rev Teias. 2015; 16(40):99-117., o fundamental nesse processo é trabalhar em uma dinâmica em que a coletividade não anule nem sufoque a singularidade de cada pessoa em uma perspectiva de emancipação dos sujeitos e de educação integral.

Nesse sentido, foram levantados no Círculo de Cultura a participação e o trabalho em grupo como formas de trabalhar o reconhecimento, o respeito e a valorização da diferença e das experiências de cada criança e adolescente, tendo em vista que cada pessoa poderia auxiliar no grupo por meio de seus conhecimentos e suas vivências prévias, valorizando as diferentes formas de conhecimento, as vivências e a bagagem cultural de cada um.

[...] a escola não respeita, não reconhece e não admira as diferenças das crianças e os ritmos de aprendizagem. A realidade de contexto que elas vivem. O que elas trazem de experiência da educação dos próprios pais. Então a gente tem uma base e tem algo que a gente quer construir, tem que ser respeitando essas diferenças das crianças. (P2)

[...] tu tens um projeto de meio ambiente, vai vir a criança de 6 anos que gosta de meio ambiente e a criança de 10 anos que gosta de meio ambiente, o adolescente de 12 anos que gosta de meio ambiente e ali eles vão resolver o problema lá do meio ambiente. Aí tu tens desenvolvimento, socialização e cuidados diferentes. (P3)

Nessa mesma direção, o artigo de Santos e da Ros2020 Santos SKZ, Da Ros MA. Ressignificando promoção de saúde em grupos para profissionais da saúde. Rev Bras Educ Med. 2016; 40(2):189-96., por meio de Círculos de Cultura, problematizou o conceito de grupos de promoção de saúde com o intuito de contribuir com o desenvolvimento da autonomia de profissionais a fim de avaliarem criticamente a maneira como vinham realizando educação em saúde e a refletirem sobre novas práticas. Nesse estudo, foi levantada a importância da coletividade para promoção da saúde, tendo em vista sua potencialidade para promover trocas, criação de redes de apoio e capacidade de enfrentamento de problemas. Além disso, foi relatado que a socialização em grupo fomenta a interação afetiva, reforçando o vínculo entre as pessoas, gerando o sentimento de pertencimento2020 Santos SKZ, Da Ros MA. Ressignificando promoção de saúde em grupos para profissionais da saúde. Rev Bras Educ Med. 2016; 40(2):189-96..

De acordo com Ceccim e Ferla2121 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saude. 2008; 6(3):443-56., o aprender e o ensinar incluem afetos e supõem a participação de todos os atores envolvidos, originando um enfrentamento de diferentes modos de ver o mundo por meio das novas informações que são apresentadas pelo “outro”. Nessa mesma perspectiva, Silva2222 Silva RB. Amizade, diferença e educação: reflexões a partir de Zygmunt Bauman. Educ Real. 2018; 43(1):115-29. afirma que, atualmente, vivemos em um mundo onde as trocas humanas se encontram fragilizadas, por isso os espaços de ensino e convivência podem se transformar em locais de resistência ao oferecer condições para reflexão dos padrões éticos, ao mesmo tempo que reinserem os valores de solidariedade e cooperação nas relações humanas. Segundo Gaviria2323 Gaviria DAM. De los círculos de ideas a los círculos de cultura: la emancipación humana entre el debate neohumanista y la educación popular. Rev Kavilando. 2017; 9(2):345-54., o diálogo proporciona um encontro amoroso no qual os seres humanos, pela troca, transformam o mundo onde estão inseridos, e essas mudanças humanizam o mundo e humanizam o próprio sujeito.

Esses espaços de encontro – de diferentes idades e valores – proporcionam possibilidades de conviver com a diferença e principalmente aprender o diferente, propiciando um campo fértil para o desenvolvimento humano e para a construção de novas amizades. Por isso, esses espaços proporcionam desenvolvimento humano e construção de laços sociais para crianças e adolescentes em vulnerabilidade. São, portanto, essenciais para a promoção da saúde e do cuidado integral na infância.

Além disso, é nesse espaço de convivência e trocas de conhecimentos e afetividades que se constrói uma Educação Popular em Saúde2020 Santos SKZ, Da Ros MA. Ressignificando promoção de saúde em grupos para profissionais da saúde. Rev Bras Educ Med. 2016; 40(2):189-96.,2222 Silva RB. Amizade, diferença e educação: reflexões a partir de Zygmunt Bauman. Educ Real. 2018; 43(1):115-29.. É o diálogo peça-chave para a construção de uma educação problematizadora. Ademais, é pelo diálogo e pela reflexão em grupos multiprofissionais que se torna possível compreender criticamente a relação da saúde com as condições de vida daquelas pessoas. Segundo Moreira et al.2424 Moreira J, Santos HR, Teixeira RF, Frota PRO. Educação popular em saúde: a educação libertadora mediando a promoção da saúde e o empoderamento. Rev Contrapontos. 2007; 7(3):507-21., “esse entendimento leva a perceber a saúde no contexto da qualidade de vida de uma população, fugindo da visão reducionista(e(e)Segundo Moreira et al.24, a visão reducionista de saúde, “[...] ao mesmo tempo em que a compreende apenas como resultado de processos biológicos, basicamente oriundos de agentes externos, também considera o saber médico como o único passível de estabelecer ‘a verdade’ sobre a doença, o doente e o tratamento” (p. 510).) sobre o tema em tela” (p. 518).

A proposta “d”, última elencada pelo grupo no Círculo de Cultura, consistiu em estreitar laços com a comunidade. A participação da comunidade foi defendida como possibilidade para ultrapassar o caráter assistencialista da instituição e promover a transformação da realidade social naquele território. Além disso, a participação da comunidade e da família foi citada no Círculo de Cultura como importante, principalmente devido ao fato de o público ser de crianças e adolescentes em situação de violência e muitas vezes ser a própria família a agente da violência. Nessa perspectiva, o trabalho de vínculo com a família e com a comunidade torna-se essencial para superar as situações de violência vivenciadas naquela comunidade e por aquelas famílias.

Segundo as educadoras, é necessário trazer a comunidade para dentro da instituição para que possam construir projetos juntos, e para que possam unir as famílias em prol de melhorias para a própria comunidade e para a instituição. Além disso, trazer a comunidade para junto da instituição também potencializa a convivência das famílias e fomenta a solidariedade e a união na comunidade, conforme pode ser observado na fala das entrevistadas:

Insistir em trazer a comunidade para dentro. [...] Criar mutirão, criar atividades para que a comunidade venha para dentro. (P2)

A gente precisa chamar, porque não dá pra ficar esperando que eles venham, não funciona. Agora, se a gente chama, se a gente faz, se a gente dá oportunidade, pode acontecer. (P1)

Se a gente instigar os alunos a buscar essa ajuda da comunidade. Porque às vezes, quando vem deles, eles podem construir coisas juntos e deixar para usarem na instituição. Como a mesa de pingue-pongue que eles tanto queriam. (P2)

De acordo com o caderno “Orientações Técnicas sobre o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para Crianças e Adolescentes de Seis a 15 Anos”2525 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Caderno de orientações: serviço de proteção e atendimento integral à família e serviço de convivência e fortalecimento de vínculo. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2010., as estratégias desenvolvidas no território, voltadas para a organização de redes e de mobilização da comunidade e da família, demonstraram ser efetivas para a proteção das crianças e dos adolescentes. Assim, a participação social torna-se uma ação essencial para protagonizar a promoção da saúde e a proteção social de crianças e adolescentes, buscando superar as situações de violência e proporcionar novas vivências cidadãs.

Além disso, a participação das famílias e da comunidade auxilia na formação de sujeitos críticos e democráticos que podem se comprometer com a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. Provavelmente, essa união é o que fará a diferença para a OSC ultrapassar o caráter assistencialista e alcançar um projeto de emancipação naquela comunidade, na luta por uma sociedade mais igualitária. Segundo Gohn2626 Gohn MG. Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas escolas. Ensaio Aval Polit Publicas Educ. 2006; 14(50):27-38.:

Construir cidadãos éticos, ativos, participativos, com responsabilidade diante do outro e preocupados com o universal e não com particularismos é retomar as utopias e priorizar a mobilização e a participação da comunidade educativa na construção de novas agendas. Essas agendas devem contemplar projetos emancipatórios que tenham como prioridade a mudança social, qualifiquem seu sentido e significado, pensem alternativas para um novo modelo econômico não excludente que contemple valores de uma sociedade em que o ser humano é centro das atenções e não o lucro, o mercado, o status político e social, o poder em suma. (p. 37)

Estreitar os laços com a comunidade, buscando a participação da família e da população local, é muito importante para a proteção e para a promoção da saúde de crianças e adolescentes em vulnerabilidade. A família é essencial no cuidado das crianças e dos adolescentes; por isso, a conscientização dos pais e dos familiares sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e sobre os cuidados em saúde é necessária para que essas crianças tenham acesso às políticas públicas, aos seus direitos e a um SUS de qualidade.

Nesse sentido, foi observado que é importante a instituição proporcionar um espaço de encontro para aquela comunidade com vista a discutir os problemas e os processos que essas pessoas vivenciaram ou vivenciam. Essa é uma ação educativa que visa a uma reflexão crítica e a uma possível ação sobre essa realidade. A educação em saúde na perspectiva da Educação Popular engloba justamente ajudar a população a compreender os determinantes sociais que influenciam na sua condição de saúde e ajudá-la a se organizar para superá-los2727 Gomes LB, Merhy EE. Compreendendo a educação popular em saúde: um estudo na literatura brasileira. Cad Saude Publica. 2011; 27(1):7-18.. Segundo Moreira et al.2424 Moreira J, Santos HR, Teixeira RF, Frota PRO. Educação popular em saúde: a educação libertadora mediando a promoção da saúde e o empoderamento. Rev Contrapontos. 2007; 7(3):507-21., é com a Educação Popular em Saúde que a promoção da saúde poderá quebrar a lógica hegemônica do modelo de saúde vigente, de cunho reducionista.

Considerações finais

As quatro propostas elaboradas no Círculo de Cultura assumem um caráter político e educativo de transformação social, de formação de cidadãos democráticos, de inclusão e respeito às diferenças, de produção de autonomia e de responsabilidade social, buscando a emancipação social. Por meio da discussão coletiva e dos problemas vivenciados pelas educadoras, foi possível pensar em novas estratégias para promover a saúde, a educação e a qualidade de vida das crianças e dos adolescentes. Assim, as propostas caminharam em direção à promoção da saúde, que inclui pensar os determinantes sociais daquele território, e buscaram ultrapassar o caráter assistencialista da instituição.

O Círculo de Cultura demonstrou ser eficiente como metodologia de Educação Popular em Saúde, suscitando a reflexão dos trabalhadores sobre o trabalho exercido e sobre a importância da participação das crianças, dos adolescentes e da comunidade, trazendo novas estratégias para promover a saúde das crianças e dos adolescentes, fomentando a participação, a cooperação, a solidariedade e a cidadania.

Além disso, o trabalho em conjunto com as profissionais foi relevante, porque são as próprias trabalhadoras que atuam diariamente na OSC e que podem trazer melhorias para o dia a dia da instituição. Ademais, é importante destacar que proporcionar um espaço de reflexão e diálogo para as profissionais fez que elas pensassem em ações que proporcionassem ambientes de participação e diálogo para crianças e adolescentes.

Portanto, o Círculo de Cultura possibilitou o encontro entre as diferenças dos próprios trabalhadores, gerando uma solução discutida e compartilhada. é nesses espaços compartilhados com o outro, nos quais se dá esse encontro de vidas, que é possível gerar conhecimento e transformação social. A promoção da saúde na perspectiva emancipatória depende de práticas educativas e espaços de discussão e reflexão para ser consolidada.

  • (e)
    Segundo Moreira et al.2424 Moreira J, Santos HR, Teixeira RF, Frota PRO. Educação popular em saúde: a educação libertadora mediando a promoção da saúde e o empoderamento. Rev Contrapontos. 2007; 7(3):507-21., a visão reducionista de saúde, “[...] ao mesmo tempo em que a compreende apenas como resultado de processos biológicos, basicamente oriundos de agentes externos, também considera o saber médico como o único passível de estabelecer ‘a verdade’ sobre a doença, o doente e o tratamento” (p. 510).

  • Selau BL, Kovaleski DF, Paim MB, Prates IV. Estratégias para potencialização das ações de promoção da saúde com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210235 https://doi.org/10.1590/interface.210235
  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil – Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2021
  • Aceito
    11 Jun 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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