Conectar e compartilhar: a biossociabilidade de pacientes com câncer

Connecting and sharing: biosociality among cancer patients

Conectar y compartir: la biosociabilidad de pacientes con cáncer

Augusto Bozz Suely Henrique Gomes Sobre os autores

Resumos

As práticas de compartilhar e socializar relatos autobiográficos a respeito do próprio adoecimento constituem formas contemporâneas de o sujeito se relacionar consigo e com o outro. Esse movimento inaugura outros modos de ser e estar no mundo. Analisamos as práticas de se conectar e compartilhar – o escopo e a racionalidade que as agitam – acionadas por pacientes com câncer em duas ocasiões (a primeira se constitui em uma lista de discussão e a segunda, em um guia), destacando suas implicações na subjetividade e na biossociabilidade contemporânea. A hipótese é a de que a emergência do dispositivo de conexão tornou certos modos de ser doente inteligíveis, praticáveis e governáveis.

Dispositivo; Subjetividade; Comunicação; Câncer; Biossociabilidade


Practices of sharing and socializing autobiographical accounts of illness are a contemporary method subjects can use to relate to themselves and to the other. This movement unveils other ways of being in the world. We analyzed connecting and sharing practices – and the scope and rationality that spur them – activated by cancer patients on two occasions (first, a discussion list and, second, a guide), highlighting their implications for subjectivity and contemporary biosociality. The hypothesis is that the emergence of a connection device made certain types of illness at the same time intelligible, practicable, and governable.

Device; Subjectivity; Communication; Cancer; Biosociality


Las prácticas de compartir y socializar relatos autobiográficos con relación a la propia enfermedad constituyen formas contemporáneas por medio de las que el sujeto se relaciona consigo mismo y con el otro. Ese movimiento inaugura otros modos de ser y de estar en el mundo. Analizamos las prácticas de conectarse y compartir –el alcance y la racionalidad que las agitan– accionadas por pacientes con cáncer en dos ocasiones (primero, una lista de discusión y, segundo, una guía) subrayando sus implicaciones en la subjetividad y en la biosociabilidad contemporánea. La hipótesis es que la emergencia del dispositivo de conexión hizo al mismo tiempo ciertos modos de ser enfermo inteligible, practicable y gobernable.

Dispositivo; Subjetividad; Comunicación; Cáncer; Biosociabilidad


Topologias históricas da doença e do adoecimento

Este artigo parte dos pressupostos de que: a) o contemporâneo abarca diversas experiências do adoecimento que. por vezes, amalgamam-se e, por vezes, opõem-se; e b) existe uma topologia, uma dispersão e um relevo próprio da cultura contemporânea que, de certa forma, organizam as diferentes experiências e reforçam uma destas em detrimento de outras presentes e passadas. Isso significa dizer que cada formação social e cultural recorta uma realidade possível para a doença (objeto de saber) e para o adoecimento (modos de experenciar uma determinada doença). A maneira como lidamos com o nosso adoecimento e com o adoecimento do outro varia de acordo com o repertório científico, técnico, instrumental, discursivo e subjetivo que marcam os momentos históricos. Em outras palavras, certa experiência do adoecimento se forma ao longo do tempo, podendo adquirir proeminência e, através de mudanças históricas, esvai-se.

Considere-se os seguintes exemplos: em 29 de janeiro de 2014, o roteirista Henning Mankell publicou, no jornal Göteborgs-Posten, alguns artigos sobre seu tumor no pescoço e no pulmão ccO link original está inativo. Sugerimos conferir a reportagem que saiu no jornal El País (O escritor de romances policiais Henning Mankell anuncia que sofre de câncer. El País. 29 Jan 2014; Cultura. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/29/cultura/1390984611_608018.html ). . No primeiro artigo, Mankell afirma que decidiu escrever sobre sua dura batalha, pois seu sofrimento é semelhante ao de tantos outros pacientes, destacando: “Mas eu vou escrever a partir da perspectiva da vida, e não da morte”. Em seus artigos posteriores, Mankell se pergunta com insistência o que acontece com alguém que descobre um câncer e justifica que é preciso escrever periodicamente sobre a sua enfermidade para ajudar outros pacientes. Em seu terceiro artigo para o jornal Göteborgs-Posten, ele afirma: “Ninguém deve ficar a sós com seu câncer” ddO link original está inativo. Sugerimos conferir a reportagem que saiu no jornal El País (O escritor de romances policiais Henning Mankell anuncia que sofre de câncer. El País. 29 Jan 2014; Cultura. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/29/cultura/1390984611_ 608018.html). . Henning acredita que devemos ter mais solidariedade, pois sozinho o paciente não pode falar sobre seus medos, seus pânicos, suas ansiedades e suas preocupações. O objetivo de seu relato autobiográfico é dar visibilidade à sua dor, compartilhar seu sofrimento e socializar a doença.

Ele não esteve só. O neurologista anglo-americano Oliver Sacks também escreveu sobre o seu segundo diagnóstico de câncer no jornal The New York Times. Seu primeiro artigo, publicado em fevereiro de 2015, tinha como título “Minha própria vida”. Sacks afirma que, mais do que nunca, mesmo doente, seu corpo parece cheio de vida. “[...], sinto-me intensamente vivo, e quero e espero, no tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles que eu amo, escrever mais [...]” 11. Sacks O. My on life [Internet]. New York: The New York Times; 2015 [citado 23 Jun 2021]; Disponível em: http://www.nytimes.com/2015/02/19/opinion/oliver-sacks-on-learning-he-has-terminal-cancer.html?_r=1
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.

Desde 2013, a página Napkin Notes chama a atenção dos usuários do Facebook. Garth Callaghan descobriu que tinha câncer e resolveu escrever mensagens em guardanapos para a sua filha. Todos os dias, durante o café, ele anota em um guardanapo mensagens como “Querida Emma, eu não vim até aqui apenas para chegar tão longe. Amor, pai” e “Querida Emma, hoje você não é a mesma de amanhã. Faça alguma coisa esta semana para o seu amanhã. Amor, pai” 22. Callaghan G. Napkin Notes [internet]. Menlo Park: Facebook; 2013 [citado 23 Jun 2021]. Disponível em: https://web.facebook.com/napkinnotes/timeline
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. Garth escreve todos os dias seus textos e os publica em suas páginas eletrônicas. Mas não se limita ao Napkin Notes. Em novembro de 2014, ele publicou um relato em seu blog, cujo conteúdo é semelhante ao que Mankell e Sacks difundem. “Eu comecei a compartilhar. Era simples à primeira vista. Eu simplesmente disse: ‘Eu tenho câncer’”, relata Garth no texto titulado Sharing. No mesmo relato, ele acrescenta: “Eu sou um membro da PatientsLikeMe eeTrata-se de uma rede de pacientes cuja finalidade é oferecer apoio e solidariedade aos próprios membros e a outros doentes semelhantes. Patientslikeme. Disponível em: www.patientslikeme.com . e estou empenhado em deixar um legado médico para o próximo paciente. Eu quero ajudar a próxima pessoa diagnosticada com câncer de rim” 22. Callaghan G. Napkin Notes [internet]. Menlo Park: Facebook; 2013 [citado 23 Jun 2021]. Disponível em: https://web.facebook.com/napkinnotes/timeline
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. Garth e muitos outros pacientes estendem uma rede cooperativa em que cada um se conecta ao próximo para ajudar, compartilhar a experiência, falar dos mesmos problemas e buscar soluções conjuntas.

Esses exemplos indicam uma determinada relação entre o sujeito com câncer e os modos de tornar visível o próprio sofrimento ao outro 33. Lerner K, Vaz P. “Minha história de superação”: sofrimento, testemunho e práticas terapêuticas em narrativas de câncer. Interface (Botucatu). 2017; 21(60):153-63. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0822 .
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. Eles colocam em cena um sujeito que se opõe ao silenciamento e à solidão do próprio adoecimento. Em certo sentido, esses três contemporâneos – Garth Callaghan, Henning Mankell e Oliver Sacks – apresentam determinada maneira de estar doente hoje: outrora tida como “incurável”, agora consiste em simplesmente “eu tenho câncer!” ffDesse modo, entende-se que há mais de um século experenciamos o “câncer”, porém, de maneiras distintas.Há várias experiências do câncer que coexistem, opõem-se ou se excluem; e que advém e se esvaem na história. . Desnaturalizando essa nova experiência do adoecimento, pode-se perguntar: quais são as suas condições de possibilidade? De que forma e a partir de que linhas de forças ela se formou? Quais práticas comunicacionais a permeiam, a sustentam ou são sustentadas por ela? Este trabalho reflete e analisa pontualmente dois objetos (o primeiro, uma lista de discussão, e o segundo, um guia proposto por uma ex-paciente oncológica) com o propósito de clarear alguns dos vetores que permitiram a formação dessa nova experiência do adoecimento e suas relações com as práticas comunicacionais.

Como estratégia argumentativa, primeiro esclarece-se o recorte dos objetos de análise, a metodologia aplicada e os conceitos que envolveram a empreitada. Em seguida, analisa-se o esforço estratégico de racionalizar a sociabilidade dos pacientes com câncer ao tomar a conectividade uma “realidade analítica” 44. Foucault M. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e política. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. , 55. Foucault M. História da sexualidade: os usos dos prazeres. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2018. , passível de existência e modulação. Destacou-se a emergência do dispositivo de conexão, no qual as tecnologias de comunicação tornaram, ao mesmo tempo, certos modos de ser doente inteligíveis, praticáveis e governáveis. Por último, apresenta-se as implicações desse complexo saber-poder na subjetividade e na biossociabilidade 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. , 77. Rabinow P. L’artifice et les lumières: de la sociobiologie à la biosocialité. Politix. 2010; 23(90):21-46. doi: https://doi.org/10.3917/pox.090.0021 .
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, na maneira como o paciente, imerso na prática do compartilhamento, relaciona-se consigo mesmo e com o outro; e se institui como objeto de saber e de poder.

Recorte e metodologia

Deixamos, pouco a pouco, uma “experiência da doença” 88. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2014. excludente e segregada, cujo modelo é a peste 99. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes; 2013. , 1010. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. , e entramos, no mesmo compasso, em uma experiência modular e aberta. No cerne dessa transformação histórica, misturam-se e se entrelaçam novos saberes; objetos; fenômenos; e papéis para os sujeitos e para os discursos científicos. Essa rede não somente permeia as práticas que constituem os relatos de si espalhados em livros e na internet, mas consolidam, sobretudo, os coletivos de pacientes com câncer, tornando-os possíveis e os dotando de uma materialidade comunicacional.

Partindo pelo caminho aberto por Michel Foucault a respeito da biopolítica 1111. Foucault M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 2010. , 1212. Foucault M. Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70; 2010. , Paul Rabinow 77. Rabinow P. L’artifice et les lumières: de la sociobiologie à la biosocialité. Politix. 2010; 23(90):21-46. doi: https://doi.org/10.3917/pox.090.0021 .
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, 1313. Rabinow P, Rose N. O conceito de biopoder hoje. Rev Cienc Soc. 2006; 24(24):27-57. chama de biossociabilidade o agrupamento de pessoas segundo critérios de saúde, doenças, corpo, felicidade, entre outros parâmetros. Em certo sentido, é um tipo de vínculo entre indivíduos que se estabelece a partir de uma preocupação com o próprio caráter vital, uma cidadania que se dá em termos de direito à saúde e à cura. Rose 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. argumenta que as biossociabilidades são “formadas em torno de crenças em uma herança de doença comum. Elas são frequentemente autodefinidas como comunidades ativistas mobilizadas pela esperança de uma cura” 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. (p. 246).

A partir do conceito de biossociabilidade, organizou-se um arquivo de coletivos de pacientes com câncer de mama por meio da bibliografia estudada (artigos, livros e notícias) e de informações obtidas pelo buscador on-line Google. Após a observação preliminar dos coletivos e anotações em diário de pesquisa, os autores decidiram pinçar dois materiais representativos para a análise. O primeiro é a formação, durante a década de 1990, da Breast Cancer Mailing List, cujo escopo é integrar pacientes, especialistas e familiares. Por meio desse primeiro recorte, pode-se captar como o coletivo de pacientes com câncer de mama, organizados em torno da Atlantic Breast Cancer Information Project, problematizou a si mesmo e acionou modos nascentes de pensar e racionalizar a conduta por meio do binômio informação-cura. Não foram analisadas as ações dos pacientes, dos médicos e dos familiares na Breast Cancer Mailing List, mas a racionalidade que açambarca o modo de ser dessa lista de email, conforme a perspectiva metodológica de Foucault, Rabinow e Rose acima destacada.

O segundo material é o guia de uma ex-paciente oncológica, Hester Hill Schnipper, publicado nos anos 2000 e que pensa e orienta a sociabilidade de pacientes com câncer de mama tomando a própria experiência como modelo. Nesse segundo material, o elemento-chave de estudo é a centralidade dada à experiência da própria paciente e como determinada verdade extraída dessa experiência deve ser coletivamente assimilada. Incluiu-se nesse segundo recorte alguns blogs de pacientes de câncer de mama que expressam e exemplificam a lógica que Schnipper empregou em seu guia. A escolha dos objetos se deu porque ambos racionalizam, tornam inteligível e incitam a prática de compartilhamento de relatos e grupos de apoio. Mesmo apresentando nuanças e diferenças, os dois objetos são operadores práticos de um tipo particular de conduta; e permitem aos pacientes velarem e moldarem a si mesmos.

A noção de operadores práticos compreende enunciados que racionalizam o comportamento e instauram um modelo de conduta moral. Além disso, os operadores práticos apresentam enunciados que “se referem à própria possibilidade do discurso em cujo interior são considerados” 1414. Foucault M. Aulas sobre a vontade de saber. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2014. (p. 7). Em outras palavras, por meio da análise do discurso foucaultiano, os dois objetos de investigação deste artigo compreendem enunciados que são sintomas da rede epistemológica e subjetiva contemporânea ggPara o empreendimento aqui realizado, não se torna imperativo debruçar-se sobre “‘do que’ se fala, mas [...] ‘o que fala através de nós’” e, ainda “o que nos faz falar” (Pelbar P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 edições; 2013, p. 20). .

Diante desse panorama, os dois objetos de análise deste artigo permitem avançar um pequeno passo na descrição histórica das condições de existência da biossociabilidade digital 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. dos pacientes com câncer. Ou seja, “traçar algumas condições e forças que definiram ou permitiram a formação de um modelo dominante” 1515. Crary J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto; 2012. (p. 16) de sujeito doente com câncer atualmente. Especificamente, no que toca o campo da comunicação, os objetos de pesquisa refletem as práticas de conectar e compartilhar histórias, os sentidos que elas tomam e as forças que delas se apoderam para a institucionalização de certas fórmulas comunicacionais. Portanto, tornam visíveis as relações entre as tecnologias de comunicação e as estratégias políticas presentes em nossa cultura.

A conexão infinita

Em 1994, a Atlantic Breast Cancer Information Project, organizado pelos pacientes e sobreviventes do câncer, recebeu incentivo monetário do governo canadense para aumentar o número de informações sobre o câncer na região atlântica do Canadá. A organização convidou o biólogo molecular John Church, da faculdade de Medicina de Memorial University, para colaborar no projeto. Segundo Sharf 1616. Sharf BF. Communicating breast cancer on-line: support and empowerment on the internet. Women Health. 2008; 26(1):65-84. doi: https://doi.org/10.1300/J013v26n01_05 .
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, Church encontrou na internet diversos softwares dirigidos aos especialistas que ofereciam base de dados com informações médicas e científicas sobre o câncer.

O que ele não encontrou foi um lugar para as trocas de informações e apoio entre os pacientes e experts em saúde 1616. Sharf BF. Communicating breast cancer on-line: support and empowerment on the internet. Women Health. 2008; 26(1):65-84. doi: https://doi.org/10.1300/J013v26n01_05 .
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. Church, então, propôs à organização de pacientes a criação da Breast Cancer Mailing List hhEssas informações foram retiradas do site The Breast Cancer Mailing List. Disponível em: http://www.bclist.org/purpose.htm acessado em 23/06/2021 às 9h35. , com o objetivo de agregar os indivíduos para discutir e trocar informações e experiências sobre o câncer. Assim como os canais formais e informais da comunicação científica promovem interações entre os especialistas, Church arquitetou um espaço para a interação entre pacientes, familiares, amigos, médicos, cientistas, estadistas, etc. Mesmo gestado a partir de um diálogo entre especialista e organização de pacientes, o espaço da Breast Cancer Mailing List, entretanto, incita um convívio lado a lado do saber científico com o saber da experiência, sem sobreposição (parte das implicações subjetivas desse convívio são expostas no tópico 4). As diferenças de saberes se enriquecem com a interação. Portanto, vale sempre ressaltar que o próprio nascimento da Breast Cancer Mailing List (chamaremos apenas de “lista”) se dá em contexto de interação dos atores envolvidos, de modo que a materialidade da lista traduz e põe a funcionar esse mesmo contexto interativo. Longe de ser efeito do ponto de vista de Church imposto aos membros e mesmo que estes utilizem a lista cada qual com seu propósito, o que está em jogo é a relação entre racionalidade e modo de conduzir a atenção à própria saúde.

Na arquitetura eletrônica da lista, a interação cumpria o objetivo de estabelecer o maior número de conexões possíveis e facilitar o compartilhamento de informações sobre o câncer. Em 1997, a iniciativa era descrita como:

[..] uma lista sem moderador aberta a pesquisadores, médicos, pacientes, familiares e amigos de pacientes para a discussão de qualquer assunto relacionado ao câncer de mama. Enquanto alguns da lista estarão dedicados às discussões de avanços médicos, bem como possíveis tratamentos terapêuticos, convencional e alternativo, a lista também deve ter um lado menos rigoroso. A lista não recomendaria terapias específicas, mas procuraria aumentar as informaç ões disponíveis sobre as opções e escolhas. Também será um fórum para pacientes com câncer de mama e os seus entes queridos para desabafarem as frustrações e oferecerem estratégias alternativas para lidar com o complexo médico-industrial patriarcal e oferecer ajuda e insights sobre a gestão psicossocial da doença. Finalmente, a lista irá oferecer um local de encontro para a discussão do trabalho de vários grupos de defesa do câncer de mama populares em todo o mundo para anunciar eventos, trocar ideias relacionadas ao ativismo do câncer de mama e, mais amplamente, discutir a política do câncer de mama e cuidados de saúde 1616. Sharf BF. Communicating breast cancer on-line: support and empowerment on the internet. Women Health. 2008; 26(1):65-84. doi: https://doi.org/10.1300/J013v26n01_05 .
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. (p. 67; tradução nossa)

Nessa curta apresentação da lista, alguns objetivos sobressaem: aumentar a informação disponível; apresentar estratégias de combate ao patriarcado e à indústria; oferecer ajuda de tratamento; oferecer às pessoas um espaço de desabafo e de compartilhamento frustrações; difundir eventos e avanços médicos; narrar histórias, entre outros. Tais objetivos são o resultado ao mesmo tempo que constituem a “função dominante” 1717. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2007. dessa configuração da Lista. Por “função dominante”, entende-se uma operação que perpassa outras menores, amarrando-as e as orientando a um fim.

Os múltiplos objetivos da lista respondem à urgência histórica da função dominante: como conectar pacientes, especialistas e familiares de modo a difundir informações, trocar experiências e majorar a saúde? Como aumentar as informações sobre o câncer com um custo econômico baixo? Como fazer para circular essas informações em um sistema aberto, sem o domínio do especialista, porém, de forma eficaz? Como permitir que o sujeito tenha o maior número de informações autorreguladas, de modo que possa realizar a melhor escolha quanto à sua saúde?

Resposta simples: produzir um dispositivo de conexão. Não é de se espantar que um biólogo molecular propusesse essa solução. Acaso da história? De modo algum. O que está em jogo é um “estilo de pensamento molecular” 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. , 1010. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. , no qual as conexões sem hierarquia formam o complexo sistema de autorregulação. Médicos informando pacientes e pacientes informando médicos, médicos auxiliando os familiares e familiares auxiliando os médicos. Caráter combinatório, associativo e interativo dessa função dominante que consiste em conectar infinitamente como uma rede de neurônios. Vale ressaltar, outra vez, que, mesmo os membros fazendo outro uso da lista, é a racionalidade conectiva que a torna inteligível e praticável.

A conexão como modelo de ação e racionalidade pode ser depreendida da simples e eficiente arquitetura da lista. Em primeiro lugar, ela reúne todos os membros em um único fórum. O fórum é o nó (ou seja, a ligação) entre todos os membros da lista, de modo que qualquer mensagem nova no fórum é enviada a todos os membros. Assim, não podemos compreender a expressão “fórum” em seu sentido etimológico (praça ou local onde se situam as instituições jurídicas), mas como, a um só tempo, o modo de captar e emitir mensagens, o entrelaçamento, a forma da (re)união entre os membros e as posições possíveis no discurso.

Em segundo lugar, na lista não há mediador ou líder, pois todos podem abrir um tema novo no fórum ou responder aos temas abertos. Qualquer ação na lista é automaticamente codificada e enviada aos e-mails dos membros que podem, por sua vez, responder à ação. Bem diferente da arquitetura de um livro ou dos boletins informativos de 1980, a lista inscreve um regime de circulação e de lateralidade. É possível identificar os usuários com nomes e/ou profissão, mas não há liderança ou hierarquia na Lista. A lateralidade é o plano de distribuição dos indivíduos envolvidos, viabilizando o maior número de combinações entre eles.

Em resumo, a lista coloca em cena o princípio da integração e da lateralidade. Esses dois elementos constituem a função dominante de conectar sem hierarquia, de modo que “os seres e as coisas se tornam cambiáveis” 1818. Jacob F. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Rio de Janeiro: Graal; 1983. e autoadministráveis 44. Foucault M. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e política. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. , 1111. Foucault M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 2010. , 1212. Foucault M. Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70; 2010. . A compatibilidade técnica pressuposta na lista entre os coletivos de pacientes e as tecnologias de comunicação, bem como seus respectivos agenciamentos entre indivíduos, discursos e objetos, instaura o princípio moral de que a conexão é necessária e redentora.

Ao contrário dos grupos de apoio do câncer de mama face a face, que pode ter limitações no número de reuniões, programação e mobilidade, o Breast Cancer List está disponível 24 horas por dia. Em seu próprio tempo e suas próprias casas, as pessoas em crise podem fazer perguntas, compartilhar ou levantar questões, sabendo que, dentro de algumas horas – e, muitas vezes, dentro de minutos – outros irão responder de uma forma carinhosa e informativa. Para as pessoas em áreas remotas ou carentes, e para aqueles que podem ser confinados em suas casas por causa do avanço da doença debilitante ou tratamento, a Breast Cancer List constitui uma tábua de salvação para o mundo, ajudando a aliviar o grave isolamento que a doença muitas vezes traz. Para a família e amigos de pacientes com câncer de mama, que muitas vezes não têm outra oportunidade de expressar suas preocupações ou para ganhar a compreensão, a lista fornece uma caixa de ressonância, bem como uma janela para a experiência do câncer de mama hhEssas informações foram retiradas do site The Breast Cancer Mailing List. Disponível em: http://www.bclist.org/purpose.htm acessado em 23/06/2021 às 9h35. (tradução nossa).

Foucault 88. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2014. , 1111. Foucault M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal; 2010. , 1717. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2007. utiliza a expressão “polivalência tática” para falar da disseminação do modelo “panóptico” na sociedade disciplinar. O que interessa reter dessa expressão é o ajustamento e alinhamento das relações de poder, bem como sua capacidade de organizar diversas forças sociais. O que se percebe na lista é justamente esse alinhamento da função de conectar enquanto regularidade do exercício de poder e racionalidade de governo. Se considerar que nos anos 1990 muitos pacientes trocavam informações sobre tratamento médico nos chats e nos fóruns 1919. Mukherjee S. O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. São Paulo: Companhia das Letras; 2011. , o que perpassava todos os espaços de sociabilidade era a incitação à conexão.

A polivalência – o ajustamento da relação de forças – não é restrita ao espaço eletrônico, mas também se efetua em outros espaços e materialidades. Pode-se afirmar que, de uma ponta a outra, o blog se assemelha ao Facebook e o Facebook, ao dia a dia das coalizões. São diferentes, claro, em suas materialidades, mas indiscerníveis no plano da função dominante que consiste em conectar pessoas, objetos e discursos, organizando e distribuindo os “papéis dos sujeitos” 88. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2014. , 2020. Foucault M. Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2014. . No plano funcional do dispositivo, as práticas comunicacionais são relativamente indiferentes, na medida em que se encontram sob a mesma relação de forças.

No Brasil, o site do Oncoguia 2121. Instituto Oncoguia. Site educacional [internet]. São Paulo: Instituto Oncoguia; 2021 [citado 23 Jun 2021]. Disponível em: http://www.oncoguia.org.br
http://www.oncoguia.org.br...
oferece tanto uma lista de blogs e endereços eletrônicos para os pacientes navegarem quanto um espaço de interação entre médicos, pacientes, familiares e colaboradores. Os blogs de pacientes são recheados com listas pessoais de outros blogs, sites médicos, links para informações de plano de saúde, vídeos e exposições artísticas. A página Amigas do Peito 2222. Grupo Amigas do Peito. Amigas do peito [internet]. Menlo Park: Facebook; 2021 [citado 23 Jun 2021]. Disponível em: https://www.facebook.com/grupoamigasdopeito
https://www.facebook.com/grupoamigasdope...
possui uma infindável lista com endereços eletrônicos e físicos para consulta. Visitando uma única página no Facebook, é possível percorrer centenas de endereços eletrônicos quase indiscerníveis no plano funcional.

A lateralidade, a integração e a modulação temática, articuladas na função dominante, perpassam os coletivos de pacientes. Servem de exemplos a Pancreatic Cancer Action, a Breast Cancer Action, a Pancreatic Cancer Action Network, a Breast Cancer Mail List (Austrália), a Rose Kushner Breast Cancer Action, Amigas do Peito, entre outras organizações iiPancreatic Canccer Action, disponível em https://pancreaticcanceraction.org . Breast Cancer Action,disponível em: http://www.bcaction.org/ . The Pancreatic Cancer Action Network,disponível em: https://www.pancan.org . Westmead Breast Cancer Institute,disponível em: http://www.bci . org.au/. Rose Kushner Breast Cancer Advisory Center, disponível em: http://www.rkbcac.org/ . Todos os links acessados em 23 de junho de 2021. . Em 2013, a Lalcec criou o aplicativo para celular chamado HopeApp jjQuando acessados em 23 de junho de 2021 às 9h40, essas informações constavam em sua página no Facebook ( https://www.facebook.com/hopeapp ) e em seu site ( http://www.hopeapp.com.ar/ ). Hoje, porém, os links estão desativados. , que visava à troca de informações e ajuda entre pacientes e sobreviventes do câncer. No site da empresa, há a seguinte descrição do aplicativo:

HopeApp foi desenvolvido pela Lalcec e seu primeiro objetivo é dar contenção e acompanhamento às pessoas que estão lutando contra o câncer. A fim de conseguir isso, o aplicativo coloca o paciente em contato com as pessoas que já lutaram e superam esta doença para que elas possam dar-lhes apoio, aconselhamento e[,] acima de tudo, provar-lhes pessoalmente que o câncer pode ser derrotado. Lalcec convida também as famílias e os amigos desses dois grupos de pessoas [os sobreviventes e os pacientes] a participarem do aplicativo, pois amigos e familiares são considerados peças essenciais no processo de tratamento de uma pessoa doente e, por outro lado, se um membro da família ou amigo sofreu com esta doença, também podem ajudá-los a passar por esta situação difícil jjQuando acessados em 23 de junho de 2021 às 9h40, essas informações constavam em sua página no Facebook ( https://www.facebook.com/hopeapp ) e em seu site ( http://www.hopeapp.com.ar/ ). Hoje, porém, os links estão desativados. .

Conectar, eis a fórmula do HopeApp e de outras tecnologias de comunicação, e na qual a lista é um exemplo a um só tempo de expressão e lógica. É claro que a lista e outras tantas tecnologias empregadas pelos coletivos de pacientes com câncer possuem camadas díspares e irredutíveis umas as outras. Mas a função de conectar é um exercício de poder que as açambarcam, dando-as amarração, sentido, inteligibilidade e um campo de ação prática. É também a fórmula para uma ética e uma maneira de ser do sujeito. Quanto maior o número de conexões, maior é a autorregulação, a correção do erro e a majoração da saúde. No cerne da nova experiência da doença, a conectividade encontrou condições para ultrapassar “o limiar tecnológico” 1010. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. e se tornar uma função dominante do dispositivo, que, diz Deleuze 2323. Deleuze G. O mistério de Ariana. Lisboa: Veja, Passagens; 1996. O que é um dispositivo?; p. 115-61. , sempre comporta modos de subjetivação, pois envolve “formas de vivenciar a própria temporalidade e novos modos de nos construirmos como sujeitos” 2424. Sibilia P. O show do Eu, a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2008. (p. 137).

Cabe, agora, descrever que tipo de sujeito emerge dessa correlação histórica entre adoecimento e comunicação inerentes à conexão, visto que, por um lado, a emergente experiência da doença põe em jogo “uma vitalidade não de profundidade e de determinações, mas de superfícies e associações” 1010. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. (p. 187); e, por outro lado, as práticas comunicacionais constituem redes complexas, ramificadas e não hierarquizadas, cujo fim consiste em instaurar filiações e conexões.

Visibilidade e gestão de si

No seio dessa nova experiência da doença, a emergência da função dominante de conectar tensionou os modos de subjetivação e relação consigo mesmo. Neste tópico, analisa-se o guia de uma ex-paciente oncológica, Hester Hill Schnipper, publicado nos anos 2000, e alguns blogs em que pacientes com câncer de mama enunciam determinada verdade sobre si mesmas. Tanto no guia de Schnipper quanto nos blogs estudados, o objeto de preocupação principal das pacientes não é somente, como ocorria nos anos 1970 e 1980, o exame minucioso de si mesma para transformar o silêncio em linguagem e ação 2525. Lorde A. The cancer journals: especial edition. San Francisco: Aunt Lute Books; 1997. . Agora, esse problema da ação política coletiva tende a ser secundário. A arquitetura do olhar, própria do escrutínio e da verbalização, cede espaço para um sistema de fluxo e ligações entre os pacientes ao modo de uma gestão do sofrimento. Cada uma deve dar incessantemente seu relato, pois:

Falando direta ou indiretamente com a outra [paciente], cada uma de nós é o receptáculo e o transmissor de tudo o que ouvimos das outras. Nós, que estamos vivenciando essa experiência, sabemos melhor como ela é e o que pode nos ajudar 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. . (p. 14)

O que está em jogo é uma ação e a maneira de executar essa ação, que se confundem na prática do compartilhamento. Uma vez que cada paciente é o receptáculo e o transmissor, a conexão se torna o modo operatório e a própria forma de inteligibilidade da ação. A paciente tende a “se conectar a outras mulheres em busca de apoio mútuo e compartilhamento” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. (p. 201), porque conectando à rede de apoio “elas se sentem compreendidas e conseguem informações importantes quanto ao seu tratamento e quanto a lidar com seu dia a dia” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. (p. 29). Com a conexão entre pacientes, é possível formar um “fluxo harmônico”, uma “irmandade compartilhada” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. , sendo este o princípio do agrupamento; afinal:

Em algumas partes do país, os grupos de autoajuda de câncer de mama podem ser tudo o que exista para mulheres que buscam uma experiência em grupo, e eles podem ser exatamente o que você precisa caso esteja procurando uma forma de se conectar a outras mulheres que estejam vivendo com câncer 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. . (p. 203)

Logo, a prática do compartilhamento é ao mesmo tempo a ação sobre e o modo de acionar a experiência, inserindo um regime de lateralidade do paciente que deve compartilhar sua vivência, em uma mesma codificação do vivido, para firmar uma conexão infinita. Esse compartilhamento cumpre alguns objetivos: capacitação do próprio sujeito, visibilidade do eu e cuidado de si e do outro. Porém, o imperativo do compartilhamento não é restrito às pacientes, ainda que nestas encontre sua razão de existência, devendo ser praticado tanto pelos experts em saúde quanto pelos pacientes, familiares e amigos. Todos eles, ainda que “falando línguas diferentes” 2525. Lorde A. The cancer journals: especial edition. San Francisco: Aunt Lute Books; 1997. , 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. , constituem a rede modular da biossociabilidade digital 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. , 1313. Rabinow P, Rose N. O conceito de biopoder hoje. Rev Cienc Soc. 2006; 24(24):27-57. , agora sobre o primado da experiência da paciente.

Nos blogs estudados neste artigo, a relação que o paciente tece com seu corpo e sua doença é orientada pelas informações compartilhadas na internet, tal como propôs Schnipper em seu guia. Da linguagem biomédica à “língua comum” dos pacientes, a capacitação de si é o aperfeiçoamento empreendido pelo paciente para “manter o câncer sob controle” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. , pois se acredita que “a responsabilidade de continuar bem é sua e do seu corpo” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. (p. 103). O compartilhamento é a condição de possibilidade para a administração de si, uma vez que, quanto maior o compartilhamento, maior é a disponibilidade das informações e o número de conexões. O trabalho de Høyby, Johansen e Tjørnhøj-Thomsen também reconheceu esse postulado.

As mulheres descreveram como a lista de discussão do cancro da mama trabalhou para capacitá-las, promovendo uma sensação de controle que as ligavam aos recursos e promovia o bem-estar. “Eu sinto que através da Internet eu recuperei o poder sobre o meu corpo, porque eu sei tudo sobre o meu diagnóstico, minhas possibilidades e meu risco”, uma mulher relatou 2727. Høyby MT, Johansen C, Tjørnhøj-thomsen T. Online interaction: effects of storytelling in an internet breast cancer support group. Psychooncology. 2005; 14(3):211-20. doi: https://doi.org/10.1002/pon.837 .
https://doi.org/10.1002/pon.837...
. (p. 214-215)

A autora de sobreviverblog.com.br, no dia 3 de maio de 2014, publicou um relato intitulado de “Dr. Google e o câncer”. No relato, ela destaca o quanto aprendeu sobre o câncer enquanto visitava endereços eletrônicos de pacientes e profissionais da saúde.

Acredito que quase todo mundo age assim, ao descobrir que está doente (ou que alguém próximo está). Passamos a pesquisar loucamente pela internet afora, buscando respostas, orientação, esperança, etc e tal. O caso é que nesta busca insana a gente vê muita coisa cabulosa, bizarra (ainda consigo me impressionar com a falta de bom senso de algumas pessoas). Mas, nesta minha aventura internestística, descobri alguns sites e blogs bem bacanas, que estão sendo de grande ajuda para mim. Alguns trazem explicações sobre os diferentes tipos de câncer, sintomas, diagnóstico e possíveis tratamentos. Outros trazem dicas muuuito úteis, relacionadas à manutenção da qualidade de vida durante o tratamento e vários deles trazem histórias de superação, exemplos reais de gente como a gente, que lutou contra o câncer, venceu e agora segue por aí, vivinha da silva kkRetirado de http://sobreviverblog.com.br/2014/05/03/google-cancer-linfoma-de-hodgkin-sobreviver-blog-cura-cancer/#more-118 . O blog esteve ativo durante a conclusão da pesquisa,mas, infelizmente, hoje está desativado. Conseguimos rastrear outra hospedagem da autora em https://sobreviverblog.wordpress.com/ , mas também está desativado. É possível acessar rastros da atividade da autora no jornal mineiro O Tempo. Baeta J. A vida além do câncer. O Tempo. 27 Ago 2014. Disponível em: https://www.otempo.com.br/cidades/a-vida-alem-do-cancer-1.906461 . .

No comentário desta publicação, uma paciente destacou o fato de a autora de sobreviverblog.com.br repassar “tudo de bom que descobriu até hoje sobre essa triste doença, ajudando as pessoas na mesma situação a persistirem na luta da cura”. Estas escritas públicas de blogs não são exemplos pontuais, mas uma ação muito praticada pelos pacientes, que consistem em compartilhar experiências para se capacitar e empreender uma gestão de si, pois “o feedback de outras pessoas permite aos indivíduos tomar decisões bem-informadas e adotar medidas que podem não ter outra forma” 1616. Sharf BF. Communicating breast cancer on-line: support and empowerment on the internet. Women Health. 2008; 26(1):65-84. doi: https://doi.org/10.1300/J013v26n01_05 .
https://doi.org/10.1300/J013v26n01_05...
(p. 74).

Compartilhamento e conexão, eis algumas das formas pelas quais o paciente se liga ao que escreve, fala, escuta e assimila; bem como, sobretudo, maneiras de o paciente se ligar a outro paciente, aos médicos e aos familiares. E qual a finalidade dessa ação e desse modelo? O que esperar dessa conduta? Enquanto na lista, abordada no tópico anterior, a conexão era problematizada como uma racionalidade de poder, no guia analisado, trata-se de uma nova ética, em que apenas “sendo capaz e até mesmo encorajadas a compartilhar todos os aspectos dos nossos sentimentos podemos apoiar honestamente uma à outra e cuidar de nós mesmas” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. (p. 205).

Uma ética que não consiste apenas em ligar-se à enunciação da verdade diante de uma instância de “dominação e silenciamento” 2525. Lorde A. The cancer journals: especial edition. San Francisco: Aunt Lute Books; 1997. – que pressupõe uma relação de poder binária –, mas de cuidar de si mesmo e de outro paciente. A conexão encarnada em uma ética do compartilhamento funciona para cuidar, curar, orientar, ajudar, aconselhar e gerir outro paciente. Uma paciente diz: “o conhecimento de que muitos de nós passam pelas mesmas ansiedades e pelo descaso de um sistema no qual devemos confiar [...] me força a escrever isso para vocês, na esperança de que outras possam estar melhor preparadas” 2828. Pitts V. Illness and internet empowerment: writing and reading breast cancer in cyberspace. Health. 2004; 8(1):33-59. doi: https://doi.org/10.1177/1363459304038794 .
https://doi.org/10.1177/1363459304038794...
(p. 47). Sem dúvida, preparação é o sentido da prática que consiste em colher relatos e escrever sobre si mesma, testemunhando a própria dor, tanto na internet quanto fora dela.

Isso só foi possível, em primeiro lugar, porque instituíram uma língua comum e o saber da experiência. Em segundo lugar, porque esse saber deve ser compartilhado. E, enfim, porque o paciente deve ser orientado à capacitação de si, coisa que somente quem “passou por isso sabe o que fazer”. Ao entrar em um coletivo biossocial, a paciente “se sentirá conectada instantaneamente com outras vivendo com os mesmos medos” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. (p. 204). Afinal:

Esta é a grande razão pela qual muitas mulheres acham que participar de um grupo de apoio a pacientes com câncer de mama ajuda tanto. Todas as mulheres do grupo passaram pelo que você passou e estão lutando contra os mesmos problemas, então entenderão exatamente o que você precisa e terão tolerância infinita para tolerar” 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. . (p. 164)

O conjunto do corpus estudado, que extravasa os exemplos citados neste artigo, permite afirmar que o que constitui a “determinação da substância ética” 44. Foucault M. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e política. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. é o cuidado com o corpo e com a saúde de si e do outro paciente. É o aspecto “somático” 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. e psíquico que entra em jogo nessa relação de cuidado. O compartilhamento (na medida em que conecta um paciente a outro) é o “modo de subjetivação” 44. Foucault M. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e política. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2010. , o modo pelo qual o indivíduo se vê ligado à obrigação de cuidar do outro. O saber científico e o saber da experiência, ambos envolvidos na capacitação e na escrita de si, constituem o elo entre o sujeito e a verdade de si, tornando seu comportamento de atenção ao corpo e ao outro conforme a regra do cuidado. Por fim, são a amizade, o companheirismo e a solidariedade a finalidade dessa ação.

Na passagem entre a “formação histórica ancorada no capitalismo industrial [...] – que foi analisada por Michel Foucault sob o rótulo de ‘sociedade disciplinar’ –, para outro tipo de organização social, que começou a se delinear nas últimas décadas” 2424. Sibilia P. O show do Eu, a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2008. (p. 15), outros modos de ser, outros processos de subjetivação e outras estéticas da existência entram em jogo. Por isso, a prática do compartilhamento, enquanto conduta ética, não pode ser generalizada, nem tomada como determinante.

É fato que, ao lado dessa forma de ser e estar compartilhada, outros modos de subjetivação coexistem. Por exemplo, a autora do blog “Reelaborando a palavra ‘viver’” 2929. Regina T. Reelaborando a palavra viver! [Internet]. Mountain View: Blogspot; 2021 [citado 23 Jun 2021]. Disponível em: https://www.reelaborandoapalavraviver.blogspot.com
https://www.reelaborandoapalavraviver.bl...
não utiliza a prática do compartilhamento no sentido que descrevemos acima. Seu diário eletrônico possui pouquíssimas conexões com outros sites, blogs, contas de Facebook, entre outras. Ela utiliza seu diário eletrônico basicamente para publicar poemas ligados, como sugere o título de seu blog, à reelaboração da vida diante da possibilidade de morte. Ela escreve e tenta fornecer, por meio de um exercício de introspecção, um sentido à sua vida, às dores e ao sofrimento.

Porém, no conjunto do corpus de estudo, o compartilhamento é uma prática de si regular e açambarcada pela lógica da conexão; e ascende, nos coletivos biossociais, com uma “condução real de si mesmos e de suas vidas em relação aos dilemas que eles enfrentam e os julgamentos e decisões que eles precisam tomar” 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. (p. 354). Isso significa que uma certa “ética somática está tomando forma: o senso de que todos os seres humanos sobre este planeta são [...] criaturas biológicas” 66. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. (p. 353) com direitos “fundamentais” e, acima de tudo, com direito a informações importantes para o cuidado de si e do outro 2626. Schnipper HH. Câncer de mama: um guia prático para a vida após o tratamento. São Paulo: Editora Gaia; 2009. .

Considerações finais

Os modos de subjetivação aqui estudados, inerentes à ética somática, são incorporações da racionalização do exercício de poder operada no início dos anos 1990. Em certo sentido, a redistribuição das práticas discursivas e não discursivas, compatíveis com um estilo de “pensamento molecular”, possibilitou uma experiência da doença em que compartilhar histórias e conectar indivíduos tornaram-se o modus operandi da subjetivação digital.

Na biossociabilidade contemporânea, a comunicação, portanto, não deixa de ser algo forjado nas relações entre formas de veridicção, tipos de normatividades e modos de ser e estar no mundo característicos de nossa formação histórica. Em contrapartida, o saber, os exercícios de poder e as formas de subjetivação se efetuam em “determinados instrumentos intelectuais e práticos, componentes, entidades e dispositivos” 3030. Rose N. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Rio de Janeiro: Vozes; 2011. (p. 259), incluindo as tecnologias de comunicação e informação. As práticas comunicacionais são agenciamentos que ativam “repertórios de conduta” 3030. Rose N. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Rio de Janeiro: Vozes; 2011. e determinada experiência do adoecimento, tais como o compartilhamento de histórias, por parte dos pacientes, para ajudar, aconselhar e orientar outros pacientes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2022
  • Aceito
    13 Set 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br