Saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental: percepção dos profissionais de saúde

Salud sexual y reproductiva de las mujeres con trastorno mental: percepción de los profesionales de salud

Daniela Claudia Silva Fortes Mara Regina Santos da Silva Kateline Simone Gomes Fonseca Ariana Sofia Barradas da Silva Elga Mirta Furtado Barreto de Carvalho Sobre os autores

Resumos

Este estudo teve por objetivos: conhecer a percepção dos profissionais sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental; e identificar a repercussão da percepção dos profissionais acerca da prática que desenvolvem com as mulheres com transtorno mental. Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa, realizado com 17 profissionais de saúde que atuam na rede de cuidados primários e serviços de Psiquiatria. Os dados foram coletados utilizando entrevistas semiestruturadas e, após, submetidos à técnica de análise temática. A percepção reducionista das necessidades de saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental pelos profissionais de saúde reflete, na prática, um cuidado que dissocia a saúde sexual e reprodutiva da Saúde Mental. Assim sendo, para a efetivação do cuidado integral à saúde dessas mulheres, faz-se necessário maior horizontalidade entre a saúde sexual/reprodutiva e mental.

Palavras-chave
Saúde sexual; Saúde reprodutiva; Mulheres; Transtorno mental; Profissionais de saúde


Los objetivos de este estudio fueron: conocer la percepción de los profesionales sobre la salud sexual y reproductiva de las mujeres con trastorno mental e identificar la repercusión de la percepción de los profesionales sobre la práctica que desarrollan con las mujeres con trastorno mental. Se trata de un estudio exploratorio, de abordaje cualitativo, realizado con 17 profesionales de salud que actúan en la red de cuidados primarios y servicios de Psiquiatría. Los datos se colectaron utilizando entrevistas semiestructuradas y que después se sometieron a la técnica de análisis temático. La percepción reduccionista de las necesidades de salud sexual y reproductiva de las mujeres con trastorno mental por parte de los profesionales de salud refleja, en la práctica, un cuidado que disocia la salud sexual y reproductiva de la salud mental. Por lo tanto, para que el cuidado integral a la salud de esas mujeres sea efectivo, es necesaria una mayor horizontalidad entre la salud sexual/reproductiva y mental.

Palabras clave
Salud sexual; Salud reproductiva; Mujeres; Trastorno mental; Profesionales de salud


Introdução

A saúde sexual e reprodutiva é reconhecida como parte integral da saúde do ser humano e é fundamental para o seu desenvolvimento, o que justifica reconhecê-la como uma preocupação global11 Alarcão V, Stefanovska-Petkovska M, Virgolino A, Santos O, Ribeiro S, Costa A, et al. Fertility, Migration and Acculturation (FEMINA): a research protocol for studying intersectional sexual and reproductive health inequalities. Reprod Health. 2019; 16:140. Doi: https://doi.org/10.1186/s12978-019-0795-5.
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. Documentos históricos e com atualidade atemporal apontam a preocupação em salvaguardar os direitos sexuais e reprodutivos, atrelados aos direitos humanos, preconizados por organismos internacionais como Conferência Internacional sobre a População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD) em 1994 no Cairo, a Plataforma de Ação de Pequim (1995), bem como ações do Comitê de Direitos Econômicos, Social e Cultural (CDESC) em 2016, Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para 203022 Pizzarossa LB, Perehudoff K. Global survey of national constitutions: mapping constitutional commitments to sexual and reproductive health and rights. Health Hum Rights. 2017; 19(2):279-93..

Esses documentos evocam a liberdade das mulheres e dos homens para decidirem se e quando reproduzir, o direito às informações seguras, métodos eficazes acessíveis e aceitáveis de planejamento familiar, bem como o acesso aos serviços de saúde22 Pizzarossa LB, Perehudoff K. Global survey of national constitutions: mapping constitutional commitments to sexual and reproductive health and rights. Health Hum Rights. 2017; 19(2):279-93.. Embora consagrados em documentos internacionais, as mulheres com transtorno mental são vistas na contramão das capacidades para decidir e usufruir desses direitos.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) garante a elas o mesmo nível de direito aos cuidados com saúde de qualidade e acessibilidade que as pessoas sem deficiência, incluindo os serviços de saúde sexual e reprodutiva. Contudo, na prática, observa-se que esse grupo ainda é marginalizado e socialmente excluído em muitos países, incluindo Cabo Verde33 Upadhaya N, Regmi U, Gurung D, Luitel NP, Petersen I, Jordans MJD, et al. Mental health and psychosocial support services in primary health care in Nepal: perceived facilitating factors, barriers and strategies for improvement. BMC Psychiatry. 2020; 20:64. Doi: https://doi.org/10.1186/s12888-020-2476-x.
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Estudos internacionais sugerem uma dissociação dos cuidados com a saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental, apontando que, muitas vezes, não é feita a triagem de saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres e, assim, é negligenciada44 Montejo AL, Montejo L, Baldwin DS. The impact of severe mental disorders and psychotropic medications on sexual health and its implications for clinical management. World Psychiatry. 2018; 17(1):3-11.,55 Harrison ME, Zanten SVV, Noel A, Gresham L, Norris ML, Robinson A. Sexual health of adolescent patients admitted to a psychiatric unit. J Can Acad Child Adolesc Psychiatry. 2018; 27(2):122-9.. Esses estudos, geralmente, associam a negligência de cuidados aos estigmas e discriminação, que são apontados como as principais barreiras ao reconhecimento das necessidades de saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtornos mentais nos serviços de saúde66 Wainberg ML, Cournos F, Wall MM, Pala NA, Mann CG, Pinto D, et al. Mental illness sexual stigma: implications for health and recovery. Psychiatr Rehabil J. 2016; 39(2):90-6..

Os estigmas concebem uma conotação negativa à saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtornos mentais, negando que seja sexualmente ativa, com capacidade de casar, de ter filhos e constituir família; e, quando se trata da sua sexualidade, é considerada manifestação da doença mental77 Ganle JK, Otupiri E, Obeng B, Edusie AK, Ankomah A, Adanu R. Challenges women with disability face in accessing and using maternal healthcare services in Ghana: a qualitative study. PLoS One. 2016; 11(6):e0158361. Doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0158361.
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. Os profissionais de saúde também podem partilhar essa visão estigmatizante, o que resulta em moldar sua percepção das necessidades de saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres, podendo comprometer a oferta dos cuidados66 Wainberg ML, Cournos F, Wall MM, Pala NA, Mann CG, Pinto D, et al. Mental illness sexual stigma: implications for health and recovery. Psychiatr Rehabil J. 2016; 39(2):90-6..

Em geral, quando as mulheres com transtornos mentais percebem esses estigmas, evitam procurar os serviços de saúde; consequentemente, reduzem a qualidade de vida e diminuem sua autoestima, comprometendo sua saúde física e mental e retardando o diagnóstico e o início do tratamento quando é necessário66 Wainberg ML, Cournos F, Wall MM, Pala NA, Mann CG, Pinto D, et al. Mental illness sexual stigma: implications for health and recovery. Psychiatr Rehabil J. 2016; 39(2):90-6.,77 Ganle JK, Otupiri E, Obeng B, Edusie AK, Ankomah A, Adanu R. Challenges women with disability face in accessing and using maternal healthcare services in Ghana: a qualitative study. PLoS One. 2016; 11(6):e0158361. Doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0158361.
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. Desse modo, a mulher com transtorno mental pode não reconhecer esses serviços de saúde como recursos, ou vê-los como inadequados e pouco resolutivos.

Para entender a forma como as mulheres com transtornos mentais são tratadas nos serviços de saúde, é importante conhecer a percepção dos profissionais sobre a saúde sexual e reprodutiva e como isso influencia na sua prática de cuidados. Da mesma forma, é essencial conhecer os sentimentos, as crenças e as atitudes dos profissionais em relação à doença mental, uma vez que eles podem atuar como barreiras para uma atenção integral e resolutiva a essas mulheres.

Este estudo elenca os seguintes objetivos: (1) conhecer a percepção dos profissionais sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental; (2) identificar a repercussão da percepção dos profissionais sobre a prática que desenvolvem com as mulheres com transtorno mental.

Metodologia

Desenho do estudo

Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, respaldado na Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural (TDUCC) de Madeleine Leininger. Essa teoria considera que a prestação do cuidado deve ser sensível, respondível e culturalmente congruente com os indivíduos, famílias, grupos, comunidades e instituições, chamando a atenção para os valores, a forma de cuidar, as expressões, crenças, ações, o estilo de vida cultural, como influenciadores desse cuidado88 Leininger MM. Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: Wiley; 1991.. Nessa perspectiva, conhecer as crenças e os valores da pessoa cuidada e da família são determinantes para ajudar o profissional de saúde a delinear um cuidado que responda às suas necessidades no contexto cultural em que está inserido.

O modelo proposto na TDUCC para gerar novos conhecimentos e auxiliar na análise do significado do cuidado para diversas culturas é o Sunrise. Esse modelo apresenta um conjunto de fatores tecnológicos, religiosos e filosóficos, familiar e social, valores culturais e modos de vida, políticos e legais, econômicos e educacionais interligados, permitindo a observação de fatores socioculturais que envolvem a vida do indivíduo e podem influenciar na sua saúde88 Leininger MM. Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: Wiley; 1991..

Na base do modelo, Leininger propôs o modo de decisão e ação baseado em três tipos de cuidados culturais, sendo eles: (1) preservação e manutenção de cuidados culturais referentes a ações de atuação assistencial, de apoio, facilitadoras ou habilitadoras, que ajudam as culturas a treinar, preservar ou manter ideias e soluções benéficas de cuidados ou enfrentar desvantagens e morte; (2) acomodação e/ou negociação de cuidados culturais referentes às atividades assistenciais, facilitadoras ou criativas, as quais oferecem ações ou decisões de cuidados que ajudam as culturas a se adaptar ou negociar com outros para cuidados culturalmente congruentes, seguros e eficazes para sua saúde, bem-estar ou para lidar com doenças ou morte; e (3) o cuidado da cultura e/ou a reestruturação referente às ações profissionais, auxiliares, facilitadoras ou habilitadoras e decisões mútuas que ajudem as pessoas a reordenar, mudar, modificar ou reestruturar suas formas de vida, e instituições para melhores (ou benéficos) padrões, práticas ou resultados88 Leininger MM. Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: Wiley; 1991..

Nesse sentido, entende-se que para a consecução de um cuidado eficaz e congruente com a cultura é necessária a aproximação dos cuidados ao contexto cultural em que estejam inseridos.

Cenário da pesquisa

Este estudo foi desenvolvido com profissionais de saúde que atuam em estruturas de cuidados primários e de Psiquiatria, localizados em São Vicente/Cabo Verde/África. Cabo Verde é um país insular com parcos recursos, constituído por dez ilhas, com uma superfície de aproximadamente 4.033 km2, situado na região central do Oceano Atlântico na costa ocidental africana, a 455 km do Senegal99 Cabo Verde. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde. Reformar para uma saúde melhor. Praia: Ministério da Saúde; 2007-2020..

A escolha por São Vicente/Cabo Verde explica-se pelo fato de ser uma problemática acentuada naquele contexto e ainda pouco explorada localmente, acarretando lacunas de conhecimento, embora faça parte do cotidiano de muitas mulheres com transtornos mentais. Acrescenta-se ainda o fato de a primeira autora ter nacionalidade cabo-verdiana.

Nesse país, o sistema de saúde está organizado em três níveis. O municipal que assume os cuidados primários e se constitui na porta de entrada para o Serviço Nacional de Saúde. Na ilha de São Vicente fazem parte das estruturas de cuidados primários uma Delegacia de Saúde, cinco Centros de Saúde, três Unidades Sanitárias de Base, um Centro de Saúde Reprodutiva e um Centro de Terapia Ocupacional, que trabalham vinculados entre si e com os outros dois níveis de cuidados, o secundário e o terciário99 Cabo Verde. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde. Reformar para uma saúde melhor. Praia: Ministério da Saúde; 2007-2020..

O nível regional agrupa e reorganiza as estruturas sanitárias dos municípios mais próximos em uma ilha, com ênfase no cuidado de atenção secundária e hospitalar. Entretanto, em São Vicente, não existe o nível regional, pois não há hospital regional e os centros de saúde não têm valência de internamento. O nível central ou de referência é de abrangência nacional, presta os cuidados de atenção terciária, sobretudo a função hospitalar diferenciada. Em São Vicente está instalado um dos dois hospitais centrais do país99 Cabo Verde. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde. Reformar para uma saúde melhor. Praia: Ministério da Saúde; 2007-2020..

A saúde sexual e reprodutiva é regida pelo Programa de Saúde Reprodutiva cujas atividades se integram à ação das várias estruturas do Serviço Nacional de Saúde nos diversos níveis99 Cabo Verde. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde. Reformar para uma saúde melhor. Praia: Ministério da Saúde; 2007-2020.. Os cuidados primários visam prioritariamente o acompanhamento pré-natal e a oferta de contracepção, enquanto o serviço hospitalar complementa a função hospitalar diferenciada, nomeadamente os partos, cirurgias, consulta médica ginecológica e exames complementares. Tais ações estão orientadas pelas diretrizes da Política Nacional de Saúde (2007/2020).

A Saúde Mental é regida pelas diretrizes do Plano Estratégico para a Saúde Mental (2009/2013) e pela Política Nacional de Saúde (2007/2020). Embora o país esteja trabalhando para a formulação de um novo Plano Estratégico para a Saúde Mental, até a presente data os dados ainda não eram de domínio público. O país conta com um hospital psiquiátrico e um serviço de Psiquiatria de internamento de referência, sendo essas estruturas de cobertura nacional.

Participantes e critérios de seleção

Um total de 20 profissionais de saúde que trabalham com saúde sexual e reprodutiva e Saúde Mental foram convidados a participar do estudo, sendo todos vinculados a algum serviço de Atenção Primária (AP) e de Psiquiatria em São Vicente. Foi estabelecido um primeiro contato com os participantes em julho de 2017, ocasião em que foram convidados a participar do estudo e explicados os objetivos da pesquisa. Participaram 17 profissionais que responderam aos critérios de inclusão: atuar nos serviços de AP e de Psiquiatria e com, pelo menos, um ano de vinculação às instituições proponentes. Foram excluídos três profissionais que, durante o período de coleta dos dados, estavam em férias ou licença de trabalho.

Coleta de dados

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas entre setembro e outubro de 2018, utilizando um sistema de videoconferência entre Brasil e Cabo Verde. As entrevistas foram conduzidas do Brasil pela primeira autora, com o suporte técnico de duas auxiliares de pesquisa em Cabo Verde. Os participantes foram entrevistados individualmente, em uma sala privativa, no próprio local de trabalho, em horário previamente agendado. Cada entrevista teve duração média de cinquenta minutos.

Foi utilizado um roteiro constituído de quatro partes. A primeira com perguntas destinadas à caracterização dos participantes como idade, sexo, estado civil, religião/crenças, atividade profissional, grau de escolaridade, tempo de formação, área de formação e tempo de vínculo ao serviço. A segunda aborda as concepções pessoais a respeito da sexualidade e da vida reprodutiva de mulheres com doença mental e assistência prestada às usuárias. A terceira volta-se ao conhecimento das estratégias e dos recursos utilizados pelos profissionais de saúde com vista a responder às necessidades apresentadas pelas mulheres usuárias dos serviços. A quarta investiga o conhecimento dos profissionais sobre os documentos oficiais e as referências de natureza cultural, acadêmica e institucional que orientam a assistência à saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental. O instrumento foi previamente testado, o que possibilitou sua melhor adequação.

Análise e tratamento dos dados

As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra, seguidas de repetidas leituras para formular as categorias empíricas. O material obtido foi submetido à análise de conteúdo na modalidade temática1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2015., seguindo as três etapas preconizadas: pré-análise (leitura flutuante do material, definindo-se o corpus de análise, os objetivos, o recorte do texto em unidades de categorização para a análise temática, a preparação do material para as fases seguintes); exploração do material (definiram-se as categorias, identificadas as unidades de registro e as unidades de significado e de contexto); por fim, foi realizada a interpretação dos dados. A definição das categorias temáticas foi balizada pela TDUCC.

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética e Pesquisa da Área da Saúde, da Universidade Federal do Rio Grande Cepas/Furg, sob o Parecer n. 86/2018 e do Ministério de Saúde de Cabo Verde, pela Deliberação n. 34/2018, local de procedência dos dados. Uma vez que o estudo está vinculado a uma instituição brasileira, foram respeitados os preceitos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde1111 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução nº 466, de 12 de Dezembro de 2013. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Para garantir o anonimato dos participantes, foi utilizado um código formado da letra maiúscula “P”, seguida de um algarismo indicativo da ordem de realização das entrevistas.

Resultados

Da análise dos dados, emergiram três categorias. A primeira refere-se às percepções dos profissionais de saúde sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental; a segunda, a “invisibilidade das competências da mulher com transtorno mental”, e a terceira, “fragmentação dos cuidados de saúde sexual e reprodutiva à mulher com transtorno mental”.

Percepções dos profissionais de saúde sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental

Quando questionados sobre a saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental, o discurso predominante dos participantes mostra uma visão pouco abrangente das necessidades de saúde dessas mulheres, focando essencialmente o controle de natalidade. Essa percepção reducionista sugere associação aos estigmas em relação às competências dessas mulheres, em decorrência da doença mental.

A saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtornos mentais é um tema muito difícil porque não se sabe o que está na cabeça de uma mulher [com transtorno mental], há mulheres doentes mentais que têm uma sexualidade exacerbada, outras que nem pensam nisso. (P14)

Os participantes P1, P2, P3, P5, P6, P7, P9, P10, P11, P12, P13, P14, P15, P17 manifestaram maior sensibilidade ao falar dos cuidados com a saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres, principalmente quando as associam a grupos de risco de violência sexual. Na fala dos participantes P3, P6, P9, P11, P14, P15, a gravidez recebeu maior conotação como uma consequência do abuso sexual.

Eu explicava aos familiares a importância dela continuar a fazer a medicação anticonceptiva, porque ela deambulava muito pela comunidade, meio abandonada e por vezes ela sofria de abuso sexual. (P6)

Para as mulheres que vivem com os familiares, a violência sexual foi apontada como ação que pode ocorrer no âmbito familiar. As mulheres com transtornos mentais que vivem em situação de rua foram apontadas como mais vulneráveis, não tendo suporte da família, serviços sociais e de saúde para protegê-las do abuso sexual. Em ambos os casos, a laqueação tubária, ou método de longo prazo, foi apontado como meio para evitar a gravidez.

Da minha experiência, dos muitos casos que tenho visto, a gravidez tem acontecido dentro do seio familiar, ou é um amigo muito próximo, aí a família resguarda-se e resolve o problema internamente. (P14)

Ela estava deambulando pela rua, então eu digo que abusaram dela porque mesmo tendo o consentimento, estava em uma fase de descompensação de uma esquizofrenia, não tinha alcance dos seus atos e tendo uma relação fortuita ficou grávida. (P11)

No entendimento dos participantes, o cuidado dispensado nos serviços de saúde com foco no controle ativo da gravidez de mulher com transtorno mental é visto como prática protetora, com ênfase no bem-estar tanto da mulher como da família que, geralmente, vivem em condições sociais e financeiras frágeis.

Não sabemos se essa é a posição mais correta, mas a tendência do trabalho é ver o melhor para essa mulher, portanto se tem uma doença mental, não tem trabalho, não sabe quem é o pai da criança... é simplesmente evitar que venha a ter um filho, porque um filho é responsabilidade, muitas vezes a doença é genética, não tem condições para a própria mãe quanto mais um filho e mais outro, eu acho que qualquer um pode imaginar qual será o problema. (P14)

Sem dúvida, ajudar a família e a mulher a ter maior controle da sua vida sexual é uma forma de protegê-las. Entretanto, essa preocupação não pode tornar-se uma barreira que comprometa o cuidado integral, que é um direito preconizado em documentos oficiais nacionais e internacionais.

Invisibilidade das competências da mulher com transtorno mental

Nessa categoria, o discurso dos participantes revela uma visão da mulher com transtorno mental como alguém incapaz de se autocuidar, de cuidar do (s) filho (s), de manter relacionamentos afetivos, ou de utilizar métodos contraceptivos com regularidade.

Será que ela tem capacidade para se proteger a ponto de usar um preservativo? Não podemos contar com os homens que vão tentar abusar dela... Normalmente é preciso entender que uma mulher com transtorno mental dificilmente consegue manter uma relação estável. Eu não conheço, não sei se a literatura diz isso, mas há situações de deficiência que constroem uma família, mas que não tem transtorno mental. (P14)

Os dados revelam, ainda, que essa visão dos profissionais sobre a mulher com transtorno mental repercute na prática que desenvolvem mesmo nos serviços primários que prestam o cuidado específico de saúde sexual e reprodutiva. Segundo os participantes P1, P2, P7, P8, P9, P12, P13, P14, P15, P16, P17, o cuidado com a saúde sexual e reprodutiva dispensada às mulheres com transtorno mental é deficiente, pouco frequente e temporalmente delimitado. Ressaltamos que o maior foco no cuidado é conferido à prevenção ativa da gravidez com recurso ao planejamento familiar e, em caso de uma eventual gravidez, é realizado o seguimento durante o período gravídico-puerperal pelos profissionais de saúde.

Ela vai [aos serviços de saúde] ou porque já engravidou ou porque algum familiar está preocupado para que não engravide. Nunca vai como uma pessoa normal, à procura do serviço e dos seus direitos. (P2)

Na maioria das vezes, é a família que as traz e nunca é uma consulta digamos normal, já vem com a intenção dela usar um método anticoncepcional. (P16)

Os profissionais de saúde referem que o posicionamento da família perante as mulheres com transtorno mental influencia tanto a procura quanto a oferta de cuidados prestados a esse grupo populacional. Assim, segundo o relato dos participantes, a família nega a saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres, mantendo-as isoladas em casa, como meio de impedir uma gravidez e, consequentemente, evitar o encargo do cuidado com um novo membro da família. Os profissionais apontam, ainda, que nas poucas vezes que a família recorre aos serviços é para solicitar o uso de um método contraceptivo de longo prazo ou definitivo ou, no caso de uma gravidez já confirmada, levam a mulher ao serviço apenas para fazer o seguimento. Os profissionais referem os valores, as crenças culturais e os aspectos socioeconômicos como os motivos associados a essa conduta dos familiares.

Em relação à doença mental existe muito tabu, daí que eu disse que é a família que não as traz ou acha que pelo fato de a mulher ter um transtorno mental ela não tem uma vida sexual ou que não é necessário trazê-las para os serviços de saúde reprodutiva. E, muitas vezes, essas mulheres são dependentes… e, pelo fato de procurarem menos os serviços de saúde, são menos atendidas. (P8)

O discurso dos participantes, de certa forma, culpabiliza a família pela omissão do (des)cuidado com as mulheres com transtorno mental. Trata-se de uma percepção que impossibilita os profissionais de visualizarem competências que podem estar preservadas ou ser resgatadas com a ajuda dos profissionais e da família.

Fragmentação dos cuidados de saúde da mulher com transtornos mentais

A fragmentação dos cuidados de saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental, conforme apontado no discurso dos participantes P3, P7, P10, P11, P14, parte de uma visão de que essas mulheres são da responsabilidade do serviço de Psiquiatria. Os mesmos participantes chamaram a atenção para o serviço de Psiquiatria que, por se tratar de uma enfermaria de crise, não abarca condições para responder à saúde sexual e reprodutiva, o que poderia ser garantido nos serviços de Atenção Primária.

Um dos participantes, P13, relatou que, no atendimento à saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental, o principal foco em casos de eventual gravidez é que o bebê nasça saudável, sugerindo que, via de regra, o atendimento a essas mulheres é temporalmente delimitado, com maior atenção à fase gravídico-puerperal e maior preocupação com as questões reprodutivas.

Essa mulher evoluiu bem, não teve nenhuma alteração durante a gravidez. Só não sei dizer como foi no pós-parto porque elas não voltam, a preocupação é mais voltada para o bebê. Você vê que ela não está sendo acompanhada, então o familiar se sente na obrigação de trazê-la para pelo menos garantir a saúde do filho. Agora, em relação à mulher, nem sempre posso te garantir que ela esteja bem acolhida. (P13)

Os participantes P3, P5, P6, P7, P11, P16 referem, ainda, que a fragmentação parte do próprio sistema de saúde, manifestada em uma invisibilidade da mulher com transtorno mental no programa de saúde sexual e reprodutiva vigente e que se reflete na organização dos serviços primários que atendem à saúde sexual e reprodutiva, como também no serviço de Psiquiatria. A inexistência de protocolos de cuidado específicos com saúde sexual e reprodutiva da mulher doente mental foi apontada por todos os participantes como uma fragilidade no serviço que se repercute na prática dos profissionais.

Não dá para entender como tendo todos os recursos e com bons indicadores de saúde sexual e reprodutiva, somos até referência na África Subsaariana, mas quando se trata da mulher com transtorno mental é como se ela não tivesse os mesmos direitos. O próprio Sistema de Saúde que embora trate da saúde sexual e reprodutiva não inclui a mulher com transtorno mental. (P5)

A comunicação entre os serviços de Atenção Primária, que atendem à saúde sexual e reprodutiva, e o serviço de Psiquiatria também foi apontada pelos participantes P3, P5, P7, P9, P10, P11, P12, P13, P15, P16, P17 como um dos fatores que favorece a fragmentação desse cuidado.

Não temos contrarreferência em saúde aqui. Eu faço um encaminhamento e depois não sabemos o que aconteceu. E se tratando de uma mulher com transtornos mentais, eu penso que a atenção deveria ser multi e interdisciplinar. Muitas vezes nós falhamos quando se trata de referenciar as pessoas. (P7)

O distanciamento entre a saúde sexual e reprodutiva e a Saúde Mental foi apontado pelos profissionais P2, P3, P4, P5, P6, P7, P9, P10, P12, P13, P14, P16, P17 como aspecto cuja origem remonta à formação acadêmica e que contribui para a dificuldade de articular esses campos de atuação e responder de forma integral à saúde dessa população específica. Os participantes P4, P7, P13, P15 apontaram que, mesmo na formação continuada promovida pelas estruturas de saúde, não ocorre à prática aproximar essas duas áreas.

Para ser sincero, acho que não estamos preparados para isso, talvez durante a nossa formação devesse ter uma matéria relacionada a isso, e para nós que trabalhamos no dia a dia também deveria ter capacitação... (P5)

O discurso apresentado pelos profissionais colocou em evidência a necessidade urgente de um trabalho conjunto com os profissionais de saúde, os serviços existentes, políticas vigentes e sociedade em geral, com foco na sensibilização das necessidades de saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental, a fim de disponibilizar uma assistência integrada a esse grupo de mulheres.

Discussão

Os resultados deste estudo sugerem que a percepção do profissional de saúde em relação à saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental pode estar intimamente associada à percepção que eles têm da Saúde Mental, afetando a prestação dos cuidados. A doença mental geralmente é vista como preditor de incapacidade e, assim sendo, as mulheres com transtorno mental são vistas como não capazes de realizar atividades da vida cotidiana, como o autocuidado, adesão ao tratamento, ser independente financeiramente, entre outros1212 Badu E, O´Brien AP, Mitchell R. An integrative review of potential enablers and barriers to accessing mental health services in Ghana. Health Res Policy Syst. 2018; 16:110. Doi: https://doi.org/10.1186/s12961-018-0382-1.
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A Saúde Mental em Cabo Verde é uma área que carece de maior visibilidade e investimentos quer no nível de infraestruturas quer na capacitação de recursos humanos e documentos oficiais com diretrizes atualizadas para regular o cuidado. Os estigmas vigentes e culturalmente sustentados podem ser identificados nos serviços de saúde, o que pode estar dificultando a inclusão da mulher com transtorno mental nos serviços de saúde de AP que atendem à saúde sexual e reprodutiva.

Neste estudo, essa visão se manifesta em expressões culturais que caracterizam a mulher com transtorno mental como agressiva, negligente, incompetente, imprevisível, levando a uma rotulagem de incapacidade para responder à sua saúde sexual e reprodutiva. Acrescentando a esses, a negação dos desejos sexuais das mulheres com deficiências constitui estereótipos presentes nos participantes, em um discurso e em atitudes que acabam negligenciando suas necessidades de saúde sexual e reprodutiva1313 Rugoho T, Maphosa F. Challenges faced by women with disabilities in accessing sexual and reproductive health in Zimbabwe: the case of Chitungwiza town. Afr J Disabil. 2017; 6:252. Doi: https://doi.org/10.4102/ajod.v6i0.252.
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Apesar de apresentarem consciência da probabilidade de as mulheres com transtorno mental sofrerem abuso sexual, o discurso dos participantes não revelou ações preventivas ou outros com ênfase na sua segurança, e sim uma preocupação com a gravidez que representa sobrecarga para a família. Faz-se importante implementar ações que protejam seja do estupro, da agressão sexual fisicamente violenta seja do controle reprodutivo coercivo1414 Tarzia L, Thuraisingam S, Novy K, Valpied J, Quake R, Hegarty K. Exploring the relationships between sexual violence, mental health and perpetrator identity: a cross-sectional Australian primary care study. BMC Public Health. 2018; 18:1410. Doi: https://doi.org/10.1186/s12889-018-6303-y.
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Embora se entenda a preocupação dos participantes com a gravidez das mulheres com transtorno mental, principalmente com as famílias que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o estudo chama a atenção para a visão reducionista da saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres, tendo maior ênfase o controle da natalidade. Essa prática constituiu omissão dos cuidados integrais a essas mulheres e negligência com seus direitos, uma vez que o cuidado com a prevenção da gravidez não resolve a situação de vulnerabilidade a que possam estar expostas.

O discurso dos participantes é sustentado por uma visão que não reconhece as competências da mulher com transtorno mental. Assim sendo, recorrem a fatores econômicos, políticos, familiares, educacionais e culturais para sustentar a forma como a saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres é assistida em Cabo Verde. Embora se reconheça a influência desses fatores no cuidado, aqui se chama a atenção para o fato de recorrer a eles para justificar uma omissão ou a fragmentação do cuidado dispensado a essas mulheres.

Desfrutar da saúde sexual e reprodutiva para qualquer pessoa está intimamente relacionado à salvaguarda dos direitos humanos básicos, nomeadamente a não discriminação, a privacidade, a liberdade da violência e coerção, informação e acesso aos serviços de saúde11 Alarcão V, Stefanovska-Petkovska M, Virgolino A, Santos O, Ribeiro S, Costa A, et al. Fertility, Migration and Acculturation (FEMINA): a research protocol for studying intersectional sexual and reproductive health inequalities. Reprod Health. 2019; 16:140. Doi: https://doi.org/10.1186/s12978-019-0795-5.
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,22 Pizzarossa LB, Perehudoff K. Global survey of national constitutions: mapping constitutional commitments to sexual and reproductive health and rights. Health Hum Rights. 2017; 19(2):279-93.. As mulheres com transtorno mental enquadram-se nos grupos mais vulneráveis e passíveis de ter os seus direitos negados, que pode ser explicado por fatores com influência cultural, como os estigmas, a discriminação e a exclusão social, o que acaba comprometendo a qualidade dos cuidados1515 Keet R, Mahon MV, Shields-Zeeman L, Ruud T, Weeghel JV, Bahler M. Recovery for all in the community; position paper on principles and key elements of community-based mental health care. BMC Psychiatry. 2019; 19:174. Doi: https://doi.org/10.1186/s12888-019-2162-z.
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Embora, no contexto do estudo, tenham sido adotadas diretrizes internacionais que salvaguardam os direitos humanos, sexuais e reprodutivos, os cuidados dispensados mostraram uma discrepância entre a teoria e a prática assistencial, tendo a cultura forte interferência na oferta de um cuidado integral a essas mulheres. A adoção dessas diretrizes e convenções internacionais pode não ser suficientemente válida para alcançar as metas presentes nessas documentações se não houver um trabalho que prime pela garantia dos direitos às populações mais vulneráveis22 Pizzarossa LB, Perehudoff K. Global survey of national constitutions: mapping constitutional commitments to sexual and reproductive health and rights. Health Hum Rights. 2017; 19(2):279-93.,1616 Bekker LG, Alleyne G, Baral S, Cepeda J, Daskalakis D, Dowdy D. Advancing global health and strengthening the HIV response in the era of the Sustainable Development Goals: the International AIDS Society-Lancet Commission. Lancet. 2018; 392(10144):312-58. Doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)31070-5.
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A acomodação e/ou negociação de cuidados culturais permite atividades assistenciais, facilitadoras ou criativas, as quais definem ações ou decisões de cuidados que ajudam a adaptar ou negociar com outros os cuidados culturalmente congruentes, seguros e eficazes para sua saúde88 Leininger MM. Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: Wiley; 1991.. O presente estudo aponta uma dificuldade, por parte dos participantes, de negociar o cuidado e promover a capacitação da mulher com transtorno mental para cuidar da sua saúde sexual e reprodutiva devido aos estigmas que anulam as suas capacidades e competências.

Esse pode ser considerado um ponto crítico ao considerar que Leininger postula a oferta de um cuidado que tenha na base o relacionamento enfermeiro-cliente, estabelecido com o objetivo de criar novo estilo de vida e cuidado para a saúde, recorrendo à acomodação e/ou à negociação de cuidados culturais como meio de atingir esses objetivos88 Leininger MM. Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: Wiley; 1991.. A dificuldade em negociar os cuidados tendo por base estigmas que anulam as competências das mulheres com transtorno mental pode levar a um cuidado que não considere sua autonomia como sujeita do cuidado e sim responda às expectativas dos profissionais.

Na prática assistencial, a discriminação das capacidades da mulher com transtorno mental ficou marcante nos resultados, sugerindo que a orientação dos profissionais está voltada ao controle da natalidade, com uso de métodos contraceptivos de longo prazo ou definitivos, o que insinua que, tendo garantido a não procriação, fica uma aparente falha na saúde sexual dessas mulheres no que se refere a infecções sexualmente transmissíveis e HIV, conferindo uma preocupação com a vulnerabilidade e a saúde dessas mulheres.

Das declarações dos participantes, pode-se deduzir um cuidado que dissocia a saúde sexual da saúde reprodutiva, e esses dois eixos da Saúde Mental. Os resultados deixam transparecer que a maior dificuldade não é o cuidado da saúde sexual e reprodutiva, mas a presença da doença mental. Um estudo desenvolvido na Austrália mostrou certo despreparo dos profissionais de saúde ao lidar com a saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental, sugerindo que, em face de um cuidado voltado ao modelo que se concentra nos sintomas biológicos da doença mental, sua saúde sexual e reprodutiva pode ser negligenciada1717 O´Dwyer CA, Tarzia L, Fernbacher S, Hegarty K. Health professionals’ experiences of providing care for women survivors of sexual violence in psychiatric inpatient units. BMC Health Serv Res. 2019; 19:839. Doi: https://doi.org/10.1186/s12913-019-4683-z.
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Esse resultado sugere que a percepção negativa da saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental gera certa invisibilidade das suas competências, o que leva os profissionais de saúde a atitudes fragmentadoras e pouco inclusivas, aumentando as dificuldades que essas mulheres possam encontrar para satisfazer suas necessidades de saúde. Nesse sentido, identificou-se uma urgência de investir na capacitação e na reciclagem dos profissionais de saúde, em uma ação que permita que rompam com o cuidado baseado em estigmas em relação à Saúde Mental, promovendo a saúde sexual e reprodutiva dessas mulheres. Aqui se reconhece que a educação continuada sozinha não será suficiente, pelo que também seriam pertinentes ações que visam sensibilizar os profissionais em relação a sua visão de mundo sobre o problema.

A dissociação da saúde sexual e reprodutiva da Saúde Mental ficou marcante no discurso dos participantes, sugerindo que também faz parte da organização dos serviços de saúde, com uma fraca comunicação entre os serviços de Atenção Primária, que prestam os cuidados a saúde sexual e reprodutiva, e os de Psiquiatria. Processos frágeis em termos de referência entre serviços de saúde podem comprometer a qualidade dos cuidados dispensados à saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtornos mentais, tanto em cuidados preventivos como especializados, constituindo-se em omissão de cuidados fundamentais1818 Miyoshi NSB, Azevedo-Marques JM, Alves D, Azevedo-Marques JM. An eHealth(eHealth-Interop): development of an interoperability platform for mental care integration. JMIR Ment Health. 2018; 5(4):e10129..

A garantia de um cuidado integral à saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental mostrou-se neste estudo como um desafio para a universalidade dos cuidados e para responder às metas preconizadas em documentos internacionais como Cipd, Cedesc, CDPD, ODS, que apelam para o cumprimento dos direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres. Corroborando, um estudo desenvolvido em Uganda aponta que o cuidado integral e centrado na pessoa indica a capacidade de resposta de um sistema de saúde, e que ter o conhecimento prévio sobre os aspetos interpessoais, culturais, psicossociais que influenciam nos cuidados de saúde ajuda na qualidade do serviço prestado e na consecução das metas internacionais1919 Waweru E, Sarkar NDP, Ssengooba F, Grue´nais M, Broerse J, Criel b. Stakeholder perceptions on patient-centered care at primary health care level in rural eastern Uganda: a qualitativeinquiry. PLoS One. 2019; 14(8):e0221649. Doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0221649.
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As ações profissionais, facilitadoras e decisões mútuas podem ajudar a proporcionar um cuidado cultural que atenda às suas necessidades, contribuindo também para a desmistificação de ideias preconceituosas enraizadas na cultura cabo-verdiana que nega à mulher com transtorno mental a capacidade e o direito de gozar de uma vida sexual prazerosa e livre de riscos; de gerir uma relação afetiva; de exercer a maternidade e a capacidade de decisão sobre esses aspetos.

Uma mudança na prática dos cuidados, com reconhecimento dessas mulheres como alvo de cuidado à saúde sexual e reprodutiva, poderia se apresentar no contexto do estudo como o início de uma mudança merecida, que resgate e preserve seus direitos humanos, sexuais e reprodutivos, necessários para garantir a sua dignidade humana.

Contribuição para a prática assistencial e Política Pública

Partindo de nosso conhecimento, este é o primeiro estudo que aborda a questão da assistência à saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno mental em São Vicente/Cabo Verde. Por conseguinte, pensamos que o estudo poderá contribuir com a conscientização dos profissionais de saúde na sua prática assistencial e das entidades competentes, no sentido de instigar a revisão das políticas públicas, assegurando, desse modo, os direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres.

Limitações do estudo

Este estudo foi desenvolvido com dados da ilha de São Vicente, o que não pode ser generalizado para todo o país para fins de comparação. Assim, recomenda-se a ampliação de novos estudos com essa temática envolvendo as restantes ilhas de Cabo Verde.

Considerações finais

Os resultados do estudo aproximam-se da literatura predominante sobre o tema, acrescentando que no contexto cabo-verdiano a visão de mundo partilhada pelos participantes recorre aos fatores familiares e sociais, culturais, políticos e legais, econômicos e educacionais para justificar a assistência dispensada à saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtornos mentais. Os dados sugerem que na realidade é a visão de mundo estigmatizante da doença mental que compromete a saúde integral e o bem-estar dessas mulheres, fragmentando a saúde sexual e reprodutiva da Saúde Mental. Uma maior horizontalidade faz-se necessária nesses três eixos.

O estudo aponta as iniquidades e lacunas na cobertura universal de saúde, evidenciando certa negligência nos direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres, consagrados em documentos internacionais. Mais do que saúde pública, garantir os cuidados integrais à mulher com transtorno mental constitui um direito. As iniquidades em saúde, ações que não foram efetivas para garantir às populações mais vulneráveis o pleno direito aos cuidados de saúde, podem ter estado na base da não consecução do objetivo “Saúde para todos no ano 2000”.

Agradecimentos

A todos os envolvidos no desenvolvimento deste estudo.

  • Financiamento

    Financiamento concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001- Bolsa de Mestrado DS atribuído à Daniela Claudia Silva Fortes.
  • Fortes DCS, Silva MRS, Fonseca KSG, Silva ASB, Carvalho EMFB. Saúde sexual e reprodutiva das mulheres com transtorno mental: percepção dos profissionais de saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200659 https://doi.org/10.1590/interface.200659

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2020
  • Aceito
    10 Jul 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br