Regimes de beleza entre privilégios e desigualdades estruturais

Regimes of beauty between privilege and structural inequalities

Regímenes de belleza entre privilegios y desigualdades estructurales

Chiara Pussetti About the author

O conceito de subjetividade sintética, aqui proposto no debate, revela-se um instrumento heurístico eficaz para ultrapassar a famosa dicotomia natural-artificial que acompanha grande parte do pensamento ocidental. A ideia de síntese (do latim: synthĕsis, derivado do grego: σύνϑεσις (siùnthesis), composição, juntar partes diversas para compor um todo) refere a processos de adição ou transformação, que podem integrar voluntariamente elementos ou materiais não presentes orginalmente em uma definição “natural” do humano. A subjetividade-corporalidade sintética é um projeto individual que remete a um ideal coletivo, podendo obedecer e reproduzir padrões hegemônicos como também desafiar esses modelos se construindo em contraposição. O alcance de um corpo plástico-sintético implica custos altos, não somente econômicos, mas também físicos e psicológicos, além de comportar riscos pela saúde. É uma aposta ou, ainda melhor, um investimento.

O conceito de “investimento” foi uma das palavras-chave à volta com as quais pensei o projeto Excel “Em busca da Excelência. Biotecnologias de aprimoramento e capital corpóreo em Portugal”, que coordeno no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (PTDC/SOC-ANT/ 30572/2017). A ideia deste projeto surgiu na sequência da crise financeira de 2008 – a maior da história do capitalismo desde a Grande Depressão de 1929.

A perda da segurança dos salários e dos empregos, o desvanecer dos direitos e dos benefícios sociais, a escassez dos recursos, assim como os receios do futuro que a crise econômica trouxe consigo, tiveram como efeito um acréscimo de competitividade. As palavras de ordem dos anos do imediato pós-crise incitavam ao sucesso: produtividade, ambição, empoderamento, capacitação, inovação, excelência, excepcionalidade. As pessoas viram-se confrontadas com a necessidade de se adequar a esses novos modelos de cidadania investindo em si mesmas para melhorar o mais rapidamente possível o capital que podem expender na espiral acelerada da produtividade.

Quando o Estado deixa de fornecer redes de segurança, as empresas cortam lugares de trabalho, as promessas da reforma esvaecem e já não se sabe onde aplicar o capital, explica Emily Martin11 Martin E. Bipolar expeditions: mania and depression in American culture. Princeton, Oxford: Princeton University Press; 2007., as pessoas começam a investir mais em si próprias, na sua corporeidade, para aumentar as hipóteses de sucesso e mobilidade profissional em um contexto cada dia mais feroz. No discurso dos direitos liberais e do capitalismo tardio, os indivíduos são consumidores livres, racionais e responsáveis pela construção de si mesmos e do seu próprio destino: o sucesso deixa de ser uma questão de sorte para se tornar algo que resulta de escolhas individuais.

Em uma ótica liberal, todos podemos chegar ao vértice da pirâmide social se fizermos algo para isso; o sermos bem-sucedidos depende principalmente da nossa vontade, responsabilidade e empenho individual. Essas escolhas – aparentemente “livres”, como bem sublinha um dos comentadores do meu texto – são todavia delimitadas e moldadas por formas incorporadas de desigualdade que nos levam a considerar caraterísticas não mainstream como defeitos que devem ser solucionados. A correção dos supostos “defeitos” não tem como objetivo a repristinação da saúde, mas antes a construção de seres humanos mais adequados aos padrões de desempenho ambicionados: trata-se de processos de making up people22 Rose N. Beyond medicalization. Lancet. 2007; 369(9562):700-2. (p. 700), de self-maximization e self-optimization11 Martin E. Bipolar expeditions: mania and depression in American culture. Princeton, Oxford: Princeton University Press; 2007. (p. 42) para lidar com a competição feroz presente em todas as esferas da nossa vida11 Martin E. Bipolar expeditions: mania and depression in American culture. Princeton, Oxford: Princeton University Press; 2007. (p. 41).

O trabalho de campo que a equipe do Excel conduziu ao longo desses anos evidencia como – no contexto instável da pós-recessão econômica antes, assim como na crise sanitária e econômica do Covid-19 agora – as pessoas reagem a situações de crise investindo no melhoramento de si próprios, por meio de práticas médico-cirúrgicas e de produtos químicos destinados a modificar as características consideradas como não desejáveis e a potenciar o desempenho, em um consumo que podemos definir de performance.

O objetivo é corresponder a modelos sociais altamente exigentes que constituem a referência ideal pela qual medimos as nossas prestações (profissionais, sociais, estéticas e sexuais). É com base nesses parâmetros ideais que as pessoas repensam as suas caraterísticas como limites passíveis de serem ultrapassados, ou como defeitos que podem ser corrigidos por meio do recurso às biotecnologias. Pensar nas biotecnologias de melhoramento pessoal como processos de autoconstrução e de bioinvestimento comporta definir um quadro teórico ligado a:

  1. formas contemporâneas de biopolítica, que já não envolvem um governo da população liderada pelo Estado, mas sim práticas de autogestão e desejos de optimização por parte de indivíduos que devem se tornar responsáveis pelo próprio sucesso.

  2. redefinições do conceito de biocapital, afastando a discussão das formas nas quais a biologia é manipulada (mercantilização, circulação e trabalho do material biológico) na direção de como as pessoas investem financeiramente nos seus próprios corpos, transformando-os em valioso capital social (integração social), capital simbólico (estatuto) ou capital econômico (melhores trabalhos, salários, mobilidade profissional).

  3. estratégias recentes de bioeconomia, nas quais as pessoas tomam decisões na base de aspirações, desejos e expectativas de inovação e progresso propostos pela cultura de consumo ligada a um marketing segmentado ou, ainda melhor, de nicho, que personaliza os produtos de melhoramento na base de raça, idade, classe e gênero.

O recurso às biotecnologias todavia não é para todos. Só quem já tem o estatuto econômico e o privilégio social para ter acesso a essas intervenções consegue comprar as caraterísticas ideais do “corpo normal” – sempre jovem, magro, branco, saudável, sexualmente ativo e cisgênero. As “elites” reafirmam-se como tais; no entanto, amplos setores da população ficam excluídos – os que não podem, não conseguem, nunca conseguirão corresponder a esses modelos normativos. Quem fica de fora é o diferente, o inferior, o falhado. Atrás do discurso da esperança próprio do mercado neoliberal existe a dor e a violência quotidiana de quem não se encaixa nos padrões ideais.

Não é apenas um caso o de no ano passado uma menina italiana de 15 anos, Beatrice, suicidar-se por se achar “gorda”, pela angústia do bullying na escola, pela dor de não corresponder aos corpos plásticos-mediáticos do Instagram. Ainda mais significativa é a ressonância que esse caso teve nas mídias sociais: por um lado muitos comentários de ódio contra quem, como a Beatrice, não “consegue ter disciplina”, “não sabe se autolimitar”, “não tem a força de espírito para emagrecer”; pelo outro, milhares de mulheres de todas as idades que se reconheceram na história de sofrimento da Beatrice, na sua dor, no desespero de quem sente na pele o olhar de desaprovação e repulsa dos outros.

É nesse panorama fraturado e complexo de possibilidades e limites, liberdade e constrições, esperança e violência, empoderamento e constrangimento – em que literalmente se incorporam padrões que sustentam em vez de desfazer as desigualdades corporais – que se produzem novas subjetividades-corporeidades sintéticas. O corpo-norma desejado é na sua própria essência sintético: algo artificial, um produto a ser consumido, definido pelas circunstâncias e pelos gostos de contextos sociais, históricos e políticos específicos.

As tecnologias de modificação do corpo – mesmo considerando as suas possibilidades de autovalorização, aumento da autoestima e potencialidades de “capital afetivo” pelas palavras de outro comentador – podem se tornar profundamente alienantes, especialmente quando levam a casos extremos de insatisfação ou dismorfia corporal, ou quando os resultados obtidos não correspondem ao desejado. E bem sabemos que o acesso aos melhores cirurgiões e clínicas depende de e reflete diferenças de classe social e estatuto econômico. Se é verdade que algo pode sempre correr mal e que muitas pessoas estão dispostas a arriscar, também é verdade que os riscos, assim como a possibilidade de ter resultados de má qualidade, não são distribuídos de forma igual.

Justamente para demarcar as diferenças sociais que sustentam o acesso a essas biotecnologias, muitas vezes quem consegue adquirir as caraterísticas desejadas assumindo os custos (econômicos e físicos) dessas intervenções opta para exibir e ostentar os resultados alcançados, ao ponto de pedir que se veja claramente a intervenção na sua artificialidade, ou de enunciar publicamente o valor econômico dos procedimentos. Muitas das mulheres que colaboraram comigo, evidenciando como o acesso às biotecnologias espelha desigualdades sociais subjacentes, afirmavam que “há quem pode e quem não pode” e, portanto, “quem pode tem que mostrar”, assumindo com orgulho o recurso a diferentes intervenções estéticas. O discurso subjacente fala-nos de autovalorização, cuidado, responsabilidade, controle. “Temos o corpo que merecemos. Eu invisto em mim mesma e faço todos os esforços possíveis. Tenho valor, sabes? Neste corpinho já gastei mais de 10.000 euros”, comenta Sandra, uma cabeleireira portuguesa de 52 anos.

“Fiz silicone para aumentar o peito, uma lipossução para tirar gorduras nas coxas, uma abdominoplastia, e na cara obviamente botox, lábios e maçãs do rosto. Tudo bem definido, que não quero gastar dinheiro em algo que depois não se veja. Quero que se veja bem onde meti o meu dinheiro. De outra forma seria como comprar uma mala Chanel e depois a esconder num saco qualquer para que não se veja que é um produto de luxo. Se metes dinheiro, é para que se note. É uma conquista, e as conquistas não se escondem”, continua Sandra.“Há quem não se importe, quem deixa andar... há tantas mulheres negligentes, desleixadas, preguiçosas, desmoralizadas. Falta-lhes disciplina. Não se querem bem! Eu faço todos os meus ‘rituais de beleza’. Rituais que poderiam se tornar um hábito para todas com um pouco de empenho e disciplina. Controlar o peso, evitar tudo o que pode danificar a pele e criar rugas, cuidar dos cabelos, maquilagem, unhas de gel, pestanas falsas e extensões. Nada aqui é deixado ao acaso. É uma questão de controle e de amor-próprio. Para sermos bonitos temos que corrigir o que está mal”, confirma Luísa, 38, uma cliente no salão de beleza da Sandra.

O elemento da artificialidade, assim como pode ser ostentado, também pode ser julgado de forma depreciativa ou ocultado. “Loira, sim sim, mesmo loira é aquela! Nunca foi loira na vida, acreditem! É loira de farmácia”; “A Sara tem um corpo magnífico! Mas olhem que nada daquilo é dela, eh? Mamas, bunda, lábios... até sobre a cor dos olhos tenho dúvidas!”; “Ah bom! Com o mommy makeover é fácil voltar em forma! Eu tive que trabalhar aqui o corpinho, dieta, fazer abdominais! Tudo conquistado, nada oferecido!”.

Mesmo mulheres que tinham claramente efetuado intervenções de medicina cosmética e cirurgia plásticas, quando questionadas de forma mais direta davam respostas muito vagas (e ainda menos credíveis) como: “nunca fiz preenchimentos, somente hidrato-me muito! Dois litros de água por dia!”; ou ainda “o peito? Sim está maior, mas é da soja, cresceu imenso desde que me tornei vegana!”; “não pintei não, foi a piscina que aclarou imenso o meu cabelo”; “eu nunca tive rugas, como a minha mãe. A minha pele é mesmo assim! Cuido dela, alimento-me bem, faço desporto. Não há truque aqui, nem engano”; “emagreci com dieta, exercício, foi bem rápido, tonifiquei o corpo com os pesos, sem batota”.

As manipulações artificiais do corpo e das funções cognitivas (emoções, concentração, memória, vigília etc.) – porquanto extremamente procuradas a ponto de gerar um mercado bilionário – são muitas vezes consideradas como atalhos, contrafações, algo moralmente problemático. Uma coisa é frequentar o ginásio, cuidar da alimentação, fazer meditação, retiros espirituais, estudar, trabalhar para conseguir os resultados esperados, com esforço, disciplina e dedicação. Outra é recorrer a fármacos, drogas, biotecnologias ou intervenções médicas para conseguir resultados imediatos, enganando assim a competição. Hoje o debate sobre o doping em competições esportivas é bem conhecido e amplamente participado. Muitas vezes ouvi o termo doping adaptado a outras intervenções de modificação corporal, que vão desde as cirurgias estéticas à medicina cosmética antienvelhecimento, aos fármacos para aumentar a performance sexual ou cognitiva. É doping, fraude, dizem os meus entrevistados, sempre e em cada caso. Uma coisa é o que se conquista com autenticidade e esforço, outra é o que se obtém de forma menos honesta, fraudulenta até, ilícita porque vem “de imediato” e vem “sem esforço”.

Que se assuma ou que se esconda, que se ostente ou se oculte, todavia o discurso de base é o mesmo: é preciso corresponder ao ideal de um corpo saudável, cuidado, bonito, encaixando em padrões exclusivos. Estão aqui implícitos os discursos: 1. médico (cuidado da pele, medidas ideais, índices de gordura corporal, saúde dos cabelos, retenção hídrica, envelhecimento, práticas de higiene, prevenção de patologias e de condutas de risco, controle de excessos); 2. moral (autoestima, valorização pessoal, responsabilidade, força de vontade, sucesso, empenho); e 3. mediático (globalização de imagens virtuais de beleza e de sucesso, tutoriais e fóruns de troca de experiências sobre como cuidar do aspecto como medida de emergência antiansiedade).

Disciplina e controle corporal entram no âmbito da esfera individual, cruzando valores, aspirações, desejos, expectativas, anseios, consumos e imaginários. A subjetividade sintética da qual falam os comentários surge desse cruzamento de corpos sonhados, idealizados, manipulados, mutantes, compósitos e contingentes, dos quais podemos retraçar do ponto de vista arqueológico as genealogias, os percursos históricos, as condições sociais e, possivelmente, imaginar os destinos e os futuros próximos. Futuros que nos implicam como sujeitos não só “agidos” mas também “agentes”, nos quais não apenas estamos envolvidos em processos constantes de construção e modificação da nossa corporeidade e subjetividade33 Jarrín A, Pussetti C. Remaking the Human: Cosmetic technologies of body repair, reshape and replacement. New York: Berghahn Books; 2021. (Politics of Repair, 2)., mas nos quais podemos e devemos ter uma opinião, uma voz, e lutar para garantir destinos plurais mais justos e mais inclusivos.

References

  • 1
    Martin E. Bipolar expeditions: mania and depression in American culture. Princeton, Oxford: Princeton University Press; 2007.
  • 2
    Rose N. Beyond medicalization. Lancet. 2007; 369(9562):700-2.
  • 3
    Jarrín A, Pussetti C. Remaking the Human: Cosmetic technologies of body repair, reshape and replacement. New York: Berghahn Books; 2021. (Politics of Repair, 2).

Publication Dates

  • Publication in this collection
    09 July 2021
  • Date of issue
    2021

History

  • Received
    27 Apr 2021
  • Accepted
    03 May 2021
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