Olhares sobre a assistência em Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde em municípios de pequeno porte: emergência de práticas inovadoras

Miradas sobre la asistencia en Salud Mental en la Atención Primaria de la Salud en municipios de pequeño porte: emergencia de prácticas innovadoras

Antonio Moacir de Jesus Lima Eli Iola Gurgel Andrade Rosangela Durso Perillo Alaneir de Fátima dos Santos Sobre os autores

Resumos

Ações de Saúde Mental na Atenção Primária em Saúde (APS) constituem um desafio no âmbito da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). Objetivou-se a compreensão das práticas realizadas com pessoas em condições de sofrimento mental na APS em municípios de pequeno porte. O estudo qualitativo com utilização da etnometodologia envolveu gestores e profissionais da APS em municípios do Vale do Jequitinhonha. Os resultados permitiram sistematizar ações da APS: desvendar o mundo dos transtornos mentais intramuros pela visita domiciliar e a presença na escola; transitar entre universos distintos, de formatos tradicionais até os problemas de Saúde Mental advindos das redes sociais; expansão de abordagem e apoio aos pacientes de Saúde Mental e percepção pela APS da transferência de estigmas operando na rede de Saúde Mental. Conclui-se que a APS faz parte do projeto de RPB, também de forma humanizada, aprofundando-a.

Palavras-chave
Saúde sexual; Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Reforma Psiquiátrica Brasileira


Acciones de Salud Mental en la Atención Primaria de la Salud (APS) constituyen un desafío en el ámbito de la Reforma Psiquiátrica Brasileña (RPB). El objetivo fue la compresión de las prácticas realizadas a las personas en condiciones de sufrimiento mental en la APS en municipios de pequeño porte. Estudio cualitativo con utilización de la etnometodología que envolvió a gestores y profesionales de la APS en municipios del Vale de Jequitinhonha. Los resultados permitieron sistematizar acciones de la APS: desvendar el mundo de los trastornos mentales intramuros, por la visita domiciliaria y de la presencia en la escuela; transitar entre universos distintos, de formatos tradicionales hasta los problemas de salud mental provenientes de las redes sociales; expansión de abordaje y apoyo a los pacientes de salud mental y percepción por parte de la APS de la transferencia de estigmas operando en la red de salud mental. Se concluyó que la APS forma parte del proyecto de RPB, también de forma humanizada y profundizándola.

Palabras clave
Salud mental; Atención primaria de la salud; Estrategia salud de la familia; Reforma psiquiátrica brasileña


Introdução

Questões relacionadas à Saúde Mental (SM) passaram a constituir um problema de saúde mundial, atingindo aproximadamente 12% da carga total de doenças. Apenas os transtornos mentais comuns atingem um terço da população, apresentando-se como uma das morbidades psíquicas mais prevalentes no mundo11 Knudsen AK, Harvey SB, Mykletun A, Overland S. Common mental disorders and long-term sickness absence in a general working population. The Hordaland Health Study. Acta Psychiatr Scand. 2013; 127(4):287-97. Doi: https://doi.org/10.1111/j.1600-0447.2012.01902.x.
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. No Brasil, estima-se que essa prevalência varie entre 29,6% e 47,4%22 Patel V, Saxena S, Lund C, Thornicroft G, Baingana F, Bolton P, et al. Comissão Lancet sobre saúde mental global e desenvolvimento sustentável. Lancet. 2018; 392(10157):1553-98. Doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)31612-X.
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,33 Fernandes L, Basílio N, Figueira S, Nunes JM. Saúde mental em medicina geral familiar – obstáculos e expectativas percecionados pelos Médicos de Família. Cienc Saude Colet. 2017; 22(3):797-805..

Considerando esses dados, questiona-se: como os serviços de saúde podem lidar com essa prevalência e construir uma nova realidade? Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta razões para se integrar a assistência à SM na Atenção Primária à Saúde (APS): a carga de perturbações mentais é grande; os problemas de saúde mentais e físicos estão interligados; o déficit de tratamento em relação às perturbações mentais é enorme. O documento também reforça que cuidados primários para SM ampliam o acesso, promovem o respeito pelos direitos humanos, são acessíveis em relação ao custo-benefício e geram bons resultados em termos de saúde44 Organización Mundial de la Salud. mhGAP. Programa de acción para superar las brechas en salud Mental. Mejora y ampliación de la atención de los trastornos mentales, neurológicos y por abuso de sustancias. Genebra: OMS; 2009.. Ou seja, essa demanda deve ser absorvida pelos profissionais das equipes da APS, com ações de promoção de SM, prevenção e cuidados dos transtornos mentais de forma individual e coletiva.

No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, com o propósito de reformulação da assistência psiquiátrica, caracterizou-se como celeiro de possibilidades históricas e sociais, com atividades e elaboração de textos legais que legitimam todo o processo político, ético, institucional e científico denominado Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). A mudança estabelecida pela RPB sai do foco do cuidado hospitalar, centrado no modelo biomédico, para o cuidado baseado na atenção psicossocial prestado ao usuário na comunidade55 Amarante P, Nunes MO. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):2067-74..

Para tanto, o desafio que se coloca é habitar os circuitos de trocas nos territórios da sociedade em vez de criar circuitos paralelos e protegidos de vida para seus usuários. Isso leva o desafio da inserção de ações de SM na APS para além do Sistema Único de Saúde (SUS), já que, para ser realizado, ele implica a abertura da sociedade para a sua própria diversidade66 Portela GZ. Atenção Primária à Saúde: um ensaio sobre conceitos aplicados aos estudos nacionais. Physis. 2017; 27(2):255-76..

Estudos realizados na Noruega77 Fredheim T, Danbolt LJ, Haavet OR, Kjønsberg K, Lien L. Collaboration between general practitioners and mental health care professionals: a qualitative study. Int J Ment Health Syst. 2011; 5:13. Doi: https://doi.org/10.1186/1752-4458-5-13.
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e no Brasil88 Souza MLP. Registro de distúrbios mentais no Sistema de Informação da Atenção Básica do Brasil. Epidemiol Serv Saude. 2016; 25(2):405-10. indicam que, apesar das diversas iniciativas inovadoras observadas na atenção às pessoas em condições de sofrimento psíquico na APS, problemas relativos à organização do processo de trabalho, à formação profissional deficitária, à precariedade na estruturação da rede de serviços, à infraestrutura e aos recursos humanos incipientes dificultam a inserção de ações de SM na APS. Essas fragilidades constituem barreiras para prestação do cuidado na APS: reprodução do modelo asilar e biomédico; ausência de foco nos usuários e na família; duplicidade de modelos assistenciais; encaminhamentos desnecessários; ausência de corresponsabilização.

No entanto, estudos apontam que práticas inovadoras são vivenciadas na assistência em SM na APS brasileira. Ampla revisão mostrou que, em Salvador, a internação domiciliar é uma realidade possível. Em Ribeirão Preto, as visitas domiciliares aparecem no sentido de minimizar a incidência da reinternação psiquiátrica por meio do acompanhamento dos egressos, de orientações aos familiares e esforços para evitar a medicalização do sofrimento psíquico. Em Cuiabá, o grupo terapêutico aparece como forma de integrar a SM na APS99 Correia VR, Barros S, Colvero LA. Saúde mental na atenção básica: prática da equipe de saúde da família. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(6):1501-6. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342011000600032.
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. Em São Paulo, observou-se que as visitas domiciliares e a escuta qualificada atuam como facilitadoras do processo de identificação e acolhimento das necessidades dos usuários em sofrimento psíquico1010 Frateschi MS, Cardoso CL. Práticas em saúde mental na atenção primária à saúde. Psico (Porto Alegre). 2016; 47(2):159-68..

Outros estudos nacionais, desenvolvidos em São Paulo, Rio Grande do Norte, Paraíba e Região Sul, evidenciaram a importância das práticas grupais, como Terapia Comunitária, Grupos e Oficinas de SM na APS. Destacou-se a potência contida na possibilidade de as pessoas compartilharem as situações vivenciadas, indicando que o fortalecimento dos vínculos e laços de confiança entre os usuários e profissionais dos serviços pode se constituir como importante ferramenta de promoção e preservação da SM99 Correia VR, Barros S, Colvero LA. Saúde mental na atenção básica: prática da equipe de saúde da família. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(6):1501-6. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342011000600032.
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Ressalta-se, ainda, estudo desenvolvido na cidade de São Paulo, no qual observou-se a estratégia de reuniões de equipes com discussão de casos, acolhimento efetivo e elaboração do Projeto Terapêutico Singular como forma de capacitar as equipes para o enfrentamento das dificuldades em inserir práticas de SM na APS1111 Delfini PSS, Sato MK, Antoneli PP, Guimarães POS. Parceria entre CAPS e PSF: o desafio da construção de um novo saber. Cienc Saude Colet. 2009; 14 Supl 1:1483-92..

No cenário internacional, as experiências de ações de SM no nível primário são evidenciadas por estudos desenvolvidos na Inglaterra, na Austrália, na Finlândia e nos Estados Unidos da América. Os resultados desses trabalhos apontam algumas evidências: a discussão conjunta de casos como a principal forma de articulação entre os serviços; a associação entre a melhoria dos atendimentos e a possibilidade de compartilhamento de saberes1212 Byng R, Norman I, Redfern S, Jones R. Exposing the key functions of a complex intervention for shared care in mental health: case study of a process evaluation. BMC Health Serv Res. 2008; 8:274. Doi: http://dx.doi.org/10.1186/1472-6963-8-274.
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; a redução significativa dos encaminhamentos, quando o clínico geral é o profissional de referência1313 Perkins D, Hamilton M, Saurman E, Luland T, Alpren C, Lyle D. GP Clinic: promoting access to primary health care for mental health service clientes. Aust J Rural Health. 2010; 18(6):217-22. Doi: https://doi.org/10.1111/j.1440-1584.2010.01159.x.
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; a melhora significativa na capacidade de atender às necessidades dos usuários com realização de sessões de psicoterapia partilhada1414 Laukkanen E, Hintikka JJ, Kylmä J, Kekkonen V, Marttunen M. A brief intervention is sufficient for many adolescents seeking help from low threshold adolescent psychiatric services. BMC Health Serv Res. 2010; 10:261. Doi: https://doi.org/10.1186/1472-6963-10-261.
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; a continuidade do tratamento nos serviços primários que realizam parcerias com o setor secundário e altas taxas de adesão1515 Kessler R. Mental health care treatment initiation when mental health services are incorporated into primary care practice. J Am Board Fam Med. 2012; 25(2):255-9. Doi: https://doi.org/10.3122/jabfm.2012.02.100125.
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Essas práticas voltadas para a SM, no contexto da APS brasileira e da internacional, contribuem para aperfeiçoar o atendimento às pessoas acometidas por sofrimento psíquico com a inserção de ações que inovam e qualificam a APS.

Diante dessas possibilidades, este estudo teve como objetivo compreender as práticas que estão sendo realizadas na APS para as pessoas em condições de sofrimento psíquico em municípios de pequeno porte. Evidenciou-se a seguinte questão: quais práticas são desenvolvidas no cotidiano da APS de municípios de pequeno porte para atenção às pessoas em sofrimento psíquico?

Método

Este estudo qualitativo é baseado na etnometodologia, entendida como o estudo empírico de práticas, procedimentos, métodos e conhecimentos de senso comum que os atores sociais usam diariamente para entender e, ao mesmo tempo, produzir os ambientes sociais em que participam1616 Bispo MS, Godoy AS. A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. Rev Adm Contemp. 2012; 16(5):684-704. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004.
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. A escolha da etnometodologia se deu pela pretensão de conhecer as práticas de SM de equipes da ESF realizadas em municípios de pequeno porte.

Nessa vertente metodológica, os membros de um grupo fazem uso naturalizado da linguagem nos cenários cotidianos que compõem o mundo social, o que implica que as atividades práticas e interações sociais ocorrem em um horizonte comum de entendimento. Para apreensão dessas dimensões na realidade da SM, foram utilizadas entrevistas individuais de gestores e coordenadores de APS e grupos de discussão com os profissionais das equipes de APS, com base em um roteiro com a pergunta norteadora: comente como são organizadas e desenvolvidas as ações de SM em sua unidade.

O estudo foi realizado de julho a novembro de 2019, em municípios do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Os municípios receberam uma numeração de 01 a 05, de acordo com a realização cronológica das entrevistas e dos grupos de discussão, apresentando, entre outras, as seguintes características:

Quadro 1
Características dos municípios do estudo

Foram incluídos todos os municípios que aceitaram o convite para participar do estudo. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para delimitação da amostra, foi utilizado o critério de saturação teórica dos dados, ou seja, quando nenhum novo elemento foi encontrado e o objetivo da pesquisa foi atingido1717 Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Saturação teórica em pesquisa qualitativa: relato de experiência na entrevista com escolares. Rev Bras Enferm. 2018; 71(1):228-33. Doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0616.
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Foram realizadas 11 entrevistas com gestores e coordenadores da APS e dez Grupos de Discussão com equipes de APS, totalizando 85 participantes. O número de participantes dos grupos de discussão variou entre seis e doze. O tempo médio de duração dos grupos foi de uma hora. Na realização das entrevistas, o tempo médio de duração foi de, aproximadamente, trinta minutos.

As entrevistas individuais e as discussões em grupo foram transcritas na íntegra, com cuidado para se preservar toda a linguagem, inclusive o tom coloquial. Em seguida, foram realizadas escutas repetidas dos áudios, bem como leituras exaustivas dos discursos transcritos.

A análise dos dados partiu do pressuposto da etnometodologia. Em lugar de formular a hipótese de que os atores seguem as regras, o interesse da etnometodologia consiste em estudar os métodos empregados para atualizar ditas regras, isso as faz observáveis e descritivas1515 Kessler R. Mental health care treatment initiation when mental health services are incorporated into primary care practice. J Am Board Fam Med. 2012; 25(2):255-9. Doi: https://doi.org/10.3122/jabfm.2012.02.100125.
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. As atividades práticas dos membros, em suas atividades concretas, revelam as regras e os procedimentos. Assim, o foco deste estudo foi se apropriar da implementação das ações de SM na APS. Existe um arcabouço conceitual elaborado pela Reforma Sanitária Brasileira (RSB) que localiza qual é o papel da APS nas ações de saúde. Pretendeu-se apreender como a APS se relaciona na prática com esse processo. Para isso, procurou-se organizar a análise do material coletado com base em três conceitos importantes da etnometodologia: o ator social, a ordem social e a ação social1717 Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Saturação teórica em pesquisa qualitativa: relato de experiência na entrevista com escolares. Rev Bras Enferm. 2018; 71(1):228-33. Doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0616.
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Quanto ao ator social, partiu-se da concepção de que os atores possuem um conjunto de recursos e procedimentos que lhes permite atuar em seu mundo social. Essas categorizações e os métodos utilizados para enfrentar diferentes situações não são discutidos ou produzem reflexões, mas operam em um nível tácito e rotineiro1818 Martínez-Guzmán A, Stecher A, Íñiguez-Rueda L. Aportes de la psicología discursiva a la investigación cualitativa en psicología social: análisis de su herencia etnometodológica. Psicol USP. 2016; 27(3):510-20. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-656420150046.
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Nesse aspecto, procurou-se identificar como os diversos trabalhadores das equipes de APS atuam em seu cotidiano para se relacionar com o universo das ações produzidas no âmbito da SM. Procurou-se identificar quais conhecimentos e procedimentos, ou seja, quais recursos estão sendo utilizados no cotidiano da produção de ações de SM que lhes permitem potencializar suas ações.

Quanto à ordem social, na etnometodologia ela é percebida no âmbito da prática dos membros que participam da sociedade e não de um conjunto de fatos ou instituições que impõe e constrange os atores. Assim, a realidade social é entendida como uma estrutura de realizações contingentes de práticas organizacionais comuns1919 Rawls AW. Os estudos de etnometodologia de Garfinkel: uma investigação sobre os alicerces morais da vida pública moderna. Soc Estado. 2018; 33(2):443-64. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/s0102-699220183302008.
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A etnometodologia trabalha com dois conceitos fundamentais para abordar a realidade social como produção situada, determinada pelos vários métodos (etno) – recursos, práticas, procedimentos, conhecimentos – que as pessoas empregam para produzir a ordem social em que habitam1616 Bispo MS, Godoy AS. A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. Rev Adm Contemp. 2012; 16(5):684-704. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004.
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O primeiro conceito é a indexicalidade, que se refere às expressões empregadas pelos atores sociais nos processos interativos que possuem significado no momento da interação e no contexto local em que são produzidas. Assim, a etnometodologia estuda a linguagem, dando uma atenção especial aos novos significados que são atribuídos a determinadas palavras ao longo dos anos. Além disso, a indexicalidade entende que esses novos significados atribuídos a essas palavras se devem à interação que os indivíduos estabelecem1818 Martínez-Guzmán A, Stecher A, Íñiguez-Rueda L. Aportes de la psicología discursiva a la investigación cualitativa en psicología social: análisis de su herencia etnometodológica. Psicol USP. 2016; 27(3):510-20. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-656420150046.
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O segundo conceito é quanto à reflexividade, a qual pressupõe que ações desenvolvidas pelos indivíduos são provocadas pela reflexão que é feita por meio das ações realizadas por outrem e das realizadas pelo próprio indivíduo. Assim, as reflexões feitas pelos indivíduos são instintivas, ou seja, a pessoa as realiza sem que haja a percepção ou a vontade deliberada, são espontâneas. Tal reflexividade faz que os indivíduos se baseiem nela para gerar seus próprios atos1616 Bispo MS, Godoy AS. A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. Rev Adm Contemp. 2012; 16(5):684-704. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004.
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Procurou-se colocar o foco nas várias modalidades de ação e raciocínio prático que os participantes mobilizam para reconhecer, inserir, produzir e sustentar suas ações de SM. Tentou-se, também, identificar as expressões e os contextos aos quais podem ser relacionados novos significados para as ações de SM na realidade da APS.

Quanto à ação social, a etnometodologia substitui a questão do porquê de uma ação, instalando a questão sobre como emerge um campo específico de ações que contém sua própria inteligibilidade1616 Bispo MS, Godoy AS. A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. Rev Adm Contemp. 2012; 16(5):684-704. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004.
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; também como é organizado e como diferentes sujeitos se articulam.

Procurou-se indagar como se configuram, na prática, as concepções de SM presentes no ideário da RSB e como se expressam na realidade da APS e nas equipes analisadas. Ou seja, como esses espaços se organizam na produção cotidiana do cuidado em saúde e em SM? Novas normas estarão emergindo? Como as normas se expressam no cotidiano?

Foi com base em tais delineamentos que o material coletado foi analisado. Este estudo obedece às normas do Conselho Nacional de Saúde, conforme Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob Parecer n. 28804.

Resultados

Vários aspectos emergiram das práticas em SM que estão sendo realizadas pela APS nos municípios analisados, demonstrando sua complexidade. Procurou-se, a seguir, sistematizar tais aspectos, categorizando-os e descrevendo-os por meio da fala das equipes e coordenadores da APS.

Desvendando o mundo dos transtornos mentais intramuros: o profundo significado da visita domiciliar e da presença na escola

Na identificação de problemas de SM na APS nos municípios mencionados, novos mundos são desvendados pela prática das equipes. O domicílio e a escola emergem como um campo importante de percepção de problemas na área da SM. A APS, operando nos territórios, domicílios e na escola, descortina problemas e potencializa o trabalho das equipes.

A presença do agente comunitário de saúde (ACS) permite que a família o avise sobre os problemas enfrentados.

[...] na casa, o familiar alerta pra gente que aquela pessoa tá daquele jeito, então entramos em contato com a equipe para solucionar o problema. (GD 05)

Novos mundos também são desvendados pela percepção do ACS no domicílio.

[...] ainda hoje, no município, principalmente por ser do interior, existem pacientes de SM que os familiares isolam, discriminam, é aquele que fica no quartinho lá no fundo, que recebe a comida pela grade. A gente vê uma desestrutura dos familiares [...] eles precisam muito de ajuda. (GD 08)

A presença nas escolas, por meio de práticas compartilhadas, leva odontólogos a ver problemas.

[...] fui conversar com a diretora, porque estive com uma criança lá e percebi ela muito retraída mesmo, ela não fala, só os lábios que se movimentam e aí eu falei: “ô querida, vamos ver o que podemos fazer para essa criança”. (GD 01)

[...] a menininha estava com comportamento diferente. [...] a professora fez um relatório e passou pra mim e passei para o psicólogo que vai marcar a consulta. (GD 02)

Atenção Primária à Saúde transitando entre universos distintos: as novas dimensões que afetam a Saúde Mental advindas das redes sociais

Os profissionais das equipes relatam, também, a ampliação dos espectros dos problemas vivenciados na APS advindos de contatos com as redes sociais. A presença na escola permite a aproximação com essas novas temáticas, que passam a compor o espectro de atuação da APS.

[...] temos uma grande preocupação, inclusive no Programa de Saúde na Escola, temos detectado muitos casos. Ontem tivemos uma reunião, foi falado que as redes sociais atrapalham muito a vida dos pacientes, que os meninos pegavam uma moda de se cortar. (GD 10)

[...] a questão do suicídio, problemas alimentares, bullyings. Tudo vem para gente cuidar. (GD 03)

Saúde Mental: expandindo o espectro de abordagem e apoios

A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) tem sido potencializada por processos de articulação envolvendo ações intersetoriais com o Conselho Tutelar, o Ministério Público e a Polícia Militar. Com a realização de reuniões mensais, as equipes da APS participam desse novo processo em reuniões com o Nasf-AB e Caps.

[...] reúne um membro de cada equipe e a gente leva os casos dos pacientes mais críticos, com problemas mentais, adolescentes grávidas, usuários de drogas. Os pacientes dizem que a gente não consegue ter muita resolução, aí temos ajuda dos outros setores, social, educação, Conselho Tutelar, Polícia, em muitas vezes, temos muita parceria. (C 01)

Esse processo é de mão dupla – tanto essa rede de apoio traz os casos como as equipes os levam:

[...] pego os casos, falo para o enfermeiro: “vamos colocar na rede, porque a gente não dá conta de resolver, não superamos essa situação e aí nós vamos pra reunião”. (G 04)

As equipes da APS se referem à importância decisiva do papel do Caps na Raps. Salientam, ainda, a articulação com os Caps, que são parceiros para monitorar os pacientes faltosos, realizam reuniões com as equipes e fazem contrarreferência das pessoas com sintomas leves.

[...] eles são atendidos lá e cá. Mesmo porque, no Caps, o psiquiatra não se encontra todos os dias. (C 02)

[...] gostaria de ressaltar que o Caps foi um dos maiores ganhos. Eles fazem busca ativa e essa parceria com a gente, pra tá verificando o que está acontecendo. Os casos leves, eles devolvem para APS e que estão controlados e não necessitam mais daquele tratamento intenso do Caps. Aí, eles vêm através dessa contrarreferência. (C 08)

[...] encaminhamos para o Caps. Agora eles tão querendo mais, pedem que sejam via encaminhamento da unidade, pra gente acompanhar aqui. O paciente fica lá um tempo, e, depois que tiver controlado, recebemos a contrarreferência, eles devolvem e nós acompanhamos. Caso desestabilize, retornamos para o Caps para reavaliação. (C 04)

O Nasf dá suporte e também ajuda muito em casos que não são tão graves. (C 06)

Agente comunitário de saúde em ação na Saúde Mental: as percepções cotidianas propiciando cuidados de qualidade

O papel importante dos ACS não se restringe a ajudar a desvendar novos casos. Eles também, muitas vezes, conseguem criar vínculos de forma mais duradoura, monitorando os pacientes e mantendo a equipe informada.

[...] quando o agente chega e fala: “ôh, fulano, eu estou precisando disso, fulano, hoje não acordou bem, está agitada, está nervosa”. Querendo ou não, quem passa a maior demanda para nós é o agente, elas fazem esse acolhimento. (GD 09)

[...] na minha microárea, tinha um jovem que perdeu totalmente o prazer de viver, ficou com problema mental. Aí, a mãe já não sabia mais o que fazer... eu falei: “o que é que eu vou fazer?” Ele ficou isolado num quarto, ninguém tinha coragem de ir, de entrar lá. Eu pedi força pra Deus e fui ajudar. Aí, ele me escutou. Hoje, ele está ótimo e eu fico de olho na medicação dele. (GD 07)

[...] nas visitas domiciliares, nota ou percebe alguma alteração do comportamento ou da fala. Ou alguma coisa que a mãe fala, o filho fala ou vem alguém e a gente chega e passa para a enfermeira. Marca uma consulta com o médico ou encaminha para o Caps, se precisar. (GD 04)

[...] nós também temos o enfrentamento de alguns pacientes que não querem ir ao Caps. [...] uma paciente falou: “eu não vou”, e eu falei: “você vai”. Cria vínculo comigo, com o agente de saúde, mesmo ele sendo paciente psiquiátrico. (GD 06)

A transferência de estigmas operando na Rede de Atenção Psicossocial: “o Caps é lugar para doido”

O manejo cotidiano na área de SM, ainda pontuada por estigmas, impacta, de forma importante, as práticas das equipes da APS e as dificuldades de inserção da família no cuidado.

“[...] tem receio de falar. Diz: “ah, o Caps é lugar pra doido”. É uma pessoa que tem ansiedade, está se matando e uns que não aceitam. Até o tom de falar ele muda. É como se fosse proibido, “não vai não, porque se você for você é doido”, entende? (G 01)

[...] a própria família acaba estragando o nosso trabalho, porque a família é a base, se ela não está junto para ajudar a solucionar o problema, infelizmente nada é feito, a gente faz o nosso trabalho, mas não funciona, falta a família. (G 02)

Algumas atividades realizadas são voltadas para lidar com os estigmas.

[...] eu acho lindo aquilo que fazemos, acho que, ali, deixamos os pacientes expressarem os seus sentimentos, as famílias expressarem, porque vários profissionais e famílias começam a ter uma visão de que Caps não é para doido, entendeu? Que o Caps é uma referência. (GD 08)

O preconceito, não é do paciente, é a bagagem, é o que ele carrega e o que ele escuta e que vem. [...] ele não vai adquirir o preconceito porque alguém veio e falou pra ele, né? Culturalmente, nós temos essa história de que “você vai tomar remédio? Você é doido”. A pessoa carrega isso, e, na verdade, o que acontece? A Saúde Mental, ela é um tabu pra todo mundo. (C 06)

[...] quando fazemos a anamnese, ele já fala logo: “não tomo medicamento”. Ele só se considera uma pessoa normal se ele estiver sem medicação, é um preconceito dele próprio. Ele teve alta do Caps, mas falo você não teve alta da sua medicação. (G 04)

Atividades de promoção da saúde em vez de remédios

As equipes da APS relatam o esforço para que os pacientes de SM realizem atividades de promoção da saúde que estão ocorrendo em seus territórios.

[...] a gente tenta passar um pouco do conhecimento; às vezes conseguimos. Orientamos tomar chá em vez do remédio. A gente fala assim: “você já dormiu?”. No dia que você não dormiu, você toma, o dia que você conseguir dormir, aí você não toma e assim toma um dia sim e um dia não. [...] tem aula de crochê e bordado e indicamos para eles. (GD 09)

[...] a casinha que eles fazem costura e bordado. É a promoção da saúde, alguns deixaram mesmo a medicação, fazendo o crochezinho e as atividades físicas lá na pracinha. É bom para o corpo e para o mental deles também, aí deixam completamente a medicação. (GD 10)

Na nossa unidade, os grupos acontecem, regularmente, duas vezes por semana, caminhada, zumba, crossfit e grupo de muay thai. (GD 07)

O zelo operando no cotidiano da Atenção Primária à Saúde: o cuidado com a medicação em Saúde Mental

Os profissionais das equipes da APS relatam a necessidade de tratar pacientes da SM de forma especial, reconhecendo suas vivências e necessidades. Referiam a mudança na forma de organização do trabalho para atender, incluindo um cuidado especial com a medicação.

[...] quando chegam pacientes com alguma demanda de SM, aflito, agitado, organizamos para fazer o atendimento rápido, para não faltar medicação, porque sabemos que é um dos pilares do cuidado. (GD 01)

Nas visitas, pegamos as receitas, orientamos, perguntamos se tem dúvida em tomar seu medicamento. Se tiver, chamamos alguém da família, uma pessoa mais entendida, orientamos quais os horários certinhos. (GD 06)

É tão sacrificante o nosso trabalho. A gente sabe que a população é pequena, então tem noção de quem já faz, tem risco, as pessoas que já vêm de famílias agressivas, então a gente ajudando e correndo riscos. Diante de correr riscos, a gente também pede retorno deles, compromisso com a medicação. (GD 07)

Questões percebidas na Atenção Primária à Saúde no atendimento à Saúde Mental

Os profissionais, participantes da pesquisa, referem-se a problemas no atendimento à SM. Salientam aspectos, como a não realização de classificação de riscos e de registros, deixando essas atividades a cargo do Caps. Às vezes, possuem uma pasta com as informações enviadas e fazem o monitoramento com esse registro.

[...] identificamos um problema e encaminhamos ao Caps, lá tem classificação de risco que insere essa paciente ou retorna pra gente [...] normalmente, não é Caps, é ambulatório. Aí, a gente vai colocar para o psicólogo, tentando desenvolver ações com esse paciente “leve”, mas classificação do risco formalizada não existe. (GD 05)

Já fizemos buscas, os ACS já sabem, têm uma lista dos pacientes, quem precisa de acompanhamento. Mas, hoje, não temos nada específico para pacientes da SM. (GD 06)

Também são identificados como problemas os fatos de não trabalharem com redução de medicamentos, a abordagem de pacientes com dependência química e a não formalização de critérios mais detalhados de alta de pacientes do Caps.

[...] já foi sugerido para os profissionais do Nasf-AB criar um grupo, operacionalizar pra tentar reduzir esses benzodiazepínicos, os clonazepans da vida. É muita gente que toma e sabemos que a maioria nem necessita. A dependência química é complicada pra nós. (G 05)

[...] nem sempre os profissionais têm disponibilidade de tempo, logística, transporte, pra fazer tudo que um serviço de Saúde Mental deveria fazer. Hoje, tem altas que eu concordo e outras não. Não acho que o paciente tem que vir pronto e mastigado do serviço lá, mas acho que pacientes esquizofrênicos, com transtorno mental e que traz risco pra ele e para os demais, acho que eles deveriam ter superado esses casos, para só depois darem alta e devolver APS. (C 04)

Discussão

Os diversos mundos desvendados por gestores, coordenadores e trabalhadores das equipes da APS, no que se refere à SM em municípios de pequeno porte, apontam a importância de um modelo assistencial, em que as equipes se voltam para o território e reafirmam que a imersão nele propicia a integração da SM no setor primário de Atenção à Saúde, com a garantia de direitos e qualificação assistencial2020 Wenceslau LD, Ortega F. Mental health within primary health care and Global Mental Health: international perspectives and Brazilian context. Interface (Botucatu). 2015; 19(55):1121-32.,2121 Moliner J, Lopes SMB. Saúde mental na atenção básica: possibilidades para uma prática voltada para a ampliação e integralidade da saúde mental. Saude Soc. 2013; 22(4):1072-83.. Nos domicílios e nas escolas é descortinado o amplo espectro de problemas sobre o sofrimento mental com que a APS se depara. O estudo evidencia que o processo concebido no âmbito da RSB é aprofundado e se torna real nas práticas cotidianas das equipes da APS, permitindo a integralidade e a ampliação do cuidado para as pessoas em sofrimento mental2222 Souza AC, Amarante PD, Abrahão AL. Inclusion of mental health in primary health care: care strategy in the territory. Rev Bras Enferm. 2019; 72(6):1677-83. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0806.
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,2323 Viegas SMF, Penna CMM. As dimensões da integralidade no cuidado em saúde no cotidiano da Estratégia Saúde da Família no Vale do Jequitinhonha, MG, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(55):1089-100. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0275.
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A complexidade da Atenção à Saúde na APS é ampliada ao se deparar com as atividades na SM, que vão desde práticas seculares com os quartinhos e suas grades descobertas e abertas pelos ACS, acompanhamento sistemático de consultas e uso de medicações para os pacientes que necessitam, até a problemática atual de SM descortinada pela presença na escola e a influência das redes sociais, com dois grupos tendo crescimentos significativos: jovens na escola e mulheres jovens que se machucam. Entrevista com o filósofo Nicolas Rose2424 Carvalho SR, Andrade HS, Marçon L, Costa FD, Yasui S. Nosso “futuro psiquiátrico” e a (bio)política da Saúde Mental: diálogos com Nikolas Rose (Parte 4). Interface (Botucatu). 2020; 24:e190732. Doi: https://doi.org/10.1590/Interface.190732.
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e estudo realizado em Santa Catarina – Brasil2525 Peres GM. Limites e desafios da rede de atenção psicossocial na perspectiva dos trabalhadores de saúde mental. Cad Bras Saude Ment. 2018; 10(27):34-52. afirmam que os transtornos mentais têm permanecido consistentes nos últimos 20 anos. Ou seja, são novos os desafios e potenciais para a estruturação da assistência em SM na APS.

A APS e a SM atualizam-se na prática por meio desses atores sociais, que mergulham em suas realidades sociais, relacionando-se com a complexidade de seus quadros nosológicos e lançando mão de dispositivos como trabalho em rede de serviços e AM. Assim, percebe-se uma atuação integrada entre a APS e a rede psicossocial, potencializada pela estruturação de espaços intersetoriais e uma dinâmica de matriciamento importante entre Caps, Nasf-AB e APS, como referidas por outros estudos2626 Silva JDG, Aciole GG, Lancman S. Ambivalências no cuidado em saúde mental: a ‘loucura’ do trabalho e a saúde dos trabalhadores. Um estudo de caso da clínica do trabalho. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):881-92.,2727 Silva Filho JA, Bezerra AM. Acolhimento em Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde: revisão integrativa. Rev Multidiscip Psicol. 2018; 12(40):613-27..

Contudo, ainda se evidenciam importantes lacunas na forma de configuração das ações dos Caps, as quais dificultam a articulação entre os serviços, repercutindo diretamente na prestação da assistência pelas equipes da APS, principalmente no momento da crise. Lacunas, como deficiência ou até mesmo a ausência do AM, processos de descontinuidade de assistência em alguns momentos e atuação autônoma dos Caps, configuram uma via de mão dupla em que a APS necessita ampliar esforços para atingir seus objetivos e garantir uma assistência de forma integralizada e ampliada2828 Lima M, Dimenstein M. O apoio matricial em saúde mental: uma ferramenta apoiadora da atenção à crise. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):625-35. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0389.
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Apesar de ocorrer uma relativa homogeneidade da rede psicossocial estruturada nos municípios analisados, observa-se que a dinâmica de funcionamento das equipes da APS ocorre de formas distintas nessa relação com os outros pontos da rede psicossocial. Em algumas situações, a APS estrutura-se para potencializar a atenção à SM, atuando para minimizar as lacunas observadas. Essa realidade lacunar de estruturação da rede psicossocial instiga a busca de novas formas de atuação da APS, na medida em que a demanda de cuidados ao paciente efetivamente ocorre nesse nível de atenção.

A APS se organiza para propiciar um cuidado de acordo com as necessidades dos pacientes de SM, com prioridade para o acolhimento deles e com especial ênfase na questão da adesão aos medicamentos2929 Onocko-Campos RT, Vianna D, Diaz AV, Emerich B, Trape T, Gama CAP, et al. Estudos de Saúde Mental publicados nos últimos 25 anos na Revista Ciência e Saúde Coletiva. Cienc Saude Colet. 2020; 25(12):4771-90. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320202512.27932020.
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A atuação dos ACS se sobressai muito na área de SM, com a possibilidade de construção de vínculos efetivos, tornando-se fundamental para descortinar a realidade de pacientes graves de SM. As práticas da SM das equipes da APS evidenciam o grande envolvimento dos profissionais com os pacientes, configurando-se como atores importantes do processo da RPB2727 Silva Filho JA, Bezerra AM. Acolhimento em Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde: revisão integrativa. Rev Multidiscip Psicol. 2018; 12(40):613-27..

Pesquisas de revisão sistemática com estudos nacionais1010 Frateschi MS, Cardoso CL. Práticas em saúde mental na atenção primária à saúde. Psico (Porto Alegre). 2016; 47(2):159-68.,2727 Silva Filho JA, Bezerra AM. Acolhimento em Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde: revisão integrativa. Rev Multidiscip Psicol. 2018; 12(40):613-27. e internacionais2727 Silva Filho JA, Bezerra AM. Acolhimento em Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde: revisão integrativa. Rev Multidiscip Psicol. 2018; 12(40):613-27. apontam que, apesar das dificuldades, diversas inovações para área da SM estão presentes no cotidiano das equipes de APS. Os procedimentos e conhecimentos que emergem das práticas na APS evidenciam temáticas complexas presentes no leque de formulação das políticas de SM: a abordagem de patologias advindas das redes sociais; a complexidade das ações intersetoriais em fóruns comuns com participação das equipes, envolvendo particularmente Conselhos Tutelares, Ministério Público e Polícia; a difícil discussão dos estigmas da SM nos espaços privados e algumas práticas de encarceramento; a sistematização das altas dos Caps e sua contrarreferência para a APS.

Na análise da estruturação da SM na APS, realizada, na prática, com seus potenciais e limites, observa-se a configuração de realidades nas quais emergem expressões indexicais que refletem o cotidiano desse trabalho1818 Martínez-Guzmán A, Stecher A, Íñiguez-Rueda L. Aportes de la psicología discursiva a la investigación cualitativa en psicología social: análisis de su herencia etnometodológica. Psicol USP. 2016; 27(3):510-20. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-656420150046.
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: o paciente não teve alta da medicação e sim do Caps; busca ativa acirrada no Conselho Tutelar, se necessário; pegar a moda de cortar; essas expressões evidenciam uma realidade que se descortina, envolvendo os universos construídos na prática cotidiana de SM na APS.

No que se refere à emergência de novas normas ou sua reconfiguração, com base nas práticas, observou-se que a percepção dos profissionais atualiza os dilemas da RPB3030 Furtado RP, Sousa MF, Martinez JFN, Rabelo NS, Oliveira NSR, Simon WJ. Desinstitucionalizar o cuidado e institucionalizar parcerias: desafios dos profissionais de Educação Física dos CAPS de Goiânia em intervenções no território. Saude Soc. 2017; 26(1):183-95. Doi: https://doi.org/10.1590/s0104-12902017169101.
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: a possibilidade de o Caps ser referido como novo lugar da loucura e os esforços que as equipes fazem para isso não se constituir; a maravilhosa atuação dos ACS desvendando os estigmas sobre loucura nos espaços privados e abrindo essas grades, reafirmando a inclusão propiciada no âmbito da RSB; a emergência de novas patologias repercutidas pelas redes sociais que desafiam o processo de estruturação da APS.

Este estudo apresenta limites. A opção pela etnometodologia coloca a possibilidade de os achados representarem microeventos e não abordagens mais gerais relativas ao processo de estruturação das ações de SM na APS. A opção de focar em municípios de pequeno porte em MG, com condições socioeconômicas precárias, como o Vale do Jequitinhonha, pode representar a realidade de SM de municípios com essas características, não a realidade vivenciada pelas ESF no país.

Conclusão

Deste estudo, emergem importantes aspectos da configuração da assistência em saúde nas práticas da APS, que desvendam, no cotidiano, as configurações de ações em SM com a presença nos territórios: a presença nos domicílios e nas escolas coloca foco em campos obscuros nos quais a problemática da SM está inserida. A presença das equipes da APS se relacionando com a SM, por meio dos domicílios e escolas, permite ampliar a potência das ações de SM, abrindo grades no âmbito domiciliar e desvendando casos graves, com intervenções significativas.

As configurações das articulações intersetoriais colocam novos atores em cena, com construção de fóruns envolvendo Conselhos Tutelares, Ministério Público e Polícia. Também constatam limites na atuação da APS envolvendo classificação de risco na área de SM, acompanhamento estruturado dos pacientes e políticas envolvendo redução de medicação. As formas de atenção encontradas apontam importantes falhas na configuração do serviço dos Caps. A APS, em algumas situações, organiza-se para superar essas lacunas.

Das práticas de SM, emerge, principalmente, o processo de comprometimento das equipes da APS com os pacientes. Na identificação de problemas de SM nos municípios, novos mundos são desvendados pela prática das equipes e viram casos a serem cuidados.

Apesar dos retrocessos que ameaçam o projeto da RPB em seus conceitos, como uma reforma humanizada e antimanicomial, observa-se, na prática dos profissionais da APS, o enraizamento dos seus fundamentos, sendo um importante achado do estudo. Portanto, ainda há esperança.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2020
  • Aceito
    01 Jul 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br