Cenários brasileiros da Saúde Mental em tempos de Covid-19: uma reflexão

Escenarios brasileños de la Salud Mental en tiempos de Covid-19: una reflexión

Paula Gaudenzi Sobre o autor

Resumos

O artigo visa apontar e refletir sobre alguns efeitos da pandemia da Covid-19 na saúde mental dos brasileiros. Se por um lado a materialidade do corpo posta em risco por um organismo invisível afeta psiquicamente todos os sujeitos do mundo, por outro, as experiências subjetivas diante do vírus no Brasil são marcadas pela distribuição desigual das vulnerabilidades e pela condição singular de elaborar os vividos. O artigo tratará da temática da Saúde Mental no Brasil considerando os atravessamentos dos contextos sociocultural e político na produção do sofrimento psíquico e valendo-se de reflexões construídas pelas produções bibliográficas já existentes sobre Covid-19, sobre sofrimento psíquico, e também pela escuta de experiências individuais e sociais advindas do atendimento clínico de brasileiros vivendo no país durante a pandemia.

Palavras-chave
Saúde mental; Covid-19; Brasil


El objetivo del artículo es señalar algunos de los efectos de la pandemia de Covid-19 en la salud mental de los brasileños y reflexionar sobre ello. Si por un lado la materialidad del cuerpo puesta en riesgo por un organismo invisible afectó psíquicamente a todos los sujetos del mundo, por el otro, las experiencias subjetivas ante el virus en Brasil están señaladas por la distribución desigual de las vulnerabilidades y por la condición singular de elaborar lo vivido. El artículo tratará de la temática de la Salud Mental en Brasil considerando las conexiones del contexto sociocultural y político en la producción del sufrimiento psíquico y valiéndose de reflexiones construidas a partir de las producciones bibliográficas ya existentes sobre Covid-19, sobre sufrimiento psíquico y también a partir de escuchar experiencias individuales y sociales provenientes de la atención clínica de brasileños que viven en el país durante la pandemia.

Palabras clave
Salud Mental; Covid-19; Brasil


Introdução

Apesar do pouco tempo, há uma significativa produção científica internacional sobre as repercussões da pandemia da Covid-19 na Saúde Mental. Um dos poucos estudos realizados no Brasil, sobre os brasileiros, identificou aumento de sintomas de ansiedade, depressão e estresse, principalmente em mulheres, pessoas que coabitam com idosos, que mantêm trabalho fora, mais jovens e de menor escolaridade e que possuem comorbidades11 Filgueiras A, Stults-Kolehmainen M. The relationship between behavioural and psychosocial factors among brazilians in quarantine due to COVID-19. Lancet Psychiatry [Internet]. Fothcoming 2020 [citado 10 Maio 2020]. Doi: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3566245.
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, mas não problematiza as diferentes vivências implicadas no processo de adoecimento.

É notável que grande parte dos artigos ignore os atravessamentos dos contextos sociocultural e político na produção do sofrimento psíquico. Horton22 Horton R. Offline: a global health crisis? No, something far worse. Lancet. 2020; 395(10234):1410., lembrando Fassin, aponta a necessidade em tempos de Covid-19 de considerar os efeitos da política na vida cotidiana, pois a vida não seria apenas da ordem da natureza, mas um fato da experiência. É preciso, portanto, encarar a pandemia não somente como um desafio biológico, mas também como um evento biográfico.

É de biografia, e não de natureza, que se trata o conflito psíquico. Dessa perspectiva, o corpo deve ser considerado em seus aspectos simbólico e imaginário, sem esquecer que ele é também matéria. A materialidade do corpo posta em risco por um organismo invisível é determinante sobre o que se passa hoje nos sujeitos do mundo inteiro. Este artigo, no entanto, visa apontar alguns dos efeitos subjetivos da pandemia no contexto brasileiro.

A reflexão que se segue é oriunda da experiência profissional da autora atravessada pela prática clínica e pelos estudos do campo psi e das humanidades. Dizer que tal reflexão é moldada pela experiência clínica é afirmar que os atendimentos clínicos, realizados e/ou acompanhados pela autora durante a pandemia, conformam a leitura sobre os fenômenos psíquicos aqui indicados tanto quanto as referências bibliográficas provenientes do campo psicanalítico e da teoria crítica, que são referenciais teóricos importantes do trabalho. Portanto, as “fontes do material empírico” são histórias de sofrimento psíquico compartilhadas por pessoas atendidas pela autora ou por seus pares.

Nesse sentido, trata-se de uma escrita-ensaio, um exercício de pensamento que tem uma conexão íntima com a experiência, tendo a marca da subjetividade da autora. Tomar o ensaio como operação, e não como forma, como diz Larossa33 Larossa J. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Realidade. 2004; 29(1):27-43., prescinde de trazer os casos atendidos, o que exigiria apresentar a reflexão mediante relato de casos clínicos, o que concentraria a análise nos casos individuais. Portanto, ainda que o texto não ressoe explicitamente a experiência clínica, ela está presente como pano de fundo para pensar a experiência subjetiva contemporânea.

“Das vivências” apresenta um panorama geral da realidade brasileira indicando algumas das desiguais vivências da pandemia e aponta a diferença entre vivência e experiência, com base em Walter Benjamin. “Dos sofrimentos” apresenta reflexões sobre alguns impactos da pandemia na Saúde Mental, oriundas da escuta de experiências individuais e sociais brasileiras. “Da confiança” aponta o impacto em termos de Saúde Mental das crises humanitária e política – e não apenas sanitária – que se apresentam no contexto brasileiro.

Das vivências

“Estamos todos no mesmo barco”. Essa é uma frase que vem circulando na mídia brasileira, uma forma simples de dizer que o vírus evidenciou a precariedade da vida humana – colocou todos diante da morte e da necessidade de lidar com o imprevisível. Estamos todos à deriva, como em um barco, onde a temporalidade perde seus contornos e a contingência se expressa em sua radicalidade. No entanto, as vivências da epidemia não são as mesmas para todos e, quando similares, as experiências são singulares.

Sobre o primeiro ponto – que as vivências são variadas –, determinações sociais, configurações e relações familiares, crenças individuais, dinâmicas de trabalho e condições psíquicas singulares marcadas por processos inconscientes são domínios fundamentais a serem levados em consideração na análise dos efeitos subjetivos oriundos das vivências brasileiras da Covid-19.

No Brasil, moradias enormes habitadas por uma pessoa convivem com casebres de um cômodo coabitados por dez pessoas, muitas vezes sem saneamento básico, uma das marcas da profunda desigualdade social do país. Um estudo recente44 Hindson J. COVID-19: faecal–oral transmission? Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2020; 17(5):259. sugere que o vírus pode ser transmitido pelas fezes, dejetos esses que literalmente boiam ao redor da casa de muitos brasileiros e que compõem a imagem especular refletida no líquido imundo.

Como as pessoas que vivem nessas condições recebem as mensagens “de cuidado” no combate à Covid-19? A falta de esgoto encanado, água tratada e coleta de lixo está associada com diversas doenças, mas qual é a relação da miséria real – e não simbólica – com a Saúde Mental? É tênue a linha divisória entre viver no lixo e se sentir um lixo. Tratados como abjetos55 Kristeva J. Powers of horror. An essay on abjection. Nova York: Columbia University Press; 1982. entendem que são aquele resto que deve ser excluído, descartado como excremento. Seriam suas vidas causa ou consequência do lixo em que vivem?

Direcionar a informação sobre os cuidados apenas para quem pode lavar os alimentos de forma segura e não se preocupar com o destino das fezes é uma forma de humilhação e reafirmação do lugar subalterno dado aos precarizados. A humilhação causa uma ferida narcísica, atinge a representação consciente e inconsciente que a pessoa possui de si, produz um desvalor que facilmente é introjetado66 Ansart-Dourlen M. Sentimentos de humilhação e modos de defesa do eu: narcisismo, masoquismo, fanatismo. In: Marson I, Naxara M, organizadores. Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU; 2005. p. 85-101. e que se traduz em vergonha de si.

Outros, que se situam no conforto do lar, alguns têm filhos outros, não; alguns são casados outros, não. Como fazer home office cuidando de crianças e da casa? A discrepância já vivida entre as possibilidades individuais e a velocidade dos acontecimentos e das exigências produtivas se aguça em tempos de Covid-19. Exaustos, trabalham em frente ao computador – que trava, picota a voz, esconde o corpo, limita a expressividade corporal ao tom da voz e ao olhar. Há ainda aqueles que perderam suas fontes de renda e os que trabalham no Sistema Único de Saúde (SUS) e se expõem cotidianamente ao vírus sem Equipamento de Proteção Individual (EPI).

Determinações sociais, configurações familiares, questões ligadas ao trabalho, mas também crenças individuais, sobretudo considerando o sincretismo brasileiro, conformam as vivências da pandemia. A crença, por exemplo, na vida após a morte mantém a ideia de continuidade e permanência que para quem não acredita se esvai. A interpretação de doenças e outros pesares como punição divina configura uma forma de se orientar e imaginar o mundo que se distancia daquela forma de quem não acredita. O que está em jogo é a mobilização de formas de entender a vida que compõem os sistemas de crença de uma coletividade e as formas singulares de lidar com os perigos do mundo.

Quanto ao segundo ponto, de que vivências similares não se refletem em experiências iguais, Benjamin77 Benjamin W. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense; 1985. v. 1. aponta que a vivência comporta estímulos que provocam no sujeito reações que se perdem na superfície dos acontecimentos, sem que haja impressão mnemônica e consequente traço duradouro. Aproxima-se daquilo que Freud88 Freud S. Além do princípio do prazer e outros textos [1920]. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. v. 14. denomina trauma, um excesso pulsional além da capacidade de representação psíquica que deixa marcas indeléveis na memória, mas que não pode ser elaborado e retorna como sintomas.

Experiência, por seu turno, pressupõe memória e esquecimento, donde as vivências recebem uma forma especial de estruturação interior em que passam a ser integradas à constituição da subjetividade. Trata-se da articulação das relações do homem consigo e com o mundo e, portanto, as memórias podem ser lembradas, narradas e elaboradas, permitindo ao sujeito construir narrativas – de vida – sobre a própria vida.

Quais serão as narrativas coletivas e individuais produzidas sobre as vivências da pandemia?

Ainda não há respostas, mas, em comum, todos vivenciam a proximidade cotidiana da morte. Freud99 Freud S. A transitoriedade [1916]. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. v.12. dizia que a única maneira de suportar a vida é estando pronto para aceitar a morte, marcando a importância de acatar que as coisas, as pessoas que amamos e nós mesmos não têm permanência absoluta. Dizia, inclusive, que reconhecer a transitoriedade implica a possibilidade de valorar mais a existência. Mas o que está em jogo na possibilidade de fazer do “saber” sobre a morte uma atitude de revolta que valora e garante a vida?

Primeiro, há uma questão temporal que se coloca para a “aceitação” da morte, pois o encanto pela fugacidade da vida dificilmente acontece com tamanha proximidade da morte. Segundo, o valor na raridade do tempo depende da possibilidade de gozar a vida e, terceiro, é preciso que seja possível se despedir da vida e das pessoas amadas. Na pandemia essas condições estão ameaçadas. Vivemos risco de morrer ou perder pessoas queridas em poucas horas, o vírus nos afastou de nossos principais prazeres e nos tirou a possibilidade de estar em companhia das pessoas que amamos no momento da morte, atormentando os que se vão e alojando experiências traumáticas nos que ficam.

No Brasil, no entanto, a excepcionalidade da situação não é para todos. Jovens, negros e pobres saem diariamente de casa sem saber se retornarão ou se encontrarão a família em seu regresso. Dados do Atlas da Violência 20191010 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da violência 2019. Brasília: IPEA, Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2019. evidenciam o aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, em que o assassinato de negros e jovens é muitas vezes provocado pelo Estado, na figura da polícia1111 Bueno S, Lima RS, Teixeira MAC. Limites do uso da força policial no Estado de São Paulo. Cad EBAPE.BR. 2019; 17 Spe:783-99.. O impedimento da despedida também não é privilégio dos tempos de Covid-19. Araujo1212 Araújo FA. Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política. Rio de Janeiro: Lamparina; 2014. aponta que o desaparecimento forçado é uma prática comum na realidade brasileira, mesmo após a transição da ditadura militar para a democracia, sobretudo no que se refere a negros e pobres.

Ter a vida ameaçada em seu cotidiano e ter o luto negado são expressões da necropolítica1313 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições; 2018. à brasileira que se expressa por meio de “pequenos” massacres do dia a dia da população negra e pobre. Sendo assim, a máxima freudiana de que é preciso aceitar a morte para aproveitar a vida faz menos sentido em tempos de Covid-19 – e em tempos anteriores ao vírus para alguns estratos da população – do que a ideia de que não se pode viver sob ameaça constante de morte para poder levar bem a vida.

É também sobre se sentir continuamente ameaçado que certos conflitos psíquicos têm como uma de suas marcas fundamentais impasses relativos à transitoriedade própria da finitude humana. Atormentados pela consciência da morte, alguns são dominados, mesmo na ausência de um perigo real, por afetos aflitivos ligados à morte, indicando os impasses do sujeito com o desejo inconsciente e com o impulso à vida.

Portanto, brasileiros vivem a ameaça de morte cotidianamente, alguns concretamente, como efeito da necropolítica e/ou da Covid-19, e outros em sua dimensão imaginária, como efeito de conflitos psíquicos. Apesar da ameaça de morte real e da presença incontornável do fantasma da morte serem duas realidades diferentes, a realidade psíquica apresenta uma coerência e uma resistência comparáveis às da realidade material, assumindo valor de realidade no psiquismo1414 Laplanche J. Vocabulário de psicanálise Laplanche e Pontalis. São Paulo: Martins Fontes; 1994., sendo ambas brutais para quem as vive. Ademais, não são excludentes; quando alguém que é atormentado pelo fantasma da morte se depara com a ameaça real de morte, o efeito tende a ser avassalador.

Nesse cenário de medo generalizado, enquanto alguns deixam suas cidades em jatinhos equipados com UTI, outros se contaminam nas filas da Caixa Econômica tentando retirar os míseros 600 reais de auxílio emergencial oferecido pelo governo federal e morrem por falta de respiradores em hospitais públicos, ilustrando a redistribuição desigual da vulnerabilidade1515 Mbembe A. O direito universal à respiração. São Paulo: n-1 edições; 2020..

Dos sofrimentos

Sem pretensão de esgotar a problemática, mas apontando planos de análise que merecem atenção no panorama brasileiro atual, quatro se destacam na dinâmica dos sofrimentos psíquicos em tempos de Covid-19: 1) os diferentes tipos de confinamento compulsório que, no contexto brasileiro, se apresenta como desejável para uns e indesejável para outros; 2) seu radical oposto, o excesso de convívio, sobretudo entre aqueles que coabitam; 3) condições ligadas ao trabalho – excesso, falta ou condições precárias de trabalho; e 4) as experiências de solidão à beira da morte e a (im)possibilidade de realização do luto.

Isolamento social e confinamento são os termos mais utilizados para se referir à necessidade de as pessoas se manterem em casa para a contenção do vírus. Sabe-se, no entanto, que o indivíduo não existe fora do campo social, pois desde o nascimento deve ser reconhecido por outros em sua totalidade para que tenha assegurado seu lugar na dinâmica social1616 Enriquez E. Psicanálise e ciências sociais. Ágora. 2005; 8(2):153-74.. Assim, não é surpreendente que o isolamento traga efeitos danosos no plano subjetivo.

Mas de que confinamento falamos?

A clínica tem nos mostrado que pessoas que moram sozinhas costumam sentir solidão e tristeza, provenientes da dificuldade de estabelecer rotina, restrição de atividades prazerosas e de exercício físico, e perda do contato com familiares e amigos. A experiência de isolamento, no entanto, apesar de inédita nesta geração, tem um caráter peculiar que é o fato de vivermos em uma sociedade altamente conectada via tecnologia e que possibilita que diferenciemos isolamento social de isolamento físico. A mudança do termo “social” para “físico” diz no subtexto que podemos nos manter distantes fisicamente, mas próximos afetivamente. Nesse panorama são favorecidos aqueles que podem – objetiva e subjetivamente – abdicar do contato com outros corpos, local em que reside o perigo em tempos de Covid-19.

Nesse cenário os idosos saem em desvantagem. Muitos vivem sozinhos e não têm o meio digital como um espaço de existência possível, o que os deixa mais vulneráveis para o adoecimento psíquico. São eles também que escutam dia e noite que são grupos de risco e que poderão ser preteridos para suporte assistencial caso o sistema de saúde entre em colapso, o que está se desenhando no Brasil. A clínica revela que, sozinhos, vivem um sentimento conflituoso em relação aos familiares, pois ao mesmo tempo em que sentem falta de seus filhos e netos, os temem.

Nas sociedades capitalistas contemporâneas a maioria deles permanece sem lugar e sem função social, uma vez que sua função por excelência – de transmissor da memória – é destituída em prol da produção utilitária1717 Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras; 1994.. No entanto, alguns idosos lidam com a velhice sabiamente, esquecendo-a, e se colocando no mundo apenas como sujeitos desejantes. Encontram amigos, exercem atividades prazerosas, aproveitam a família, e têm sofrido um grande impacto com as restrições impostas. Certamente não são apenas os idosos que precisam do mundo de fora, da beleza, da arte e dos encontros para construir um sentido para a existência, mas, como grupo social, as privações trazidas pela Covid-19 somadas ao seu lugar de grupo de risco tornam suas vivências especialmente delicadas.

Delicadas são também as vivências de confinamento daqueles que já apresentavam conflitos psíquicos. Quem tem fobia social, por exemplo, associa o convívio social a uma ameaça e tende a ter seu quadro piorado em tempos em que se reforça a ideia de que o outro é perigoso. Ademais, a advertência de que é preciso lavar tudo, o tempo todo, para não se contaminar e não contaminar o outro vai ao encontro – e agrava – uma das expressões da problemática obsessiva relacionada ao medo de contaminação.

A performance obsessiva pauta-se em circuitos defensivos que criam um cárcere para si mesmo, apontando a dinâmica entre cárcere desejável e indesejável, dinâmica essa que também se apresenta na experiência dos presos no Brasil. No primeiro caso há predomínio de uma situação contraditória, pois o encarceramento da subjetividade estaria, paradoxalmente, a serviço da manutenção da vida1818 Farias CP, Cardoso MR. O cárcere obsessivo: o pensamento como ato. Arq Bras Psicol. 2014; 66(2):68-81.. Nos presídios a dinâmica entre desejável e indesejável não é contraditória e inconsciente, mas expressão de uma política de extermínio da população negra e pobre, do apartheid urbano brasileiro. Nesse caso não se trata de cárceres subjetivos, mas de cárceres reais que são desejados para muitos dos que estão de fora.

O presídio brasileiro é o dispositivo de excelência que se situa na encruzilhada entre o isolamento e o excesso de convívio, segunda questão fundamental quanto a sua implicação subjetiva em tempos de Covid-19. Em um cenário em que o isolamento é uma das principais armas contra a morte, os presídios seguem superlotados, pouco ventilados e os presos, com acesso limitado à água e aos cuidados de saúde, apesar de serem uma população com alta prevalência de enfermidades pulmonares1919 Sánchez AR, Simas L, Diuana V, Larouze B. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? Cad Saude Publica. 2020; 36(5):e00083520..

Em tempos de Covid-19 o horror instala-se de vez nos presídios, gerando graves sequelas psicológicas que, além de graves e persistentes, tendem ao agravamento. Sequelas somáticas, retraumatizações, efeitos transgeracionais, aumento do índice de psicoses e das taxas de suicídios são alguns dos efeitos da vivência da tortura2020 Martin AG. As seqüelas psicológicas da tortura. Psicol Cienc Prof. 2005; 25(3):434-49.. Alguns trabalhos apontam que os confinados em situações de violência, como é o caso dos presos no Brasil, experimentam uma dor que é descrita por eles como inenarrável, na medida em que não poderia ser apreendida por quem não vivenciou experiência semelhante. Assim, o confinamento deixa de ser apenas físico e passa a se constituir em confinamento simbólico2121 Losicer E. Confinados! Lugar Comum. 2002; (21-22):185-92..

As violências já vividas ganham relevo em tempos de Covid-19. Nas prisões, mas também nos lares, onde o excesso de convívio – e o convívio compulsório – não é entre desconhecidos, mas intrafamiliar. Se a experiência de desterritorialização é explícita no contexto dos presídios, ela é menos evidente, mas também presente, na violência fora das instituições totais. A desorganização da geografia pessoal também se apresenta na vivência das pessoas em seus territórios violentos, como ruas e lares. A violência nesses espaços é propulsora de desterritorialização afetiva, isto é, impacta as relações de pertencimento territorial, afetando não apenas a existência psíquica, mas também a existência social da comunidade onde vivem2222 Schmid PC, Serpa Junior OD. Violência urbana e saúde mental: por narrativas em primeira pessoa. Physis. 2019; 29(3):e290313..

Um estudo recente2323 Marques ES, Moraes CL, Hasselmann MH, Deslandes SF, Reichenheim ME. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cad Saude Publica. 2020; 36(4):e00074420. evidenciou que durante a pandemia a violência doméstica direcionada a mulheres e crianças aumentou em vários países, revelando que o convívio com familiares pode ser altamente abusivo. No Brasil, esse aumento se torna uma verdadeira catástrofe, já que antes da pandemia registrava-se que a cada 17 minutos uma mulher era agredida fisicamente e toda semana 33 mulheres eram assassinadas por parceiros antigos ou atuais2424 Brasil. Câmara dos Deputados. Mapa da violência contra a mulher 2018 [Internet]. Brasília: Câmara dos Deputados; 2020 [citado 5 Maio 2020]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/comissao-de-defesa-dos-direitos-da-mulher-cmulher/arquivos-de-audio-e-video/MapadaViolenciaatualizado200219.pdf
https://www2.camara.leg.br/atividade-leg...
. No que se refere às crianças, a violência doméstica é particularmente danosa, pois elas se veem vítimas de violência por quem as deveria proteger, além de ser no seio familiar que se dá o aprendizado primário de socialização, deixando marcas profundas em seu psiquismo2525 Mandelbaum B, Schraiber LB, D’Oliveira AFL. Violência e vida familiar: abordagens psicanalíticas e de gênero. Saude Soc. 2016; 252(2):422-30..

Restrições de movimento, insegurança generalizada dos abusadores quanto ao medo de adoecer e perder o trabalho, consumo de bebidas alcoólicas, diminuição da coesão social e do acesso aos serviços de proteção são, segundo Marques et al.2323 Marques ES, Moraes CL, Hasselmann MH, Deslandes SF, Reichenheim ME. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cad Saude Publica. 2020; 36(4):e00074420., algumas das condições que favorecem o agravamento das situações de violência já instaladas.

A agressividade é um fenômeno complexo e produz efeitos psíquicos no agressor, na vítima e nas testemunhas da violência. Complexo, porque não é possível compreendê-lo com base em análises de um único campo. Da perspectiva do agressor, é preciso considerar seus grupos de pertencimento, sua herança genealógica e de transmissão, ou filiação2626 Benghozi P. Malhagem, filiação e afiliação. São Paulo: Veto; 2010.. Quanto à experiência da violência, é preciso analisar suas dimensões relacionais, sociais e psíquicas, levando em consideração os padrões relacionais do contexto sociocultural em questão.

No contexto da violência doméstica, esses padrões estão vinculados às concepções hegemônicas de masculinidade e feminilidade, que se expressam por meio do homem agressor e da mulher vítima, reproduções dos elementos culturais da banalização da violência2525 Mandelbaum B, Schraiber LB, D’Oliveira AFL. Violência e vida familiar: abordagens psicanalíticas e de gênero. Saude Soc. 2016; 252(2):422-30. e da cultura altamente machista. O enfrentamento da violência e de seus efeitos psíquicos, por sua vez, exige intervenções nos campos social e subjetivo – dispositivos sociais de proteção às vítimas e responsabilização do agressor, além de dispositivos de escuta para que a experiência traumática possa ser narrada, reconhecida e elaborada.

O excesso de convívio articula-se também com uma das dimensões do terceiro âmbito fundamental para refletir sobre os efeitos psíquicos em tempos de Covid-19, que é a esfera do trabalho. Grande parte da população trabalha remotamente e, nessa configuração, são também as mulheres as que mais sofrem os inconvenientes do convívio contínuo com os familiares, pois ainda são elas as principais responsáveis pela economia do cuidado. Cuidam da casa, dos filhos, dos idosos e continuam trabalhando por suas empresas ou afins2727 Machado MS. Trabalho remunerado e trabalho doméstico: conciliação? In: Ávila MB, Ferreira V, organizadores. Trabalho remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das mulheres. Recife: SOS Corpo e Instituto Patrícia Galvão; 2014. p. 51-76..

Há uma sobrecarga física e emocional importante nesses casos e, em época de Covid-19, a jornada deixa de ser dupla para ser eterna enquanto dure. Enquanto durarem os idosos, enquanto durar o casamento, ou enquanto durar a saúde mental da mulher. A ideia de “dupla jornada” não dá mais conta de significar a exploração sobre a mulher em uma era em que a própria noção de jornada não existe mais, posto que em tempos de Covid-19 a marcação do tempo – e do tempo do trabalho –, outrora em risco, irrompeu de vez. Como diz Berardi2828 Berardi F. E depois do futuro? A provocação de Franco Berardi [Internet]. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos; 2020 [citado 5 Maio 2020]. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589636-franco-berardi-provoca-e-depois-do-futuro
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
: “O sistema conectivo captura e conecta fragmentos celulares de tempo despersonalizado”.

Não são poucas as patologias de intensificação do trabalho2929 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação. Brasília: Paralelo 15; 2012.. Desse modo, pais assoberbados não conseguem garantir o investimento afetivo necessário, apesar de estarem convivendo intensamente com seus filhos durante a quarentena. Presenças ausentes podem ser mais prejudiciais psiquicamente do que ausências reais e, nesse terreno, a tecnologia ocupa um lugar central contribuindo para o desinvestimento nos corpos.

Berardi3030 Berardi F. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora; 2020. preocupado com a perda da dimensão erótica da existência chama a atenção para o que Muraro denomina ordem simbólica da mãe, apontando que é preciso estar atento para a geração conectiva que aprende mais palavras por meio de uma máquina do que pela voz da mãe. O sentido de uma palavra, diz, não se aprende de maneira funcional, mas afetiva. O corpo do outro, a presença da mãe ou a voz da mãe, introduz o afeto na interpretação e é a forma de garantir sentido ao mundo. Quais efeitos esperar da falta de encontro erótico entre os corpos? Um dos apontamentos de Berardi é que há uma fragilidade crescente das relações afetivas em um mundo cujo futuro não é visto mais como uma promessa, mas como uma ameaça. Se o autor está certo, em tempos de Covid-19 esse sentimento tende a se agravar.

É impossível fazer referência ao excesso de trabalho sem considerar a situação dos profissionais de saúde que enfrentam de forma nua e crua – sem telas que se coloquem entre eles e os pacientes – as mazelas trazidas pela Covid-19. Sem telas e sem EPIs, ficam expostos cotidianamente ao horror da pandemia, tornando insuficiente caracterizar suas condições como Burnout.

Os cenários dos atendimentos em saúde ganharam novos contornos. Nos hospitais, profissionais escutam suplícios, pedidos de promessas dos pacientes de que não serão deixados à morte. O “salvador”, no entanto, sabe que possivelmente aquelas serão as últimas palavras daquele que padece. São eles também que decidirão, mesmo à revelia, quem usará os recursos tecnológicos ainda disponíveis.

A ideia de “morte usurpada”3131 Menezes RA. Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Fiocruz, Garamond; 2004., como aquela oriunda da tentativa de negar a morte e que se expressa pela obstinação terapêutica no ambiente hospitalar, deve ser repensada. Em tempos de Covid-19, não são pacientes terminais que têm suas vidas demasiadamente alargadas, mas milhares de pessoas que têm suas vidas terrivelmente abreviadas. De “morte usurpada”, vida usurpada. Solidão e medo de um lado, impotência e desesperança de outro.

O trabalho na Estratégia de Saúde da Família (ESF) – a porta de entrada do sistema de Saúde –, já reconhecidamente extenuante3232 Trindade L, Lautert L. Síndrome de Burnout entre os trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):274-9., desconfigurou-se de tal maneira que a própria identidade da ESF é posta em xeque. Usuários temem ir à clínica, perde-se o seguimento deles e seus quadros outrora controlados agudizam, fazendo que pacientes crônicos se tornem pacientes terminais, que a ação territorial se torne inconcebível, visitas domiciliares devam ser evitadas, médicos de família sejam chamados a se portar como plantonistas de Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Agentes comunitários de saúde (ACS) perdem sua função de articuladores em prol da saúde da população e adquirem a função de noticiadores de mortes.

No lugar da visita domiciliar, a ida ao domicílio para preencher atestado de óbito. Do paciente que nunca faltava às consultas, daquele que ia todos os dias e “não tinha nada”, da recém-mãe, do recém-avô, da mãe de uma agente comunitária, da menina que escolheu viver a se matar, daqueles que lutam cotidianamente para viver em um país que insiste em matá-los. Como estará a saúde mental dos profissionais que têm de escolher entre mandar o paciente para morrer sozinho no hospital ou deixá-lo morrer em casa, quando o que tem é apenas a agudização de uma doença crônica que facilmente poderia ser controlada no hospital? De médicos de família a gestores da morte e dos corpos. Impotência, estresse, traumas.

Nos diferentes níveis de atenção, os profissionais temem se contaminar e transmitir o vírus para a família. Alguns, que podem, se distanciam de seus filhos, às vezes bebês, com medo de contaminá-los. De protetores da vida passam a ser temidos nas ruas e nos lares.

Assim acontece com os hospitais. Se as instituições são criadas com vistas à diminuição do estado de desamparo inerente à condição humana3333 Pereira WCC. Movimento institucionalista: principais abordagens. Estud Pesqui Psicol. 2007; 7(1):6-16., o que dizer sobre a experiência do desamparo quando a principal instituição que está colapsada é a de cuidado à saúde? Os movimentos institucionalistas mostraram os males oriundos da estrutura institucional desvirtuada, que se põe a serviço da servidão ao invés do desejo. Em tempos de Covid-19, é preciso analisar os males causados pela transformação, no imaginário social, da instituição de saúde de local de cuidado para local de contaminação. Desamparo para a população.

Outra dimensão da vivência dos profissionais de saúde é a impossibilidade de tocar os corpos que sofrem. Como, por exemplo, dar a notícia da morte de um filho para uma mãe sem abraçá-la e mantendo a distância “segura” de um metro e meio? Camadas de proteção – quando há – escondem qualquer fração do corpo, qualquer vestígio de humanidade, deixando marcas profundas em todas as pessoas envolvidas.

Difíceis são também as vivências dos trabalhadores da limpeza dos hospitais, entregadores, coveiros e os que perderam seus trabalhos. A falta do trabalho é profundamente danosa psiquicamente, não apenas porque ameaça a sobrevivência, mas também porque o trabalho conforma o sujeito no mundo. O medo de perder o trabalho relaciona-se também com o medo de ver sua identidade estilhaçada3434 Enriquez E. Perda do trabalho, perda da identidade. Cad Esc Legislativo. 1999; 5(9):53-73..

Outro aspecto que se destaca na dinâmica dos sofrimentos em tempos de Covid-19 é a solidão no final da vida e a (im)possibilidade de realização do luto, apontada por alguns psicanalistas como um dos efeitos mais nefastos da pandemia. Dunker3535 Araújo M. Covid-19 e a ‘dupla morte’: como lidar com a dor de um luto sem despedida [Internet]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2020 [citado 5 Maio 2020]. Disponível em: http://www.ip.usp.br/site/noticia/covid-19-e-a-dupla-morte-como-lidar-com-a-dor-de-um-luto-sem-despedida/
http://www.ip.usp.br/site/noticia/covid-...
fala em “dupla morte” e Kehl3636 Vianna LF. Talvez seja infindável o luto dos familiares, diz Maria Rita Kehl. Época [Internet]. 2020 [citado 5 Maio 2020]. Disponível em https://epoca.globo.com/talvez-seja-infindavel-luto-dos-familiares-diz-maria-rita-kehl-1-24382274
https://epoca.globo.com/talvez-seja-infi...
em “luto infindável”.

Pessoas contaminadas morrem sem que os familiares vejam seu corpo sem vida ou realizem um ritual de despedida. Uma vez que a morte biológica só existe de fato quando circunscrita pelo simbólico, tais condições dificultam o processo de ressignificação da dor. Uma despedida que não se realiza pode ser fatal psiquicamente, na medida em que predispõe a quadros melancólicos, no qual o sujeito permanece na experiência da perda, identificando-se com ela.

Unida à dificuldade de realizar a morte está a dor de saber que o outro, amado, agoniza no hospital. Não poder cuidar de quem se ama e que está em martírio sozinho, quando se sabe que provavelmente nunca mais se poderá vê-lo, é uma experiência difícil de traduzir, pois um elemento importante apaziguador da dor da perda é o sentimento de que tudo que se podia fazer foi feito e que o morto não sofreu.

Outro capítulo do luto em tempos de Covid-19 é o desaparecimento de corpos, prática comum entre os precarizados do Brasil1212 Araújo FA. Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política. Rio de Janeiro: Lamparina; 2014., mas que no contexto atual adquire novas configurações. De prática clandestina à política formal de Estado. Vemos, por meio do argumento da excepcionalidade, tentativas do governo de fazer sepultar e cremar corpos – desaparecer com eles – sem a devida certidão civil de óbito, como na Portaria Conjunta CNJ e MS n. 1/20203737 Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Portaria Conjunta nº 1, de 30 de Março de 2020 [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça; 2020 [citado 5 Maio 2020]. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original180204202004015e84d71c65216.pdf
https://atos.cnj.jus.br/files/original18...
. Os efeitos psíquicos do desaparecimento são dramáticos, pois não há o compartilhamento coletivo necessário para a realização do luto. O corpo que some, a ausência da materialidade, provoca uma falta de representação, de imagem, de reprodução mental, e predomínio da figurabilidade, da impressão, de um pulsional sem ligação. Produz-se, assim, anestesiamento psíquico, repetição de pensamentos ou imobilidade afetiva3838 Canavez F, Fortes I, Herzog R, Perelson S. Corpos desaparecidos: guerra e resistência no Brasil. In: Birman J, Fortes I, organizadores. Guerra, catástrofe e risco: uma leitura interdisciplinar do trauma. São Paulo: Zagodoni Editora; 2018. p. 119-30..

Na contramão dos corpos/sujeitos que desaparecem, há os corpos/embrulhos excessivamente expostos. É preciso, portanto, refletir sobre as imagens de mortes produzidas no contexto atual. Se as imagens não são reprodução da realidade, mas produtoras de uma “realidade material de direito próprio” com o poder de “transformar a realidade numa sombra”3939 Sontag S. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras; 2004. (p. 196), qual mensagem elas transmitem? A imagem, dependendo de como é exposta, pode criar um distanciamento significativo, fazendo prescindir uma ligação aprofundada daquele que observa com os acontecimentos. Ademais, atrocidades repetidamente expostas desgastam seu conteúdo ao mesmo tempo que produzem marcas na subjetividade, expressas, por exemplo, nos sonhos de morte tão comuns em tempos de Covid-19.

No Brasil, em tempos dessa pandemia, visibilidade e invisibilidade dos corpos, mostração e apagamento, são expressões de um mesmo movimento que se empenha em aterrar nomes, histórias, subjetividades, afeto, relações e dinâmicas sociais.

Da confiança

Uma das marcas brasileiras da vivência da pandemia é a forma como as autoridades têm conduzido o processo. O editorial de uma das mais importantes revistas científicas do mundo – The Lancet – aponta que em tempos de Covid-19 as péssimas condições de vida da população brasileira – falta de saneamento, de moradia adequada, de emprego, etc. – convivem com um líder que se apresenta como a maior ameaça no combate à Covid-194040 The Lancet. COVID-19 in Brazil: “So what?”. Lancet. 2020; 395(10235):1461. Doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3.
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O governo brasileiro reiteradamente ameaça pesquisadores e a Ciência, desautorizando epidemiologistas e infectologistas, os principais profissionais que podem contribuir para o controle da pandemia. Ataca-se, assim, aquilo que Giddens4141 Giddens A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp; 1991. chama de sistema perito, um sistema de excelência técnica que depende da confiança depositada pelos consumidores para que seja efetivo. Isso significa que não é preciso, por exemplo, saber Medicina para aderir ao tratamento prescrito por um médico. A confiança no conhecimento médico especializado é a principal razão de sua aceitação.

A confiança abalada, unida à incerteza quanto ao futuro devido a uma pandemia que coloca em jogo a própria vida, agudiza o sentimento de desamparo e, assim, abrem-se quadros de pânico, depressão e aumentam os atos violentos.

A pandemia abalou nossa segurança ontológica4141 Giddens A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp; 1991. – já abalada há tempo nas periferias violentas da cidade –, nossa confiança no ambiente e em si mesmo que permite que a vida seja vivida com certa tranquilidade, de forma relaxada. Acreditar no ambiente é acreditar na constância dos ambientes social e material, isto é, por exemplo, que a ponte que eu costumo passar não vai cair mesmo sem conhecer o cálculo do engenheiro que a projetou; que uma bala “perdida” não entrará na minha casa; ou que um vírus invisível não me matará em poucos dias.

Winnicott4242 Winnicott DW. O ambiente saudável na infância [1967-1968]. São Paulo: Martins Fontes; 2012. já falava da importância da confiança básica no ambiente, de um vínculo de segurança com o cuidador no início da vida para o desenvolvimento psíquico. O estabelecimento da confiança, por sua vez, depende sobretudo da previsibilidade da experiência cotidiana e da continuidade das interações precoces do bebê com o ambiente. Algumas pessoas têm falhas nesse desenvolvimento inicial e vivem em um estado constante de insegurança em relação à própria vida. Não é difícil de conceber que tais pessoas sofrerão ainda mais profundamente diante da imprevisibilidade trazida pelo vírus e agravada pelas atitudes do governo.

Uma das contribuições fundamentais da Ciência em tempos de Covid-19 é tornar o risco invisível o mais visível possível. Visibilizar o risco é fundamental para a segurança e a diminuição do sofrimento psíquico, sobretudo para aqueles que possuem uma insegurança ontológica e que já sentem demasiadamente a ausência física do terapeuta em tempos de Covid-19. Ademais, no Brasil, há um elemento que embaralha a experiência da (in)visibilidade do vírus que é o fato de que talvez seja difícil, para uma camada da população exposta cotidianamente a tantos inimigos visíveis, incorporar a ideia de um inimigo invisível.

Sobre a confiança no futuro, o que podemos dizer? Qual será o saldo da pandemia, em termos de Saúde Mental, para a população brasileira? Choques e traumas espalhados pelo Brasil afora; memórias fraturadas; depressões e aumento da ansiedade oriundos do desemprego; aumento do sentimento de impotência; elaborações produtivas; reconstrução de valores; criação de redes de solidariedade; destituição subjetiva; revisão de ideais; uma oportunidade para conhecer os próprios fantasmas?

Não sabemos. Podemos, no entanto, tecer algumas considerações referentes ao cenário brasileiro. Remédios e vacinas não serão para todos, o desemprego acirrará a competitividade e a exploração do trabalhador, o mercado continuará impiedoso. Tal panorama coloca a Saúde Mental em risco e exige, sobretudo em um país marcado pela distribuição diferencial da precariedade4343 Butler J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2015., que a alocação dos recursos seja pautada em uma discriminação positiva, como diz o princípio da equidade na Constituição brasileira.

Para que os acontecimentos não se consolidem como traumas, para que as vivências possam se tornar experiências em que novos circuitos pulsionais se criem, é preciso que haja um outro que acolha a dor. No caso da pandemia trata-se de assegurar não “apenas” a escuta – imprescindível –, mas também frear a desestruturação das linhas de cuidado em Saúde Mental que vem se consolidando no Brasil há alguns anos e garantir condições básicas de subsistência para a população.

  • Gaudenzi P. Cenários brasileiros da Saúde Mental em tempos de Covid-19: uma reflexão. Interface (Botucatu). 2021; 25(Supl. 1): e200330 https://doi.org/10.1590/Interface.200330
  • Financiamento

    A pesquisa foi financiada pelo Programa de Incentivo à Pesquisa (PIP) do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2020
  • Aceito
    01 Dez 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br