Divulgação não autorizada de imagem íntima: danos à saúde das mulheres e produção de cuidados

Divulgación no autorizada de imagen íntima: daños a la salud de la mujeres y producción de cuidados

Laís Barbosa Patrocino Paula Dias Bevilacqua Sobre os autores

Resumos

Objetivou-se analisar os danos à saúde das mulheres que tiveram imagens íntimas divulgadas sem autorização, bem como os cuidados em saúde necessários nessas situações. Partiu-se do debate sobre violência contra as mulheres em sua interface com a Saúde Coletiva. Foram realizadas entrevistas em profundidade com 17 mulheres com idade entre 17 e 50 anos que tiveram imagens íntimas divulgadas sem autorização e com dez profissionais da saúde e da assistência que atenderam mulheres nessa situação. Foram observados diversos danos à Saúde Mental, como agravamento de transtorno alimentar e uso abusivo de álcool, automutilação, desenvolvimento de fobias, depressão e tentativa de autoextermínio. A exposição da intimidade tem se mostrado uma forma recorrente de violência que requer cuidados peculiares, a serem apropriados pelo campo da saúde na produção de cuidados com vistas à promoção da saúde integral das mulheres.

Palavras-chave
Violência contra a mulher; Violência sexual; Exposição da intimidade; Cuidados; Saúde das mulheres


El objetivo fue analizar los daños a la salud de las mujeres que tuvieron imágenes íntimas divulgadas sin autorización, así como los cuidados de salud necesarios en esas situaciones. Se partió del debate sobre la violencia contra las mujeres en su interfaz con la Salud Colectiva. Se realizaron entrevistas en profundidad con 17 mujeres con edades entre los diecisiete y cincuenta años que tuvieron imágenes íntimas divulgadas sin autorización y con diez profesionales de la salud y de la asistencia que atendieron a mujeres en esa situación. Se observaron diversos daños a la salud mental, tales como agravación de trastorno alimentario y uso abusivo de alcohol, automutilación, desarrollo de fobias, depresión e intento de auto-exterminio. La exposición de la intimidad se ha mostrado como una forma recurrente de violencia que requiere cuidados propios que deben ser apropiados por el campo de la salud en la producción de cuidados con el objetivo de la promoción de la salud integral de las mujeres.

Palabras clave
Violencia contra la mujer; Violencia sexual; Exposición de la intimidad; Cuidados; Salud de las mujeres


Introdução

A compreensão da violência como uma questão de saúde pública tem início na década de 1970 com o surgimento do campo da Saúde Coletiva em alinhamento com os movimentos sociais. Conforme Schraiber e D’Oliveira11 Schraiber LB, d’Oliveira AFPL. Romper com a violência contra a mulher: como lidar desde a perspectiva do campo da saúde. Athenea Digit. 2008; (14):229-36., essa integração deu início, também, a uma maior abertura do campo da saúde – tradicionalmente autônomo e amparado na prática de medicalização como resposta ao sofrimento mental decorrente da violência – para o campo científico, sobretudo das áreas de Ciências Sociais e Humanas e sua compreensão dos fenômenos sociais para além da perspectiva biomédica. Na década de 1980, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) do Ministério da Saúde (MS) passa a trazer, em sua formulação da política de saúde para mulheres, a concepção da mulher como sujeito de direitos, em confluência com a perspectiva feminista.

Conforme defendem as autoras11 Schraiber LB, d’Oliveira AFPL. Romper com a violência contra a mulher: como lidar desde a perspectiva do campo da saúde. Athenea Digit. 2008; (14):229-36., o campo da saúde deve atuar sobre a questão da violência não apenas nas esferas do tratamento e da reabilitação, mas também de assistência, prevenção e promoção da saúde. Sendo assim, não só os impactos da violência pertencem ao campo, mas a própria violência. Romper com a violência na perspectiva da saúde envolve dar visibilidade institucional à questão e implementar intervenções alternativas às biomédicas, construídas para as mulheres, por meio de uma gestão integrativa a outros setores.

Nesse sentido, este trabalho busca analisar a experiência de mulheres que tiveram imagens íntimas divulgadas sem autorização(c(c)Rejeita-se a expressão pornografia não consensual pelo fato de as mulheres que passaram por essa experiência não se identificarem com a expressão2 e em consonância com o debate feminista em torno do termo consenso e sua acepção de passividade3.) e de profissionais que atenderam mulheres nessa condição. Trata-se de uma forma de violência contra as mulheres que tem sido difundida em todo o mundo em virtude da popularização do acesso à internet móvel e às redes sociais. Sua prática mais comum tem sido a divulgação não autorizada de imagens nuas de mulheres por mídias digitais. O reflexo mais expressivo dessa prática tem se dado pela criação de leis que tipificam essa violência como um crime específico. No Brasil, essa legislação foi criada em 2018 (Lei Federal 13.718)44 Brasil. Lei Federal nº 13.718, de24 Setembro de 2018. Dispõe sobre os crimes de importunação sexual. Brasília: Presidência da República; 2018.. Entende-se que essa prática pertence às tipificações de violência determinadas pela Lei Maria da Penha55 Pinheiro RB. Tratamento da pornografia de vingança pelo judiciário maranhense: avaliando a atual divisão de competências entre Vara de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher e Juizado Especial Criminal a partir do critério efetividade [dissertação]. São Luís: Universidade Federal do Maranhão; 2018. e pode ser compreendida como violência sexual segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que abrange assédio verbal e insinuação de cunho sexual não desejada66 Organización Panamericana de la Salud. Compreender y abordar la violencia contra las mujeres - violencia sexual. Washington: OPAS; 2013..

Com base na escuta da experiência de mulheres e profissionais da saúde e da assistência social, este texto discutirá os danos à Saúde Mental das mulheres causados por esse tipo específico de violência, bem como a produção de cuidados em saúde que tem sido demandada e dispensada no acolhimento institucional e profissional dessa situação.

Métodos

A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas em profundidade com 17 mulheres que tiveram imagens íntimas divulgadas sem autorização e com dez profissionais de saúde e da assistência social que atenderam mulheres nessa situação.

O recrutamento das participantes foi feito mediante divulgação da pesquisa em redes sociais, sendo disponibilizado um número de telefone da pesquisadora para as pessoas interessadas contactarem.

As entrevistas foram realizadas por videochamada durante o segundo semestre de 2020. Às mulheres, foi pedido que narrassem detalhadamente como foram produzidas e divulgadas suas imagens íntimas, o modo como isso as afetou e se buscaram apoio, seja no âmbito das relações pessoais seja das instituições, como jurídico ou de assistência à saúde. Às profissionais da saúde e da assistência social, foi pedido que relatassem com detalhes os casos atendidos, os cuidados dispensados e os desafios na atenção a essa situação de violência. A ambas foi perguntado de que modo deveria ocorrer o acolhimento às mulheres que foram expostas. As entrevistas tiveram duração média superior a setenta minutos. Os registros narrativos das entrevistas foram enviados às participantes para validação.

Foram entrevistadas psicólogas, assistentes sociais e estudantes, pertencentes a órgãos de acolhimento às mulheres, jurídicos, de segurança pública; a equipamento de Saúde Mental, de atendimento privado e de projeto voluntário. Foram abrangidos cinco municípios de um mesmo estado brasileiro, capital, município de região metropolitana de pequeno porte e municípios do interior de pequeno e médio portes. A idade das entrevistadas compreendeu o intervalo de 18 a 62 anos, e também foi possível incluir uma diversidade étnico-racial.

Dentre as mulheres que vivenciaram a situação de violência, o intervalo de idade foi de 17 a 50 anos. Além da diversidade de classe e étnico-racial, foi possível incluir uma diversidade territorial. Foram abrangidas 18 cidades de seis estados brasileiros (uma mulher foi exposta também no contexto de uma cidade de médio porte no exterior), sendo capitais, cidades litorâneas, do interior e da região metropolitana, de pequeno e médio portes.

A avaliação de conteúdos foi empregada como técnica de análise de dados. As unidades e categorias de análise foram definidas com base em questões levantadas pelas participantes e por estudos prévios.

Os procedimentos de pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou/Fiocruz Minas. No caso de participação de menor de idade, foram assinados termo de consentimento e assentimento por parte de responsável legal. Os nomes das participantes aqui referidos são fictícios a fim de preservar suas identidades. As descrições étnico-raciais foram feitas com base na autodeclaração.

Resultados e discussão

Os modos como as mulheres são expostas variam muito, assim como as motivações para a exposição, podendo envolver afirmação da masculinidade, controle e condenação da sexualidade das mulheres, vingança, comercialização e extorsão. Há diferentes possibilidades nos processos de produção, obtenção e divulgação das mídias, podendo a produção e a obtenção terem sido iniciadas pelas mulheres ou serem de seu conhecimento ou não.

As experiências relatadas no âmbito desta pesquisa abrangeram essas diversas situações e ainda apontaram outras questões, como o fato de que a exposição pode ser iniciada por pessoas que mantêm diferentes relações com as mulheres, por exemplo, no âmbito familiar e das amizades. Além disso, a exposição não se refere necessariamente à sexualidade; algumas mulheres foram expostas nos momentos em que estavam exaltadas, por exemplo, sob efeito de álcool ou em briga com parceiro, revelando o controle não apenas de sua sexualidade, mas de demais comportamentos, além do cunho patologizante desse controle.

Os danos à saúde das mulheres – pensada em uma perspectiva de integralidade –, que foram causados diretamente pela exposição ou por suas consequências, é o que será debatido em seguida. Serão discutidos também os cuidados em saúde dispensados nessa situação.

Danos à saúde das mulheres

Foram relatadas diversas consequências para a Saúde Mental das mulheres após terem sido expostas. A intensidade e a permanência dos danos à saúde corresponderam sobretudo à disposição de recursos emocionais e materiais para enfrentar as situações. Conforme poderá ser observado, os maiores danos emocionais foram relativos não à exposição em si, mas às consequências para suas relações pessoais e profissionais.

Para algumas mulheres, as exposições ocorreram em meio a outras formas de violência, tanto intrafamiliar, perpetradas por pai ou padrasto, como em relacionamentos abusivos, envolvendo agressões físicas, psicológicas e sexuais. Também se somam violências como racismo e gordofobia. Houve tanto situações de agravamento de fragilidades emocionais já existentes, como seu surgimento após a exposição.

Transtorno alimentar, alcoolismo, automutilação, depressão, ideações e tentativas de suicídio, fobias, dificuldades de se relacionar socialmente e problemas de autoestima foram quadros relatados como consequência da exposição, tendo sido agravados ou iniciados após a experiência da violência. Além disso, os sentimentos de vergonha e culpa estiveram fortemente presentes nos relatos, assim como ocorre em demais situações de violência contra as mulheres.

A associação da culpa e da vergonha às mulheres é um processo histórico que contribui para a perpetuação da violência na medida em que se coloca como obstáculo à busca por ajuda77 Strey MN. Efeitos da culpa na subjetividade. In: Fleury-Teixeira E, Meneghel SN, organizadores. Dicionário feminino da infâmia. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015.,88 Jarschel H. Vergonha da violência. In: Fleury-Teixeira E, Meneghel SN, organizadores. Dicionário feminino da Infâmia. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015.. A atenção e o suporte às mulheres se apresentam como condição necessária para que a situação não evolua para um evento ainda mais traumático77 Strey MN. Efeitos da culpa na subjetividade. In: Fleury-Teixeira E, Meneghel SN, organizadores. Dicionário feminino da infâmia. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015.. A exposição da nudez e demais comportamentos negados às mulheres são, como se observa nos códigos sociais de papéis de gênero, motivo de vergonha e, portanto, culpa que passam a ser introjetadas por elas. Tais sentimentos respondem significativamente pelo sofrimento das mulheres, conforme foi observado nos relatos no âmbito desta pesquisa. Taille99 Taille YL. O sentimento de vergonha e suas relações com a moralidade. Psicol Reflex Crit. 2002; 15(1):13-25., em análise do sentimento de vergonha, afirma que a pessoa envergonhada passa a se julgar ativamente e se torna cúmplice das apreciações negativas direcionadas a ela. O juízo moral não envolve apreciação apenas da ação ou de sua intenção, mas do valor da pessoa. Nesse sentido, o autor difere a honra da autoestima, já que na segunda a valoração não envolve moralidade.

Zuleica, branca, de 62 anos, psicóloga de órgão jurídico de capital, afirmou que mulheres que buscam o serviço por estarem sofrendo ameaça ou já terem sido expostas sentem muita decepção e raiva, mas sobretudo culpa. Ela observa que o sentimento de culpa por terem se envolvido com seus agressores é ainda maior que a raiva por estarem sendo violentadas. Vivian, branca, de 39 anos, psicóloga de órgão de segurança pública de capital, observou a centralidade da vergonha e da culpa como obstáculo à busca por ajuda em atendimento a uma adolescente de 15 anos, exposta por vingança do ex-namorado, que foi levada ao órgão pelo pai policial militar, que descobriu a situação ao perceber que a filha estava se cortando.

Daniela, parda, de 19 anos, moradora de regional periférica de capital, foi exposta por um colega da escola aos 14 anos e, posteriormente, na família pelo pai, que já havia sido denunciado duas vezes ao Conselho Tutelar por agressão física a ela. Daniela passou a morar com a avó e teve agravado seu quadro de práticas de autolesão – negligenciado pela família, iniciado aos dez anos, com os primeiros espancamentos por parte do pai. Após a exposição, ela deixou de ser expansiva e passou a ter vergonha e também fobia de insetos, que antes não tinha. Ela contou ter crises mensalmente de madrugada, momento em que se arranha e bate a cabeça na parede. Nesses momentos, o sentimento de culpa fica exacerbado, conforme ela contou:

Eu fico pensando, porque fui eu que fiz aquilo, fui eu que tirei foto, fui eu que destruí a família, fui eu que... Eu falava pra mim, e coloco pra dentro, sabe, de mim, como se fosse eu mesma.

(Daniela)

Maura, negra, de 28 anos, moradora de bairro de classe média de cidade de médio porte de região metropolitana, foi exposta aos 20 anos por dois amigos. Ela desenvolveu transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, fobias, passou a ser reclusa e insegura. Como Daniela, ela não se sentiu apoiada pela mãe. Sua mãe seguiu se relacionando normalmente com os amigos que a expuseram e questionava o fato de Maura ter rompido as relações, atribuindo a seu comportamento um exagero e deslegitimando seu sofrimento. Conforme descreveu Maura, isso impactou significativamente na forma como passou a se relacionar.

Eu me afastei de muitas outras pessoas e fiquei com a confiança abalada não só nessas duas pessoas, mas em todas as outras. Porque, né, ninguém teve um gesto, né, de tentar entender o porquê eu tive a reação que eu tive e o que tinha acontecido comigo, né. Então, acho que essa dificuldade pra confiar e essa reclusão tem a ver muito com isso, “Ah, ninguém vai, ninguém vai confiar, ninguém vai acreditar, então eu não vou tocar nesse assunto”.

(Maura)

Úrsula, negra, de 36 anos, psicóloga de órgão de segurança pública de capital, afirmou que as adolescentes mais velhas conseguem associar mais facilmente o fato de terem sido expostas ao surgimento de questões relativas à Saúde Mental, relação que é clara para a profissional.

Elas têm alguns ganhos, assim, nisso que, que são ganhos secundários, assim, né, são ganhos muito inferiores no que vai significar, na verdade, pra imagem e pra vida delas, né. Assim, são ganhos, eu diria, até que passageiros, uma pequena fama, uma popularidade, mas que vem de uma coisa muito grave, né, que, a longo prazo, a gente não sabe como que vai repercutir na vida delas. O que, o que eu tenho notado, assim, é que o número de meninas que estão se machucando tem crescido muito, muito, então é a ideação suicida também tem sido muito frequente, né. E eu vejo uma ligação com isso da exposição, assim, dos outros saberem o que está acontecendo, do que aconteceu, né, isolamento social, evasão escolar. Então, assim, eu vejo, é, essa ligação de uma forma muito clara. Assim, porque enquanto ninguém sabe, é, talvez dê pra manejar um pouco melhor né, dá pra manter, digamos, um sigilo na casa. Mas a partir do momento que há divulgação, ela se sente exposta, né. Sai na rua pensando “Ah, todo mundo sabe o que aconteceu comigo, né, minha família sabe o que aconteceu, viu as imagens”. E eu tenho notado muito assim, que esses casos que dizem respeito à divulgação, seja na mídia, ou a divulgação entre os pares ou até mesmo, assim, mães que receberam – que não houve uma divulgação ampla, mas mães receberam uma foto como denúncia –, que, que tem deixado essas meninas muito mais ansiosas, deprimidas, com ideação suicida isso tem sido bem perceptível no nosso atendimento.

(Úrsula)

O modo como a violência da exposição se manifesta visivelmente com marcas no corpo foi relatado tanto pelas mulheres como pelas profissionais. Mudanças na relação com o corpo e a sexualidade, como retraimento, foram relatadas por algumas mulheres. As práticas de automutilação, como os cortes, entretanto, estiveram significativamente presentes, sobretudo entre as jovens.

Clarice, branca, de 19 anos, moradora de cidade de pequeno porte de região metropolitana, foi exposta aos 14 anos pelo então namorado no contexto da escola pública em que estudavam. Ela sofreu deboche por ter seios grandes e teve seu quadro de bulimia – negligenciado pela família – agravado, na medida em que encontrou, em grupos de cultura de distúrbio alimentar na internet, acolhimento. Segundo contou, o sofrimento pelo qual estava passando refletiu visivelmente no modo como passou a se vestir, escondendo o corpo.

Eu usava muita roupa de frio nessa época, escondia o máximo que eu podia. [...] Eu contei pra ele [pai] e ele falou que pessoas pobres não tinham esse problema, simples assim, e ficou por isso mesmo. [...] Eu já tinha desenvolvido bulimia na época, então acho que agravou mais e eu comecei a não comer, eu comecei a punir meu próprio corpo, eu não cheguei à automutilação, mas eu tentei. [...] Eu ainda sou muito insatisfeita com meu corpo, não sei se isso tem relação. [...] Eu buscava muita coisa na internet, então isso acabou piorando um pouco, porque eu acabei encontrando grupos que adoravam a anorexia e a bulimia. [...] Eu vi que não estava sozinha, porque tinha outras garotas que odiavam seu corpo e que tava certo o que eu tava fazendo, então eu senti um apoio pra continuar fazendo o que eu tava fazendo, porque era o certo. Eu lembro de uma frase que era muito marcante, “Garotas bonitas não comem.”, tinha isso em vários lugares.

(Clarice)

Além de Vivian, Tainá, branca, de 28 anos, também discutiu a frequência de casos de associação de adolescentes expostas e as práticas de automutilação. Como psicóloga de um equipamento de Saúde Mental de uma cidade de interior de pequeno porte (que não era destinado ao público infantojuvenil, com exceção de casos graves), atendeu três adolescentes com histórias semelhantes. Elas provinham de famílias muito pobres, e também ausentes; elas chegaram ao equipamento encaminhadas pelo Conselho Tutelar. A questão da divulgação de fotos de meninas nuas estava aflorada na cidade, e elas passaram a se cortar após terem sido expostas no contexto da escola. Segundo avaliou Tainá, os cortes apareciam como um pedido de ajuda em meio a um contexto de negligência de suas famílias em relação a elas.

Conforme debatido na literatura, a automutilação em adolescentes é um problema de saúde pública contemporâneo e mundial, que tem como fatores de risco, entre outras questões, aquelas discutidas neste trabalho, como ser menina, ter sofrido violência de gênero e intimidação sistemática e falta de apoio familiar1010 Moreira ÉS, Vale RRM, Caixeta CC, Teixeira RAG. Automutilação em adolescentes: revisão integrativa da literatura. Cienc Saude Colet. 2020; 25(10):3945-54..

O apoio familiar e o escolar, ou a ausência de ambos, mostraram-se determinantes na condição de sofrimento das meninas e mulheres expostas. Dentre as que foram expostas em idade escolar, apenas uma adolescente foi amparada pela escola, sendo sua experiência diferente das demais, pois a mídia não envolvia nudez propriamente e foi divulgada por desconhecidos na publicidade de uma casa de prostituição.

A relação da experiência de divulgação não autorizada de imagens íntimas de mulheres com a educação e a instituição escolar, entretanto, não será aprofundada neste trabalho. A seguir, serão debatidos os desafios e possibilidades nos cuidados em saúde destinados às mulheres que passam por essa violência.

Especificidades institucionais do acolhimento

A atenção às mulheres em situação de violência, no Brasil, é competência dos serviços de saúde, assistência social e segurança pública, orientados pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres1111 Brasil. Secretaria de Política para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília: Secretaria de Política para as Mulheres; 2011.. A notificação compulsória dos casos de violência contra as mulheres nos serviços de saúde é determinada legalmente (Lei Federal n. 10.778, de 2003)1212 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 10.778, de 24 de Novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Brasília: Ministério da Saúde; 2003., sendo, no caso de menores de 18 anos, a determinação já estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente1313 Brasil. Presidência da República. Lei Federal nº 8.069, de 13 Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República; 1990.. A notificação compulsória permite o acompanhamento dos registros a fim de embasar as políticas públicas de prevenção à violência.

Sabe-se que há diversas dificuldades nos atendimentos de saúde, na identificação das situações de violência vivenciadas por mulheres, sendo uma delas a dificuldade das próprias mulheres, por vergonha, em falar de sua experiência1414 D´Oliveira AFPL, Schraiber LB, Pereira S, Bonin RG, Aguiar JM, Sousa PC, et al. Protocolo de atendimento a mulheres em situação de violência. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019..

Essa situação foi relatada tanto por profissionais como pelas mulheres que passaram pela violência. Uma das profissionais mencionou que há uma dificuldade ainda maior, por parte das mulheres, para falar dos casos de exposição, já que envolve intimidade, exigindo maior sensibilidade por parte de profissionais.

A questão da (re)exposição no atendimento jurídico é ainda mais desafiadora. Conforme debatido em alguns trabalhos1515 Ferreira LESL. A demarcação da proteção da intimidade sexual no Brasil e nos Estados Unidos: um percurso sobre os instrumentos jurídicos de tutela [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2016.,1616 Silva SMS. O discurso jurídico sobre pornografia de vingança no Brasil [dissertação]. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos; 2016., não há qualquer garantia de sigilo das partes envolvidas em processos judiciais que envolvem a divulgação não autorizada da intimidade. Zuleica fez referência a essa (re)exposição vivenciada presencialmente nas audiências: “Isso é coisa que vai parar em audiência, com ela [mulher exposta] presente, juiz promotor, escrivão, estagiário. Você imagina uma sala cheia e você lá de perna aberta numa foto”.

Com respeito a essa questão, Úrsula afirmou que, por princípio ético, não vê as mídias que envolvem nudez e conteúdo sexual. Segundo ela, isso não tem centralidade para a execução de seu trabalho, que se baseia na fala das meninas, e assim ela evita que mais uma pessoa veja o que não deveria ter sido exposto.

Observou-se que as diferentes fases pelas quais as mulheres passam no processo de superação da violência se manifestam nas instituições da rede de atendimento às mulheres em situação de violência, que é capaz de acolher as diferentes demandas, sobretudo pela apropriação dessas especificidades. O atendimento, entretanto, também apresenta uma série de falhas, conforme será discutido na sequência.

Falhas no acolhimento

Os trajetos percorridos pelas mulheres entre as instituições para romper com a violência sofrida têm sido chamados de rotas críticas. Trata-se da análise das respostas obtidas pelos serviços, bem como obstáculos encontrados, além das significações às violências por parte de profissionais1717 Meneghel SN, Bairros F, Mueller B, Monteiro D, Oliveira LP, Collaziol ME. Rotas críticas de mulheres em situação de violência: depoimentos de mulheres e operadores em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica. 2011; 27(4):743-52.. Dificuldade de efetivar uma lógica de rede devido a racionalidades conflitantes entre as instituições1818 Kiss LB, Schraiber LB, d’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501., ausência de conforto e privacidade na recepção e no atendimento, necessidade de contar a história a vários profissionais, autoafastamento dos atendimentos que envolvem situações de violência por parte de profissionais1919 Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saude Soc. 2011; 20(1):113-23. e julgamentos na assistência policial1818 Kiss LB, Schraiber LB, d’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501.

19 Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saude Soc. 2011; 20(1):113-23.
-2020 Pasinato W. Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres: as percepções dos operadores jurídicos e os limites para a aplicação da Lei Maria da Penha. Rev Direito GV. 2015; 11(2):407-28. são algumas das questões que têm sido debatidas no âmbito da assistência às mulheres em situação de violência.

A respeito do acolhimento de situações de divulgação não autorizada da intimidade de mulheres, Úrsula afirmou que observa um grande despreparo da rede de proteção, envolvendo desconhecimento e negligência por parte de profissionais.

Então, circulando pela rede, assim, é muito perceptível isso, né, que eu já cheguei a ver profissionais falarem com a menina assim “Ignora, que depois de um tempo isso vai parar de circular”. É, esse especificamente que eu to lembrando foi um conselheiro tutelar, né [...]. Tá lá pra sempre, né, não simplesmente some, então foi bem marcante essa fala pra mim.

(Úrsula)

Boa parte das profissionais entrevistadas reitera a centralidade da escuta respeitosa das mulheres, não envolvendo julgamento. Tainá discutiu a importância de evitar posturas invasivas, sobretudo pelo fato de as mulheres já se autojulgarem muito nas situações que envolvem exposição.

O que acontece muito é que, até mesmo psicóloga tem esse erro de fazer muita pergunta, sabe. E isso deixa a pessoa cada vez mais fechada, né, assim [...]. Então eu vejo que no serviço, até em consultas mais rápidas ou outras abordagens, né, de psicólogas, que são muito diretivas, sabe, como se fosse uma anamnese, tô entrevistando, e isso coloca as pessoas numa defesa, no sentido de “Que que essa mulher vai pensar de mim se eu responder tal pergunta?”. Então eu acho que a gente tem que ter um cuidado muito grande nessa situação, não só nessa situação, mas em várias, mas nesse caso, especialmente, porque tem muito preconceito. Elas vão se julgar muito, elas vão ter medo do que que aquela outra pessoa vai pensar dela tanto que as vezes surge umas perguntas tipo “Você é casada?”, “Você tem namorado?”, antes de contar, sabe, sobre a vida, de entender que lugar que eu to ali, talvez, pra tentar perceber. Então, assim, eu vejo que a gente não pode trazer a questão propriamente jogada. É uma questão que tem que emergir delas.

(Tainá)

Outra questão discutida com respeito ao atendimento foi a necessidade de narrar a história repetidas vezes a diferentes profissionais. Zuleica afirmou que, no órgão em que trabalha, a escuta é realizada, em geral, com a presença de profissional responsável pela condução jurídica e de responsável pelo registro das informações. Segundo ela, trata-se de uma estratégia para evitar a revitimização que ocorre quando há necessidade de repetir a narrativa. Se é verdade que a repetição é uma forma de revitimização, também o é a falta de privacidade e de ambiente que propicie a escuta qualificada. Nesse sentido, novamente se coloca a questão da (re)exposição como forma de revitimizar mulheres que já foram expostas e buscam justamente cessar com essa forma de violência. Cabe aos serviços amadurecerem os protocolos de atendimento pensando as especificidades de cada tipo de violência vivenciada pelas mulheres. Tais protocolos podem ser elaborados de forma participativa, com envolvimento de profissionais da saúde para constituir também espaços educativos e de formação2121 Santos AP, Bevilacqua PD, Melo CM. Atendimento à mulher em situação de violência: construção participativa de um protocolo de trabalho. Saude Debate. 2020; 44(125):569-79..

A escuta qualificada nos serviços é essencial para fortalecer a decisão da mulher de sair do ciclo de violência e evitar a revitimização. O acolhimento, diretriz central da Política Nacional de Humanização (PNH), é entendido como a orientação que inaugura o processo de cuidado. Ele propicia a produção de cuidado compartilhado, não se tratando apenas de uma interação passiva, mas que produz movimentos que permitem reposicionamentos2222 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.. Ao mesmo tempo que a violência contra a mulher precisa ser encarada como uma questão de saúde, não pode simplesmente ser tratada sob a perspectiva patologizante do modelo biomédico2323 Schraiber LB, d’Oliveira AFLP. Violência contra mulheres: interfaces com a Saúde. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):11-26.. Nesse sentido, a assistência psicossocial precisa ser centrada na mulher e na superação da violência1818 Kiss LB, Schraiber LB, d’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501., conforme reiterado por boa parte das profissionais. São as questões abordadas na sequência.

Autoestima e protagonismo das mulheres

A relação entre baixa autoestima, fragilidades emocionais e o autoenvolvimento com a exposição, sobretudo na adolescência, foi discutida por algumas profissionais, questão que não será aprofundada neste trabalho. Já a relação entre baixa autoestima e o envolvimento em relacionamentos abusivos foi observada no relato tanto de mulheres como de profissionais.

Uma profissional mencionou a condição das mulheres com deficiência, que muitas vezes também apresentam dificuldades para desenvolver autoestima. Foi relatado o caso de uma mulher com deficiência auditiva, profissional com autonomia financeira, mas que, relacionada a sua deficiência, sentia insegurança para se envolver afetivamente. Ela passou a morar com o primeiro homem com quem se envolveu, com quem teve uma criança. Pouco tempo depois, ela começou a ser extorquida por ele, que ameaçava mostrar fotos íntimas dela à família.

Helena, branca, de 21 anos, de família de classe média de capital e estudante de curso universitário de prestígio, foi exposta mais de uma vez pelo então namorado, que mostrou aos amigos mídias com imagens íntimas de Helena e de momentos do casal. O relacionamento não terminou após as exposições, mas após a decisão dele de se relacionar com outra menina.

Não sei, tipo, já passou pela minha cabeça que eu não era boa o suficiente e por isso que ele, que ele não se poupava de falar com ninguém, não se poupava de ficar com outras pessoas, porque eu não era o bastante. Enquanto que com ela, na primeira vez, ele me mandou mensagem de que não esquece o que a gente passou, porém ele se controlou, ele parou de falar comigo no dia seguinte. Assim, então eu penso, nossa, então ela deve ser muito melhor do que eu. Só que não é certo eu pensar assim. Acho que tem muita coisa envolvida e eu espero realmente ter amadurecido. Sei lá, eu não espero muito, mas passou pela minha cabeça.

(Helena)

Discutiu-se entre profissionais, sobretudo, a centralidade da autoestima no processo de superação da situação de violência. Boa parte das profissionais afirmou ter como pilares de seu trabalho com as mulheres o autoconhecimento, a autoconfiança e o desenvolvimento de projetos de vida, evidenciando sua importância na produção de cuidados nas situações de violência.

O debate crítico sobre a dicotomização entre o homem agressor ativo e a mulher vítima passiva foi iniciado, no Brasil, por Maria Filomena Gregori, que apontou a obstaculização da ação política de enfrentamento à violência, por não vislumbrar e estimular transformações nas relações2424 Gregori MF. As desventuras do vitimismo. Estud Fem. 1993; (1):143-9.. Villela e colaboradoras1919 Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saude Soc. 2011; 20(1):113-23., assim como Santos e Izumino2525 Santos CM, Izumino WP. Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil. Estud Interdiscip Am Lat Caribe. 2005; 16(1):147-64., deram continuidade ao debate, defendendo que as violências sejam compreendidas como relações de poder, apontando também o fato de que são atravessadas por questões de raça e classe.

O debate sobre a autonomia das mulheres no processo de superação da violência ainda se faz presente, por exemplo, na questão da ação pública incondicionada nos casos que envolvem lesão corporal, que determina processo independentemente do desejo da mulher. Ao mesmo tempo que se trata de um recurso que contribui para que o processo seja levado adiante ainda que a mulher esteja sendo ameaçada, tira seu poder decisório2020 Pasinato W. Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres: as percepções dos operadores jurídicos e os limites para a aplicação da Lei Maria da Penha. Rev Direito GV. 2015; 11(2):407-28..

Uma profissional de órgão jurídico chamou a atenção para o fato de que muitas mulheres estavam solicitando a retirada de medida protetiva durante o contexto da pandemia de coronavírus, devido ao aumento de dependência financeira. Tais questões demonstram as dimensões envolvidas na possibilidade de conquista de autonomia por parte das mulheres.

De modo geral, as profissionais dos órgãos de acolhimento às mulheres defenderam a importância do acompanhamento centrado na mulher e não nos processos burocráticos. Entendendo que cada mulher sente a violência de um modo e tem recursos e tempos próprios para a superação, foi afirmado que não se pode perder a dimensão da individualidade de cada acompanhamento.

A questão da importância de se trabalhar a superação da situação foi observada até mesmo por uma mulher que passou pela violência, em avaliação do acompanhamento que recebeu em um órgão público especializado. Nádia, branca, de 29 anos, moradora de cidade de pequeno porte de região metropolitana e estudante de pós-graduação em capital, foi perseguida e exposta no âmbito familiar e profissional pelo ex-namorado abusivo. Ela afirmou que debater sobre as responsabilidades das mulheres é fundamental, ainda que não em um primeiro momento.

Eu acho que alertar sobre isso é válido, sabe, porque uma coisa que eu percebi lá no grupo de apoio é que, assim, eles tinham esse tipo de acolhimento de deixar a pessoa falar e tudo, mas eu não acho que eles é, que eles, é, deixavam muito claro o fato da mulher não ser culpada, dela ser uma vítima, e o fato dela não repetir as mesmas coisas nos próximos relacionamentos. [...] Porque a gente sabe que muitas vezes acontece de novo, né, acontece nos próximos relacionamentos às vezes de uma maneira até pior. E eles falavam muito, assim, num sentido de “Procure a polícia”, entendeu?

(Nádia)

Vivian afirmou que o foco no protagonismo é decisivo em seu trabalho com as crianças que passaram por situações de violência, sobretudo na percepção de que podem ajudar outras crianças na mesma condição.

Eu dou a ela a possibilidade também de tomar uma posição mais ativa nessa história. Porque eu falo com ela assim “Olha, eu sei que são coisas muito difíceis de falar, que você não gostaria de falar pra mim porque acabou de me conhecer, mas eu queria que você soubesse da importância do seu relato, porque, quando você me conta, você me ajuda a te proteger e você me ajuda a proteger uma outra criança”. E aí ela tem a possibilidade de mudar de posição nessa história: “Pô, eu não sou só a vítima, eu também posso ser agente protetora de uma outra criança”. Isso funciona demais, é uma coisinha assim desse tamaninho que a gente acha que não tem, né, uma repercussão, e tem. Tem muita repercussão nessas crianças ela sentir que pode fazer algo por outra criança. É muito importante pra ela, e aí ela deixa de ser só aquela vítima ali.

(Vivian)

Por fim, compreendendo o cuidado de modo mais amplo, como comportamento constituinte da experiência das mulheres e que as constituem2626 Dumont-Pena É, Silva IO. Construções contemporâneas do cuidado. In: Dumont-Pena É, Silva IO, Maria Neto N. Aprender a cuidar - diálogos entre saúde e educação infantil. São Paulo: Cortez Editora; 2018., com base no debate sobre a ética do cuidado em mulheres e minorias que desempenham esse papel socialmente2727 Tronto JC. Beyond gender difference to a theory of care. Signs. 1987; 12(4):644-63., muitas mulheres que passaram pela experiência da exposição apontaram atitudes no âmbito das relações pessoais que as prejudicaram e também apoiaram.

Muitas mulheres expostas falaram da fragilidade do apoio recebido por amigas, como o aconselhamento, logo após a violência sofrida, de se preservar e deixar de se expor, manifestando tacitamente uma culpabilização. Helena, por exemplo, ouviu muitas críticas das amigas ao seu então namorado abusivo e de quem ela gostava, mas que, segundo contou, não contribuíram em nada para que ela se fortalecesse. Por outro lado, a centralidade da compreensão e do não julgamento foi reiterada por muitas mulheres e profissionais. O apoio (em geral, das mulheres) da família, em especial, apareceu, nos relatos, como uma questão definidora para o enfrentamento da situação de violência e principal modo de cuidado inicial dispensado.

Outras questões apontadas pelas mulheres como demandas nas situações de divulgação não autorizada da intimidade foram o acolhimento terapêutico, individual ou em grupo de mulheres, sobretudo para trabalhar com o processo de autoculpabilização, e a apropriação do debate político. Muitas mulheres afirmaram que o debate feminista introduzido por amigas contribuiu na compreensão da violência sofrida. Também foi mencionada a importância de as mulheres aprenderem as questões técnicas de segurança de dados na internet, considerando que grande parte ainda é excluída do universo do conhecimento tecnológico.

Considerações finais

A divulgação não autorizada da intimidade é uma forma de violência potencializada pelas novas tecnologias. Essa violência tem sido disseminada em diferentes contextos sociais e com grande potencial danoso, muitas vezes sendo conjugada com outras formas de violência contra as mulheres. Os principais danos emocionais relatados pelas mulheres estão relacionados às consequências para suas relações pessoais e profissionais.

Para demais situações de violência, foram observadas especificidades institucionais do acolhimento nos diferentes órgãos que integram a rede de proteção às mulheres. Foi evidenciada, para a produção de cuidados em saúde, a centralidade de trabalhar a superação da situação de violência por meio do protagonismo das mulheres e da apropriação de seus direitos.

A pesquisa apontou para a demanda de cuidado ainda maior com relação à privacidade e à descrição nos atendimentos. Nas situações em que as mulheres já estão sendo expostas e sofrendo julgamentos, não as preservar durante o acolhimento é um modo categórico de as expor à revitimização.

  • (c)
    Rejeita-se a expressão pornografia não consensual pelo fato de as mulheres que passaram por essa experiência não se identificarem com a expressão22 Lins BA. Caiu na rede: mulheres, tecnologias e direitos entre nudes e (possíveis) vazamentos [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2019. e em consonância com o debate feminista em torno do termo consenso e sua acepção de passividade33 Perez Hernández Y. Consentimiento sexual: un análisis con perspectiva de género. Rev Mex Sociol. 2016; 78(4):741-67..

Agradecimentos

A Marcela Quaresma Soares pela cuidadosa leitura do manuscrito.

  • Patrocino LB, Bevilacqua PD. Divulgação não autorizada de imagem íntima: danos à saúde das mulheres e produção de cuidados. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210031 https://doi.org/10.1590/interface.210031
  • Financiamento

    O artigo foi resultado de bolsa recebida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2021
  • Aceito
    10 Jul 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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