Por uma pedagogia para a formação profissional para o Sistema Único de Saúde (SUS): diálogos com Freire e Saviani

A pedagogy for professional training for Brazilian National Health System (SUS): dialogues with Freire and Saviani

Por una pedagogía para la formación profesional para el Sistema Brasileño de Salud (SUS): diálogos con Freire y Saviani

Bianca Joana Mattia Carla Rosane Paz Arruda Teo Solange Maria Alves Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa se coloca no contexto do movimento da Reforma Sanitária brasileira ao propor, a partir das teorias de Paulo Freire e Dermeval Saviani, uma pedagogia para a formação profissional para o Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma pesquisa teórica que toma como método o materialismo histórico-dialético. No primeiro momento (de tese), privilegia-se o empírico, partindo-se da realidade. No segundo momento (de antítese), é estabelecido o diálogo com as teorias de Freire e Saviani pelas categorias trabalho, consciência e linguagem. No terceiro momento (de síntese), o concreto é alcançado pelas categorias conhecimento/conteúdos, método e processos de ensino-aprendizagem. No momento de síntese, propõe-se a pedagogia para a formação profissional para o SUS, com seus três elementos essenciais: fundamentos, método e finalidade. Pondera-se que as pedagogias de Freire e Saviani representam sustentação para uma pedagogia para a formação profissional para o SUS.

Educação; Educação superior; Saúde

Abstract

This study is framed within the context of Brazil’s health reform by proposing a pedagogy for professional training for the Brazilian National Health System (SUS) based on the theories of Paulo Freire and Dermeval Saviani. We conducted a theoretical study drawing on historical and dialectical materialism. In the first moment (thesis), emphasis is given to the empirical, based on reality. In the second moment (antithesis), we draw on the theories of Freire and Saviani focusing on the categories work, conscience and language. In the third moment (synthesis), the concrete is attained through the categories knowledge/content, method and teaching-learning processes. As part of the synthesis, we propose a pedagogy for professional training for the SUS structured around three core elements: basis, method and purpose. It is proposed that the pedagogies of Freire and Saviani provide the underpinnings for a pedagogy for professional training for the SUS.

Education; Higher education; Health

Resumen

Esta investigación se plantea en el contexto del movimiento de la Reforma Sanitaria Brasileña al proponer, a partir de las teorías de Paulo Freire y Dermeval Saviani, una pedagogía para la formación profesional para el Sistema Brasileño de Salud (SUS). Se trata de una investigación teórica, utilizándose como método el materialismo histórico-dialéctico. En el primer momento (de tesis) se privilegia lo empírico, partiéndose de la realidad. En el segundo momento (de antítesis), se establece el diálogo con las teorías de Freire y Saviani por las categorías trabajo, conciencia y lenguaje. En el tercer momento (de síntesis), lo concreto se alcanza por las categorías conocimiento/contenidos, métodos y procesos de enseñanza-aprendizaje. En el momento de síntesis se propone la pedagogía para la formación profesional para el SUS, con sus tres elementos esenciales: fundamentos, método y finalidad. Se pondera que las pedagogías de Freire y Saviani representan sustentación para una pedagogía para la formación profesional para el SUS.

Educación; Educación superior; Salud

Introdução

O movimento da Reforma Sanitária brasileira nasceu da sociedade civil, tendo como mote a democratização da saúde. No final da década de 1980, o processo da reforma supunha a exaustão das contradições do capitalismo brasileiro e o percurso de sua superação pelo socialismo, bem como a conquista da plena cidadania e a democratização da vida. Porém, no seio das contradições do processo, a história se fez por outros percursos, diferentes dos idealizados. Ainda hoje, os desejos de coesão social e cultura de paz, em uma sociedade em que a luta de classes é transfigurada em violência estrutural e interpessoal no cotidiano e na qual transparece cada vez mais o caráter patogênico do capital, exacerbam os desafios que se colocam para o Sistema Único de Saúde (SUS) como sistema universal, humanizado e de qualidade.

Nesse contexto, os modos de vida e de saúde da população, como resultantes das formas de organização social da produção, não têm sido objeto de lutas populares, nem valorizados pela sociedade para o desenvolvimento da consciência sanitária. O processo da Reforma Sanitária tem sofrido as consequências da ausência da classe trabalhadora, sendo que essa classe não a reconhece como conquista histórica das classes populares. Desse modo, o caráter contraditório da saúde, na estrutura social capitalista, implica a possibilidade de um processo de construção social, porém, requer indivíduos sociais portadores da antítese e que empurrem o processo da Reforma Sanitária para uma revolução no modo de vida11. Paim JS, organizador. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. Reforma Sanitária e revolução passiva no Brasil; p. 291-322. .

É importante reforçar que o SUS garante a saúde como direito de todos os brasileiros e tem como alguns de seus princípios a integralidade da assistência, a universalidade do acesso e a participação social. Além disso, é necessário se compreender que o SUS é resultado de diversas lutas e movimentos sociais; e patrimônio do povo brasileiro. Precisamente por isso, mais do que nunca, necessitamos estar vigilantes e mobilizados para garantir seu fortalecimento.

Este texto se ocupou de aprofundar questões de ordem teórica, política e pedagógica, situando a problemática de fundo em torno de uma formação profissional em saúde para o fortalecimento do SUS, no horizonte de uma sociedade socialmente justa, democrática e solidária. Salientamos que, apesar dos avanços já conquistados, especialmente a partir da ordenação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e dos programas de reorientação da formação profissional em saúde, esse é um tema que ainda apresenta tensionamentos e conflitos que precisam ser pensados a partir da contribuição do campo da educação, levando em consideração também os aspectos históricos, políticos, econômicos, de igualdade e de justiça social.

Com base no panorama apresentado, o conhecimento na área da Saúde está situado em um contexto social. Os futuros profissionais precisam reconhecer a historicidade dos fenômenos; conhecer a realidade e as multiplicidades de sentidos existentes; e compreender que existem processos sociais que os condicionam, mas não os determinam22. Freire P. À sombra dessa mangueira. São Paulo: Olho d’Água; 1995. , para que, então, possam passar da contemplação à transformação do mundo por meio da práxis. Portanto, é preciso que a formação dos profissionais de Saúde passe por uma mudança não somente de modelos e práticas, mas também de paradigma.

Diante do exposto, este texto apresenta parte dos resultados da pesquisa que procurou, no diálogo entre a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire e a Pedagogia Histórico-Crítica de Dermeval Saviani, fundamentos teóricos que subsidiem a formação profissional para um modelo de saúde que seja coerente com o movimento de fortalecimento do SUS.

Tecendo essas considerações gerais, o objetivo deste trabalho consiste em propor uma pedagogia da formação profissional para o SUS a partir do diálogo com Freire e Saviani.

Método

Identificar as contribuições de duas pedagogias – nomeadamente, a da Libertação e a Histórico-Crítica – para a formação profissional em saúde é, por assim dizer, a utopia mobilizadora deste estudo. Constitui, pois, o objeto principal do qual se ocupa a pesquisa em tela. Um olhar imediato sobre esse objeto já sinaliza o caminho de sua apreensão (o método), dado que ambos os pensadores e suas pedagogias têm suporte teórico-metodológico no materialismo histórico-dialético, o que também remete à compreensão de que, no escopo dessa teoria, não cabe somente método, mas, fundamentalmente, filosofia, sociologia, psicologia e teoria do conhecimento.

Nesse sentido, podemos esboçar a relação entre sujeito e objeto, na investigação, pela ótica do materialismo histórico-dialético. Os objetos estão situados no universo, possuem história, estruturas e ideologias e se enredam nelas. A relação entre ambos é intermediada pela atividade, e o objeto é concreto e produto de uma construção teórica, mas não pode ser apreendido pelo que aparenta. O conhecimento consiste em refletir de forma subjetiva a realidade que é objetiva, ou uma produção teórica pelo processo de abstração. Portanto, aqui, conhecimento é produto e processo33. Libâneo JC. Método dialético ou método de ascensão do abstrato ao concreto [Internet]. Goiânia: PUC; 2006 [citado 17 Jun 2022]. Disponível em: http://professor.pucgoias.edu.br
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. Diante disso, o que se pretende aqui é demonstrar o movimento do pensamento, ou, como Minayo44. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14a ed. São Paulo: Hucitech; 2014. denomina, o caminho do pensamento, que trata da metodologia em si e que foi realizada para responder ao objetivo proposto neste estudo. Com o intuito de apresentar uma orientação didática, Triviños55. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 2017. traça um processo de desenvolvimento de pesquisas de cunho materialista-dialético no qual nos inspiramos para esboçar o caminho que foi percorrido neste estudo.

Momento 1 (concreto I, momento de tese)

Trata-se da contemplação viva do objeto e consiste na etapa inicial do estudo. Nesse momento, podemos estabelecer a singularidade do objeto, sua existência e diferenciação de outros fenômenos. É o momento em que reunimos o material que auxiliou nesse processo, identificamos as principais características do objeto e sua delimitação. O objeto se apresenta como é e como é representado e com seu significado para a existência real da sociedade. É captado em sua qualidade geral55. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 2017. . Essa etapa pode ser considerada o ponto de partida e é a observação da realidade dada, objetiva; e possui um caráter mais empírico e sincrético, em grande medida, que será submetido ao crivo da crítica científica33. Libâneo JC. Método dialético ou método de ascensão do abstrato ao concreto [Internet]. Goiânia: PUC; 2006 [citado 17 Jun 2022]. Disponível em: http://professor.pucgoias.edu.br
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. Em nosso percurso, nesta etapa, apresentamos o início do delineamento do estudo e as duas teorias: a de Freire e a de Saviani. Analisamos o contexto social, histórico, político e econômico das teorias de Freire e Saviani com a intenção de situar o objeto do estudo e suas relações para poder analisá-lo em sua totalidade.

Momento 2 (abstração, momento de antítese)

Trata-se da análise do objeto, ou seja, a penetração em sua dimensão abstrata. Nesse momento, observamos os elementos e as partes que o integram e estabelecemos as relações sócio-históricas do objeto. Também elaboramos raciocínios e conceitos do objeto e o situamos no tempo e no espaço55. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 2017. . Esta etapa é considerada o momento de abstração, em que passamos da aparência do objeto para conhecer sua essência. A abstração não opera com representações, mas sim com conceitos. Pela abstração, ultrapassamos as aparências, o imediato e o observável para buscar nexos e relações que constituem a realidade33. Libâneo JC. Método dialético ou método de ascensão do abstrato ao concreto [Internet]. Goiânia: PUC; 2006 [citado 17 Jun 2022]. Disponível em: http://professor.pucgoias.edu.br
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. Em nosso estudo, nesse momento, buscamos chegar à essência do objeto, sua totalidade, contradições, funções, finalidades e qualidade. Partimos para o aprofundamento de algumas categorias de análise, a priori , que são pressupostos das teorias de Freire e Saviani – trabalho, consciência e linguagem – com o intuito de compreender as contradições, a essência do objeto e as leis que o fundamentam. Essas categorias foram pensadas a partir do encontro das duas teorias com o materialismo histórico-dialético e são elas que promovem sustentação para pensar uma pedagogia para a formação profissional para o SUS.

Momento 3 (concreto pensado ou concreto II, momento de síntese)

Neste momento, partimos para a realidade concreta do fenômeno, estabelecemos os aspectos essenciais; sua realidade; sua possibilidade; seu conteúdo; sua forma; e o que é geral, necessário e contingente55. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 2017. . O concreto pensado não é mais o aparente, mas sim a compreensão da realidade nos seus nexos internos; a realidade com uma totalidade dinâmica de relações33. Libâneo JC. Método dialético ou método de ascensão do abstrato ao concreto [Internet]. Goiânia: PUC; 2006 [citado 17 Jun 2022]. Disponível em: http://professor.pucgoias.edu.br
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. Neste momento de nosso estudo, desenvolvemos e apresentamos elementos das teorias de Freire e Saviani que contribuem para uma pedagogia para a formação profissional para o SUS a partir de categorias de síntese, a saber: conhecimento/conteúdos, método e processos de ensino-aprendizagem.

Esse movimento consiste no détour que realizamos em busca da verdade histórica e, por isso, provisória. Portanto, a análise está pautada no materialismo histórico-dialético, considerando que o materialismo histórico representa o caminho teórico, que aponta a dinâmica do real de uma sociedade. Já a dialética refere-se ao método de abordagem da realidade, reconhecendo-a como processo histórico. O materialismo histórico como caminho teórico e a dialética como estratégia metodológica estão profundamente vinculados, pois o método é a própria alma do conteúdo44. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14a ed. São Paulo: Hucitech; 2014. .

Para cumprir com o propósito do estudo, foi necessário fazer uma imersão nas obras dos autores, motivo pelo qual consideramos fundamental selecionar algumas, para que pudéssemos fazer um aprofundamento. Dessa forma, compõem o universo de estudo as seguintes obras: Educação como prática da liberdade (2018)66. Freire P. Educação como prática da liberdade. 42a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2018. , Pedagogia do oprimido (2015)77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , Pedagogia da autonomia (2016)88. Freire P. Pedagogia da autonomia. 53a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. e Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido (2015)99. Freire P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 22a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , de Paulo Freire; e Educação: do senso comum à consciência filosófica (2013)1010. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. , Escola e democracia (2018)1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações (2013)1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. , Pedagogia Histórico-Crítica, quadragésimo ano: novas aproximações (2019)1313. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica, quadragésimo ano: novas aproximações. Campinas: Autores Associados; 2019. , de Dermeval Saviani. Esses títulos foram escolhidos por serem considerados os mais significativos para o presente estudo do conjunto de obras dos dois autores.

Resultados e discussão

O movimento pelas categorias de análise – Trabalho, Consciência e Linguagem

A fim de iniciarmos o diálogo proposto, cumpre-nos registrar que, ao longo da história da humanidade, a educação teve como mote formar determinado tipo de ser humano1414. Giles TR. Filosofia da educação. São Paulo: EPU; 1983. . Ao encontro disso, importa compreender a concepção de ser humano nas teorias de Freire e Saviani.

Sob o enfoque teórico do materialismo histórico-dialético, o humano é produto e produtor de humanização. O gênero humano não é herdado biologicamente, mas sim resultado do processo social de indivíduos que convivem ao longo da história e compartilham a humanidade, de forma que aprendem uns com os outros. Assim, o ser humano é produto do processo histórico e social, da mesma forma e ao mesmo tempo que também o produz por sua condição nesse processo histórico. Esse ser constrói, cria e transforma a realidade por meio de sua atividade.

O humano, para Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. e Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. e para este trabalho, é o ser concreto em relação de totalidade com o mundo que se constrói como ser processualmente, junto com a história da humanidade. É um ser que não está pronto, determinado, dado e acabado, mas que precisa se formar. Tem vocação ontológica de “ser mais” e, nessa busca, reconhece-se inconcluso. Portanto, aprende a ser humano pela apropriação das objetivações produzidas pelo gênero humano. Aprende a ser indivíduo pertencendo ao gênero humano. O processo educativo tem, portanto, papel fundamental na mediação entre o gênero humano e o ser, e isso constitui pressuposto e fundamento para pensarmos a formação profissional em Saúde.

Nessa trama de relações, o humano aprende a ser humano no processo educativo – como nos afirma Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. –, ao mesmo tempo que se percebe como ser inconcluso, que deseja ser mais – como nos propõe Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. . Na busca pelo ser mais, ele persegue sua humanidade, sua transformação e, nesse processo, tem também a possibilidade de contribuir para a construção do gênero humano. Isso significa conceber esse ser humano como síntese de um longo processo de evolução. Por isso, convém-nos compreender as categorias de análise escolhidas – trabalho, consciência e linguagem – como fios que tecem o gênero humano, por meio dos interlocutores em tela: Freire22. Freire P. À sombra dessa mangueira. São Paulo: Olho d’Água; 1995. , 66. Freire P. Educação como prática da liberdade. 42a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2018.

7. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.

8. Freire P. Pedagogia da autonomia. 53a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016.
- 99. Freire P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 22a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. e Saviani1010. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19a ed. Campinas: Autores Associados; 2013.

11. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018.

12. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013.
- 1313. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica, quadragésimo ano: novas aproximações. Campinas: Autores Associados; 2019. .

O trabalho, aqui trazido como categoria de análise, é elemento fundamental para compreender o diálogo que se pretende entre Freire e Saviani. O trabalho, como atividade consciente, permitiu ao ser humano organizar-se socialmente e possibilitou o desenvolvimento de habilidades psicológicas superiores de pensamento. Por isso, o trabalho possui uma dimensão que é pedagógica, pois foi por meio dele que as gerações puderam, na história, passar para outras gerações os conhecimentos produzidos. Assim, o trabalho é princípio educativo1515. Engels F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 4a ed. São Paulo: Global; 1990. .

O trabalho é categoria em que Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. e Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , 1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. dialogam, na perspectiva do materialismo histórico-dialético. O ser humano cria necessidades e, para supri-las, transforma a natureza por meio do trabalho, criando cultura. A cultura é, por isso, a natureza humanizada, marcada pelo trabalho humano. O trabalho possibilita a transformação do mundo natural em mundo cultural. Diante disso, o ser humano tem a possibilidade de se ver objetivado no próprio trabalho transformador.

Ao trabalhar, agir e transformar a natureza pela sua ação, o ser humano também se transforma, pois tem a possibilidade de antecipar a finalidade da ação, de ter consciência. Por isso, o trabalho é teleológico e se constitui como princípio educativo, na existência da diretividade dessa ação. Nessa perspectiva, o trabalho humano é consciente, apresenta uma intencionalidade, e, assim, humaniza o ser. Por meio dele, o ser humano pode transformar o mundo e todas as coisas a sua volta77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , 1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , 1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. .

É imperativo afirmar que o trabalho é ontológico à medida que, por meio dele, o ser humano se desenvolve. Ele confere à nossa espécie condições físicas e fisiológicas e possibilita o desenvolvimento do psiquismo. O trabalho possibilita ao ser se construir a partir das bases materiais, o que nos permite afirmar que o ser humano é resultado das relações que estabelece com o mundo material, produzindo também sua realidade. Daí é possível inferir que o ser humano é resultado dessas relações que o constituem como tal, e essa realidade não é intransponível: pode ser transformada por sua atividade consciente1515. Engels F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 4a ed. São Paulo: Global; 1990. . Nesses termos, o trabalho possibilita ao ser humano alcançar sua máxima capacidade de ser mais humano e, sob esse prisma, configura-se como princípio educativo também no âmbito de uma formação profissional em saúde, permitindo aos seres humanos se objetivarem e criarem humanidade por meio dele77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , 1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , 1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. .

Nesse processo, importa-nos compreender uma segunda categoria de análise: a consciência. No percurso histórico, as capacidades perceptivas e reativas, desde as formas pré-sapiens , desenvolveram-se ainda no humano primitivo, já apresentando mecanismos de ideação. Isso quer dizer que os seres humanos são capazes de realizar abstrações, de ter consciência e de pensar. Todas essas alterações físicas e psíquicas permitiram o surgimento do trabalho, desde suas formas elementares até a fabricação de instrumentos1616. Galvão AC, Lavoura TN, Martins LM. Fundamentos da didática histórico-crítica. Campinas: Autores Associados; 2019. . Isso significa que o trabalho e a consciência possuem uma visceral ligação.

Ao encontro disso, Duarte1717. Duarte N. A individualidade para si: contribuição à teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. 3a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. afirma que a consciência é uma forma especificamente humana de reflexo psíquico, o que elucida que a natureza existe independentemente da consciência. Dessa forma, a análise do processo histórico do desenvolvimento humano necessita ser explicada pelas características da natureza e da atividade humana. A explicação desse desenvolvimento consiste no fato de que o ser humano é capaz de reproduzir no plano do pensamento as contradições que existem objetivamente.

A consciência e o processo de conscientização têm relevo nas duas teorias – na de Freire e na de Saviani – ao tratar das relações de opressão e das formas de libertação dos indivíduos. A educação possibilita ao ser sair de uma consciência mágica, chegando a uma consciência crítica no processo educacional. Esse processo é chamado por Paulo Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. de conscientização. De modo semelhante, Saviani1010. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. refere a possibilidade de a educação levar o indivíduo a ascender do senso comum à consciência filosófica.

Tanto a conscientização para Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. quanto a passagem do senso comum à consciência filosófica para Saviani1010. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. são movimentos do pensamento, em que o estudante toma para si o mundo real, sua prática social, sua vida cotidiana e reflete, problematiza, busca e apreende as contradições, aprende e transforma o mundo concreto, que agora já não é o mesmo, e precisa, continuamente, passar por esse processo, sendo esse movimento a práxis.

Em síntese, para Freire e Saviani, assim como os instrumentos medeiam a relação entre o trabalho humano e a transformação da natureza, e a linguagem se coloca como mediadora do pensamento com a realidade, o conhecimento, historicamente produzido e transformado em conteúdos escolares, é signo mediador da consciência humana com a realidade. Isso significa dizer que é o conhecimento que possibilita a conscientização dos sujeitos para a transformação da realidade.

Ao encontro disso, a última categoria de análise – a linguagem – se constitui, para Freire e Saviani, como instrumento mediador ou signo na relação dos seres humanos com o mundo. A linguagem se desenvolveu ao longo da história da humanidade pela necessidade de comunicação entre os seres. Estabeleceu-se como signo ou instrumento da relação dos seres humanos com a transformação do mundo. Sendo assim, tem papel ontológico, à medida que proporciona ao ser o desenvolvimento de funções superiores de pensamento (abstração, generalização, criação, imaginação, etc.)1818. Martins LM. Desenvolvimento do pensamento e educação escolar: etapas de formação de conceitos à luz de Leontiev e Vigotski. Forum Linguist. 2016; 13(4):1572-86. .

É pela linguagem que o ser humano estabelece relação com a realidade para transformá-la. A linguagem possibilita a imagem subjetiva da realidade objetiva, sendo ela mesma uma objetivação humana. Assim como não há humano fora do trabalho e dos vínculos relacionais que dele se originam, não há, tampouco, seres humanos fora da linguagem. A linguagem é práxis e também é mediadora de todas as relações de aprendizagem. Os seres humanos precisam se apropriar da linguagem para poderem estabelecer sua leitura de mundo e, a partir dela, transformá-lo, pois a linguagem duplica o mundo real em pensamento. Nesses termos e nos parâmetros deste estudo, a linguagem é pressuposto fundamental para pensarmos a formação profissional em saúde por se colocar como signo e como mediadora dos processos compartilhados de ensino-aprendizagem e das experiências humanas e, ainda, por carregar o fundamento da pronúncia do mundo, como instrumento de libertação77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , 1010. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. , 1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. .

O retorno pelas categorias de síntese – conhecimentos/conteúdo, método e processo de ensino-aprendizagem

Para continuarmos com nossa proposta de busca de elementos para a formação profissional em saúde para o SUS, pelo diálogo com Freire e Saviani, a partir do materialismo histórico-dialético, elegemos o que denominamos como categorias de síntese. A escolha dessas categorias se justifica porque consideramos que é necessário encontrar a melhor forma (método) para a assimilação do conhecimento (conteúdos), o que requer o envolvimento de dois indivíduos da prática social (professor e estudante) implicados nos processos de ensino-aprendizagem.

Para Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. e Saviani1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. , o conhecimento orienta a consciência crítica ou filosófica e, desse modo, os seres humanos vão desvelando de forma crítica seu contexto, encontrando os problemas que emergem da prática social, de forma que, instrumentalizados por ele, possam tomar esses problemas nas mãos e transformá-los. Por isso, para ambos os autores, o conhecimento é, além de ato gnosiológico e epistemológico, ato político. O conhecimento transforma as consciências, permitindo ao ser humano a ação transformadora do mundo. Nesses termos, a classe trabalhadora (ou seja, os oprimidos) necessitam se apropriar dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, desarticulá-los dos interesses da elite e rearticulá-los a favor de seus interesses para a verdadeira transformação social. Aqui, encontramos o significado dos conhecimentos e conteúdos científicos para uma formação profissional em Saúde para o SUS77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , 99. Freire P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 22a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , 1010. Saviani D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 19a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. . Importa-nos, agora, tratar das formas de sua apropriação, ou seja, do método.

Tanto Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. quanto Saviani1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. consideram que o conhecimento compreende a totalidade da experiência humana. No processo de conhecimento, os fatos (as partes menores) são analisados no momento de abstração para que sejam compreendidos. A fim de realizar a análise e compreender o objeto em sua essência, é necessário o movimento do pensamento que, para o materialismo histórico-dialético, é o método para o conhecimento verdadeiro. Esse movimento compreende a passagem do empírico ao concreto pela mediação do abstrato1919. Netto JP. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular; 2011. .

A esse propósito, Paulo Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. desenvolveu sua estratégia pedagógica, organizada a partir dos Círculos de Cultura, em que o processo de conhecimento ocorre pelo levantamento dos temas geradores que emergem da realidade, codificação/descodificação e desvelamento crítico. Já Saviani prevê, em sua estratégica pedagógica, cinco momentos, de modo que o ponto de partida para o processo de conhecimento é a prática social, seguida pela problematização, instrumentalização, catarse e o retorno à prática social que, agora, apresenta-se não mais sincrética, como no ponto de partida, mas sim de forma sintética1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. .

Ao considerarmos a necessidade do movimento do pensamento no processo de ensino-aprendizagem, é fundante que o processo tenha início na prática social, ou seja, na realidade dos indivíduos. A prática social é sempre ponto de partida do processo, podendo ser também chamada de realidade empírica que será problematizada pelos professores e estudantes. Os sujeitos envolvidos no processo vão problematizando essa realidade empírica, de modo que o movimento do pensamento se inicia ao pensar criticamente os problemas que dela emergem. Importa-nos considerar que o olhar dos estudantes é sempre mais sincrético e caótico, enquanto o dos professores é mais sintético e organizado, pelo conhecimento que já possuem da prática social.

Levantados os problemas, o pensamento dos sujeitos encontra com os conteúdos escolares (conjunto dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, dosados e sequenciados nesse formato), que são transmitidos pelos professores, de forma a instrumentalizar os estudantes por meio da aquisição de determinados conhecimentos. Nesse momento, o pensamento se movimenta na direção da análise, ou seja, para a construção do conhecimento. Em seguida, os sujeitos se apropriam dos conhecimentos, de modo que se tornem parte deles. Por fim, o movimento se direciona novamente para a prática social que, agora, não é mais sincrética ou caótica, mas está elaborada, pois os sujeitos estão instrumentalizados para solucionar os problemas que dela emergiram no início do processo, transformando-a.

O que colocamos em relevo, em termos de síntese, sobre as contribuições das estratégias metodológicas de Freire e Saviani para a formação profissional em saúde – e que aqui defendemos – consiste em considerar o materialismo histórico-dialético como pano de fundo teórico, filosófico, epistemológico e metodológico. Sob a perspectiva de um processo formativo que seja base para o fortalecimento do SUS, é fundante que as estratégias pedagógicas desenvolvidas favoreçam aos estudantes o movimento do pensamento e do empírico ao concreto pela mediação do abstrato, como proposto até agora neste texto.

A terceira categoria de síntese – e elemento fundamental para uma pedagogia da formação profissional para o SUS – são os processos de ensino-aprendizagem. Para fazer parte do gênero humano, é necessário que esse ser se aproprie dos elementos culturais que constituem formas superiores de desenvolvimento humano, ou seja, elementos que caracterizam a humanidade. Por sua vez, essa apropriação não ocorre sem a socialização com outros seres humanos; daí advém a necessidade do processo educativo1717. Duarte N. A individualidade para si: contribuição à teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. 3a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. .

É possível observar, em Freire99. Freire P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 22a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. e Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , o papel do ensino no processo de desenvolvimento humano. Para ambos os autores, ensinar é possibilitar o desenvolvimento das capacidades humanas dos indivíduos. Porém, também conforme os autores, esse ensino não ocorre de forma espontânea, mas sim pela mediação do professor, profissional portador dos conhecimentos, ou seja, dos signos imprescindíveis a serem apreendidos pelos estudantes para que possam se humanizar.

Nesses termos, ponderamos sobre a necessidade de, no processo de ensino-aprendizagem, colocar em movimento, em torno do conhecimento, tanto os estudantes quanto os professores. O processo considera que ambos sejam colocados em situação contraditória perante o objeto de conhecimento, e a síntese desse processo é a construção do conhecimento e a formação humana.

Importa-nos, aqui, compreender que, tanto para Freire88. Freire P. Pedagogia da autonomia. 53a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016. quanto para Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , o professor aprende no processo de ensino-aprendizagem. Freire, em sua obra, advoga a favor de um professor que, enquanto educa outros, também se educa. Já Saviani refere que, no processo de estruturação da prática pedagógica, a compreensão do professor acerca da prática social, dos estudantes e dos conteúdos vai se tornando cada vez mais sintética, em níveis superiores. O que se mostra, em ambas as teorias, é a possibilidade de que o professor aprenda com e no processo de ensino-aprendizagem, cada vez mais em busca também de sua humanização.

Portanto, como forma de compreender o processo de ensino-aprendizagem para Freire e Saviani, o que colocamos em relevo nesta pesquisa, em relação à formação profissional em saúde, é o papel do professor. É ele o par responsável dessa dupla – professor e estudante – por ser o portador dos signos necessários para o desenvolvimento humano e por escolher e dosar os conteúdos necessários ao desenvolvimento dos estudantes1818. Martins LM. Desenvolvimento do pensamento e educação escolar: etapas de formação de conceitos à luz de Leontiev e Vigotski. Forum Linguist. 2016; 13(4):1572-86. .

Importa-nos considerar que existe um corpo de conteúdos que deve ser apropriado pelos estudantes para que se tornem profissionais de Saúde, assim como existem documentos orientadores da formação profissional em saúde (Diretrizes Curriculares Nacionais e projetos pedagógicos dos cursos). O que consideramos importante ressaltar é que o papel do professor, no processo educativo, é a transmissão do conhecimento historicamente produzido pela humanidade, no formato de conteúdos escolares. Além disso, é papel do professor desarticular esses conhecimentos do interesse da classe dominante e articulá-los a favor dos interesses da classe trabalhadora. Para que isso seja possível, a forma, isto é, o método pelo qual a transmissão ocorre é fundamental. Nesses termos, consideramos que a adoção do materialismo histórico-dialético como método cumpre esse papel ao proporcionar que a apropriação dos conteúdos ocorra por meio do movimento do pensamento dos estudantes e dos professores rumo ao conhecimento.

Ponderamos, então, que o papel do professor da área da Saúde não é, de nenhuma forma, neutro  como também nunca é neutro o papel de qualquer professor. Isso se deve ao fato de que o professor, a partir do momento em que escolhe quais conteúdos transmitir e como transmiti-los, coloca-se na posição de optar por difundir os conteúdos historicamente elaborados pela humanidade na busca de humanização, proporcionando ferramentas para que todos os estudantes tenham a possibilidade de transformar (ou de perpetuar) as estruturas sociais às quais estão condicionados.

Nesses termos, consideramos que, para um processo de ensino-aprendizagem na área da Saúde, a partir do que defendemos neste estudo, que se coloca no âmbito da formação profissional para o SUS, cabe ao professor selecionar os conteúdos disponíveis elaborados pela humanidade em sua forma mais desenvolvida para serem apropriados pelos estudantes2020. Moura MO, Sforni MSF; Araújo ES. Objetivação e apropriação de conhecimentos na atividade orientadora de ensino. Teor Prat Educ. 2011; 14(1):39-50. . Nesse processo, os estudantes não podem ser considerados recipientes vazios, mas sim indivíduos singulares condicionados por um espaço-tempo do qual fazem parte. Os conhecimentos, de domínio do professor, necessitam ser confrontados com os conhecimentos prévios dos estudantes em relação dialética, para que novos conhecimentos sejam construídos.

Além disso, argumentamos que o ensino-aprendizagem na área da Saúde se realize por meio da problematização. Da prática social a ser problematizada, emergirão questões que se colocam como desafios nesse contexto e mobilizarão os estudantes para sua resolução, que ocorrerá a partir da apropriação dos conteúdos, os quais servirão como instrumentos necessários para a resolução desses problemas e a transformação da realidade. Ademais, o processo de ensino-aprendizagem, nessa perspectiva, coloca o professor e o estudante da área da Saúde como polos opostos nesse processo, a partir do qual, pela potente contradição que emergirá desse encontro, serão elaboradas novas sínteses de conhecimentos.

Propondo uma pedagogia para a formação profissional para o SUS

Ao propormos uma pedagogia, é necessário compreender que ela deve ter fundamentos, método e finalidade ( figura 1 ). Desse modo, os fundamentos que se colocam na pedagogia proposta podem ser identificados por meio das categorias de análise. A fim de elucidar isso, as categorias de análise buscam alinhavar a concepção de ser humano para os dois autores em tela. Como visto, ao fim e ao cabo, a educação, em toda a história da humanidade, buscou formar determinado tipo de ser humano. Nesse sentido, ao pensarmos a formação profissional em saúde e ao propormos uma pedagogia para a formação profissional para o SUS, nada mais necessário que, em termos dos seus fundamentos, busquemos traçar a concepção de ser humano, assentada sobre os conceitos de trabalho, consciência e linguagem, que constituem nossas categorias de análise.

Figura 1
Síntese de uma pedagogia para o SUS.

Nessa perspectiva, e com apoio em Freire e Saviani, partimos de uma concepção de ser humano que tem por premissa que o trabalho é atividade humana vital, transforma a realidade, cria cultura e produz conhecimento. Nesse processo, a consciência, para Freire e Saviani, surge ao longo do processo histórico pela evolução da matéria e se desenvolve a partir e com o processo de trabalho e no estabelecimento das relações sociais.

Nossa última categoria de análise é a linguagem, que, para Freire e Saviani, é o signo mediador de todas as experiências tipicamente humanas de pensamento e dos processos de ensino-aprendizagem.

Buscando costurar sínteses em Freire e Saviani, no sentido de propor uma pedagogia para a formação profissional em Saúde, convém detalhar o método utilizado para essa pedagogia. Esse elemento é trazido em nossas categorias de síntese, vindo acompanhado de outros dois elementos que consideramos essenciais para nossa pedagogia: conhecimento/conteúdos e processo de ensino-aprendizagem.

Assim, a primeira categoria de síntese trata de conhecimento e conteúdos e se ancora em nossa primeira categoria de análise – trabalho. Os conteúdos, conforme afirma Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , são os conhecimentos dosados e sequenciados na forma de conteúdo escolar. O conhecimento produzido pela humanidade, pelo e no processo de trabalho, é direito de todos e, por isso, deverá ser apropriado por todas as gerações (presentes e futuras). Ao se apropriarem do conhecimento, os seres se humanizam, podendo operar, por meio desse conhecimento, para transformar a realidade.

Em relação ao método, consideramos que, ao propor uma pedagogia a partir das teorias de Freire e Saviani, é importante reforçar que o método proposto para essa pedagogia é o materialismo histórico-dialético. Consideramos que o movimento do pensamento, nessa perspectiva, é fundamental a uma pedagogia para a formação profissional para o SUS, para a construção do verdadeiro conhecimento e para a conscientização dos sujeitos, ancorando-se em nossa segunda categoria de análise – consciência. Argumentamos que esse é o método apropriado para a formação de profissionais que possam compreender sua realidade e, pelo processo de construção do conhecimento, transformá-la verdadeiramente.

Por fim, a última categoria de síntese trata dos processos de ensino-aprendizagem e está ancorada na última categoria de análise – linguagem –, uma vez que só existirá ensino-aprendizagem se houver linguagem. Para Freire e Saviani, é imprescindível compreender a natureza diretiva do processo educativo, o que nos leva a afirmar que, para uma pedagogia da formação profissional para o SUS, é indispensável considerar a importância do papel do professor, que reside em promover a apropriação do conhecimento produzido pela humanidade e o desenvolvimento humano dos estudantes. Nesse processo, estudantes e professores são colocados em relação dialética com o objeto de conhecimento, sendo que a síntese é a construção do verdadeiro conhecimento e a formação humana dos envolvidos.

Assim, com base na síntese apresentada anteriormente, que remete, por meio das categorias de análise, aos fundamentos para uma pedagogia da formação profissional para o SUS e ao método proposto para essa pedagogia, neste ponto do texto convém nos dedicarmos a explorar a finalidade dessa pedagogia. Desse modo, é importante ressaltar que o pano de fundo desse trabalho é o SUS. Cumpre-nos reafirmar aqui que a finalidade dessa pedagogia é o fortalecimento do SUS e que, portanto, temos uma intencionalidade política.

Ademais, as teorias de Freire e Saviani trazem um profundo comprometimento político. Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. acredita que uma educação libertadora é capaz de conscientizar e, consequentemente, politizar, sendo que esse processo é que vai proporcionar a libertação dos oprimidos, assim como dos opressores. Nesse percurso, oprimidos e opressores poderão finalmente se humanizar. Do mesmo modo, Saviani1111. Saviani D. Escola e democracia. 43a ed. Campinas: Autores Associados; 2018. , apesar de afirmar que educação e política são dimensões diferentes, destaca também que elas são inseparáveis e possuem uma íntima relação, sendo que toda prática educativa possui uma dimensão política, bem como toda prática política possui uma dimensão educativa. O autor afirma, principalmente, que a dimensão política da educação consiste na apropriação dos instrumentos culturais que, uma vez apropriados, serão acionados na luta pela libertação da situação de opressão.

Dessa forma, a importância política da educação consiste na função de socializar o conhecimento. Isso significa que é quando cumpre a especificidade de sua função (a socialização do conhecimento) que a educação mostra sua importância política. Decorre, então, que, para ambos os autores, a educação é um ato político por natureza ao possibilitar a humanização para transformação e libertação da condição de opressão.

A esse propósito, defendemos que um currículo construído a partir dessa pedagogia deva ter o trabalho como eixo articulador e princípio educativo. O trabalho como princípio educativo possibilita que a prática histórica dos seres humanos seja central nas instituições de ensino superior e que, guiada por esse princípio, organize seus conteúdos em torno da própria história dos seres humanos, sendo esse o caminho para formar indivíduos plenamente desenvolvidos. Para isso, é fundante que os seres humanos mergulhem em sua própria historicidade pelo estudo dos conteúdos clássicos em todos os níveis de ensino1212. Saviani D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11a ed. Campinas: Autores Associados; 2013. . Em outros termos, esse currículo deve proporcionar o estudo de conteúdos clássicos, tais como Sociologia, Filosofia, Artes e Ciências, em uma abordagem que não seja estática, mas articulada à prática social histórica.

Com o intuito de instigar pesquisadores que tenham interesse em estudar a temática da formação profissional em saúde a partir do referencial teórico-metodológico abordado nesse estudo, esperamos que, a partir da pedagogia aqui apresentada, possam ser produzidos desdobramentos que viabilizem sua translação para a organização de processos educativos na formação superior em Saúde, principalmente no diz respeito ao currículo e à didática.

Para fortalecermos o SUS nas raízes que o constituíram e pelo ideário do movimento da Reforma Sanitária brasileira – que visa, além de uma reforma da saúde, uma reforma dos modos de produção da vida –, consideramos ser necessário outro modo de pensar a formação profissional em Saúde no país. Assim, a pedagogia que propomos se coloca como alternativa para a formação de profissionais comprometidos com a realização do projeto da Reforma Sanitária brasileira e o fortalecimento do SUS.

Considerações finais

Freire e Saviani concordam em mostrar que o ser humano é social e histórico; e constrói a si mesmo e a sociedade por meio do trabalho, sendo esta a atividade vital pela qual o ser humano transforma a natureza; e produz cultura e modos de vida. Como seres históricos, constituímo-nos como provisórios e contraditórios. Mostram-nos os autores que a humanização ocorre pela apropriação das objetivações humanas que possibilitam o desenvolvimento de funções psicológicas superiores.

Em síntese, a pedagogia que propomos se plasma por meio de uma educação que visa à conscientização para a transformação do mundo e para a libertação pela práxis, tendo como instrumento para essa libertação os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade que são apropriados pelo movimento do pensamento, na perspectiva materialista histórico-dialética. Essa pedagogia é concreta e possibilita a consciência de classe e a elevação cultural das massas para a libertação. Nesse sentido é que uma pedagogia para a formação profissional para o SUS precisa levar em conta que os seres humanos são seres sociais e que aprendem a serem humanos pelo processo educativo, possibilitando a apropriação dos conhecimentos necessários à sua conscientização para a transformação da realidade e à libertação, pois, como afirmado por Freire77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. , uma pedagogia que possibilita a “conscientização alcança as últimas fronteiras do humano”77. Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. (p. 29).

Referências

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  • Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc). Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    04 Maio 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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