“Sapatão” é só para os íntimos: vínculo no cuidado de mulheres lésbicas e bissexuais

“Tortillera” es solo para los íntimos: vínculo en el cuidado de mujeres lesbianas y bisexuales

Amanda Gomes Pereira Mariana Arantes Nasser Arthur Chioro Sobre os autores

Resumos

Mulheres lésbicas e bissexuais enfrentam dificuldades para o reconhecimento de suas necessidades de saúde, resultando em iniquidades. O objetivo deste estudo foi compreender a construção de vínculo no cuidado à saúde de lésbicas e bissexuais. Adotou-se metodologia qualitativa, utilizando-se entrevistas semiestruturadas presenciais e on-line. A população foi composta por 14 mulheres, residentes em São Paulo, SP, Brasil. Para a análise de conteúdo, foram considerados os marcadores sociais da diferença e a relação das entrevistadas com movimentos sociais. Evidenciou-se que a articulação de marcadores sociais da diferença pode contribuir com a potencialização da exclusão e que a participação em movimentos sociais projeta as mulheres mais ativamente na reivindicação de seu cuidado. Esses dois componentes são atravessadores importantes na construção de vínculo.

Palavras-chave
Homossexualidade feminina; Interseccionalidade; Participação social; Direito à saúde; Equidade no acesso aos serviços de saúde


Las mujeres lesbianas y bisexuales enfrentan dificultades para el reconocimiento de sus necesidades de salud, resultando en iniquidades. El objetivo de este estudio fue comprender la construcción de un vínculo en el cuidado de la salud de lesbianas y bisexuales. Se adoptó la metodología cualitativa, utilizándose entrevistas semiestructuradas presenciales y online. La población fue formada por 14 mujeres, residentes en São Paulo (SP) Brasil. Para el análisis, realizado por medio del análisis de contenido, se consideraron los marcadores sociales de la diferencia y la relación de las entrevistadas con movimientos sociales. Se puso en evidencia que la articulación de marcadores sociales de la diferencia puede contribuir para potencializar la exclusión y que la participación en movimientos sociales proyecta a las mujeres más activamente en la reivindicación de su cuidado. Esos dos componentes son factores atravesadores importantes en la construcción de vínculo.

Palabras clave
Homosexualidad femenina; Interseccionalidad; Participación social; Derecho a la salud; Equidad en el acceso a los servicios de salud


Introdução

Mulheres cisgênero (quando a experiência individual acerca do próprio gênero corresponde ao sexo designado ao nascimento) lésbicas e bissexuais, em virtude da discriminação e preconceito ainda presentes, enfrentam iniquidades e vulnerabilidades que tornam sua situação de saúde bastante complexa11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. A entrada de suas pautas nas políticas de saúde ocorreu diante de um longo processo de lutas e construção de agenda política.

O primeiro movimento social de lésbicas brasileiro, do qual há registros, surgiu em 1979 como um subgrupo do SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, chamado de grupo Lésbico-Feminista (LF), que teve expressividade inicialmente em São Paulo. Em 1980, retirou-se definitivamente do SOMOS e o nome então foi mudado para Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), que atuou significativamente na visibilização e defesa das pautas de lésbicas, tornando-se conhecido nacionalmente22 Soares GS, Costa JC. Movimento lésbico e movimento feminista no Brasil: recuperando encontros e desencontros [Internet]. Salvador: Ministério Público do Estado da Bahia; 2011 [citado 4 Mar 2022]. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-da-populacao-lgbt/artigos_teses_dissertacoes/movimento_lesbico_e_movimento_feminista_no_brasil_recuperando_encontros_e_desencontros_1.pdf
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A entrada das demandas do movimento nas políticas públicas se deu pela saúde, mais especificamente, pela política de combate à Aids. Desde meados dos anos 1980, os grupos homossexuais, compostos majoritariamente por homens gays, passaram a coordenar projetos de prevenção e combate ao HIV/Aids, financiados por programas estatais, o que permitiu que alguns se organizassem no formato de organizações não governamentais (ONGs). Gradativamente, as ONGs lésbicas começaram a vocalizar um discurso próprio acerca dessa temática, que acabou se tornando uma estratégia na afirmação do direito à saúde sexual33 Almeida G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis. 2009; 19(2):301-31..

Em 2003, foi articulada a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), uma rede constituída por lésbicas e bissexuais feministas e marxistas22 Soares GS, Costa JC. Movimento lésbico e movimento feminista no Brasil: recuperando encontros e desencontros [Internet]. Salvador: Ministério Público do Estado da Bahia; 2011 [citado 4 Mar 2022]. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-da-populacao-lgbt/artigos_teses_dissertacoes/movimento_lesbico_e_movimento_feminista_no_brasil_recuperando_encontros_e_desencontros_1.pdf
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. Em relação à saúde, a LBL e o movimento lésbico e bissexual, de modo geral, criticava a perspectiva de saúde das mulheres focada no controle da reprodução, apontava as frequentes discriminações sofridas no atendimento ginecológico e trazia como demanda central o reconhecimento da diversidade na formulação das políticas44 Selem MCO. A Liga Brasileira de Lésbicas: produção de sentidos na construção do sujeito político lésbica [dissertação]. Brasília: Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília; 2007..

Em 2004, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) reconheceu, a partir da reivindicação dos movimentos organizados, a necessidade de atenção às particularidades de diferentes grupos de mulheres, como negras, indígenas e lésbicas55 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..

A 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais aconteceu em 2008, quando, não sem conflitos, foi aprovado e padronizado o uso dos nomes, respectivamente, “lésbicas”, “gays”, “bissexuais”, “travestis” e “transexuais” (LGBT) pelo movimento e pelo governo, justificado pela proposta de dar visibilidade ao segmento das lésbicas. A heterogeneidade do movimento e a alternância entre cooperação e disputas refletiram em subsequentes discussões em relação à sigla, bem como na coexistência de diferentes denominações66 Facchini R, França IL. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no movimento LGBT brasileiro. Sex Salud Soc. 2009; 3:54-81..

Em 2011, a Política Nacional de Saúde Integral LGBT foi finalmente instituída e marcou o reconhecimento dos efeitos da discriminação e exclusão no processo saúde-doença dessa população11 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..

A despeito das conquistas expressas em políticas e marcos normativos, ainda há muitos obstáculos na efetivação dessas propostas. A produção científica aponta a invisibilidade da homossexualidade em mulheres nas práticas de saúde e a própria escassez de estudos pode ser compreendida como uma desqualificação dessa temática como relevante77 Fernandes NFS, Galvão JR, Assis MMA, Almeida PF, Santos AM. Acesso ao exame citológico do colo do útero em região de saúde: mulheres invisíveis e corpos vulneráveis. Cad Saude Publica. 2019; 35(10):e00234618. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00234618.
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,88 Sousa AJM, Barros AL. Saúde das mulheres lésbicas: atravessamentos sobre uma temática necessária. Rev Enferm UFPI. 2020; 9:e11546. doi: https://doi.org/10.26694/reufpi.v9i0.11546.
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Carvalho et al99 Carvalho CS, Calderaro F, Souza SJ. O dispositivo “saúde de mulheres lésbicas”: (in)visibilidade e direitos. Rev Psicol Polit. 2013; 13(26):111-27., baseadas em Deleuze, consideram o núcleo saúde de mulheres lésbicas como um dispositivo atravessado por linhas de força de saber-poder, a partir do agenciamento entre discursos e práticas, e sugerem que o dispositivo da heteronormatividade é favorecido com essa invisibilidade. Dessa forma, o pressuposto da heterossexualidade como norteador das práticas de saúde pode ser visto como o principal obstáculo para a saúde das lésbicas e bissexuais, pois dificulta o diálogo sobre suas práticas sexuais e, consequentemente, a identificação das necessidades específicas em saúde.

É importante colocar em discussão distinções que se apresentam quando a identidade lésbica e bissexual é atravessada por outros marcadores sociais da diferença, como, condição socioeconômica. Utilizando como referência estudo com homens gays, por serem escassas pesquisas sobre a homossexualidade em mulheres, diferenças acentuadas são descritas entre homossexuais da classe A e B e classes C, D e E, sendo que estes últimos apresentaram maior prejuízo na autoestima relacionado à vivência de preconceitos1010 Almeida V. A mídia perversa e o universo de homens que fazem sexo com homens. In: Rios LF, Almeida V, Parker R, Pimenta C, Terto Junior V, organizadores. Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: ABIA; 2004. p. 163-76.. A etnia ou raça também pode ter um papel semelhante, já que o racismo estrutural no Brasil se expressa fortemente nos mais variados âmbitos1111 Lima F. Raça, interseccionalidade e violência: corpos e processos de subjetivação em mulheres negras e lésbicas. Cad Genero Divers. 2018; 4(2):66-82..

A reflexão sobre as especificidades no cuidado à saúde dessa população remete ao mapa das necessidades de saúde proposto por Cecílio1212 Cecilio LCO. Sobre as necessidades de saúde. In: Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. p. 10-23.. Nessa representação, existem quatro quadrantes: necessidade de boas condições de vida; consumo das tecnologias de saúde disponíveis para melhorar e prolongar a vida; vínculo com algum profissional ou equipe de saúde; e autonomia nos modos de andar a vida.

Destaca-se aqui o vínculo, visto essa necessidade ainda ser pouco explorada, de modo geral, na construção de projetos terapêuticos singulares e planejamento de ações de saúde. Segundo Cecílio1212 Cecilio LCO. Sobre as necessidades de saúde. In: Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. p. 10-23., ele tem implicações importantes no cuidado à saúde, pois favorece o acesso e o caminho para a equidade e a integralidade. Mas é evidente que também pode ser fortemente permeado pela discriminação e preconceito e, por isso, até negado às usuárias lésbicas e bissexuais.

Este artigo tem como objeto a construção de vínculo no cuidado à saúde de lésbicas e bissexuais. Os pressupostos considerados para este estudo foram a) a discriminação e o preconceito sofridos por lésbicas e bissexuais na sociedade são reproduzidos por serviços, equipes e profissionais da saúde, o que dificulta a construção de vínculos e impacta no cuidado à saúde; b) lésbicas e bissexuais que militam em movimentos sociais têm acesso a mais conhecimentos sobre seus direitos, políticas de saúde e funcionamento dos serviços, o que favorece seu protagonismo e facilita a construção de vínculos no cuidado à saúde; e c) diante de determinados marcadores sociais da diferença, a identidade lésbica e/ou bissexual fica secundarizada, visto que tais marcadores antecipam a situação de exclusão.

O objetivo do estudo foi compreender os modos de construção de vínculo no cuidado à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais, a partir da análise de marcadores sociais da diferença e participação em movimentos sociais.

Metodologia

Esta pesquisa, de caráter qualitativo, buscou compreender processos, relações e significados, considerando-se um objeto complexo, contraditório e em permanente transformação1313 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8a ed. São Paulo: Hucitec; 2004..

A população foi intencionalmente escolhida e convidada a participar do estudo por meio da técnica da bola de neve, em que foi solicitado a cada entrevistada que indicasse outras mulheres que pertencessem à mesma população-alvo de interesse, até se atingir um ponto de saturação1414 Hoga LAK, Borges ALV. Pesquisa empírica em saúde: guia prático para iniciantes [Internet]. São Paulo: EEUSP; 2016 [citado 14 Set 2020]. Disponível em: https://repositorio.usp.br/directbitstream/228e30da-9a5a-4467-9814-e4a5cff919a3/HOGA,%20L%20A%20K%20doc%20112e.pdf
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. As participantes foram divididas em dois grupos, um com seis militantes em movimentos sociais e outro com oito não militantes, totalizando 14 mulheres. Como critérios de inclusão, foram considerados: mulheres cisgênero, com orientação lésbica ou bissexual, maiores de 18 anos e que residissem na cidade de São Paulo. Buscou-se garantir dentro dos dois grupos a diversidade em relação a marcadores sociais da diferença.

Sobre isso, Zamboni1515 Zamboni M. Marcadores sociais da diferença [Internet]. São Paulo: E-disciplinas; 2014 [citado 4 Mar 2022]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509716/mod_resource/content/0/ZAMBONI_MarcadoresSociais.pdf
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esclarece que:

Marcadores sociais da diferença são sistemas de classificação que organizam a experiência ao identificar certos indivíduos com determinadas categorias sociais. [...] Cada uma dessas categorias de classificação está associada a uma determinada posição social, possui uma história e atribui certas características em comum aos indivíduos nela agrupados1515 Zamboni M. Marcadores sociais da diferença [Internet]. São Paulo: E-disciplinas; 2014 [citado 4 Mar 2022]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509716/mod_resource/content/0/ZAMBONI_MarcadoresSociais.pdf
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(p. 14-15)

O autor ressalta que os indivíduos estão sempre articulados na experiência individual, nos discursos e na política, intimamente ligados às relações de poder.

Nesse sentido, Saffioti1616 Saffioti HIB. Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento? Crit Marx. 2000; 1(11):71-5. propõe a reflexão articulada das categorias gênero, raça/etnia e classe a partir da metáfora do nó. Segundo ela, não deveríamos buscar a primazia de uma ou outra categoria, isolá-las enquanto estruturas separadas ou ainda as considerar uma somatória, já que elas se fundiram historicamente, em uma imbricação que torna a análise complexa.

Motta1717 Motta D. Desvendando o nó: a experiência de auto-organização das mulheres catadoras de materiais recicláveis do Estado de São Paulo [tese]. Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2017. acrescenta que, no imbricamento dessas estruturas, outras formas de diferenciação passam como linhas por entre esse nó frouxo, entre as quais cita: idade, sexualidade, religiosidade e nacionalidade.

Dialogando com o nó de Saffioti, o conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw, “[...] visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis-heteropatriarcado”1818 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019. (p. 14). Ela também recrimina hierarquias entre eixos de opressão, os quais devem ser observados por meio da compreensão de quais condições estruturais atravessam os corpos, considerando os contornos identitários em cada sujeito ou contexto.

Em relação à participação em movimentos sociais, é importante destacar que, historicamente, o engajamento nos movimentos de gays, lésbicas e bissexuais foi majoritariamente formado por pessoas brancas de classe média. Tal fato traz aos não brancos um sentimento de exclusão e a percepção de que a militância é incapaz de considerar o racismo e as diferenças culturais1919 Almeida G, Heilborn ML. Não somos mulheres gays: identidade lésbica na visão de ativistas brasileiras. Genero (Niteroi). 2008; 9(1):225-49.. Essa crítica tem embasado, nas últimas décadas, o surgimento de movimentos de lésbicas e bissexuais negras, mas a transformação é processual. Portanto, ao discutirmos as diferenças entre militantes e não militantes é importante considerar essa historicidade, ainda que neste estudo tenha se apresentado uma diversidade racial entre as mulheres entrevistadas.

Para a coleta e produção dos dados foi utilizado como instrumento a entrevista semiestruturada. Ela segue um roteiro de perguntas previamente definido, mas mantém certa flexibilidade de modificar ou formular novas questões visando obter as informações que interessam ao objetivo do estudo1313 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8a ed. São Paulo: Hucitec; 2004.. As entrevistas foram realizadas individualmente; conduzidas presencialmente e on-line; ocorreram no período de janeiro a junho de 2020; e tiveram duração média de uma hora. O roteiro buscou conhecer aspectos da história das mulheres, tais como: vivência em relação à sexualidade; histórico de saúde e experiência com a saúde e a enfermidade; utilização dos serviços; e as relações com equipes e profissionais de saúde. Visando preservar a identidade das participantes, suas identificações foram substituídas por nomes que marcaram a história na defesa das pautas de mulheres lésbicas e bissexuais no Brasil.

Para análise do material foi utilizada a técnica da análise de conteúdo2020 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011., a qual possui como função primordial um desvendar crítico. Ela buscou compreender aquilo que está por trás do significado das palavras e se dividiu em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados.

Foram identificados campos temáticos específicos, que refletiram repetições, semelhanças e diferenças nos relatos das participantes, sistematizados em planos de visibilidade. A partir deles e por meio do diálogo com a literatura, buscou-se responder ou mesmo apontar novas direções para as perguntas de pesquisa.

Este artigo toma como base uma dissertação de mestrado, que contou com bolsa de financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo, sob CAAE 17221919.0.0000.5505. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e discussão

Identidade e reconhecimento de si

A idade das entrevistadas variou entre 27 e 57 anos. Três se identificam como bissexuais, mas no estudo não foram evidenciadas diferenças significativas nos relatos entre bissexuais e lésbicas. Em relação à raça, metade delas se identifica como não brancas, com maior participação nesse grupo de mulheres pardas e pretas. A maioria possui ensino superior completo, o que não se mostrou necessariamente ligado à renda. As três mulheres com renda mais baixa, inferior a um salário mínimo, não participam da militância em movimentos sociais. Entre as militantes, há integrantes do movimento LGBT, feminista e negro. O quadro 1 descreve as participantes.

Quadro 1
Caracterização das participantes

Ao contar sobre si, cada uma das mulheres foi trazendo um pouco de sua construção identitária, mostrando diferentes maneiras de se reconhecer enquanto sujeitos sociais, incluindo a percepção de sua sexualidade.

Entre as mulheres que não integram movimentos sociais, com destaque para as de classe social mais baixa, as próprias histórias eram percebidas e narradas como pouco interessantes ou relevantes para o estudo. Em relação à sexualidade, elas apresentaram modos diversos de compreendê-la e expressá-la, adotando tanto a discrição quanto o enfrentamento, particularmente em relação à família.

Nunca tive problemas com a minha sexualidade, com a minha homossexualidade, inclusive, mas nunca coloquei isso abertamente por questões de trabalho, né? Então como eu trabalho com crianças e adolescentes, eu faço de conta que sou uma pessoa assexuada.

(Cassandra Rios)

[...] desde quando eu me assumi, a primeira coisa que eu fiz foi falar pra minha família logo, eu sou meio retardada, sabe, eu sou muito atura ou surta, sou e pronto. Vocês que lutem aí pra aceitar essa minha nova fase.

(Maria Ednalva Bezerra)

Em relação às mulheres que integram movimentos sociais, um aspecto comum foi a construção de narrativas analíticas e com ênfase nas contribuições para as demandas de lésbicas e bissexuais. Destacaram-se ainda algumas similitudes na leitura sobre a sexualidade, que é trazida como uma questão política, uma vivência relacionada a um modo de estar no mundo e que pode ter diferentes impactos sociais.

Antes, a forma que eu via a minha sexualidade era diferente. Todas essas experiências políticas, institucionais, de rede, práticas também, né? Eu passei a enxergar diferente a minha sexualidade. Hoje eu vejo que ela tem uma expressão no mundo, que é muito decisória em alguns casos.

(Maria Aparecida Kopcak)

Foram identificadas diferenças entre esses dois grupos, que, sem o intuito de homogeneizá-las ou reduzi-las dentro de tal sistematização, buscaram compreender as subjetividades emergidas das narrativas.

A participação no movimento social parece ter um papel importante na construção de um certo jeito de viver a identidade. Essa atuação traz conhecimento, significantes, significados e consciência de questões por vezes veladas; e costuma impulsionar movimentos de transformação no âmbito das relações pessoais e processos de rejeição vivenciados. Uma forma de ressignificar as dores que marcaram suas histórias seria pela afirmação do orgulho, relacionado a uma ideologia da visibilidade apresentada pela maior parte do movimento lésbico1919 Almeida G, Heilborn ML. Não somos mulheres gays: identidade lésbica na visão de ativistas brasileiras. Genero (Niteroi). 2008; 9(1):225-49.. Assim, compreendemos que uma mulher lésbica ou bissexual militante traz concepções sobre sua sexualidade e direito à saúde que a projetam de modo potencialmente mais ativo na relação com profissionais de saúde quando comparada a uma mulher não militante.

Preconceitos e discriminação

A identidade é ainda atravessada por marcadores sociais da diferença, que se relacionam às diferentes experiências de preconceito.

Foi identificado nos relatos que a leitura social dos corpos das mulheres, a partir de um padrão sexista, impacta as que performam estética masculinizada em maiores graus de preconceito. Deleuze e Parnet2121 Deleuze G, Parnet C. Diálogos. São Paulo: Escuta; 1998. apontam a existência de uma máquina binária que dita a distribuição dos papéis, que faz com que todas as possibilidades de subjetividades obrigatoriamente neles se encaixem, tornando ininteligível o que não se encaixa. Sendo assim, ao rejeitar os papéis femininos tradicionais, algumas lésbicas se posicionam fora do paradigma dominante de gênero, gerando um mal-estar social.

Por outro aspecto de estética corporal, no empírico destacaram-se histórias em que vivências de racismo, gordofobia e preconceito diante de uma má formação congênita se evidenciam primeiro ou trazem maior sofrimento do que a homofobia. Outras vezes, tais identidades são vistas como cumulativas, no sentido de potencializar a exclusão.

Eu vou partir daquela fala, né? “A primeira impressão é a que fica”. Então a minha primeira impressão como pessoa é ser essa mulher negra. Num segundo momento, pode vir a sexualidade, né? Pelo estereótipo, o jeito de utilizar uma roupa ou de usar alguma coisa assim, tá um pouco fora daquele padrão feminino, né? Então pode ser que isso num segundo momento impacte, mas a cor, a raça e o gênero, eles vêm sempre em primeiro lugar.

(Marielle Franco)

[...] eu fico imaginando: é mulher, já é difícil... é mulher, é negra, já é difícil... é mulher, é negra, é lésbica... e é mulher, é negra, lésbica e gorda, aí você fala “porra”. [...] Porque assim... quanto mais restrições você tem pela sociedade, aí entra o preconceito, você vai tendo mais restrições.

(Claudete Teixeira Costa)

Os conceitos de marcadores sociais da diferença, interseccionalidade e a metáfora do nó de Saffioti, discutidos anteriormente, dialogam com os diferentes agenciamentos que cada uma das entrevistadas faz das categorias gênero, raça/etnia, sexualidade, imagem corporal, deficiência, entre outras, na construção e vivência de suas identidades, impactando na singularidade de processos de discriminação.

Assim como alguns autores1515 Zamboni M. Marcadores sociais da diferença [Internet]. São Paulo: E-disciplinas; 2014 [citado 4 Mar 2022]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509716/mod_resource/content/0/ZAMBONI_MarcadoresSociais.pdf
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16 Saffioti HIB. Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento? Crit Marx. 2000; 1(11):71-5.

17 Motta D. Desvendando o nó: a experiência de auto-organização das mulheres catadoras de materiais recicláveis do Estado de São Paulo [tese]. Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2017.
-1818 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019., compreende-se que a ideia de a identidade lésbica/bissexual ficar subsumida ou secundarizada diante de determinados marcadores sociais da diferença que antecipariam a exclusão, levantada nos pressupostos, seria uma análise simplista, que isola as categorias e reproduz a hierarquização generalizada entre eixos de opressão. Cada mulher acaba por fazer essa hierarquia ou considerar a somatória desses marcadores a partir das condições singulares que atravessam sua identidade, história, vivências e contexto.

Tais contornos, consequentemente, também impactam em seus processos de cuidado em saúde.

Abordagens e estratégias no uso dos serviços de saúde

Verificou-se que pouco se fala sobre a homossexualidade em mulheres nos serviços e que quando, mesmo diante do entrave inicial, a mulher revela sua identidade lésbica ou bissexual, ela está sujeita a abordagens explicitamente homofóbicas, que chegam a propor a heterossexualidade como solução para suas questões de saúde.

[...] já tive casos de médico falar que eu precisava passar pela experiência de ter uma relação com um homem pra saber se eu resolvia o meu problema, né? Então... é isso, esse tipo de coisa que a gente acaba ouvindo na saúde pública, infelizmente.

(Cassandra Rios)

Mesmo quando não há esse tipo de violência, a sexualidade raramente é considerada na definição de necessidades de saúde. As entrevistadas não militantes enxergam essa abordagem de forma natural e positiva.

[...] dependendo do profissional que você vai, ele te deixa tão à vontade que isso acaba não sendo relevante no momento. Como graças a Deus eu sempre peguei profissionais bons, isso fica irrelevante.

(Maria Ednalva Bezerra)

Já mulheres militantes criticam e acreditam que isso interfere em seu cuidado. Evidenciam incômodo diante de um roteiro de perguntas em atendimentos relacionados à saúde sexual e reprodutiva que pressupõe a heterossexualidade e, ao responderem que fazem sexo com mulheres, percebem que os profissionais mudam suas condutas.

[...] aí eu falei: “eu transo com mulheres”, e ele: “ah não, então tá bom, tá tudo bem, beleza”, né? Aí eu perguntei se ele não ia me pedir nenhum exame e ele disse que não, que não precisava. Então, só porque nós somos mulheres lésbicas, né? A gente também tá proporcionada a qualquer tipo de doença. [...] De achar que a gente não tem a penetração do pênis, a gente não corre o risco de ter alguma doença.

(Elizabeth Calvet)

Estudo feito por Barbosa e Facchini2222 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2009; 25 Supl 2:291-300. indica desapontamento das mulheres lésbicas com o despreparo dos profissionais em atendê-las com a mesma desenvoltura que dispensam às heterossexuais, o que acaba colocando-as na clandestinidade a partir do não atendimento de suas demandas de saúde sexual ou pela negação de informações essenciais que deveriam lhes ser disponibilizadas.

Como já apontado, a construção identitária dentro da militância facilita o acesso a conhecimentos acerca da sexualidade, do próprio corpo, necessidades, direitos em saúde e, portanto, um olhar crítico para as situações vivenciadas.

A partir das narrativas, evidenciou-se que, baseadas em suas histórias de vida e experiências de (des)cuidado acumuladas, são construídas estratégias na utilização dos serviços de saúde, de modo a evitar ou manejar situações de preconceito. Uma delas é a de não frequentar os serviços de saúde, deixando de realizar, por exemplo, os exames de rastreamento na periodicidade recomendada. Apesar de preocupante, tal estratégia é uma recusa a um atendimento desimplicado ou até mesmo desrespeitoso e não pode ser utilizada para culpabilizar a usuária por uma suposta não adesão ao tratamento. Para Merhy2323 Merhy EE. Humanizar o que (des)humanizamos? Como assim? [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2015 [citado 4 Mar 2022]. p.14-5. (Suplemento: Em defesa do SUS universal e igualitário). Disponível em: http://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2015/12/encarte-SUS-le-monde.pdf
http://www.abrasco.org.br/site/wp-conten...
, as resistências são lugar de potência, pois são modos de negar os atos que excluem os indivíduos como sujeitos desejantes e singulares.

Algumas mulheres relataram que, diante de experiências negativas ou do medo de que elas ocorram, procuram serviços ou profissionais de saúde que claramente não possuem abordagens discriminatórias. É necessário considerar que essa estratégia esbarraria no modo de organização e funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), no qual escolher o profissional raramente é possível33 Almeida G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis. 2009; 19(2):301-31.. Desse modo, acaba sendo mais adotada por mulheres de classe média, que têm possibilidade de arcar com os custos de um plano de saúde privado.

(In)visibilização da sexualidade na busca do cuidado

Conectada a manejos já apontados, a tentativa de (in)visibilização da sexualidade como forma de minimizar discriminações é particularmente importante, pois é carregada de sentidos e significados. Além de considerar que falar sobre a sexualidade não é necessário, há algumas participantes que acreditam que ela deva ser colocada em suspenso no atendimento.

Quando eu vou pra uma médica fazer uma consulta, eu não tô pensando que eu sou uma mulher lésbica, eu tô pensando que eu sou uma mulher e que eu preciso do atendimento de alguém, né?

(Lotta de Macedo Soares)

[...] vou no posto, faço os exames normal, como qualquer outra mulher.

(Josenita Duda Criaco)

Contudo, um movimento contrário se evidenciou entre algumas militantes, de dar visibilidade e falar espontaneamente sobre a sua sexualidade. Destacou-se também entre estas a adoção de posturas afirmativas ou combativas, em contraponto a atitudes apaziguadoras de outras.

[...] ela [amiga de militância] já foi pro médico pronta pra briga, entendeu? Tipo assim, “se alguém falar qualquer coisa, eu já vou virar aqui e tal”. [...] e aí ela fala, “eu já chego desse jeito mesmo, porque se eles me agredirem, eu já tô pronta pra reagir”.

(Marcela Maria)

Rich2424 Rich A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas [Internet]. 2012 [citado 4 Mar 2022];4(5):1-28. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309
https://periodicos.ufrn.br/bagoas/articl...
popularizou o termo “heterossexualidade compulsória” a partir da compreensão da heterossexualidade como uma instituição política, que trabalha em favor da manutenção da dominação masculina. Sua consequência inevitável seria a invisibilização da existência lésbica nos diversos âmbitos da sociedade, já que é vista como rejeição à dominação e a esse modo compulsório de vida.

Medeiros2525 Medeiros CP. “Uma família de mulheres”: ensaio etnográfico sobre homoparentalidade na periferia de São Paulo. Estud Fem. 2006; 14(2):535-47. compreende que a vinculação ou não ao movimento lésbico produz distintas políticas da lesbianidade: não militantes costumam se resguardar e reivindicar para si um status de normalidade, procurando adaptar-se ao meio social homofóbico; enquanto as militantes adotam a política de se assumir politicamente e entender a sexualidade como um estilo de vida, afrontando reações lesbofóbicas sempre que necessário.

Nesse sentido, uma das entrevistadas que integra movimentos sociais trouxe uma fala simbólica:

A gente fala “sapatão” por uma questão de intimidade, né? Uma questão... eu também uso muito a palavra “lésbica”, mas uma questão política também, diferente de eu tá andando na rua e alguém me xingar de “sapatão”, né?

(Elizabeth Calvet)

Ela refere utilizar o termo “sapatão” como uma questão política, ou seja, como uma forma de afirmação e visibilidade por meio da ressignificação de um termo historicamente pejorativo, mas também por uma questão de intimidade, no âmbito de relações de confiança. Assim, pode-se pensar que a intimidade favorece a visibilidade e a liberdade; e pode permear os modos como as mulheres circulam e se colocam com os profissionais. Ao falar de relações de confiança e intimidade, estamos falando de vínculo.

Vínculo e aceitação

O percurso feito até aqui indicou os diversos aspectos que impactam no processo de construção de vínculo no cuidado em saúde dessas mulheres. Em uma percepção ampliada, pensando no vínculo de qualquer pessoa com um profissional de saúde, este foi apontado como um grande desafio, considerando a estrutura e funcionamento dos serviços. Porém, para as mulheres lésbicas e bissexuais, esses são agravantes, visto que já há dificuldade de acesso devido ao medo do julgamento.

De uma maneira geral, essa dificuldade de ter vínculo é porque você tem uma rotatividade de profissionais. [...] mas no caso das lésbicas é um agravante, já não volta mesmo. [...] Ela já tem dificuldade de chegar, se ainda não tem uma segurança em relação ao serviço, de como esse serviço vai te receber, o que que justifica, né?

(Marcela Maria)

Foi-se evidenciando que a construção de vínculo para elas, além dos aspectos citados, passa ainda pela aceitação de sua identidade e sexualidade.

E em nenhum momento ele fez nenhum tipo de... não usou de nenhuma piadinha pra falar da minha relação com a minha companheira, nada disso, ela entrou comigo no consultório, [o médico] falou da esposa dele, como se a minha relação fosse uma relação normal, né?

(Cassandra Rios)

Importante neste momento enfocar o significado da palavra “vínculo”. Pichon-Rivière2626 Pichon-Rivière E. Teoria do vínculo. 7a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007., ancorado na Psicanálise, advoga que o conceito de “vínculo” pertence ao campo psicossocial das relações interpessoais, as quais são regidas por um jogo permanente de papéis assumidos e atribuídos, que cumprem determinada função, dando-lhes coerência. Desse modo, está em contínuo movimento e é acionado por motivações psicológicas, delineando a maneira particular pela qual cada indivíduo se relaciona com outros.

Essa concepção instiga a reflexão de que usuárias lésbicas e bissexuais, a partir de suas motivações psicológicas, baseadas em sua história de vida, vivências de discriminação e experiências de cuidado em saúde, assumem e atribuem determinados papéis na relação com o profissional. O mesmo pode-se pensar quanto ao profissional de saúde, que também traz consigo motivações psicológicas para aquele encontro, que podem se basear em sua história de vida, relação com a profissão escolhida, compreensão e valoração acerca da homoafetividade. O encontro dessas motivações e papéis parece determinar como cada um irá se colocar nessa relação particular e como ela irá então se estruturar.

Cecílio1212 Cecilio LCO. Sobre as necessidades de saúde. In: Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. p. 10-23., autor situado no campo da Saúde Coletiva, caracteriza como elemento constitutivo do vínculo um encontro intersubjetivo que guarda fortes componentes de espontaneidade, empatia e troca. Segundo ele, vínculo possui natureza terapêutica, principalmente quando favorece uma postura mais autônoma do usuário. Na perspectiva da produção de relações entre usuário e profissional, a capacidade de construir vínculo é apontada como um dos elementos que compõem a dimensão profissional da gestão do cuidado em saúde.

O vínculo é elemento central para que a pessoa se sinta cuidada e é considerado uma necessidade de saúde1212 Cecilio LCO. Sobre as necessidades de saúde. In: Cecílio LCO, Lacaz FAC. O trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2012. p. 10-23.. Contudo, retoma-se a questão para mulheres lésbicas e bissexuais da aceitação de sua sexualidade para o estabelecimento dessa relação. Verifica-se, por se tratar de um tema ainda visto como tabu pela sociedade, que algo natural precise passar pelo crivo da aceitação do outro para que seja possível estabelecer um laço. É somente com esse aval do profissional que se abre possibilidade de diálogo e construção de vínculo.

A partir desse crivo, destacou-se nas entrevistas o estabelecimento de vínculo com profissionais da área de saúde mental, especializados em infecções sexualmente transmissíveis (IST), que fazem parte da população LGBT ou vinculados a instituições que gozam da confiança das mulheres, como serviços universitários e ligados a movimentos sociais. Seja devido a valores individuais e coletivos mais progressistas, seja por habitualmente em sua prática lidarem com doenças já estigmatizadas, ou ainda por também sentirem na pele processos discriminatórios, tais profissionais e serviços parecem ter maior abertura, empatia e cuidado com a questão da sexualidade, o que se articula com as motivações psicológicas apontadas por Pichon-Rivière2626 Pichon-Rivière E. Teoria do vínculo. 7a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007..

Entre as militantes, foi relevante ainda a construção de vínculo com profissionais de saúde que também integram movimentos sociais.

Eu tenho uma carta na manga. A carta na manga se chama [nome da médica]. [...] A gente se conheceu no movimento LGBT, no movimento em defesa da mulher. [...] e aí eu ligo pra ela, “pelo amor de Deus, o que que tá acontecendo? Que que eu faço?”. Aí ela me acompanhou assim, sabe? Me orientou. [...] e eu não tive necessidade de ir, de me expor num centro de saúde, é isso. Prefiro acessar essa rede paralela, sabe? Que é do movimento, você pode falar tranquilo, a pessoa sabe que você foi casada com mulher, enfim, sabe que são coisas que podem acontecer. No centro de saúde eu não tinha essa mesma relação afetiva, pronto. [...] É diferente da médica ginecologista que tá no centro de saúde. Ah, ela é a mina que levanta bandeira com a gente.

(Cássia Eller)

Nessa “rede paralela” descrita pela entrevistada, não é necessária preocupação com a aceitação, visto que ela já é óbvia, e o fato de compartilharem ideais e um espaço de luta favorece relações de empatia e cuidado. Entretanto, ela abordou essa alternativa como uma “carta na manga”, ou seja, uma estratégia, que requer iniciativa e contatos.

Almeida33 Almeida G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis. 2009; 19(2):301-31. aponta que, no momento que o movimento LGBT estava mobilizado no enfrentamento da epidemia de HIV/Aids, contou com a colaboração de alguns profissionais de saúde na elaboração de materiais com informações cientificamente legitimadas. Já a partir daí, alguns desses profissionais passaram a ser referência para ONGs lésbicas e a receber suas integrantes em seus consultórios.

É importante destacar que além da importância da construção de vínculo no cuidado em saúde, já discutida até aqui, as próprias mulheres explicitaram sua relevância e o desejo de construí-lo com profissionais de saúde, por meio das falas e também das estratégias adotadas no uso dos serviços, buscando segurança e acolhimento de suas necessidades.

O vínculo é do campo relacional e comporta componentes subjetivos. É delicado e complexo tentar fazer recomendações para que ele se efetive. Como necessidade de saúde e caminho para o atendimento de outras necessidades, demanda um olhar cuidadoso de serviços e profissionais de saúde.

Pensando no processo de construção de vínculo, Moscheta2727 Moscheta MS. Responsividade como recurso relacional para a qualificação da assistência à saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2011. advoga a responsividade como recurso relacional para a qualificação da assistência à saúde da população LGBT. Segundo ele, responsividade é uma postura, “[...] uma disposição à relação humana que se fundamenta em escolhas éticas e que tem por objetivo criar um contexto favorecedor à emergência da interação que articule as diferenças criativamente”2727 Moscheta MS. Responsividade como recurso relacional para a qualificação da assistência à saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2011. (p. 155).

Ao longo da discussão, foram apontados elementos que dificultam a construção do vínculo com mulheres lésbicas e bissexuais – presunção da heterossexualidade da usuária, práticas discriminatórias, não reconhecimento e/ou deslegitimação da sexualidade – e dispositivos que facilitam – escuta livre de julgamentos, reconhecimento da identidade/práticas sexuais, investigação das necessidades e implicação no atendimento a elas. Tais informações podem indicar caminhos para o enfrentamento de discursos que culminam no distanciamento e para a construção de discursos e práticas que aproximam, colocando ênfase na construção conjunta de possibilidades no cuidado em saúde.

Conclusão

Mulheres que integram movimentos sociais trazem em seu modo de se colocar no mundo e na relação com o outro a afirmação do orgulho e uma ideologia da visibilidade, projetando-se de maneira mais ativa na reivindicação de seu cuidado em saúde.

Marcadores sociais da diferença como raça, classe e território, além da estética corporal, apresentaram-se como atravessadores importantes nas vivências de preconceito e discriminação, muitas vezes potencializando-as. Em contraponto à primazia de uma ou outra categoria, a compreensão articulada das categorias se apresenta como um caminho mais produtivo, a partir da análise de como as condições estruturais impactam cada sujeito singularmente.

Esses dois componentes interpenetram seus mapas de cuidado, a partir de modos distintos de percepção de (des)cuidado e da adoção de diferentes estratégias no encontro com profissionais e no uso dos serviços de saúde.

Diante de todos esses aspectos, a construção de vínculo entre mulheres lésbicas e bissexuais e profissionais de saúde é um desafio e passa pela lógica da aceitação de suas identidades e sexualidades. Considerando isso, relações potentes foram identificadas entre alguns perfis específicos de profissionais que compactuam com valores morais não opressores e de valorização da diversidade. Entre as militantes, ganhou destaque o estabelecimento de vínculo com profissionais de saúde que são companheiras de militância.

Compreende-se que o vínculo se apresenta como uma possibilidade de enfrentamento de situações de vulnerabilidade. Sendo assim, conhecer os desafios, estratégias e caminhos trilhados por essas mulheres é relevante para que haja investimento dos serviços e organização de processos que favoreçam esse cuidado.

Agradecimentos

Agradecemos a cada uma das mulheres entrevistadas, que generosamente compartilharam sua história de vida com todas as suas dores e amores, tornando esta pesquisa possível.

  • Pereira AG, Nasser MA, Chioro A. “Sapatão” é só para os íntimos: vínculo no cuidado de mulheres lésbicas e bissexuais. Interface (Botucatu). 2022; 26: e220161 https://doi.org/10.1590/interface.220161
  • Financiamento

    O trabalho contou com bolsa de financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2022
  • Aceito
    10 Ago 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br