Menos estigma, mais complexidade: uma nova lente sobre a Atenção Primária em Saúde e o Sistema Único de Saúde nas telas

Menos estigma, más complejidad: una nueva lente sobre la Atención Primaria de Salud y el Sistema Brasileño de Salude (SUS) en las pantallas

Thássia Azevedo Alves Alexandre Rocha Santos Padilha Sobre os autores

O Sistema Único de Saúde (SUS) bem avaliado não costuma passar na televisão ou estampar as páginas dos jornais11 Silva GM, Rasera EF. A construção do SUS-problema no jornal Folha de S. Paulo. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2014; 21(1):61-76.. Estudos apontam que a cobertura midiática é sistemática em associar o SUS “a falhas, ausências e precariedades, criando e mantendo a percepção do SUS-problema”22 Cardoso JM, Rocha RL. Interfaces e desafios comunicacionais do Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1875-9..

Para além dos impactos dos constantes e sistemáticos ataques à imagem do SUS, esse tipo de cobertura não contribui para que temas complexos ou de interesse público, como a participação social e a apropriação dos fluxos e ofertas do sistema pela sociedade, sejam debatidos por grandes audiências. Um distinto capítulo dessa cobertura pode ser percebido na pandemia de Covid-19, na qual o papel do SUS é reconhecido.

Em se tratando de jornalismo ou ficção, a comunicação e a informação são capazes de contribuir para promoção de temas relacionados à saúde e para a prevenção de agravos à saúde de uma população. O acesso à informação é, inclusive, considerado um determinante social da saúde.

Segundo o relatório “As causas sociais das iniquidades da saúde no Brasil”, para que o fluxo de informação funcione, o acesso a fontes e fluxos de informação em saúde aumenta o conhecimento e a capacidade de ação, permitindo a adoção de comportamentos saudáveis e a mobilização social para a melhoria das condições de vida. Em contrapartida, a falta de acesso de grandes setores da população ao conhecimento e à informação diminui significativamente sua capacidade de decidir e atuar em favor de sua saúde e da coletividade33 Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As Causas Sociais das Iniquidades em Saúde no Brasil. Relatório final [Internet]. Brasília: CNDSS; 2008 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/causas_sociais_iniquidades.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
.

Além de medidas de proteção individuais e coletivas, entender como o sistema de saúde vigente funciona pode contribuir para que indivíduos e coletivos possam utilizá-lo e avaliá-lo sem estigmatizá-lo. O Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) sobre saúde apontou que os serviços do SUS são mais bem avaliados por aqueles que costumam utilizá-los do que por quem não os utilizam44 Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. SUS é mais bem avaliado por quem utiliza o serviço [Internet]. Brasília: IPEA; 2011 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=7187
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
. Isso torna possível afirmar que parte das pessoas que usam o sistema estão mais satisfeitas, enquanto os que o desconhecem seriam os que mais o criticam ou até o rejeitam.

A produção de narrativas comprometidas em apresentar ao grande público os princípios da Atenção Primária em Saúde (APS); em evidenciar atendimentos em saúde em contextos de vulnerabilidade social e diversidade humana; e em buscar a fuga de padrões estéticos importados para se aproximar do que pode ser visto e percebido como mais próximo da realidade parece ser o caso da série “Unidade Básica”. O que se vê na tela é a escolha de um recorte que privilegia a apresentação de um SUS complexo e necessário, ao contrário do que ocorre quando audiências possuem acesso apenas a construções midiáticas conduzidas por uma visão hegemônica, especialmente produtos jornalísticos, que, embora justifiquem se orientar por objetividade, neutralidade e imparcialidade, muitas vezes acabam por “supor que a pré-imagem do SUS possivelmente esteja relacionada a um sistema para pobres, e não como um direito do cidadão”55 Langbecker A, Castellanos MEP, Catalán-Matamoros D. Quando os sistemas de saúde são notícia: uma análise comparativa da cobertura jornalista no Brasil e na Espanha. Cienc Saude Colet. 2020; 25(11):4281-99..

As séries ficcionais ganharam espaço nos últimos anos com a audiência brasileira. Elas alcançaram força em canais pagos e serviços de streaming sob demanda – com acesso garantido mediante pagamento e relacionado ao “contexto tecnológico em torno do digital e da internet, que impulsionou a circulação das séries em nível global, para além do modelo tradicional de circulação televisiva”66 Silva MVB. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção na contemporaneidade. Galaxia (São Paulo). 2014; 14(27):241-52.. Aqui é necessário citar a Lei n. 12.485/2011, conhecida como Lei da TV Paga, que estabelece que as televisões pagas devem veicular conteúdo brasileiro, sendo metade de produtora independente.

A série em questão foi exibida em televisão fechada e posteriormente em serviço de streaming, ambos privados. Para além das questões relacionadas ao acesso a esses meios, gostaríamos de introduzir nesse diálogo o lugar da televisão pública. Na nossa visão, os debates provocados pela série se relacionam com compromissos e valores que norteiam o ideal de televisão pública: direito à informação; conteúdo pluralista e capaz de se contrapor ao domínio hegemônico; diversidade; e respeito aos Direitos Humanos77 Alves TA. Um sistema em desequilíbrio: estudo de caso sobre agenda governamental e processo político da comunicação pública no Brasil [dissertação]. São Bernardo do Campo: Universidade Federal do ABC; 2019..

A exibição de séries ficcionais na programação de televisões públicas sobre temas relevantes para a sociedade brasileira deveria ser imperativa. É preciso que sejam fortalecidas políticas de incentivo da produção audiovisual, como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Agência Nacional do Cinema (Ancine) – que, inclusive, apoiou a série Unidade Básica – e garantidas suas exibições em televisões públicas.

A exibição de temáticas de Saúde Pública em televisões públicas não é novidade. O serviço nacional de saúde inglês está presente nas telas da BBC britânica, como as séries não ficcionais “O NHS: a história de um povo e hospital” (tradução nossa), além do drama médico “Casualidade” (tradução nossa).

É intrigante notar que o SUS complexo e necessário está ausente da programação da ficção na TV pública brasileira, mas outros temas, como a difusão de hábitos saudáveis, responsabilidade ambiental e diversidade da cultura popular estão presentes. Seria um sinal de que o SUS nunca foi assumido, enquanto projeto, ao longo de governos e que um novo pacto com a sociedade88 Gastão Wagner. É preciso um novo pacto da sociedade pelo SUS [entrevista ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais da Saúde] [Internet]. Brasília: CONASEMS; 2011 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/entrevista-e-preciso-um-novo-pacto-da-sociedade-pelo-sus-diz-gastao-wagner/
https://www.conasems.org.br/entrevista-e...
é necessário?

Outro aspecto que abordamos concentra-se naquilo que os autores apontaram como o objetivo do artigo em debate. Aqui, registramos o quanto a produção recupera os atributos da APS99 Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre a necessidade de saúde, serviços e tecnologias. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2002. e a categoria de vulnerabilidade1010 Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica. 2017; 34(3):1-14. para além do risco à saúde e dá centralidade à integralidade, perpassando, enquanto categoria, por aquilo que Ayres classificou como eixos da integralidade1111 Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc. 2007; 18(2):11-23.: necessidades, finalidades, articulações e interação. Concordamos com o desafio em expressar, em conteúdo e estética, a potência das articulações de saberes, práticas e corpos multiprofissionais, bem como a ampliação de interações dialógicas entre os sujeitos trabalhadores de saúde e usuários nas práticas do cuidado. As insuficiências, como apontam os autores, em se produzir aquilo que Teixeira1212 Teixeira RR. As redes de trabalho afetivo e a construção da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. In: Research Conference on Rethinking “the Public” in Public Health: Neoliberalism, Structural Violence, and Epidemics of Inequality in Latin America; 2004; San Diego. San Diego: University of California; 2004. nos aponta como um “acolhimento-diálogo” nestes encontros entre trabalhadores e usuários não reduzem, a nosso ver, o valor da iniciativa da série e a própria reflexão, reiterada pelos autores, dos seus desafios.

Por fim, não podemos deixar de mencionar a relevância dos diferentes contextos em que a série foi planejada, produzida e veiculada, em um momento, mesmo que tensionado e insuficiente, de avanços no SUS e na APS para tempos de retrocesso. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2020 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101748.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
apontam redução de 48% para 37% de famílias que recebiam visitas mensais de membros da APS entre 2013 e 2019. Se o SUS e a APS poderiam ter papel mais decisivo no enfrentamento à Covid-19, também é verdade que a pandemia chega em um momento em que o SUS está mais frágil. É nessa contradição entre a fragilidade e a percepção da relevância do SUS que temos que saudar a série “Unidade Básica” e a reflexão dos autores.

  • Alves TA, Padilha ARS. Menos estigma, mais complexidade: uma nova lente sobre a Atenção Primária em Saúde e o Sistema Único de Saúde nas telas. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210351 https://doi.org/10.1590/interface.210351

Referências

  • 1
    Silva GM, Rasera EF. A construção do SUS-problema no jornal Folha de S. Paulo. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2014; 21(1):61-76.
  • 2
    Cardoso JM, Rocha RL. Interfaces e desafios comunicacionais do Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1875-9.
  • 3
    Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As Causas Sociais das Iniquidades em Saúde no Brasil. Relatório final [Internet]. Brasília: CNDSS; 2008 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/causas_sociais_iniquidades.pdf
    » https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/causas_sociais_iniquidades.pdf
  • 4
    Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. SUS é mais bem avaliado por quem utiliza o serviço [Internet]. Brasília: IPEA; 2011 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=7187
    » https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=7187
  • 5
    Langbecker A, Castellanos MEP, Catalán-Matamoros D. Quando os sistemas de saúde são notícia: uma análise comparativa da cobertura jornalista no Brasil e na Espanha. Cienc Saude Colet. 2020; 25(11):4281-99.
  • 6
    Silva MVB. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção na contemporaneidade. Galaxia (São Paulo). 2014; 14(27):241-52.
  • 7
    Alves TA. Um sistema em desequilíbrio: estudo de caso sobre agenda governamental e processo político da comunicação pública no Brasil [dissertação]. São Bernardo do Campo: Universidade Federal do ABC; 2019.
  • 8
    Gastão Wagner. É preciso um novo pacto da sociedade pelo SUS [entrevista ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais da Saúde] [Internet]. Brasília: CONASEMS; 2011 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/entrevista-e-preciso-um-novo-pacto-da-sociedade-pelo-sus-diz-gastao-wagner/
    » https://www.conasems.org.br/entrevista-e-preciso-um-novo-pacto-da-sociedade-pelo-sus-diz-gastao-wagner/
  • 9
    Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre a necessidade de saúde, serviços e tecnologias. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2002.
  • 10
    Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica. 2017; 34(3):1-14.
  • 11
    Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc. 2007; 18(2):11-23.
  • 12
    Teixeira RR. As redes de trabalho afetivo e a construção da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. In: Research Conference on Rethinking “the Public” in Public Health: Neoliberalism, Structural Violence, and Epidemics of Inequality in Latin America; 2004; San Diego. San Diego: University of California; 2004.
  • 13
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2020 [citado 27 Maio 2021]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101748.pdf
    » https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101748.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2021
  • Aceito
    24 Maio 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br