Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros

Pandemia, Sistema Brasileño de Salud (SUS) y Salud Colectiva: com-posiciones y aperturas hacia otros mundos

Emerson Elias Merhy Débora Cristina Bertussi Mara Lisiane de Moraes dos Santos Nathalia Silva Fontana Rosa Helvo Slomp Junior Clarissa Terenzi Seixas Sobre os autores

Resumos

O objetivo deste ensaio é produzir memórias e problematizar uma série de redes, tramas, disputas e tensões que estão sendo operadas no país diante da pandemia da Covid-19. O texto está constituído por cinco platôs que buscam dar visibilidade e dizibilidade para um diálogo com a produção de novas realidades de socialização no contexto atual. Mais do que ofertar ideias para serem reproduzidas, construímos linhas de pensamento com as quais esperamos afetar e, assim, disparar novos encontros e pensamentos. Com isso, possibilitar a disruptura do mundo pré-pandemia, que não mais existe, e a abertura para a construção de um “mundo outro”, no qual a vida em sua multiplicidade é o comum de todes, e um equivalente geral para qualquer posicionamento ético no agir em saúde.

Palavras-chave
Saúde Coletiva; Políticas públicas de saúde; Covid-19; Sistema Único de Saúde; Atenção Básica à Saúde


El objetivo de este ensayo es producir memorias y problematizar una serie de redes, tramas, disputas y tensiones que se están operando en el país ante la pandemia de Covid-19. El texto está constituido por cinco escenarios que buscan proporcionar visibilidad y capacidad de expresión para un diálogo con la producción de nuevas realidades de socialización en el contexto actual. Más que ofrecer ideas para reproducción, construimos líneas de pensamiento con las que esperamos afectar y, de tal forma, disparar nuevos encuentros y pensamiento. De esa forma, posibilitar la disrupción del mundo pre-pandemia que no existe más y la apertura para la construcción de “otro mundo”, en el cual la vida en su multiplicidad es el común para todos y un equivalente general para cualquier posicionamiento ético en la actuación en salud.

Palabras clave
Salud Colectiva; Políticas públicas de salud; Covid-19; Sistema Brasileño de Salud; Atención Básica


Apresentação

Como um pequeno guia para o leitor, gostaríamos de dizer que escrevemos este artigo como uma composição de textos-platôs que podem ser lidos na ordem direta ou ir aos saltos – como em uma Rayuela de Cortázar. Procuramos romper com uma escrita analógica, sequenciada, e optamos por uma (des)ordem indicada pela premissa de que cada platô tem em si uma consistência e uma singularidade própria, mesmo que atravessada pelos outros platôs.

Essa ideia é inspirada na produção de Deleuze e Guattari, no material Mil Platôs11 Deleuze G, Guattari F. Coleção mil platôs. 2a ed. São Paulo: Editora 34; 2012. 5 Volumes., em que buscam, com a escrita, evitar algo que nos parece muito natural: o pensamento como imagem que representa flashes da realidade, e o raciocínio linear acumulativo sequencial.

Essa estética da escrita, mais do que oferecer ideias para serem reproduzidas, deseja afetar e produzir novos encontros, pensamentos e, com sorte, devires de “mundos-outros”22 Pelbart PP. A arte de instaurar modos de existência que ‘não existem’. In: Bienal de São Paulo, organizadora. Como falar de coisas que não existem. São Paulo: Bienal de São Paulo; 2014..

Platô pandemia e nós

Neste momento, são vários os enunciados que nos atingem cotidianamente pelo novo coronavírus e pela situação de pandemia em que nos encontramos:

“Quando acabar essa situação, vamos nos ver de novo…”. “Depois da pandemia, a vida vai voltar ao normal…” “Logo, logo, após a vacinação em massa, nos veremos novamente…”. “Não vejo a hora de isso acabar para poder voltar à minha vida…”

Dentro dessas enunciações, sempre coletivas, nos escapam outras que anunciam que essa situação não existe, negam a própria existência da pandemia e seus efeitos nefastos para as vidas, individuais e coletivas. E nos escapa que muitos continuam levando a vida do jeito de sempre, não adotando mudanças para evitar a propagação do vírus.

Poderíamos dizer que há aqueles que fazem isso por não acreditarem no fato de a pandemia existir, e aqueles que, para poderem manter minimamente suas condições materiais de vida, precisam circular para trabalhar.

Há também uma certa dificuldade em percebermos quanto de negacionismo habita nessas enunciações, não só porque negam a pandemia, mas porque não conseguem imaginar que, no pós-pandemia, não há mais um mundo que se parecerá com o que conhecemos antes, ao qual se possa voltar.

Do mesmo modo, achar que as estratégias do campo da saúde podem ser baseadas somente em uma versão restrita da ciência, ou que a vacinação em massa pode nos devolver o mundo anterior, é, sem dúvida, um negacionismo de outro tipo.

Já vivemos o pós-pandemia no momento em que escrevemos este artigo, e não há um “mundo de antes” ao qual se possa voltar. Um mundo que, diga-se de passagem, não era nada interessante, pois se olharmos o que acontecia no Brasil antes dessa crise sanitária (e das outras crises por ela desencadeadas) veremos um país recortado por graves desigualdades sociais – no acesso à saúde, à educação, à cultura. A mortandade de pessoas negras por violências diversas sempre foi um vexame. O extermínio dos povos originários era incessante. A destruição das vidas pela contaminação e pela destruição ambiental já era incalculável.

Voltar a esse mundo pré-pandemia não é nada interessante, é simplesmente aceitar que o pior de antes é melhor que o de agora, o que não encontra respaldo nos desejos desses que seguem sendo os principais grupos vulnerabilizados e excluídos de vidas decentes.

A pandemia desnudou as várias tensões constitutivas do nosso processo civilizatório, construído ao longo dos últimos séculos e centrado na produção de vidas descartáveis no contexto do capitalismo vigente. Expôs com crueza o jogo do necropoder e da necropolítica como biopolíticas contemporâneas, que valorizam capitalisticamente as vidas que devem e que não devem, ou até mesmo, não necessitam viver.

Tal processo civilizatório traz para o visível o quanto o Estado existe e não existe33 Merhy EE. Saúde e direitos: tensões de um SUS em disputa, molecularidades. Saude Soc. 2012; 21(2):267-79. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000200002.
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como algo que emerge em contextos nacionais, na medida em que se evidenciam os jogos de interesses e governabilidade sobre as “tecnoburocracias” estatais das grandes corporações, colocando em xeque a própria noção de nação e a existência de um Estado nacional. Isso abre um problema-chave para paradigmas que trabalham com o direito social em sociedades nacionais concretas, pautados nas concepções eurocentradas da teoria política que se construiu nesses últimos séculos sobre Estado, sociedade e governos.

Quem, ao viver o que estamos vivendo, consegue dizer que, ao término da pandemia, poderemos voltar a ser como éramos? Quem nos garante que poderemos abrir mão desses modos atuais de construirmos nossas relações, ampliadas pela vida real do virtual, do comunicativo a distância, dos jogos de afetos por outras lógicas de encontros e presenças? Quem se sente confortável em entender a relação Estado-sociedade nos moldes mais clássicos das teorias políticas? Quem consegue garantir que já não estamos em um outro mundo, ainda capitalístico e explorador da vida de outres, e não em um “mundo outro”22 Pelbart PP. A arte de instaurar modos de existência que ‘não existem’. In: Bienal de São Paulo, organizadora. Como falar de coisas que não existem. São Paulo: Bienal de São Paulo; 2014.? Essas são questões-chave para podermos imaginar que muito do que construímos como competência para agir e viver, no mundo em que vivíamos, já não produz efeitos tão efetivos.

A Saúde Coletiva brasileira que o diga, ao não conseguir sair de seus duros referenciais de ciência de Estado44 Merhy EE. Saúde Coletiva, pós-estruturalismo e redes vivas de existência: caminhos para pensar o nosso tempo. Saude Redes. 2018; 4(4):9-21. Doi: http://dx.doi.org/10.18310/2446-4813.2018v4n4p09-21.
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e de suas concepções de teorias políticas já inaplicáveis. Antes, vale nos debruçarmos sobre essa máquina de governar que está sendo fabricada na lógica capitalística e não na lógica da produção de um mundo outro, na qual as vidas em suas diferenças seriam o patrimônio central da riqueza que poderíamos ter.

Nesse platô e nos demais, as grandes questões localizam-se em torno da construção de um diálogo com a produção de novas realidades de socialização no contexto da pandemia, com base na noção-chave de que “não há volta para o mundo de antes” e de que estamos diante da possibilidade de dissolução do paradigma governamental anterior em um Estado não res publica nem nacional. Ainda, quanto essas novas realidades são mal percebidas, ou negadas, ou nem se constituem em questões relevantes para muitos modos de pensar que estão instituídos em vários coletivos sociais no Brasil.

A pandemia desmanchou mundos. Vivemos a coexistência de novos mundos, os da pandemia e os da pós-pandemia. O futuro já está instalado no presente e se forjando agora nas disputas radicais sobre que mundos queremos produzir.

Ailton Krenak55 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras; 2019. nos provoca trazendo para a cena esses tempos que limitam nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade. Instiga-nos a ampliar os horizontes – não os prospectivos, mas os existenciais. A nossa perspectiva não é a de um novo normal em um outro mundo que pense em retomar as antigas rotinas e encarar os novos desafios, mas a de refletirmos e construirmos um mundo outro, aqui e agora.

Parece-nos pertinente entender esse momento de crise como uma “janela (temporal) de oportunidades” para decifrarmos as ações de que se têm lançado mão para governar nas sociedades capitalistas neoliberais. Esse seria, logo, um desses raros momentos na história em que processos, disputas, jogos de forças com sentidos bem distintos estão explícitos: de um lado, as forças que apontam a valoração de algumas vidas em detrimento de outras, como já indicamos antes; de outro lado, re-existências que apostam em novas formas de organização da maquinaria social capazes de deslocar interesses discriminatórios na construção de políticas sociais e ações nas quais todas as vidas valem a pena ser viabilizadas e socialmente apoiadas.

É nessa direção que a luta pela construção do Sistema Único de Saúde (SUS) expõe de modo exemplar esse processo complexo das lutas que ocupam o cotidiano dos coletivos sociais, sobretudo aqueles que sofrem o efeito da exclusão, do preconceito e das ações necropolíticas. Sobretudo agora, considerando que novas realidades estão se constituindo e que colocam em xeque a própria aposta de institucionalização de um SUS universalista e constituidor de uma rede de proteção social às vidas em todas as suas formas de expressão e sem qualquer discriminação, dentro dos marcos mais formais do que se entende por entes governamentais em termos de responsabilização e efetivação desse campo de política social.

Parece-nos que a pandemia tem criado, ironicamente e em meio a uma mortandade inaceitável, grandes desafios na direção de equacionarmos as experiências que temos vivido, na busca pela construção e pela consolidação dos marcos constitucionais que dão os balizamentos centrais para a fabricação societária do cuidado em saúde, neste momento que disputamos um mundo outro bem distinto do mundo anterior. O rei está nu, e o futuro está no presente, e depende do que fazemos agora.

Platô SUS em produção – experimentações e desvios

Propomos apontar duas dobras que afetam as relações de forças que estamos experimentando para entender a atual conjuntura do SUS.

Uma primeira dobra diz respeito à Constituição Brasileira que, ao definir a saúde como direito universal e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas, mas sem explicitar uma direcionalidade concreta para um SUS eminentemente público, criou para si uma fissura que o setor privado tem explorado, dentro da legalidade e naquilo que o interessa, como uma dobra que direciona o SUS para uma precária “cobertura universal”.

A segunda dobra relaciona-se diretamente ao primeiro platô, que é a entrada de projetos transnacionais no campo da saúde para operar nos chamados territórios nacionais. Essa questão evidencia a inexistência de governabilidade na formulação das políticas públicas, pois muitos dos projetos de modelos de saúde que operamos seguem sendo projetos internacionais que submetem o Brasil a certos pacotes globalizantes. Assim, ao não definir a proposta de um SUS eminentemente público, essas forças em disputa ocuparam essa fissura e revelaram a fragilidade da ideia de um Estado Nacional governar as políticas públicas.

A implantação e a expansão do SUS permitiram ao Brasil sair de uma lógica em que poucos tinham acesso aos serviços de saúde para uma lógica de acesso pleno e universal. Porém, se esse cenário de alargamento dos direitos de cidadania para toda a população representou um avanço substancial e inédito na história do Brasil, não se deu sem disputas e permanece inconcluso.

O debate internacional sobre diferentes concepções de universalidade em saúde, polarizado nas propostas de sistema universal versus cobertura universal em saúde, acirrou-se nos últimos anos66 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar AC, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1763-76. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05562018.
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. A disputa entre a saúde como direito e sua exploração como negócio assumiu uma nova dimensão desde o surgimento da proposta de cobertura universal liderada pela Fundação Rockefeller, com a participação de outras fundações representantes do capital internacional e com aval da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Essa proposta promete dar acesso à saúde a todas as pessoas, mas de forma diferenciada de acordo com seu poder aquisitivo: os mais ricos teriam acesso a mais e melhores serviços, enquanto os de média e baixa renda teriam acesso a um “pacote básico”.

Os sistemas universais de saúde são legado dos Estados de Bem-Estar Social, nos quais as necessidades e a proteção social na vida das pessoas passam a ser de responsabilidade do Estado, mesmo em contextos capitalistas e até por conta deles. No Brasil, esse conceito foi adotado, mas os distintos interesses historicamente em disputa implicam contínuo boicote ao SUS, como, por exemplo, financiamento insuficiente.

O conceito de universalidade vem assim sendo esvaziado do seu sentido primordial de direito universal à saúde em proveito do fortalecimento do setor privado na oferta de seguros e serviços de saúde77 CEBES. Manifesto do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde em defesa do direito universal à saúde – Por que defender o Sistema Único de Saúde? Diferenças entre Direito Universal e Cobertura Universal de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Cebes; 2014 [citado 20 Jun 2021]. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/09/Manifesto_Cebes_Sa%C3%BAde_%C3%A9_direito_e_n%C3%A3o_neg%C3%B3cio.pdf
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, e o próprio termo é uma clara tentativa de confundir e capturar as subjetividades por meio de desvios semânticos88 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Cebes-DF realiza debate sobre “cobertura universal X sistemas universais de saúde” [Internet]. Brasília: Conass; 2014 [citado 09 Jun 2021]. Disponível em: https://www.conass.org.br/consensus/730-domingueira-sistema-universal-x-cobertura-universal/
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Em contrapartida, sistemas universais consideram a saúde como resultado de um conjunto de outros subsistemas essenciais, como o da educação, da habitação, do trabalho etc. Há evidências contundentes de que sistemas universais públicos financiados por impostos, organizados nos territórios com a Rede Básica (RB) em interação com os demais serviços de saúde e trabalho em equipe multiprofissional, têm melhores indicadores de saúde e menor gasto66 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar AC, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1763-76. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05562018.
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É necessário lembrar que, desde a Assembleia Constituinte de 1988, o tensionamento de setores parlamentares conservadores articulados no chamado “centrão” foi significativo, e permitiu que eles mantivessem seus interesses particulares, barrando avanços no cenário nacional. Na saúde, forças políticas representadas por planos de saúde, administradoras de benefícios e grandes redes hospitalares privadas estão cada vez mais fortes na relação com os poderes federais. Assim, mais do que um setor privado, referimo-nos a forças privatizantes que vêm, progressivamente, captando mais recursos públicos do SUS para, com frequência, prestar serviços de qualidade duvidosa.

Outra estratégia tem sido o repasse para o setor privado da gestão e da organização dos serviços de saúde, por exemplo, com a abertura de estruturas jurídicas como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público99 Brasil. Presidência da República. Lei nº 9.790, de 23 de Março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como organizações da sociedade civil de interesse público, institui e disciplina o termo de parceria, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Mar 1999. e, posteriormente, das Organizações Sociais de Saúde1010 Salgado VAB. Lei Federal de Organizações Sociais e sua Regulamentação no âmbito do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília, DF; 2016 [citado 20 Mai 2021]. Disponível em: http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/janeiro/34/15.Regulamentacao-da-Lei-de-OS.pdf
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. De lá para cá, as mudanças na legislação que flexibilizam a gestão da saúde por meio da terceirização não cessaram de se expandir na gestão de hospitais, Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Pronto Atendimento, Centros de Atenção Psicossocial, Centros Especializados em Reabilitação etc.

Os interesses de aniquilamento do SUS como sistema universal, integral e de qualidade pretendem um sistema público de baixa qualidade, destinado apenas aos que não podem pagar e que, de toda forma, não darão lucro aos mercados da saúde77 CEBES. Manifesto do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde em defesa do direito universal à saúde – Por que defender o Sistema Único de Saúde? Diferenças entre Direito Universal e Cobertura Universal de Saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Cebes; 2014 [citado 20 Jun 2021]. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/09/Manifesto_Cebes_Sa%C3%BAde_%C3%A9_direito_e_n%C3%A3o_neg%C3%B3cio.pdf
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. Não é de se espantar que os bilionários brasileiros da saúde tenham tido um crescimento recorde de suas fortunas em 2020, com a abertura de capital e a avidez do capital estrangeiro1111 Fontes G. Em ano de pandemia, brasileiros bilionários da saúde ficam mais ricos [Internet]. Uol Economia; 2021 [citado 13 Jul 2021]. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/04/22/forbes-bilionarios-brasileiros-saude-pandemia-covid-19.htm
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Sem dúvida, avançamos muito ao implantar um sistema público de saúde por meio do conceito da Seguridade Social. Mas esse modelo no Brasil acabou se caracterizando como um sistema híbrido, que conjuga direitos derivados e dependentes do trabalho (previdência) com direitos de caráter universal (saúde) e direitos seletivos (assistência). Os avanços do SUS são inegáveis, mas as ações anti-SUS universal persistem, mesmo no interior de governos não autoritários, implicando inclusive negação dos direitos constitucionais.

A pandemia aprofunda o debate sobre o Estado-mercado, expondo os bastidores desses cenários descritos. Essa nova ordem institucional que se coloca para o mundo traz o imperativo do lugar de governança das corporações transnacionais. Essa realidade se produz não somente nas relações de forças visíveis, mas também nos domínios moleculares, aqueles que incidem nos processos de subjetivações, não necessariamente por dentro da maquinaria do Estado, em uma lógica extremamente conservadora e de produção autoritária no governo das vidas.

As noções de Nação e Estado Nacional estão em total desmonte e tais estruturas, que eram pressupostos para o SUS, vão deixando de existir, o que amplifica as ameaças à construção do SUS como política de Estado a serviço de qualquer vida.

Platô experiências e experimentações na produção do cuidado

Se a pandemia abriu uma “janela temporal de oportunidades” para que no âmbito das políticas e dos governos se justificasse a escolha por uma relação cada vez mais estreita – senão promíscua – entre a máquina estatal e o privado, o Estado-mercado como nova ordem institucional também produz efeitos no cotidiano das redes de produção da saúde.

Assim, a pandemia e seu novo risco sanitário serviram de justificativa para a recentralização do cuidado em saúde em espaços como os hospitais e centros de triagem para Covid-19, ordenados por diretrizes como os fast-tracks do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, as equipes da Rede Básica (RB) foram conduzidas a recolherem-se dentro das unidades para quando muito realizarem triagem para Covid-19, atenderem a grupos prioritários, certas urgências e alguns atendimentos a distância, aliás bastante comprometidos em territórios carentes de internet e sinal telefônico.

Observamos um esvaziamento dos modos coletivos de produção do cuidado em saúde que só podem existir com a possibilidade dos encontros e na presença intensiva das equipes nos territórios de vida das pessoas. Simultaneamente, vimos um expressivo retorno do saber biomédico e suas tecnologias duras e leve-duras: protocolos, rotinas, diagnósticos, terapêuticas e fármacos, em atualizações quase diárias, ora pautadas em novos estudos com reconhecimento científico, ora em interesses comerciais vinculados a um projeto negacionista.

A pandemia, dessa maneira, permitiu que narrativas conservadoras e autoritárias na saúde encontrassem terreno fértil para circular. Embora essas narrativas sempre tenham coexistido com as práticas mais cuidadoras e centradas nas vidas dos usuários, antes tendiam a ocupar um lugar marginal em cenários como a RB.

Vimos médicos/as prescreverem tratamentos sem quaisquer evidências científicas de benefícios, ou até mesmo com evidências de riscos; equipes de Saúde Mental voltando a discutir a eletroconvulsoterapia; equipes da RB se desobrigando da continuidade das ações gerais de prevenção, pré-natal, cuidado de usuários com condições crônicas ou agudas não Covid-19 e tratamentos odontológicos; e a drástica diminuição de visitas domiciliares.

Podemos afirmar que a pandemia hoje desmobiliza redes de proteção e controle social, e cria um ambiente propício para que processos decisórios aconteçam de forma autoritária e centralizada, sem prestação de contas, justificados pela urgência sanitária. Esse empobrecimento de redes de apoio atuou em dois sentidos: usuários se tornaram mais vulneráveis perante os serviços, e muitas equipes enfraqueceram sua potência de agir.

Assistimos a uma RB esvaziada e despotencializada no enfrentamento da pandemia, apesar de ter construído ao longo dos últimos 25 anos uma rede altamente capilarizada, com profundo conhecimento dos contextos locais e com experiências consistentes e irrefutáveis no campo dos cuidados de proximidade.

A vacinação contra a Covid-19, alicerçada na capacidade executiva e de planejamento da RB, apesar de ter servido para a revalorização em alguma medida desse espaço, tende a ser limitada a ações de cunho técnico-procedimental, o que corrobora o empobrecimento da RB como espaço de invenção e produção de possibilidades. Ainda assim, a vacinação contra a Covid-19 no Brasil de hoje, tão descoordenada no âmbito nacional, seria ainda mais difícil sem essa RB.

As comunidades, atônitas, recebem chamados contraditórios: de um lado, a adotar medidas de distanciamento social, uso de máscaras e higiene das mãos; de outro, a negar a pandemia, recusar a vacinação e a acreditar, principalmente por meio de fake news, em tratamentos ineficazes. Tais tensões cercam as equipes da RB, já desprestigiadas em seu papel na emergência sanitária, em um ciclo vicioso que intensifica seu apagamento e todas as consequências para seus/suas usuários/as-cidadãos/ãs.

Enquanto isso, o cuidado no território segue interditado, interrompido. A RB se descobre em uma trincheira. E a exceção têm sido as linhas de fuga abertas aqui e acolá, por equipes que resistem e rasgam esses liames aprisionadores, por vezes nadando contra a correnteza.

Porém, essa aposta focada exclusivamente no aumento de leitos hospitalares e de cuidados intensivos e centros especializados de triagem é extremamente limitada1212 Seixas CT, Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santo TBE, Slomp Junior H, Cruz KT. A crise como potência: os cuidados de proximidade e a epidemia pela Covid-19. Interface (Botucatu). 2021; 25 Suppl 1:e200379. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.200379.
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, pois a inexistência de um monitoramento capilarizado libera a transmissão comunitária, culminando em filas para acesso ao cuidado hospitalar. Tais apostas nos parecem “enxugar gelo”: altas taxas de mortalidade convivem com expressivos números de pessoas recuperadas, mas que com frequência evoluem com sequelas importantes. Trabalhadores de saúde esgotados, convivendo com as consequências da Covid-19 e em sofrimento mental.

O cuidado para as outras demandas da saúde, por exemplo, na atenção especializada, fica em suspenso ou extremamente limitado para evitar a proliferação do vírus. Em 2020, ouvia-se que essa situação seria por um tempo determinado, e que em curto ou médio prazo a situação seria controlada e as rotinas seriam retomadas, expectativa que também não se concretizou. A aposta do governo federal na imunidade coletiva, com a relativização – quando não a negação – da importância das medidas não farmacológicas, somada à demora na aquisição de vacinas suficientes, resultou em uma imunização lenta e permitiu tanto o avanço da pandemia no território brasileiro como o surgimento e a disseminação de novas variantes do vírus, incluindo duas cepas “brasileiras”, a Gamma e a Zeta, triste feito igualado apenas pelos EUA e pela Índia, e pelo menos uma variante que acaba de chegar com a Copa América de futebol1313 Adolfo Lutz. IAL confirma casos de variante de interesse que surgiu na Colombia na Copa America [Internet]. São Paulo: Secretaria da Saúde, Governo do Estado de São Paulo; 2021 [citado 13 Jul 2021]. Disponível em: http://www.ial.sp.gov.br/ial/perfil/homepage/destaque/ial-confirma-casos-de-variante-de-interesse-que-surgiu-na-colombia-na-copa-america
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Para além das triagens de casos de Covid-19, recente publicação na Nature Science sobre a resiliência dos sistemas de saúde na gestão da pandemia1414 Haldane V, De Foo C, Abdalla SM, Jung A-S, Tan M, Wu S, et al. Health systems resilience in managing the Covid-19 pandemic: lessons from 28 countries. Nat Med. 2021; 27(6):964-80. Doi: https://doi.org/10.1038/s41591-021-01381-y.
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, com as lições de 28 países, reforça o que outros autores e instituições têm frisado desde o início da crise sanitária: as abordagens baseadas na comunidade e os cuidados primários em saúde são estratégias cruciais para melhores respostas à pandemia, com o cuidado coordenado contínuo e centrado nas pessoas, fortalecido pela incorporação de recursos de saúde comunitários.

Uma tal descaracterização da RB já estava em marcha há algum tempo, talvez desde seu início no Brasil, processo que hoje se soma ao desfinanciamento da saúde, à desconstrução de políticas de formação e desenvolvimento dos trabalhadores de saúde, e à baixa capacidade de gestão do cuidado nas redes de Atenção à Saúde.

A pandemia amplifica o fato de que as populações estão profundamente vulnerabilizadas nas suas existências pelo modo neoliberal de construir as políticas societárias e de empobrecer as vidas, e agora sem poder contar com os cuidados de proximidade ou levadas a temê-los como potenciais lugares de contaminação.

A ausência de protagonismo da RB e de outras ações efetivas do Estado em defesa das vidas vulnerabilizadas deslocou as relações singulares de cuidado na resistência, seja por um protagonismo comunitário seja por autogestão para a sobrevivência. São novos modos comuns de organização da vida, que não passam necessariamente por dentro da maquinaria do Estado. Entendemos tais relações como parte da intrincada malha de forças-valores que desde sempre disputa projetos por dentro da RB e do sistema de saúde no Brasil1515 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saude Debate. 2019; 43(6):70-83. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606.
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Se olharmos para as forças-valores que ao longo das décadas configuraram a RB brasileira – trabalho, clínica-cuidado, governo de si e do outro, território, linha de cuidado e trabalho em equipe –, veremos que a cada tempo e lugar se conformam arranjos mais ou menos cuidadores, mais ou menos abertos aos processos de subjetivação para a produção da vida1515 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saude Debate. 2019; 43(6):70-83. Doi: https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606.
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Nesse momento, em um cenário pandêmico concomitante ao avanço do desmonte de políticas sociais no Brasil, assistimos a um revolver violento em tais forças-valores. Novas premências de controle do trabalho vivo em ato, recrudescimentos de uma desproporção histórica entre a clínica e seus procedimentos diante de relações cuidadoras, com tendência para maior disciplinarização dos corpos nem sempre no sentido do efetivo controle pandêmico, além da retirada das equipes dos territórios com sombreamento deles, enquanto nos serviços e equipes de saúde em geral, incluindo a RB, se vive um reforço na centralidade de certas profissões e especialidades com relação a outras.

Platô Saúde Coletiva – re-emergir e re-existir para “suspender o céu”

O novo panorama mundial coloca à Saúde Coletiva (SC) brasileira novas questões e demandas de análise, como campo de saberes e práticas que vem forjando nosso sistema de saúde desde os anos 1970. Aliás, desde os tempos pré-SUS a SC aponta para um sistema no qual os interesses privados, em todas as suas dimensões, deveriam estar subsumidos às necessidades públicas em saúde1616 Donnangelo MCF, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades; 1976..

A SC é uma invenção brasileira e, ainda que as próprias narrativas sobre sua constituição1717 Paim JS. Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco. Cad Saude Publica. 2007; 23(10):2521-2. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007001000030.
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18 L’Abbate S. A trajetória da Saúde Coletiva no Brasil: análise das suas dimensões políticas e educativas em articulação com a Análise Institucional. Mnemosine. 2018; 14(2):236-62.
-1919 Souza e Silva MJ, Schraiber LB, Mota A. O conceito de saúde na Saúde Coletiva: contribuições a partir da crítica social e histórica da produção científica. Physis. 2019; 29(1):e290102. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290102.
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não sejam exatamente coincidentes, ela teve um caráter inovador/instituinte perante o que existia à época no Brasil1818 L’Abbate S. A trajetória da Saúde Coletiva no Brasil: análise das suas dimensões políticas e educativas em articulação com a Análise Institucional. Mnemosine. 2018; 14(2):236-62. e no mundo, como um espaço de análises críticas sobre a biomedicina e as relações entre saúde e sociedade1919 Souza e Silva MJ, Schraiber LB, Mota A. O conceito de saúde na Saúde Coletiva: contribuições a partir da crítica social e histórica da produção científica. Physis. 2019; 29(1):e290102. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290102.
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Assim, a SC buscou descolonizar a tradição europeia da saúde pública e do que se produziu da medicina preventiva e social norte-americana, com suas características e tecnologias para vigiar e controlar a produção dos corpos, a fim de produzir movimentos outros no campo da saúde.

A SC vai, então, disputar esse campo, especialmente a partir dos anos 1960 e com as lutas pela democratização, associando saúde e democracia como mútua constitutividade. Era uma tentativa de servir, como máquina de Estado, aos interesses de alguns grupos societários, e construir o campo da saúde como uma máquina produtiva que se alimenta da noção de que a vida de qualquer um e de todos é a maior riqueza neste país.

Nessa pretensão, esse campo se propunha inclusive a se contrapor à longa história necropolítica presente no país, permeada de vidas que são imunes e muitas que não são imunes. Imunes perante o funcionamento das regras jurídicas, políticas, societárias e do reconhecimento de que certas vidas têm direitos e outras não.

Fica evidente que o campo da SC tem sido espaço para debater e apontar caminhos para a construção do SUS, na perspectiva da melhoria da saúde dos brasileiros. Em que pesem as invenções da SC no campo do conhecimento e do controle social, ainda há um modo de operar em que as maneiras e valores tradicionais persistem e capturam as redes de pensar, aprender e conhecer, travando os processos de criação2020 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saude. 2008; 6(3):443-56. Doi: https://doi.org/10.1590/S1981-77462008000300003.
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A geração dos primeiros militantes pela reforma sanitária brasileira não se importava de onde vinha o conhecimento, epistemologicamente falando, pois qualquer saber que apontasse para o caminho da construção de uma sociedade democrática seria válido. Isso muda o lugar do saber, porque se aproveitam as diferenças, produz-se enriquecimento e complementação, e não o fracionamento do conhecimento nem a instituição rígida de escolas de pensamento.

Esse processo, no entanto, nunca superou a tensão constitutiva sobre que “coletiva” é essa que adjetiva a “saúde”. Desde os anos 1970/80, alguns de nós2121 Merhy EE. Capitalismo e a saúde pública: a emergência das práticas sanitárias no estado de São Paulo. 2a ed. Porto Alegre: Rede Unida; 2014.,1616 Donnangelo MCF, Pereira L. Saúde e sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades; 1976. apontamos que, sob o manto do “coletivo”, a saúde pública sempre tomou como seu objeto de ação a “população”, como um genérico que não contempla várias outras dimensões que a atravessam. A SC aponta para recortes populacionais que marcariam, no Brasil, grupos sociais profundamente desiguais em termos de características econômicas, raciais, culturais, entre muitas outras.

Sob a perspectiva de “coletivo” podemos trazer para a cena a forma como o campo foi forjado em torno de COM-posições das mais variadas origens. Esse reconhecimento constitutivo não é de lugares exclusivos, pois podem compor entre si de diferentes maneiras, o que daria para a SC modelagens variadas, desde o lugar de uma ciência nômade e inventiva até o de uma ciência de Estado e repetitiva.

Nesse mosaico de modelagens os desafios são muitos, tendo em vista a história das várias apostas de organização de um sistema universal, a multiplicidade de necessidades dos vários grupos sociais no Brasil, todas as disputas, forças e tensões do campo e, atualmente, a pandemia da Covid-19.

Para a potência da SC emergir e participar da construção dos mundos outros é necessário enfrentar suas fragilidades e constitutividades. É necessário re-existir como uma “usina” de produção de projetos e propostas, tanto para o enfrentamento da pandemia por meio dos territórios onde poderão estar os cuidados de proximidade, nos lugares onde as pessoas produzem suas existências, quanto para olhar e pensar em um cenário pós-Covid-19, a partir do hoje, que coloque a saúde em uma outra COM-posição com vários outros setores.

Certamente estamos em um momento importante de problematização do campo da SC, que deve se posicionar como uma máquina de guerra em defesa da vida de todos e todas, em especial dos corpos que são considerados apenas nuamente vivos, menos válidos, descartáveis, invisibilizados, e que com a pandemia estão sendo inviabilizados.

O movimento da SC pode produzir esse mundo outro por essa máquina desejante. Para tal, é fundamental resgatar sua capacidade de produzir linhas de fuga, de furar muros e de retomar sua capacidade de inventividade, sair do enquadramento como máquina do Estado e ocupar o protagonismo, dentro de novas COM-posições para o mundo do cuidado. Fora de qualquer armadilha biomedicalizante, na produção de possibilidades de constituir coletivamente modos de vincular a produção de mais vida nas vidas com ações a priori centradas nas redes de existências dos outros, e não de si mesma. Abrir-se para ser descentrada de si pode lhe proporcionar inventividade e implicação coletiva, no aqui e agora, do que já é um outro mundo pós-pandêmico.

É fundamental não retornarmos ao mundo pré-pandemia, com aqueles desafios conhecidos de defesa do SUS, na qual antigas discussões, impregnadas de sanitarismo, não são suficientes para enfrentarmos os novos problemas. Nesse sentido, reencontrar a sua lógica de ciência nômade e abandonar a lógica normalizadora dominante, hoje. Prestar mais atenção e aprender com os Povos Originários sobre o respeito e a integração com todas as formas de vida. Na cosmovisão desses povos, em determinados momentos, há uma pressão do céu sobre a Terra colocando em risco a humanidade e, quando isso ocorre, é necessário fazer uma parada, um ritual para suspender o céu, isto é, ampliar os horizontes coletivos/existenciais2222 Kopenawa D, Albert B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras; 2015..

A pandemia coloca em xeque a humanidade e amplia a visibilidade aos riscos da saúde da Terra como Gaia, e de todos os seus seres. É necessário um ritual outro para ampliarmos os horizontes e produzirmos mundos com políticas e práticas que deem conta do que está posto no Brasil e no mundo, que intensifiquem as vidas e as potências de existir, um deslocamento radical, para assumirmos que temos muito mais não saberes do que saberes e produzirmos fissuras nos planos, conhecimentos, dispositivos e subjetivações que enquadram e territorializam a SC. Como produziremos um mundo outro, como suspenderemos o céu se continuarmos profundamente capturados por experiências e mundos pré-pandemia, que não mais existem?

Platô o que fazer com nosso imaginário para um mundo outro

Não nos parece possível apenas reativar nossa militância nas frentes de batalha pelo direito universal à saúde, dando voz aos motes que há décadas nos movimentam. Estamos diante de um novo cenário, inédito e cheio de novos desafios e armadilhas, e precisamos estar com todos os sentidos atentos para essa eclosão vertiginosa.

Krenak escreve: “Gaia, organismo vivo que é o Planeta, pode estar dizendo para a gente: Vocês não me escutam, não é? Eu vou desligar alguns de vocês para ver se vocês entendem o que estou falando”2323 Krenak A. Caminhos para a cultura do bem viver. Biodiversidad [Internet]. 2020. [citado 6 Maio 2021]. Disponível em: https://www.biodiversidadla.org/Recomendamos/Caminhos-para-a-cultura-do-Bem-Viver
https://www.biodiversidadla.org/Recomend...
. Que avisos não estamos escutando, vindos das comunidades, das ruas, dos usuários-cidadãos e dos trabalhadores da saúde?

O fato de termos, como oferta pífia de enfrentamento da pandemia, um modelo biomédico endurecido e centralizador e uma RB enfraquecida, não seria um alerta da obsolescência dos modos de se pensar a saúde e operar a política e a gestão?

Por que é tão fácil “perdermos” a RB, construída a duras penas? Aceitando esse caminho reflexivo, poderíamos nos perguntar se de alguma maneira o movimento sanitário brasileiro – involuntariamente e ainda que de seu lugar historicamente minoritário, mas nem sempre popular – poderia ter facilitado a cristalização dessa realidade vivida hoje pela RB. Se sim, reconhecer isso, ainda que nos atinja no cerne da nossa implicação militante, pode ser uma inflexão necessária neste momento em que precisamos construir “mundos outros”.

Talvez tenhamos negligenciado, em nossos “modelos assistenciais”, a necessária potencialização de máquinas coletivas desejantes de produção de vida que não sejam estatais, mas que disponham de mecanismos consistentes de demandar o Estado. Talvez o caráter político que sempre atribuímos à construção do SUS ainda careça de uma transvaloração do que consideramos a política, que não se restringe aos direitos garantidos pelo Estado, mas que também passa pela construção das existências e das amizades, da vida como obra de arte pelos agenciamentos coletivos.

Talvez possamos concluir que enunciar o protagonismo comunitário, apenas enunciando sua construção de dentro da máquina estatal, é deixá-lo à mercê de subjetivações capitalísticas que atravessam inevitavelmente tanto trabalhadores/as (da atenção e da gestão) como usuários/as-cidadãos/ãs, tendendo a produzir mais individualismo e menos vida coletiva, a despeito de existirem diretrizes e fluxos assistenciais pretensamente emancipatórios.

A Covid-19 deve ser vista como uma profunda desconstrutora, que desacomoda nossas certezas incessantemente. E são as máquinas de guerra fora das máquinas estatais que nos colocam o desafio máximo, olhando as ofertas de Krenak, Deleuze, Guattari, Foucault e muitos/as outros/as: romper com a saúde como aparelho estatal que destrói as máquinas desejantes que os vários coletivos criam para si. Com isso, possibilitar a abertura para a construção de um “mundo outro”, no qual a vida em sua multiplicidade é o comum de todes e o único equivalente geral para qualquer posicionamento ético no agir em saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    13 Ago 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br