Entre “centrado na pessoa” e “freestyle”: a abordagem do sofrimento mental comum em residências de medicina de família e comunidade

The “patient-centered” or “freestyle” method: the approach to common mental suffering in family and community medicine residency programs

Entre “centrado en la persona” y “freestyle”: el abordaje del sufrimiento mental común en residencias de medicina de familia y comunidad

Fábio Araujo Gomes de Castro Leandro David Wenceslau Débora Carvalho Ferreira Sobre os autores

Resumos

Este trabalho apresenta um estudo qualitativo sobre a abordagem do sofrimento mental comum (SMC) em programas de residência de Medicina de Família e Comunidade de Minas Gerais. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 16 participantes de três programas de residência, entre março e maio de 2022. A interpretação dos dados seguiu os princípios da Análise Temática de Braun e Clarke. Para os participantes, o SMC é uma demanda frequente na Atenção Primária que deve ser abordada, principalmente com intervenções psicossociais. Contudo, os participantes reconhecem que não têm aplicado essas intervenções nos moldes recomendados pela literatura. Os entrevistados relatam conhecer diversas técnicas de intervenção, mas só sabem aplicar algumas, com destaque para os componentes do "método clínico centrado na pessoa". Esse fato contribui para despertar emoções negativas, como angústia e frustração, e aumentar o número de referenciamentos desnecessários para outros profissionais.

Palavras-chave
Saúde mental; Medicina de família e comunidade; Residência médica; Atenção primária à saúde; Intervenção psicossocial


This work presents a qualitative study of the approach to common mental suffering (CMS) in family and community medicine residency programs in the state of Minas Gerais, Brazil. Semi-structured interviews were conducted with 16 participants from three residency programs between March and May 2022. The data were interpreted drawing on the principles of Braun and Clarke’s thematic analysis method. According to the participants, CMS is a frequent demand in primary care and should be approached using mainly psychosocial interventions. However, the participants recognize that they have not applied these interventions in the manner recommended by the literature. The interviewees reported that despite being aware of a diverse range of intervention techniques, they only know how to apply some, with emphasis on the components of the “patient-centered clinical method”. This fact has contributed to the awakening of negative emotions, such as anguish and frustration, and increased the number of unnecessary referrals to other professionals.

Keywords
Mental health; Family and community medicine; Medical residency; Primary health care; Psychosocial intervention


Este trabajo presenta un estudio cualitativo sobre el abordaje del sufrimiento mental común (SMC) en programas de residencia de Medicina de Familia y Comunidad del estado de Minas Gerais. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con 16 participantes de tres programas de residencia, entre marzo y mayo de 2022. La interpretación de los datos siguió los principios del Análisis Temático de Braun y Clarke. Para los participantes, el SMC es una demanda frecuente en la atención primaria que hay que abordar, principalmente, con intervenciones psicosociales. No obstante, los participantes reconocen que no han aplicado esas intervenciones en los estándares recomendados por la literatura. Los entrevistados relatan que conocen diversas técnicas de intervención, pero que solo saben aplicar algunas, con destaque para los componentes del método clínico centrado en la persona?. Este hecho contribuye para despertar emociones negativas, tales como angustia y frustración, y para aumentar el número de derivaciones innecesarias para otros profesionales.

Palabras clave
Salud mental; Medicina de familia y comunidad; Residencia médica; Atención primaria de la salud; Intervención psicosocial


Introdução

Muitas pessoas, pelos mais diferentes motivos, procuram os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) apresentando alguma forma de mal-estar emocional11 Gum AM, Epstein-Lubow GP, Gaudiano BA, Wittink M, Horvath C. Brief behaviour change strategies for distressed patients in primary care. BMJ. 2019; 366:l5360. doi: 10.1136/bmj.l5360.
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. Há, historicamente, uma tendência de a Biomedicina moderna22 Camargo KR Jr. A biomedicina. Physis. 2005; 15 Supl:177-201. doi: 10.1590/S0103-73312005000300009.
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classificar essas perturbações emocionais em múltiplos diagnósticos sindrômicos, tratados prioritariamente de intervenções farmacológicas. Contudo, na prática clínica, se percebe que os diagnósticos dados a essas condições se apresentam de forma sobreposta e as pessoas atendidas experienciam sofrimentos que são superficialmente descritos por essas classificações.

Médicos e médicas de família e comunidade estão em uma excelente posição para prestar cuidados em Saúde Mental, já que, na maioria das situações, representam o primeiro contato da pessoa com o serviço de saúde33 Kates N, Craven M, Bishop J, Clinton T, Kraftcheck D, LeClair K, et al. Shared mental health care in Canada. Can J Psychiatry. 1997; 42(8):1-12. doi: 10.1177/070674379704200819.
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. Além disso, estudos evidenciam que, pela distribuição de profissionais e pela organização dos sistemas de saúde, a maior parte das condições de Saúde Mental é manejada exclusivamente por profissionais da APS e não pelos especialistas em Psiquiatria44 Golberg D, Huxley P. Common mental disorders: a bio-social model. London: Routledge; 1992.,55 Organização Mundial da Saúde. Integração da saúde mental nos cuidados de saúde primários: uma perspectiva global. Genebra: OMS; 2009..

O sofrimento psíquico apresenta-se sob diversas formas na APS, seja como condições de leve a moderada gravidade, seja como transtornos graves e persistentes. As apresentações menos graves são muito mais prevalentes e frequentemente designadas na literatura como Sofrimento Mental Comum (SMC) ou Transtornos Mentais Comuns (TMC)44 Golberg D, Huxley P. Common mental disorders: a bio-social model. London: Routledge; 1992.,66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica; n. 34).. Neste trabalho, será utilizado o termo SMC com base na definição do Caderno de Atenção Básica em Saúde Mental do Ministério da Saúde66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica; n. 34).. Esse documento, norteador da abordagem clínica em Saúde Mental na APS no Brasil, define o SMC como síndrome clínica caracterizada por sofrimento mental com três dimensões de sintomas que se combinam: tristeza/desânimo, ansiedade e sintomas físicos. A definição utilizada é uma tentativa de evitar que se sobreponham comorbidades ou que se sucedam diagnósticos no tempo, que nada mais são do que intensidades diferentes da mesma combinação de sintomas66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica; n. 34)..

A prescrição de psicotrópicos é um método muito utilizado para o manejo do SMC na APS. No entanto, estudos evidenciam pouca ou nenhuma melhora com medicamentos em casos leves ou moderados77 Fournier JC, DeRubeis RJ, Hollon SD, Dimidjian S, Amsterdam JD, Shelton RC, et al. Antidepressant drug effects and depression severity: a patient-level meta-analisys. JAMA. 2010; 303(1):47-53. doi: 10.1001/jama.2009.1943.
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. Ainda há demonstração de que abordagens não farmacológicas são eficazes88 Farah WH, Alsawas M, Mainou M, Alahdab F, Farah MH, Ahmed AT, et al. Non-pharmacological treatment of depression: a systematic review and evidence map. Evid Based Med. 2016; 21(6):214-21. doi: 10.1136/ebmed-2016-110522.
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e muitas vezes preferidas pelos pacientes99 National Collaborating Centre for Mental Health. Common mental health disorders: the NICE guideline on Identification and pathways to care (National Clinical Guideline). London: RCPsych Publications; 2011..

Intervenções psicossociais para Saúde Mental podem ser definidas como atividades, técnicas ou estratégias interpessoais ou informativas que visam a fatores biológicos, comportamentais, cognitivos, emocionais, interpessoais, sociais ou ambientais com o objetivo de melhorar o funcionamento da saúde e o bem-estar1010 Committee on Developing Evidence-Based Standards for Psychosocial Interventions for Mental Disorders; Board on Health Sciences Policy; Institute of Medicine; England MJ, Butler AS, Gonzalez ML, editors. Psychosocial interventions for mental and substance use disorders: a framework for establishing evidence-based standards. Washington: National Academies Press; 2015. doi: 10.17226/19013.
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. Essas intervenções se diferem de aconselhamentos gerais, inespecíficos e não estruturados. Neste estudo, esses aconselhamentos não estruturados serão denominados freestyle – designação local utilizada nos nossos cenários de pesquisa para essa estratégia de abordagem. As intervenções psicossociais mais estruturadas podem ser divididas em dois grandes grupos: básicas ou de baixa intensidade/complexidade e as avançadas ou de alta intensidade/complexidade.

No primeiro grupo, estão intervenções e técnicas que podem ser realizadas sem muitas dificuldades por profissionais treinados em cuidados primários, demandam menos tempo, podem consistir em terapias modificadas e adaptadas e visam melhorar a autoeficácia dos pacientes. O segundo grupo abarca intervenções e habilidades feitas preferencialmente por profissionais com formação especializada nessas técnicas. Podem ser realizadas por profissionais de saúde especialistas em APS, porém demandam maior investimento de tempo tanto para o seu aprendizado quanto para sua aplicação. Não há, contudo, consenso na literatura em relação aos tipos de intervenções que fazem parte de cada grupo. Nesta pesquisa, optamos por utilizar como referência as classificações de documentos que são focadas nas abordagens em cenários de APS66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica; n. 34).,1111 Castelló M, Fernández de Sanmamed MJ, García J, Mazo MV, Mendive JM, Rico MM, et al. Atención a las personas con malestar emocional relacionado con condicionantes sociales en Atención Primaria de Salud. Barcelona: Fòrum Català d'Atenció Primària; 2016.

12 Menezes AL, Correia CRM. Curso de Capacitação de Saúde Mental na Atenção Primária da UNASUS-MA (versão EAD). Módulo 4: Clínica da Saúde Mental na Atenção Primária, Transtornos Mentais Comuns. São Luís: Universidade Federal do Maranhão; 2016.

13 Organização Pan-Americana de Saúde. MI-mhGAP Manual de Intervenções para transtornos mentais, neurológicos e por uso de álcool e outras drogas na rede de atenção básica à saúde. Versão 2.0. Brasília: OPAS; 2018.
-1414 World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians. Working party for mental health guidance paper: family doctors’ role in providing non-drug interventions (NDIs) for common mental health disorders in primary care. Geneva: WONCA; 2017.. A Figura 1 apresenta as principais intervenções básicas. Já a Figura 2 descreve as intervenções psicossociais avançadas.

Figura 1
Intervenções psicossociais básicas.
Figura 2
Intervenções psicossociais avançadas.

Dada a relevância do assunto para os sistemas de saúde e diante da alta prevalência de queixas relacionadas à Saúde Mental, sobretudo de SMC em serviços de APS no Brasil e no mundo, é fundamental que os programas de residência médica em MFC (PRMFC) fomentem o desenvolvimento de competências para abordagem de SMC. Este trabalho apresenta uma investigação realizada em cenários de PRMFC. A residência é uma importante modalidade de ensino de Pós-Graduação, considerada padrão ouro na especialização médica1515 Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. v. 1-2. e caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde com orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional denominados preceptores1616 Brasil. Presidência da República. Lei n° 6.932, de 7 de Julho de 1981. Dispõe sobre as atividades do médico residente e dá outras providências. Diário Oficial da União. 7 Jul 1981.,1717 Brasil. Ministério da Educação. Comissão Nacional de Residência Médica. Resolução CNRM nº 1, de 25 de Maio de 2015. Regulamenta os requisitos mínimos dos programas de residência médica em Medicina Geral de Família e Comunidade - R1 e R2 e dá outras providências. Diário Oficial da União. 25 Maio 2015. .

Assumindo a importância do tema na prática da MFC, entidades e associações representativas da especialidade indicam, como competências essenciais dos médicos de família e comunidade, o uso de abordagens farmacológicas e não farmacológicas para o manejo de transtornos mentais1818 Dowrick C, Lam CLK. Core competencies of family doctors in primary mental health care. In: Global Primary Mental Health Care. Abingdon: Routledge; 2019. p. 1-18. doi: 10.4324/9780429026386-1.
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,1919 Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Currículo baseado em competências para medicina de família e comunidade [Internet]. Rio de Janeiro: SBMFC; 2015 [citado 2 Jan 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wpcontent/uploads/media/Curriculo%20Baseado%20em%20Competencias(1).pdf
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. Apesar de muito relevante, há uma carência de estudos que abordam de forma qualitativa o assunto na perspectiva de residentes e preceptores2020 Leigh H, Stewart D, Mallios R. Mental health and psychiatry training in primary care residency programs. Gen Hosp Psychiatry. 2006; 28(3):195-204. doi: 10.1016/j.genhosppsych.2005.10.004.
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.

Neste trabalho, investigou-se a abordagem do SMC em PRMFC de Minas Gerais (MG) por meio da percepção de residentes e preceptores. Foram explorados o reconhecimento e as estratégias de cuidado do SMC, as facilidades e dificuldades enfrentadas, bem como as lacunas e demandas de ensino-aprendizagem em relação ao tema.

Metodologia

Trata-se de pesquisa qualitativa do tipo descritiva que objetiva a “compreensão de um fenômeno por meio do acesso aos significados que os participantes atribuem a ele”2121 Bradshaw C, Atkinson S, Doody O. Employing a Qualitative Description Approach in Health Care Research. Glob Qual Nurs Res. 2017; 4:2333393617742282. doi: 10.1177/2333393617742282.. Para ampliar o conhecimento do fenômeno de interesse, adotamos como principal estratégia a realização de entrevistas de aprofundamento realizadas com residentes e preceptores de três PRMFC do estado de MG.

As entrevistas foram realizadas com oito preceptores e oito residentes de dois programas no interior de MG e um na capital mineira de março/2022 a maio/2022. A escolha dos programas de residência pesquisados foi intencional. Planejou-se priorizar programas de reconhecida qualidade na formação de médicos de família que buscassem oferecer o treinamento dentro dos padrões indicados pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Essa escolha poderia oportunizar o mapeamento de experiências mais bem-sucedidas no ensino da abordagem do sofrimento mental na APS. Porém, na ausência de uma avaliação formal dos programas de residência em MFC em MG, foram selecionados programas indicados pelos orientadores da pesquisa, pesquisadores em medicina de família e comunidade, e valorizados nos círculos “esotéricos”2222 Tesser CD. Contribuições das epistemologias de Kuhn e Fleck para a reforma do ensino médico. Rev Bras Educ Med. 2008; 32(1):98-104. de aprendizagem em MFC de que também participa um dos autores. Para garantir o sigilo dos participantes da pesquisa e dos programas de residência, eles serão designados pelos números 1, 2 e 3. A Tabela 1 demonstra o total de residentes e preceptores em cada programa e quantos foram entrevistados.

Tabela 1
Distribuição de entrevistados (residentes e preceptores) em cada programa de Residência médica

Os nomes dos residentes e preceptores também foram omitidos. Para a identificação dos residentes foi atribuída a letra R (em referência ao termo residente), uma letra (A, B ou C) e um número (1, 2 ou 3, correspondente ao que foi atribuído ao seu programa). Para os preceptores foi atribuída a letra P (referente ao cargo de preceptor), uma letra (A, B ou C) e um número (1, 2 ou 3, correspondente ao que foi atribuído ao seu programa).

Os 16 participantes foram entrevistados utilizando como referência roteiros semiestruturados de aprofundamento elaborados pelo pesquisador, sendo um destinado aos residentes e outro, aos preceptores. Os roteiros também incluíram um componente projetivo. Uma situação clínica para os residentes (Quadro 1) e uma de ensino para os preceptores (Quadro 2) criadas pelo pesquisador eram apresentadas aos participantes. Em seguida, eles eram convidados a descrever como lidariam com aquele "caso". Um instrumento foi empregado para apoiar a descrição do perfil sociodemográfico e da trajetória formativa e profissional dos participantes. Utilizamos um questionário sociodemográfico simples para conhecer o perfil dos residentes e preceptores.

Quadro 1
Situação clínica para os residentes
Quadro 2
Situação clínica para os preceptores

A pesquisa reuniu dados na forma de relatos descritivos, transcrições de entrevistas e resumos das respostas dos questionários. As entrevistas tiveram duração média de 23 minutos. A análise dos dados nesta pesquisa qualitativa envolveu a leitura e a organização de todos os dados coletados ao longo da pesquisa, transcrições das entrevistas, sistematizações das respostas aos questionários fechados. O material foi codificado e categorizado, seguindo princípios de análise de temática de Braun e Clarke, composto por seis passos: familiarização com os dados; geração de códigos iniciais; busca de temas; revisão de temas; definição e nomeação de temas; e produção do relatório2323 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006; 3(2):77-101. doi: 10.1191/1478088706qp063oa.
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.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa n. 52901321.0.0000.5153.

Resultados

O perfil dos residentes variou em idade, de 24 a 34 anos, com média de 27,75. Em relação ao gênero, 62,5% se identificam como mulher cisgênero e 37,5%, como homem cisgênero. Nenhuma outra identidade de gênero foi declarada. Em relação à cor/raça, 75% dos participantes se declararam brancos e 25%, pardos. A maior parte dos residentes (62,5%) concluiu sua graduação em medicina em instituições públicas. O tempo de formado variou de 1 a 3 anos. Todos os residentes estavam matriculados em programas de residência vinculados a instituições públicas.

Os preceptores tinham entre 27 e 44 anos, com média de 32,8 anos. Em relação ao gênero, 25% se identificam como mulher cisgênero e 75%, como homem cisgênero. Nenhuma outra identidade de gênero foi declarada. Em relação a cor/raça, seis dos participantes se declararam brancos, dois pardos e uma preta. Todos os preceptores eram especialistas em Medicina de Família e Comunidade e o tempo de exercício da função de preceptoria variou entre 1 e 14 anos, com média de 4,6 anos. Todos haviam se especializado em instituições públicas, com exceção de um, que não cursou Residência médica e se titulou por meio de prova de título concedido pela SBMFC.

“Centrado na pessoa”, “à psicologia” e “freestyle

A relevância de um modelo orientador em Saúde Mental com múltiplos diagnósticos sindrômicos ficou evidente pelo desconhecimento prévio do termo SMC e de outros considerados sinônimos, como transtorno mental comum44 Golberg D, Huxley P. Common mental disorders: a bio-social model. London: Routledge; 1992., sofrimento emocional1111 Castelló M, Fernández de Sanmamed MJ, García J, Mazo MV, Mendive JM, Rico MM, et al. Atención a las personas con malestar emocional relacionado con condicionantes sociales en Atención Primaria de Salud. Barcelona: Fòrum Català d'Atenció Primària; 2016. ou sofrimento difuso,2424 Valla VV. Pobreza, emoção e saúde: uma discussão sobre pentecostalismo e saúde no Brasil. Rev Bras Educ. 2002; (19):63-75. doi: 10.1590/S1413-24782002000100006.
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por metade dos entrevistados. Por outro lado, a referência às síndromes psiquiátricas mais prevalentes, aos transtornos depressivos e transtornos de ansiedade, como entidades delimitadas e separadas, era frequente nas falas dos entrevistados.

Entre os oito preceptores, cinco já conheciam o termo SMC e deram definições coerentes com a literatura. Dos três preceptores que não conheciam o termo, quando foi solicitado que tentassem dar uma definição, dois definiram de formas semelhantes à utilizada nesta pesquisa. Entre os oito residentes, apenas três já conheciam o termo SMC ou TMC. Apesar disso, sete dos entrevistados deram definições semelhantes à utilizada nesta pesquisa quando lhes foi solicitado que tentassem dar uma definição. Dos 16 participantes, 15 concordaram, após a proposta de definição apresentada pelo entrevistador, que o SMC é uma demanda muito frequente em suas práticas na APS, com exceção de um preceptor.

Ao descrever como abordavam o transtorno mental comum, as respostas dos oito residentes apontavam o uso de intervenções psicossociais como recurso principal. No entanto, apesar de referirem conhecer diversos tipos de intervenções psicossociais básicas e avançadas para abordagem do SMC, foi possível perceber que esse conhecimento não significava necessariamente aplicá-las, e apenas algumas eram utilizadas na prática clínica. Os principais motivos citados para isso estavam relacionados à falta de competência para executá-las na prática e a consequente insegurança. A fala de uma das entrevistadas é ilustrativa.

Eu até conheço muitos tipos de intervenções, já li sobre várias. Mas a dificuldade, não só minha, mas acredito que de vários colegas, é de saber como aplicar na prática. A gente fica insegura de não saber se está certo e acaba não usando.

(RB1)

Resumimos, no Quadro 3, as abordagens relatadas pelos residentes, assinalando se o entrevistado apenas conhecia a intervenção ou se afirmou utilizá-la em sua prática ao atender pessoas com SMC.

Quadro 3
Abordagem do SMC por residentes

Como evidenciado no Quadro 3, a única abordagem citada por todos os residentes foi a aplicação do método clínico centrado na pessoa (MCCP), provavelmente por ser um paradigma clínico particular da especialidade2525 Wenceslau LD, Ortega F. From person to life: an anthropological examination of primary health care approach to depression in Rio de Janeiro. Med Anthropol Q. 2022; 36(1):64-82. doi: 10.1111/maq.12668.
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considerada uma competência essencial para os médicos de família e comunidade1919 Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Currículo baseado em competências para medicina de família e comunidade [Internet]. Rio de Janeiro: SBMFC; 2015 [citado 2 Jan 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wpcontent/uploads/media/Curriculo%20Baseado%20em%20Competencias(1).pdf
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e muito difundida e abordada entre os PRMFC, livros1515 Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. v. 1-2.,2626 Stewart M, Brown JB, Weston WW, McWhinney IR, McWilliam CL, Freeman TR. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2017. e congressos da especialidade. Observamos que MCCP não foi citado pelos residentes como paradigma clínico geral da especialidade, mas como uma técnica específica a ser utilizada em algumas situações.

Em relação à realização de técnicas e habilidades clínicas interpessoais de comunicação, a escuta ativa e a utilização da técnica conhecida pelo acrônimo SIFE – técnica específica do segundo componente do MCCP –, como forma de compreender a experiência com o adoecimento, foram citadas por seis dos oito residentes. Essas técnicas e o MCCP eram empregadas tanto com intenção de explorar e aprofundar o relato do paciente quanto como proposta terapêutica, exemplificadas nas seguintes falas:

Num contexto que eu estou conhecendo, por exemplo, a paciente num primeiro momento acolher, tentar fazer uma escuta ativa mais qualificada e usar o SIFE, que também acaba sendo terapêutico.

(RB3)

Muitas vezes só de aplicar os passos do Método Clínico Centrado na Pessoa o paciente já sai melhor da consulta, acho que é terapêutico.

(RC2)

Quanto às intervenções psicossociais consideradas avançadas, foram citadas a terapia cognitivo-comportamental, a terapia de resolução de problemas e a terapia comunitária. Apesar de os participantes dizerem que utilizariam essas abordagens no manejo do caso apresentado, seu conhecimento do assunto era superficial e, portanto, tinham dificuldades de esclarecer como conduziriam as intervenções citadas. Aprofundando no assunto, entendemos que nenhum residente aplicava, de fato, intervenções psicossociais avançadas em sua rotina de atendimentos. Essa limitação pode ser percebida nas seguintes falas de aprofundamento sobre o assunto:

Então, para ser sincera ultimamente não estou utilizando nem a abordagem cognitivo-comportamental nem a ativação comportamental. Percebi que eu não estava sendo efetiva com o conhecimento que tenho sobre o tema e acabava encaminhando os pacientes para a psicóloga da unidade. Percebo que minha grande dificuldade é colocar em prática o conhecimento teórico que tenho sobre o assunto. Acho que também acabei me acomodando com o fato de ter uma boa psicóloga na unidade em que estou. Tenho então encaminhado para psicoterapia e orientado a prática de exercício físico.

(RB1)

As limitações apresentadas pelos residentes para a aplicação de técnicas psicossociais na abordagem do SMC podem explicar a alta frequência de encaminhamento dos pacientes para outros profissionais sugerido por todos os residentes. O serviço de Psicologia foi o mais citado e, para metade dos residentes, esses encaminhamentos aconteciam quase sempre já na primeira consulta e significavam a transferência, e não o compartilhamento, daquele cuidado. Tais condutas podem significar a repetição de um modelo de abordagem aprendido durante a Graduação médica, como apontado de uma forma crítica por um residente.

Porque na faculdade a gente tem isso de um jeito muito ruim, é basicamente passar remédio e encaminhar pra psicoterapia que a gente aprende.

(RA1)

Um outro tipo de abordagem citado por cinco dos residentes foi a realização de rápidos aconselhamentos gerais, inespecíficos e não estruturados. Esses conselhos eram genéricos e não adaptados aos valores, preferências e contexto dos pacientes.

Não utilizo nenhuma ferramenta é mais freestyle. É mais livre do que uma coisa, sei lá, metodológica, estruturada, instrumentos oficializados, né.

(RA2)

Um outro ponto interessante da discussão se dá em relação à abordagem farmacológica dos casos de SMC. Alguns residentes teceram críticas à "medicalização da vida" e refletiram sobre a influência dos determinantes sociais de saúde.

Às vezes eu vejo que pulsa muito também uma medicalização da vida, né, também. Às vezes são contextos sociais muito duros e que às vezes a resolução do contexto social, mas o medicamento, ele não resolve, né? Mas aí é uma balança, assim é compartilhada a decisão.

(RB3)

A preceptoria de casos de SMC

Uma fala comum dos preceptores foi a avaliação de que os residentes costumam querer classificar todos os problemas e condições atendidas. Contudo, apesar de muitos preceptores perceberem e tecerem críticas a essa tendência, foi percebido durante as entrevistas que muitos também realizavam a classificação durante o processo de preceptoria.

Durante as entrevistas, metade dos preceptores referiu já iniciar a preceptoria do caso pela discussão de condutas; já outros faziam o exercício de se aprofundar na avaliação e só depois discutir planos para o problema avaliado. Aqueles que já iniciavam a discussão pelas condutas eram também os que mais usavam sistemas classificatórios para a condição apresentada.

Quanto às abordagens psicoterápicas, o grupo dos preceptores, assim como o grupo dos residentes, conhecia muitas técnicas, mas também aplicava poucas delas na prática. A maior diferença percebida nesse tema, quando comparado à abordagem dos residentes, consiste no fato de que dois preceptores (PA1, PA2) utilizavam uma das técnicas consideradas avançadas, a terapia de resolução de problemas. O Quadro 4 resume as intervenções abordadas pelos preceptores.

Quadro 4
Abordagem do SMC por preceptores

As intervenções mais citadas pelos preceptores foram bem semelhantes às relatadas pelos residentes. A maioria das intervenções estava no campo das técnicas e habilidades clínicas interpessoais de comunicação e na aplicação do MCCP. Foi possível perceber que os preceptores tendiam a dar menos aconselhamentos gerais e inespecíficos do que os residentes.

Entre as técnicas não classificadas como intervenções psicossociais básicas ou avançadas pela Organização Mundial de Colégios Nacionais, Academias e Associações Acadêmicas de Médicos gerais/Médicos de Família (Wonca), foi citada, pelo preceptor PB3, a programação neurolinguística, que pode ser definida como um modelo que auxilia no entendimento do funcionamento da mente humana, tornando possível a identificação e o aproveitamento das capacidades do indivíduo para alcançar os resultados almejados2727 Benelli SJ. A cultura psicológica no mercado de bens de saúde mental contemporâneo. Estud Psicol. 2009; 26(4):515-36.. Apenas dois preceptores (PA2 e PB2) comentaram a importância de intervenções coletivas, não necessariamente realizadas por médicos, e citaram os grupos de convivência e terapia comunitária. Com essa análise, ficou nítido que a maioria das intervenções citadas eram básicas, centradas no médico e em ações individuais.

Quanto à abordagem medicamentosa, dois preceptores reconheceram o limitado valor do tratamento farmacológico e levantaram reflexões sobre sua eficácia para o caso de SMC apresentado, como percebido na fala:

Não há medicação que vá tirar esse sofrimento desse usuário, do que ele coloca. Isso é um sofrimento real. Então a gente precisa, de fato, de dar até um apoio para o que essa pessoa precisa de fato. E não mascarar com uma medicação, que de repente em 1 mês ela vai falar "foi ótimo", mas daqui a 3, 4 meses ela vai chegar e vai falar que o remédio parou de fazer efeito. É lógico que parou de fazer efeito. Será que alguma vez fez efeito ou foi só mesmo pela relação de ter sido escutado ali por nós.

(PB3)

Um fato que chamou a atenção foi a sugestão de prescrição de fitoterápicos – medicamentos obtidos de plantas medicinais ou de seus derivados –, sendo citados por dois preceptores (PC3 e PC2), e esses mesmos entrevistados disseram que o tratamento farmacológico não seria indicado. Pelas falas, notamos que a escolha preferencial pelos medicamentos fitoterápicos se dava por uma percepção de menor risco de dependência e efeitos colaterais, além da possibilidade de fazer uso sob demanda e não necessariamente de forma contínua.

O sofrimento de quem atende pessoas em sofrimento

Esse não era um tema inicialmente pensado como foco da pesquisa, mas surgiu como um dos núcleos de sentido mais relevantes para os participantes. Esse tema apareceu nas entrevistas quando perguntado como eles "lidavam com a demanda de SMC". Todos os entrevistados, residentes ou preceptores, enfatizaram o despertar de emoções durante o atendimento de pessoas com SMC. A experiência emocional de residentes e preceptores emergiu como principal orientador das suas respostas às pessoas que apresentavam SMC.

A maioria dos relatos em relação às emoções despertadas durante o atendimento de pessoas em SMC foi negativa. As experiências emocionais mais citadas pelos entrevistados foram angústia, frustração, impotência, cansaço e "carga emocional grande".

Então, eu me sinto realmente impotente nessa questão. Eu sinto como se tivesse fazendo um trabalho ali de formiguinha ao que eu precisaria realmente melhorar, mas ao que eu ainda sinto bem limitado é trabalhar essa questão do macro, dessa questão aí, da comunidade que inclusive está dentro ali até da nossa da definição de especialidade, né, medicina de família e comunidade é frustrante!

(PB3)

A falta de tempo durante as consultas foi uma justificativa para o sentimento de angústia. Já para a sensação de cansaço, o cuidado essencialmente centrado no médico foi descrito como uma das bases dessa experiência.

Eu me canso um pouco desse negócio da gente ter que ser a resposta pra todo e qualquer sofrimento. Então, ao mesmo tempo que a gente tem que acolher, a gente tem que descentralizar. Que essas coisas não batam só na porta do médico, mas batam na porta de outros profissionais que não só da saúde também.

(PA2)

Outros atribuem os desafios dessas consultas a um fenômeno não embasado pelo paradigma biomédico ocidental: uma troca que acontece no campo da "energia". "Não que eu não goste de realizar esse tipo de atendimento, mas são atendimentos que sempre me demandam muita energia" (RB1). Uma residente (RB3) reconheceu a existência das trocas durante essas consultas, mediante uma visão psicanalítica ao citar o termo "contratransferência". Os conceitos transferência e contratransferência vêm da Psicanálise e indicam as emoções e os sentimentos derivados de outras situações parecidas que o paciente (transferência) ou o terapeuta (contratransferência) aplicam à relação assistencial2828 Carrió FB. Entrevista clínica: habilidades de comunicação para profissionais de saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012. . Ela comenta:

Eu acho que depende muito do momento que você está, sabe? Pra você lidar com isso. Tem momentos que eu tô superbem, isso faz muita diferença. Você estar bem. Quando chega essa pessoa, você consegue lidar muito melhor, assim conversar melhor com essa pessoa, né? E não ter tanta contratransferência assim, né? Eu acho que isso faz diferença. Agora, eu acho que quando a gente tá mal, tá mais pra baixo, acaba que isso acaba afetando a gente, sabe? No momento eu tô bem, que eu tô compensada e aí eu tô conseguindo, né?

(RB3)

Apesar de todos os preceptores e residentes afirmarem e reconhecerem que esses atendimentos despertavam várias emoções, em sua maioria negativas, apenas um preceptor (PA1) explorou a preocupação em incluir, durante a discussão do caso de SMC, a experiência emocional do residente e não apenas questões técnicas e clínicas envolvidas.

Discussão

A análise das entrevistas permitiu compreender que os entrevistados reconhecem que o SMC é uma demanda frequente que deve ser abordada na APS pelo MFC por meio de intervenções psicossociais. Contudo, nota-se que, na prática, tanto residentes quanto preceptores não têm abordado o tema da maneira como está recomendado na literatura1414 World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians. Working party for mental health guidance paper: family doctors’ role in providing non-drug interventions (NDIs) for common mental health disorders in primary care. Geneva: WONCA; 2017.,1919 Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Currículo baseado em competências para medicina de família e comunidade [Internet]. Rio de Janeiro: SBMFC; 2015 [citado 2 Jan 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wpcontent/uploads/media/Curriculo%20Baseado%20em%20Competencias(1).pdf
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, embora sejam conscientes dessas limitações. As principais inconsistências em relação ao que é esperado estão relacionadas ao saber aplicar maior variedade de intervenções básicas e avançadas e à realização da função de filtro, com referenciamentos apropriados dos pacientes com SMC para outros serviços.

Em relação aos residentes, foi possível notar que eles conheciam, mesmo que superficialmente, diversas intervenções psicossociais disponíveis, mas se sentiam seguros para aplicar apenas algumas das consideradas básicas e nenhuma das avançadas. Dentre todas, a mais citada foi a aplicação do MCCP e o SIFE. Um dos motivos apontados para o baixo repertório de técnicas utilizadas estava relacionado à formação considerada, de forma geral, insuficiente tanto na Graduação quanto nos programas de Residência. Apenas um dos programas (P1) abordava o tema SMC em seu currículo formal e somente um residente estava satisfeito com sua abordagem. Uma consequência natural dessa lacuna formativa era a realização de aconselhamentos gerais e inespecíficos freestyle sem embasamento científico e também o encaminhamento frequente para os serviços de Psicologia.

A medicalização da vida ou do viver pode ser entendida como um processo em que são oferecidas respostas médicas desnecessárias a problemas que fazem parte da própria vida, com suas adversidades. A medicalização do viver pretende evitar as adversidades e os problemas cotidianos, mas de forma negativa diminui a resiliência e a autonomia das pessoas além de desconsiderar e expropriar condutas ancestrais2929 Gérvas J, Pérez Fernández M. Uso y abuso del poder médico para definir enfermedad y factor de riesgo, en relación con la prevención cuaternaria. Gac Sanit. 2006; 20 Suppl 3:66-71. doi: 10.1157/13101092.
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,3030 Camargo KR Jr. As armadilhas da “concepção positiva de saúde”. Physis. 2007; 17(1):63-76. doi: 10.1590/S0103-73312007000100005.
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.

Contudo, apesar da crítica à "medicalização da vida", exemplificada na fala de alguns residentes, e do reconhecimento da abordagem não farmacológica como estratégia principal para o SMC, muitos residentes entendem que a prescrição de fármacos se apresenta como parte do tratamento.

De forma semelhante, os preceptores tinham conhecimento de várias técnicas não farmacológicas existentes e aplicavam um número limitado delas. O MCCP também foi a intervenção mais citada. Apenas dois preceptores aplicavam uma intervenção psicossocial avançada: a terapia de resolução de problemas, avaliada em uma revisão sistemática como a intervenção com mais evidências de eficácia e indicação na abordagem do SMC por médicos de família e comunidade3131 Huibers MJH, Beurskens AJHM, Bleijenberg G, Van Schayck CP. Psychosocial interventions by general practitioners. Cochrane Database Syst Rev. 2007; (3):CD003494. doi: 10.1002/14651858.CD003494.pub2.
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.

Nas entrevistas, a experiência emocional dos residentes e preceptores emergiu como principal orientador das suas respostas às pessoas que apresentavam SMC. Foi possível compreender que as emoções despertadas durante o atendimento de pessoas em SMC foram marcadamente negativas, destacando-se angústia, frustração, impotência e cansaço. Outros termos relacionados e citados foram "desgastante" e "carga emocional grande”. Foi possível compreender que as emoções que emergiram estavam relacionadas principalmente à sensação de incompetência para lidar com a demasiada atribuição social para esses sofrimentos e pelas representações "psicologizadas" do indivíduo, que como consequência geram uma percepção de sobrecarga e responsabilização médica excessiva.

Algumas alternativas têm sido propostas na literatura em Saúde Mental e APS para contornar esses desafios. Uma delas, a "indicação de não tratamento", é pautada no princípio ético da atividade médica, "primeiro não fazer mal" – primum non nocere3232 Lobo AO, Bernstein J. Excesos y alternativas de la salud mental en atención primaria. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015; 10(35):1-9. doi: 10.5712/rbmfc10(35)1055.
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. A "indicação de não tratamento" é baseada em técnicas de entrevista que visam à construção de significados que evitem intervenções desnecessárias, sobretudo a medicalização do SMC. Ela envolve três elementos: escuta empática, desconstrução e ressignificação. Primeiro, busca-se desvincular o entendimento do problema apresentado pelo paciente como sendo algo patológico que necessita de uma solução centralizada no sistema de saúde. Em seguida, o objetivo é construir, com o paciente, uma nova versão do problema que esteja mais vinculada ao seu contexto de vida. Nessa abordagem, a carga emocional deve ser legitimada e entendida como um fenômeno penoso, complexo, porém não patológico. O papel do paciente nos seus cuidados deve ser mais ativo e independente.

A terapia de manejo de problemas também se apresenta como uma alternativa que valoriza a autonomia e a capacidade latente das pessoas em identificar e manejar seu sofrimento emocional e os diversos "problemas" envolvidos em seu surgimento3333 García-Campayo J, Claraco-Vega LM, Tazón P, Aseguinolaza L. Terapia de resolución de problemas: psicoterapia de elección para atención primaria. Aten Prim. 1999; 24(10):594-601. . Ela é dividida em quatro etapas – definição do problema, geração de soluções, tomada de decisão e implementação da solução – que focam potencializar as habilidades já utilizadas pela própria pessoa em manejar situações difíceis na própria vida ou em apoio a outras pessoas. A essas abordagens citadas, podem-se incorporar elementos da chamada "prescrição social", mecanismo para vincular pacientes a fontes não médicas de apoio dentro da comunidade. A"prescrição social" considera o potencial terapêutico dessa comunidade em contribuir para a promoção da saúde e prevenção de doenças por meio de elementos como cultura, lazer, educação e ocupação laboral1111 Castelló M, Fernández de Sanmamed MJ, García J, Mazo MV, Mendive JM, Rico MM, et al. Atención a las personas con malestar emocional relacionado con condicionantes sociales en Atención Primaria de Salud. Barcelona: Fòrum Català d'Atenció Primària; 2016.,1414 World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians. Working party for mental health guidance paper: family doctors’ role in providing non-drug interventions (NDIs) for common mental health disorders in primary care. Geneva: WONCA; 2017..

Considerações finais

Os entrevistados conhecem muitas intervenções psicossociais, mas só sabem aplicar algumas delas, fato que contribui para despertar emoções negativas como angústia e frustração, além de aumentar o número de referenciamentos desnecessários para outros profissionais. Então, nota-se que, na prática clínica, preceptores e residentes encontram dificuldades nessa abordagem relacionadas ao papel do médico diante de sofrimentos de ampla e profunda determinação social.

Algumas limitações relacionadas à metodologia e a instrumentos utilizados, e outras próprias do olhar do pesquisador, podem ser identificadas no estudo. Por se tratar de uma investigação qualitativa, os resultados encontrados não podem ser generalizados para os demais residentes desses e de outros PRMFC. Além disso, as entrevistas foram realizadas com os residentes na primeira metade do segundo ano de Residência. Assim, as respostas poderiam ser distintas se fossem feitas ao final do segundo ano de Residência. Em relação às entrevistas, pode-se ter como limitação a utilização da vinheta clínica, que representa uma síntese teórica de uma parte da consulta; na prática, mais complexa e menos linear. Outra limitação é a possibilidade de ocorrência do viés de informação do autorrelato, que pode ser influenciado pela desejabilidade social – fenômeno observado quando um indivíduo responde para tentar causar uma impressão favorável3434 Paulhus D. Measurement and control of response styles. In: Robinson JP, Shaver PR, Wrishtsman LS, editors. Measures of personality and social psychological attitudes. San Diego: Academic Press; 1991. p. 17-59.. Soma-se a isso a ausência de um instrumento validado para avaliar a aplicação das técnicas e intervenções psicossociais, sendo a análise sujeita à interpretação do pesquisador

As limitações reconhecidas apontam a necessidade de novos estudos – sobretudo no campo da Antropologia – para se aprofundar na compreensão do tema de uma maneira mais próxima da realidade, envolvendo os diversos sujeitos do processo, inclusive com a participação dos pacientes3535 Vayena E. The next step in the patient revolution: patients initiating and leading research. BMJ. 2014; 349:g4318. doi: 10.1136/bmj.g4318.
https://doi.org/10.1136/bmj.g4318...
. Além disso, concordando com outros autores3636 Mendes FDM, Campos EMS, Wenceslau LD. Intervenções psicossociais para transtornos mentais comuns: percepções e demandas formativas na medicina de família e comunidade. Rev APS. 2022; 25 Supl 1:109-34. doi: 10.34019/1809-8363.2022.v25.35467.
https://doi.org/10.34019/1809-8363.2022....
, consideramos relevante incluir as principais intervenções psicossociais para abordagem do SMC de maneira detalhada no Currículo Baseado em Competências para MFC – documento orientador para PRMFC. Por fim, estudos nacionais que avaliem a eficácia das intervenções psicossociais realizadas por médicos de família e comunidade, em desfechos clínicos orientados ao paciente, também são importantes para construção de ações de Saúde Pública mais efetivas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2023
  • Aceito
    03 Nov 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br