Sobrediagnóstico: prejudicando pacientes em nome da saúde

Sobrediagnóstico: daño a las personas en nombre da la salud

Rodrigo Diaz Olmos Sobre o autor

Resumos

À medida que os avanços médico-tecnológicos continuam a se tornar mais facilmente disponíveis, o diagnóstico de pseudo-doenças atingiu o cerne dos sistemas de saúde e tornou-se uma das atividades mais prejudiciais da medicina moderna, tanto individual quanto coletivamente, pois ameaça a sustentabilidade dos sistemas de saúde. Aqui descrevemos um caso hipotético, mas baseado em casos reais, de uma jovem de 36 anos diagnosticada com um carcinoma papilífero de tireoide após ter sido submetida a um check-up excessivo e desnecessário solicitado por um ginecologista em uma consulta de rotina.

Palavras-chave
Sobrediagnóstico; Pseudo-doença; Medicalização; Rastreamento; Excesso de uso médico


Carta ao Editor

Uma mulher saudável e assintomática de 36 anos realizou uma consulta de rotina com um ginecologista. Mesmo sendo uma jovem saudável e assintomática, o médico solicitou vários exames de rastreamento, incluindo ultrassonografias (mama, pélvica, tireoide, abdômen), mamografia, densitometria óssea, papanicolau, hemograma completo, função tireoidiana e bioquímica. A maioria dos exames de imagem mostrou alguns achados incidentais; a densitometria mostrou osteopenia; ultrassom da tireoide identificou um nódulo sólido de 1,2 cm no lobo direito. A paciente ficou preocupada com todos os achados anormais, entretanto seu médico disse que tais anormalidades não eram alarmantes, exceto o nódulo da tireoide. Um procedimento diagnóstico identificou carcinoma papilífero e uma tireoidectomia foi realizada. Ela recebeu alta tomando 100mcg de levotiroxina diariamente.

A situação desta jovem é um exemplo da prática cotidiana produtora de sobrediagnósticos e medicalização11 Moynihan R, Doust J, Henry D. Preventing overdiagnosis: how to stop harming the healthy. BMJ. 2012; 344:e3502.

2 Welch HG, Black WC. Overdiagnosis in cancer. J Natl Cancer Inst. 2010; 102:605-13.

3 Brodersen J, Schwartz LM, Woloshin S. Overdiagnosis: how cancer screening can turn indolent pathology into illness. APMIS. 2014; 122(8):683-9.

4 Brodersen J, Schwartz LM, Heneghan C, O’Sullivan JW, Aronson JK, Woloshin S. Overdiagnosis: what it is and what it isn’t. BMJ Evid Based Med. 2018; 23(1):1-3.
-55 Hofmann B. Medicalization and overdiagnosis: different but alike. Med Health Care Philos. 2016; 19(2):253-64.. Ela foi submetida a um grande número de exames desnecessários como parte de um exame médico de rotina. Nenhum dos exames solicitados (exceto o papanicolau) tinha indicação formal como parte de consultas de rotina com base nas melhores práticas66 US Preventive Services Task Force. Screening for gynaecologic conditions with Pelvic Examination. US Preventive Services Task Force Recommendation Statement. JAMA. 2017; 317(9):947-53.. Infelizmente, a prática clínica contemporânea tem se baseado no uso excessivo de testes diagnósticos, particularmente no contexto de consultas preventivas. Este relato tem como objetivo levar este problema à discussão. Revisões sobre as causas da medicalização e do sobrediagnóstico bem como sobre as dificuldades em estimá-lo e comunicá-lo estão disponíveis em outros locais22 Welch HG, Black WC. Overdiagnosis in cancer. J Natl Cancer Inst. 2010; 102:605-13.

3 Brodersen J, Schwartz LM, Woloshin S. Overdiagnosis: how cancer screening can turn indolent pathology into illness. APMIS. 2014; 122(8):683-9.

4 Brodersen J, Schwartz LM, Heneghan C, O’Sullivan JW, Aronson JK, Woloshin S. Overdiagnosis: what it is and what it isn’t. BMJ Evid Based Med. 2018; 23(1):1-3.
-55 Hofmann B. Medicalization and overdiagnosis: different but alike. Med Health Care Philos. 2016; 19(2):253-64.,77 Pathirana T, Clark J, Moynihan R. Mapping the drivers of overdiagnosis to potential solutions. BMJ. 2017; 358:j3879.

8 Hofmann B. Back to basics: overdiagnosis is about unwarranted diagnosis. Am J Epidemiol. 2019; 188(10):1812-7.
-99 Kale MS, Korenstein D. Overdiagnosis in primary care: framing the problem and finding solutions. BMJ. 2018; 362:k2820..

Discussão

O sobrediagnóstico tem sido definido como uma condição que nunca teria sido conhecida ou nunca causaria prejuízos ao paciente se não tivesse sido encontrada. É o diagnóstico de uma “doença” que nunca causaria sintomas ou morte durante a vida de um paciente22 Welch HG, Black WC. Overdiagnosis in cancer. J Natl Cancer Inst. 2010; 102:605-13.

3 Brodersen J, Schwartz LM, Woloshin S. Overdiagnosis: how cancer screening can turn indolent pathology into illness. APMIS. 2014; 122(8):683-9.
-44 Brodersen J, Schwartz LM, Heneghan C, O’Sullivan JW, Aronson JK, Woloshin S. Overdiagnosis: what it is and what it isn’t. BMJ Evid Based Med. 2018; 23(1):1-3.. É uma “doença” por sua definição fisiopatológica, mas que não se tornaria clinicamente aparente e, portanto, não causaria nenhum sintoma ou dano. É uma pseudo-doença, uma condição cujo diagnóstico só produz prejuízos. Transforma as pessoas em pacientes desnecessariamente, produzindo ansiedade e outras consequências negativas da rotulação; também resulta em desperdício de recursos e efeitos colaterais devido a uma cascata de testes confirmatórios adicionais e tratamentos desnecessários88 Hofmann B. Back to basics: overdiagnosis is about unwarranted diagnosis. Am J Epidemiol. 2019; 188(10):1812-7.. O sobrediagnóstico é diferente de um resultado de teste falso positivo e, na maioria das vezes, ocorre no contexto de rastreamento de pessoas assintomáticas, mas também pode ocorrer em pessoas sintomáticas, seja em virtude da medicalização de experiências de vida cotidiana (mercantilização de doenças) ou como consequência de achados incidentais durante a investigação de alguma outra condição de saúde. Outra forma de entender o sobrediagnóstico é considerá-lo um “diagnóstico injustificado” ou “ rotular uma pessoa desnecessariamente com uma doença”88 Hofmann B. Back to basics: overdiagnosis is about unwarranted diagnosis. Am J Epidemiol. 2019; 188(10):1812-7..

Quais as condições de existência do sobrediagnóstico? Avanços em tecnologias biomédicas, testes e imagens cada vez mais sensíveis, programas de rastreamentos amplos, a cultura de testes excessivos e desnecessários, a própria definição de doença, são apenas alguns potenciais culpados. Conceitos mais amplos como medicalização, estão relacionados ao sobrediagnóstico - ambos ampliam a extensão do conceito de doença - mas diferem em muitos aspectos. Outros conceitos como uso excessivo, mercantilização de doenças, sobretestagem, sobretratamento e “excesso de medicina”1010 Moynihan R, Smith R. Too much medicine? Almost certainly. BMJ. 2002; 324:859-60. podem ser confundidos com o sobrediagnóstico, mas são conceitos distintos com alguma sobreposição. O tratamento de uma doença sobrediagnosticada é um tipo de tratamento excessivo (sobretratamento); o uso excessivo ou a sobreutilização de serviços - prática em saúde que não proporciona benefício às pessoas - não necessariamente levam ao sobrediagnóstico, mas aumentam o risco de sobrediagnóstico e sobretratamento88 Hofmann B. Back to basics: overdiagnosis is about unwarranted diagnosis. Am J Epidemiol. 2019; 188(10):1812-7..

Conclusão

O sobrediagnóstico é uma das muitas faces da medicalização da sociedade. Está intrinsecamente relacionado às atividades médicas preventivas, particularmente as envolvidas no rastreamento. Quando se tenta diagnosticar uma doença no início do seu curso, a incidência dessa doença aumenta, muitas pessoas terão que ser tratadas, não haverá efeito sobre a mortalidade total e, na melhor das hipóteses, haverá apenas um pequeno efeito sobre a mortalidade específica. O que acontece na maioria das vezes é o sobrediagnóstico: uma condição que nunca prejudicaria o paciente se permanecesse não diagnosticada, mas seu diagnóstico poderá causar prejuízos na forma de tratamentos desnecessários, rotulação, sofrimento psíquico e perda de tempo e dinheiro. Além disso, o diagnóstico desse tipo de condição (sobrediagnóstico) tende a perpetuar as atividades que os engendraram, pois o prognóstico das pessoas detectadas com sobrediagnóstico é, por definição, excelente (viés de tempo ganho e viés de tempo de duração) o que produz uma sensação de eficácia e necessidade. Médicos e outros profissionais de saúde que cuidam do bem-estar de seus pacientes, acreditam que a equidade em saúde seja um imperativo ético e estão preocupados com a sustentabilidade dos sistemas universais de saúde, devem conhecer este conceito e envidar todos os esforços para evitá-lo. Por fim, há uma necessidade urgente de reconectar diagnóstico com o sofrimento do paciente99 Kale MS, Korenstein D. Overdiagnosis in primary care: framing the problem and finding solutions. BMJ. 2018; 362:k2820. e revisar a definição de doença. Uma possível ação para reduzir o uso excessivo de intervenções médicas, o sobrediagnóstico e os excessos de tratamento é focar no cuidado de pessoas doentes e deixar os saudáveis em paz1111 Heath I. In defence of a National Sickness Service. BMJ. 2007; 334(7583):19 .. Estratégias preventivas deveriam ser levadas a cabo com estratégias populacionais (principalmente com práticas de promoção de saúde e ações intersetoriais) e não com estratégias de pseudo-alto risco1212 Olmos RD. Subclinical thyroid disorders should not be considered to be a non-classical risk factor for cardiovascular diseases. Sao Paulo Med J. 2021; 139(2):196-7..

Referencias

  • 1
    Moynihan R, Doust J, Henry D. Preventing overdiagnosis: how to stop harming the healthy. BMJ. 2012; 344:e3502.
  • 2
    Welch HG, Black WC. Overdiagnosis in cancer. J Natl Cancer Inst. 2010; 102:605-13.
  • 3
    Brodersen J, Schwartz LM, Woloshin S. Overdiagnosis: how cancer screening can turn indolent pathology into illness. APMIS. 2014; 122(8):683-9.
  • 4
    Brodersen J, Schwartz LM, Heneghan C, O’Sullivan JW, Aronson JK, Woloshin S. Overdiagnosis: what it is and what it isn’t. BMJ Evid Based Med. 2018; 23(1):1-3.
  • 5
    Hofmann B. Medicalization and overdiagnosis: different but alike. Med Health Care Philos. 2016; 19(2):253-64.
  • 6
    US Preventive Services Task Force. Screening for gynaecologic conditions with Pelvic Examination. US Preventive Services Task Force Recommendation Statement. JAMA. 2017; 317(9):947-53.
  • 7
    Pathirana T, Clark J, Moynihan R. Mapping the drivers of overdiagnosis to potential solutions. BMJ. 2017; 358:j3879.
  • 8
    Hofmann B. Back to basics: overdiagnosis is about unwarranted diagnosis. Am J Epidemiol. 2019; 188(10):1812-7.
  • 9
    Kale MS, Korenstein D. Overdiagnosis in primary care: framing the problem and finding solutions. BMJ. 2018; 362:k2820.
  • 10
    Moynihan R, Smith R. Too much medicine? Almost certainly. BMJ. 2002; 324:859-60.
  • 11
    Heath I. In defence of a National Sickness Service. BMJ. 2007; 334(7583):19 .
  • 12
    Olmos RD. Subclinical thyroid disorders should not be considered to be a non-classical risk factor for cardiovascular diseases. Sao Paulo Med J. 2021; 139(2):196-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Aceito
    01 Out 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br