Transmissão da doença de Chagas por consumo de carne de caça: revisão sistemática

Luiz Henrique Conde Sangenis Marco Antonio Prates Nielebock Ceumara da Silva Santos Mateus Curty Carriello da Silva Glauber Motta Ribeiro Bento Sobre os autores

RESUMO:

Objetivo:

Avaliar a influência do consumo de carne de caça na transmissão da doença de Chagas (DC), assim como as condições em que ela ocorre e a frequência de relatos na literatura.

Métodos:

Mediante revisão sistemática, foram consultadas as bases PubMed, LILACS, MEDLINE e SciELO, sendo incluídos artigos escritos em português, inglês e espanhol, sem limitação do ano de publicação. Os descritores utilizados foram: oral, transmission, meat, wild animals, hunt, carnivory e Chagas disease, sendo inseridos na análise os artigos que mencionavam o consumo de carne de animais como forma de transmissão humana da DC. Foram utilizados critérios de evidência epidemiológico, clínico e laboratorial.

Resultados:

Entre os 298 artigos identificados, apenas seis preencheram os critérios de elegibilidade. Foram identificados somente cinco episódios de transmissão oral por consumo de carne ou sangue de animais silvestres, porém em dois deles não foi possível afastar a possibilidade de transmissão vetorial. A maior parte dos relatos preencheu os critérios de evidência epidemiológico, clínico e laboratorial, estabelecidos para sustentar a transmissão.

Conclusão:

Apesar da transmissão de DC ser incomum, a caça e o consumo de mamíferos silvestres reservatórios devem ser desestimulados nos países endêmicos em função dos riscos inerentes a essas práticas.

Palavras-chave:
Doença de Chagas; Trypanosoma cruzi; Transmissão; Epidemiologia; Carne; Animais silvestres

INTRODUÇÃO

A doença de Chagas (DC) é uma antropozoonose endêmica do continente americano, cujo agente etiológico é o protozoário Trypanosoma cruzi (T. cruzi)11. Coura JR. Chagas disease: what is known and what is need - A background article. Mem Inst Oswaldo Cruz 2007; 102(1): 113-22.,22. Rassi A Jr, Rassi A, Marin-Neto JA. Chagas disease. Lancet 2010; 375(9723): 1388-402.. A principal forma de transmissão ocorre a partir do contato da pele lesada e de mucosas com as fezes contaminadas de insetos vetores da subfamília Triatominae22. Rassi A Jr, Rassi A, Marin-Neto JA. Chagas disease. Lancet 2010; 375(9723): 1388-402.. A abrangência geográfica da endemia se estende desde o México, na América do Norte, até a Argentina, na América do Sul33. Coura JR. The main sceneries of Chagas disease transmission. The vectors, blood and oral transmissions - a comprehensive review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 277-82.,44. Moncayo A, Silveira AC. Current epidemiological trends for Chagas disease in Latin America and future challenges in epidemiology, surveillance and health policy. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 17-30.. Nas últimas décadas, várias mudanças epidemiológicas ocorreram por meio de bem sucedidas campanhas de controle da transmissão vetorial e transfusional nos países endêmicos, levando a uma expressiva redução no surgimento de novos casos22. Rassi A Jr, Rassi A, Marin-Neto JA. Chagas disease. Lancet 2010; 375(9723): 1388-402.,44. Moncayo A, Silveira AC. Current epidemiological trends for Chagas disease in Latin America and future challenges in epidemiology, surveillance and health policy. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 17-30.,55. Dias JC, Silveira AC, Schofield CJ. The impact of Chagas disease control in Latin America - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2002; 97(5): 603-12.. Contudo, a prevalência da doença em alguns países da América do Sul, como Bolívia, Argentina e Brasil ainda é elevada22. Rassi A Jr, Rassi A, Marin-Neto JA. Chagas disease. Lancet 2010; 375(9723): 1388-402.. Recente metanálise estimou em 2,4% a prevalência da DC no Brasil, correspondendo a 4,6 milhões de indivíduos infectados66. Martins-Melo FR, Ramos Jr AN, Alencar CH, Heukelbach J. Prevalence of Chagas disease in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Acta Trop 2014; 130: 167-74.. Além disso, observou-se o aumento do número de transmissões pela via oral por meio da ingestão de alimentos contaminados por triatomíneos infectados por T. cruzi33. Coura JR. The main sceneries of Chagas disease transmission. The vectors, blood and oral transmissions - a comprehensive review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 277-82.,44. Moncayo A, Silveira AC. Current epidemiological trends for Chagas disease in Latin America and future challenges in epidemiology, surveillance and health policy. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 17-30.,77. Organização Pan-Americana da Saúde. Doença de Chagas - Guia para vigilância, prevenção, controle e manejo clínico da doença de Chagas aguda transmitida por alimentos. Série de Manuais Técnicos 12. Rio de Janeiro; 2009.. No Brasil, já foram documentados dezenas de surtos de DC aguda, entre 1965 e 2013, devido à ingestão de alimentos contaminados, principalmente casos relacionados ao consumo de suco de açaí e de caldo de cana88. Shikanai-Yasuda MA, Carvalho NB. Oral transmission of Chagas disease. Clin Infect Dis 2012; 54(6): 845-52.,99. Magalhães-Santos IF. Transmissão oral da Doença de Chagas: breve revisão. Rev Ciênc Méd Biol 2014; 13(2): 226-35.. Outros países da América do Sul, como a Venezuela, a Colômbia e a Guiana Francesa também já documentaram surtos de DC aguda relacionados ao consumo de alimentos1010. Rueda K, Trujillo JE, Carranza JC, Vallejo GA. Transmisión oral de Trypanosoma cruzi: una nueva situación epidemiológica de la enfermedad de Chagas en Colombia y otros países suramericanos. Biomédica 2014; 34(4): 631-41.,1111. Noya BA, Díaz-Bello Z, Colmenares C, Ruiz-Guevara R, Mauriello L, Muñoz-Calderón A, et al. Update on oral Chagas disease outbreaks in Venezuela: epidemiological, clinical and diagnostic approaches. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 377-86.,1212. Blanchet D, Brenière SF, Schijman AG, Bisio M, Simon S, Véron V, et al. First report of a family outbreak of Chagas disease in French Guiana and posttreatment follow-up. Infect Genet Evol 2014; 28: 245-50.. A transmissão oral é, nos dias de hoje, uma das principais formas de transmissão da doença no Brasil, particularmente na Região Amazônica88. Shikanai-Yasuda MA, Carvalho NB. Oral transmission of Chagas disease. Clin Infect Dis 2012; 54(6): 845-52.,99. Magalhães-Santos IF. Transmissão oral da Doença de Chagas: breve revisão. Rev Ciênc Méd Biol 2014; 13(2): 226-35.. O consumo de carne crua ou mal cozida de animais silvestres infectados por T. cruzi é mencionado como uma das formas de transmissão, sendo comprovada em estudos experimentais com animais33. Coura JR. The main sceneries of Chagas disease transmission. The vectors, blood and oral transmissions - a comprehensive review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 277-82.,1313. Dias JC. Notas sobre o Trypanosoma cruzi e suas características bio-ecológicas, como agente de enfermidades transmitidas por alimentos. Rev Soc Bras Med Trop 2006; 39(4): 370-5.. A infecção por T. cruzi já foi identificada em mais de uma centena de espécies de mamíferos silvestres, além de espécies domésticas como cão, gato, porco, cabra, porquinho da índia e coelho22. Rassi A Jr, Rassi A, Marin-Neto JA. Chagas disease. Lancet 2010; 375(9723): 1388-402.,33. Coura JR. The main sceneries of Chagas disease transmission. The vectors, blood and oral transmissions - a comprehensive review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 277-82.,1414. Jansen AM, Xavier SC, Roque AL. The multiple and complex and changeable scenarios of the Trypanosoma cruzi transmission cycle in the sylvatic environment. Acta Trop 2015; 151: 1-15.,1515. Organización Panamericana de la Salud. Zoonosis y Enfermedades Transmisibles Comunes al Hombre y a los Animales. Parasitosis, volumen III. Publicación Científica y Técnica nº 580. Washington; 2003.,1616. Salazar-Schettino PM, Bucio MI, Cabrera M, Bautista J. First case of natural infection in pigs. Review of Trypanosoma cruzi reservoirs in Mexico. Mem Inst Oswaldo Cruz 1997; 92(4): 499-502.,1717. Montenegro VM, Jimenez M, Dias JC, Zeledon R. Chagas disease in dogs from endemic areas of Costa Rica. Mem Inst Oswaldo Cruz 2002; 97(4): 491-4.. Mamíferos silvestres sinantrópicos e domésticos estão implicados na manutenção de ciclos de T. cruzi peridomiciliares, representando um risco na transmissão humana de DC1717. Montenegro VM, Jimenez M, Dias JC, Zeledon R. Chagas disease in dogs from endemic areas of Costa Rica. Mem Inst Oswaldo Cruz 2002; 97(4): 491-4.,1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,1919. Lima MM, Sarquis O, Oliveira TG, Gomes TF, Coutinho C, Daflon-Teixeira NF, et al. Investigation of Chagas disease in four periurban areas in northeastern Brazil: epidemiologic survey in man, vectors, non-human hosts and reservoirs. Trans R Soc Trop Med Hyg 2012; 106(3): 143-9..

Povos primitivos tinham o hábito de consumir carne de caça, sendo essa uma importante fonte de alimentação na época em que as técnicas de criação de animais ainda não eram conhecidas2020. Recine E, Radaelli P. Alimentação e cultura. Departamento de Nutrição, Universidade de Brasília. Secretaria de Políticas de Saúde: Ministério da Saúde. [acesso em 20 jul. 2015]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/alimentacao_cultura.pdf
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. Nas Américas, a carne de caça fazia parte da dieta dos povos indígenas e de civilizações pré-colombianas2020. Recine E, Radaelli P. Alimentação e cultura. Departamento de Nutrição, Universidade de Brasília. Secretaria de Políticas de Saúde: Ministério da Saúde. [acesso em 20 jul. 2015]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/alimentacao_cultura.pdf
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,2121. Ribeiro CS, Corção M. O consumo de carne no Brasil: entre valores sócios culturais e nutricionais. Demetra 2013; 8(3) :415-38.,2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.. Estudos de paleoparasitologia constataram que a DC é uma enfermidade muito antiga no continente americano. Por intermédio de técnicas de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) (Polymerase Chain Reaction) foi identificada a presença de DNA de T. cruzi em múmias de civilizações primitivas da América da Sul2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.. A infecção chagásica mais antiga das Américas foi descoberta em múmias do povo chinchorro, que viveu há 9.000 anos na região do deserto do Atacama, norte do Chile2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.,2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.. Outras evidências de DC foram constatadas em múmias de 4.000 anos, pertencentes aos habitantes primitivos do Chile e Peru, anteriores ao surgimento da civilização Inca2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.. Há grande possibilidade de que esses indivíduos primitivos tenham adquirido a DC por via oral, ao consumirem carne de caça de animais silvestres2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.,2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.. No entanto, a possibilidade de transmissão vetorial não pode ser descartada2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.. O povo chinchorro morava em cavernas nas rochas e os produtos de pesca e de caça constituíam-se na principal fonte de alimentos2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.. Pouco se sabe a respeito da domiciliação de triatomíneos em eras tão remotas, o que de fato deve ter ocorrido tempos depois, após o surgimento das técnicas de criação de animais e da agricultura11. Coura JR. Chagas disease: what is known and what is need - A background article. Mem Inst Oswaldo Cruz 2007; 102(1): 113-22.,2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.,2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.. Povos andinos desenvolveram a criação de porquinhos da índia (Cavia sp), o que pode ter contribuído para a atração de triatomíneos ao ambiente domiciliar2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.. Além disso, acredita-se que o consumo da carne crua e do sangue desses animais em rituais e cerimônias religiosas era o principal fator de surgimento da DC nessas civilizações2222. Orellana-Halkyer N, Arriaza-Torres B. Enfermedad de Chagas en poblaciones prehistóricas del norte de Chile. Rev Chil Hist Nat 2010; 83(4): 531-41.,2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.. Povos indígenas da região do Chaco na Argentina e no Paraguai também podem ter adquirido a DC consumindo a carne de animais silvestres2424. Basombrio MA, Segovia A, Peralta Ramos M, Esteban E, Stumpf R, Jurgensen P, et al. Endemic Trypanosoma cruzi infection in Indian populations of the Gran Chaco territory of South America: performance of diagnostic assays and epidemiological features. Ann Trop Med Parasitol 1999; 93(1): 41-8..

No Brasil, a carne de caça constituía-se em uma fonte natural de alimento das diversas etnias indígenas e, nos tempos atuais, ainda faz parte da alimentação de tribos que habitam a Região Amazônica2525. Gurgel CB, Magdalena CV, Prioli LF. A Tripanossomíase Americana antes de Carlos Chagas. Cad Saúde Col 2009; 17(4): 827-39.,2626. Silva RJ, Garavello ME. Alterações nas estratégias de subsistência: o caso dos índios brasileiros xavantes. Segurança Alimentar e Nutricional 2009; 16(1): 32-48.. Há poucas evidências de que a DC era um problema de saúde dos povos indígenas do Brasil, assim como pouco se sabe sobre a domiciliação de triatomíneos em ocas indígenas2525. Gurgel CB, Magdalena CV, Prioli LF. A Tripanossomíase Americana antes de Carlos Chagas. Cad Saúde Col 2009; 17(4): 827-39.. Apesar de termos a comprovação da infecção por T. cruzi em povos humanos primitivos, acredita-se que a doença se expandiu a partir do processo de colonização, desmatamento e migrações internas que se desenvolveram após a chegada do colonizador europeu11. Coura JR. Chagas disease: what is known and what is need - A background article. Mem Inst Oswaldo Cruz 2007; 102(1): 113-22.,2323. Araújo A, Jansen AM, Reinhard K, Ferreira LF. Paleoparasitology of Chagas disease - a review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 9-16.,2525. Gurgel CB, Magdalena CV, Prioli LF. A Tripanossomíase Americana antes de Carlos Chagas. Cad Saúde Col 2009; 17(4): 827-39.. Embora pouco claro, é provável que os poucos casos de DC em indivíduos indígenas tenham ocorrido por via oral - pelo consumo de carne de animais infectados com T. cruzi2525. Gurgel CB, Magdalena CV, Prioli LF. A Tripanossomíase Americana antes de Carlos Chagas. Cad Saúde Col 2009; 17(4): 827-39.. O consumo de carne de caça é uma prática comum das populações rurais do Brasil2020. Recine E, Radaelli P. Alimentação e cultura. Departamento de Nutrição, Universidade de Brasília. Secretaria de Políticas de Saúde: Ministério da Saúde. [acesso em 20 jul. 2015]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/alimentacao_cultura.pdf
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,2121. Ribeiro CS, Corção M. O consumo de carne no Brasil: entre valores sócios culturais e nutricionais. Demetra 2013; 8(3) :415-38.. No entanto, o consumo de animais silvestres no século XIX foi uma prática apreciada até pela corte portuguesa em sua passagem pelo Brasil2727. Gomes L. 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil; 2007.. Tal hábito pode ter sido herdado dos índios e dos africanos trazidos durante o período colonial2020. Recine E, Radaelli P. Alimentação e cultura. Departamento de Nutrição, Universidade de Brasília. Secretaria de Políticas de Saúde: Ministério da Saúde. [acesso em 20 jul. 2015]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/alimentacao_cultura.pdf
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. Recente pesquisa realizada em áreas rurais do Rio de Janeiro demonstrou que o consumo de carne de animais silvestres foi referido por 78% dos moradores e pelos 15 casos de DC classificados como autóctones1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.. Tatu e gambá, conhecidos reservatórios de T. cruzi, foram os animais mais citados1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,2828. Yeo M, Acosta N, Llewellyn M, Sánchez H, Adamson S, Miles GA, et al. Origins of Chagas disease: Didelphis species are natural hosts of Trypanosoma cruzi I and armadillos hosts of Trypanosoma cruzi II, including hybrids. Int J Parasitol 2005; 35(2): 225-33.. Apesar da caça de animais da fauna silvestre ser proibida no Brasil, desde 1967, ainda se constata essa prática em populações rurais, nem sempre motivada por fatores de subsistência2929. Sampaio DT. A caça ilegal de animais silvestres na Mata Atlântica, Baixada Litorânea do estado do Rio de Janeiro, Brasil: eficiência de proteção de reservas biológicas e triangulação do perfil da caça. Tese [Doutorado em Ecologia e Recursos Naturais] - Centro de Biociências e Biotecnologia: Universidade Estadual do Norte Fluminense; 2011.. Este estudo tem o objetivo de avaliar a influência do consumo de carne de caça na transmissão humana da DC, sob quais condições ela ocorre, a frequência de relatos na literatura e quais evidências foram utilizadas na confirmação dos casos.

MÉTODOS

A pesquisa das publicações científicas foi realizada de maio a junho de 2015, por dois examinadores. Foram consultadas as bases de dados eletrônicas PubMed, LILACS, MEDLINE e SciELO, sendo incluídos todos os artigos escritos em português, inglês e espanhol, sem limitação do ano de publicação. Para a pesquisa dos descritores utilizados, foi consultado inicialmente o site dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) da biblioteca virtual em saúde, com pesquisa dos termos em português ou inglês. Foram utilizados como descritores em todas as bases de dados os termos: oral, transmission e Chagas disease. Os termos meat, wild animals e Chagas disease; hunt, meat e Chagas disease; carnivory e Chagas disease também foram utilizados em todas as bases, porém apresentaram apenas três artigos.

A seleção inicial foi feita por meio da leitura dos títulos e resumos. Foram selecionados para análise todos os artigos que mencionavam o consumo de carne de animais como forma de transmissão humana da DC. Posteriormente, todos os artigos com critérios de elegibilidade foram lidos na íntegra, e foram selecionados aqueles que preencheram os critérios de inclusão. Como estratégia complementar de seleção, as referências bibliográficas dos artigos elegíveis também foram consultadas. Selecionaram-se para revisão, os artigos que relatavam casos de DC relacionados à transmissão oral por consumo de carne de animais. Avaliou-se, de cada texto elegível, os critérios de evidência utilizados para sustentar a transmissão. Foram estabelecidos três critérios de evidência:

  1. epidemiológico: relato de consumo de carne de animais;

  2. clínico: relato de sinais e sintomas de DC;

  3. laboratorial: relato de exames positivos parasitológicos, sorológicos ou patológicos. Artigos que se referiam apenas à transmissão oral da infecção por T. cruzi em animais foram excluídos.

O processo de seleção foi feito de forma independente pelos dois examinadores, e as discordâncias foram discutidas entre ambos até que se chegasse a um consenso. Por se tratar de um estudo descritivo de revisão de artigos já publicados, não houve necessidade de submissão ao Comitê de Ética.

RESULTADOS

A Figura 1 demonstra o fluxograma de seleção dos artigos para a revisão. Com as consultas às bases de dados, 298 artigos foram identificados: 117 na base PubMed; 88 na MEDLINE; 52 na LILACS; 37 na SciELO; e 4 artigos de outras fontes. Após a exclusão de 45 artigos duplicados, 253 foram selecionados para triagem. A maior parte dos artigos foi excluída por não abordar a transmissão oral por consumo de carne de animais. Entre os 233 artigos excluídos, 122 mencionavam apenas a transmissão oral por consumo de bebidas contaminadas por T. cruzi (açaí, caldo de cana, suco de goiaba e bacaba); 48 artigos foram excluídos porque abordavam somente outras formas de transmissão da DC; 45 artigos não identificavam o tipo de alimento; e 18 tratavam da transmissão oral entre animais.

Figura 1:
Fluxograma do processo de seleção dos artigos realizado na revisão sistemática sobre a transmissão oral de doença de Chagas relacionada ao consumo de carne de caça.

Após a leitura dos títulos e resumos, foram selecionados 20 artigos para a leitura completa. Nessa etapa, outros 14 artigos foram excluídos porque não relatavam casos humanos de DC por consumo de carne de animais. Com isso, somente seis artigos preencheram os critérios de inclusão desta revisão. A Tabela 1 mostra os artigos que foram selecionados para revisão com as descrições das transmissões da DC. Foram anotados o local, o ano ou o período de ocorrência, os indivíduos infectados, os animais envolvidos e os critérios de evidência que foram utilizados na confirmação da transmissão. Dos seis artigos elegíveis, três se referiam aos mesmos episódios de transmissão. Ao todo, foram identificados apenas cinco episódios de transmissão oral de DC por consumo de carne de animais silvestres. Em dois artigos, além da transmissão oral, a hipótese de transmissão vetorial não pôde ser afastada. Um dos artigos também considerou a hipótese de transmissão por manuseio da carcaça do animal durante o preparo para consumo.

Tabela 1:
Descrição dos artigos que relatavam casos de doença de Chagas por consumo de carne de animais e avaliação dos critérios de evidência que foram utilizados para sustentar a transmissão.

DISCUSSÃO

Apenas seis artigos preencheram os critérios de seleção desta revisão sistemática1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,3030. Amato Neto V, Chieffi PP, Nisida IV, Umezawa ES, Sabino EC, Ruocco RM, et al. Prevenção referente às modalidades alternativas de transmissão do Trypanosoma cruzi. Rev Med 2000; 79(1): 12-26.,3131. Toso MA, Vial UF, Galanti N. Transmisión de la enfermedad de Chagas por vía oral. Rev Med Chil 2011; 139(2): 258-66.,3232. Organización Panamericana de la Salud / Organización Mundial de la Salud Epidemiologia e transmissão oral da doença de Chagas na Amazônia Brasileira. In: Valente SA, Valente VC, Pinto AY. Informe de la consulta técnica en epidemiología, prevención y manejo de la transmisión de la enfermedad de Chagas como enfermedad transmitida por alimentos (ETA). Rio de Janeiro: OPS/OMS; 2006. p. 21-26.,3333. Carvalho ME, Silva RA, Barata JM, Domingos MF, Ciaravolo RM, Zacharias F. Soroepidemiologia da tripanosomíase americana na região do litoral sul, São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37(1): 49-58.,3434. Forattini OP, Silva EO, Barata JM, Boainain E. Nota sobre caso autóctone de tripanossomíase americana no litoral sul do Estado de São Paulo, Brasil. Rev Saúde Pública 1980; 14(1): 143-9., sendo que três publicações se referiam aos mesmos episódios de transmissão, ambos ocorridos na Argentina e com envolvimento de crianças que haviam consumido sangue e carne crua ou mal cozida de animais silvestres3030. Amato Neto V, Chieffi PP, Nisida IV, Umezawa ES, Sabino EC, Ruocco RM, et al. Prevenção referente às modalidades alternativas de transmissão do Trypanosoma cruzi. Rev Med 2000; 79(1): 12-26.,3131. Toso MA, Vial UF, Galanti N. Transmisión de la enfermedad de Chagas por vía oral. Rev Med Chil 2011; 139(2): 258-66.,3232. Organización Panamericana de la Salud / Organización Mundial de la Salud Epidemiologia e transmissão oral da doença de Chagas na Amazônia Brasileira. In: Valente SA, Valente VC, Pinto AY. Informe de la consulta técnica en epidemiología, prevención y manejo de la transmisión de la enfermedad de Chagas como enfermedad transmitida por alimentos (ETA). Rio de Janeiro: OPS/OMS; 2006. p. 21-26.. Os três artigos relataram episódios citados em outras fontes biblográficas3030. Amato Neto V, Chieffi PP, Nisida IV, Umezawa ES, Sabino EC, Ruocco RM, et al. Prevenção referente às modalidades alternativas de transmissão do Trypanosoma cruzi. Rev Med 2000; 79(1): 12-26.,3131. Toso MA, Vial UF, Galanti N. Transmisión de la enfermedad de Chagas por vía oral. Rev Med Chil 2011; 139(2): 258-66.,3232. Organización Panamericana de la Salud / Organización Mundial de la Salud Epidemiologia e transmissão oral da doença de Chagas na Amazônia Brasileira. In: Valente SA, Valente VC, Pinto AY. Informe de la consulta técnica en epidemiología, prevención y manejo de la transmisión de la enfermedad de Chagas como enfermedad transmitida por alimentos (ETA). Rio de Janeiro: OPS/OMS; 2006. p. 21-26.. O caso mais antigo de transmissão oral ocorreu no Chaco Argentino, em 1936, quando uma criança adoeceu após ingerir uma bebida composta por ervas e sangue de tatu receitada por uma curandeira3030. Amato Neto V, Chieffi PP, Nisida IV, Umezawa ES, Sabino EC, Ruocco RM, et al. Prevenção referente às modalidades alternativas de transmissão do Trypanosoma cruzi. Rev Med 2000; 79(1): 12-26.,3131. Toso MA, Vial UF, Galanti N. Transmisión de la enfermedad de Chagas por vía oral. Rev Med Chil 2011; 139(2): 258-66.,3232. Organización Panamericana de la Salud / Organización Mundial de la Salud Epidemiologia e transmissão oral da doença de Chagas na Amazônia Brasileira. In: Valente SA, Valente VC, Pinto AY. Informe de la consulta técnica en epidemiología, prevención y manejo de la transmisión de la enfermedad de Chagas como enfermedad transmitida por alimentos (ETA). Rio de Janeiro: OPS/OMS; 2006. p. 21-26.. Mais tarde, em 1962, outro episódio também foi relatado na Argentina, tratando-se de uma criança de 12 anos que ingeriu uma carne mal cozida de roedores silvestres e, 20 dias depois, faleceu de insuficiência cardíaca em decorrência de miocardite aguda. A suspeita clínica foi confirmada por exame de necropsia, o qual demonstrou lesões características de infecção chagásica aguda no coração e no gânglio mesentérico3131. Toso MA, Vial UF, Galanti N. Transmisión de la enfermedad de Chagas por vía oral. Rev Med Chil 2011; 139(2): 258-66.. Praticamente todos os relatos dos seis artigos selecionados preencheram os três critérios de evidência usados para confirmar os casos (epidemiológico, clínico e laboratorial) 1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,3030. Amato Neto V, Chieffi PP, Nisida IV, Umezawa ES, Sabino EC, Ruocco RM, et al. Prevenção referente às modalidades alternativas de transmissão do Trypanosoma cruzi. Rev Med 2000; 79(1): 12-26.,3131. Toso MA, Vial UF, Galanti N. Transmisión de la enfermedad de Chagas por vía oral. Rev Med Chil 2011; 139(2): 258-66.,3232. Organización Panamericana de la Salud / Organización Mundial de la Salud Epidemiologia e transmissão oral da doença de Chagas na Amazônia Brasileira. In: Valente SA, Valente VC, Pinto AY. Informe de la consulta técnica en epidemiología, prevención y manejo de la transmisión de la enfermedad de Chagas como enfermedad transmitida por alimentos (ETA). Rio de Janeiro: OPS/OMS; 2006. p. 21-26.,3333. Carvalho ME, Silva RA, Barata JM, Domingos MF, Ciaravolo RM, Zacharias F. Soroepidemiologia da tripanosomíase americana na região do litoral sul, São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37(1): 49-58.,3434. Forattini OP, Silva EO, Barata JM, Boainain E. Nota sobre caso autóctone de tripanossomíase americana no litoral sul do Estado de São Paulo, Brasil. Rev Saúde Pública 1980; 14(1): 143-9.. Em dois estudos, não foi possível descartar a possibilidade de transmissão vetorial - esses estudos, porém, foram desenvolvidos em regiões caracterizadas pela invasão esporádica dos domícilios por triatomíneos silvestres (litoral sul de São Paulo e estado do Rio de Janeiro) e com populações em que o hábito do consumo de carne de caça era frequente1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,3333. Carvalho ME, Silva RA, Barata JM, Domingos MF, Ciaravolo RM, Zacharias F. Soroepidemiologia da tripanosomíase americana na região do litoral sul, São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37(1): 49-58.. Outro artigo relatou a transmissão de DC ocorrida em uma criança oriunda do município de Cananéia, também no litoral sul do estado de São Paulo3434. Forattini OP, Silva EO, Barata JM, Boainain E. Nota sobre caso autóctone de tripanossomíase americana no litoral sul do Estado de São Paulo, Brasil. Rev Saúde Pública 1980; 14(1): 143-9.. Nesse relato, foi levantada a possibilidade de transmissão por manuseio da carcaça de tatus (Dasypus sp) na preparação do animal para cocção. A criança apresentou sinais e sintomas da fase aguda da DC, além de confirmação laboratorial parasitológica e sorológica. No entanto, não foram identificados os sinais característicos de porta de entrada, o que fortaleceu a possibilidade de transmissão por via oral. A criança recebeu tratamento com benzonidazol e evoluiu satisfatoriamente3434. Forattini OP, Silva EO, Barata JM, Boainain E. Nota sobre caso autóctone de tripanossomíase americana no litoral sul do Estado de São Paulo, Brasil. Rev Saúde Pública 1980; 14(1): 143-9..

Com exceção dos casos originários do Chaco Argentino e da Argentina, nota-se que os demais relatos ocorreram em regiões onde a transmissão vetorial não era considerada importante (litoral de São Paulo e áreas rurais do Rio de Janeiro)1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,3333. Carvalho ME, Silva RA, Barata JM, Domingos MF, Ciaravolo RM, Zacharias F. Soroepidemiologia da tripanosomíase americana na região do litoral sul, São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37(1): 49-58.,3434. Forattini OP, Silva EO, Barata JM, Boainain E. Nota sobre caso autóctone de tripanossomíase americana no litoral sul do Estado de São Paulo, Brasil. Rev Saúde Pública 1980; 14(1): 143-9.. Dois desses artigos abordaram estudos desenvolvidos nesses estados1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,3333. Carvalho ME, Silva RA, Barata JM, Domingos MF, Ciaravolo RM, Zacharias F. Soroepidemiologia da tripanosomíase americana na região do litoral sul, São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37(1): 49-58.. Esses estudos foram do tipo descritivo e transversal para definir a prevalência da DC, além de investigar fatores de risco para exposição, como a presença de triatomíneos no ambiente domiciliar e o consumo de carne de caça1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,3333. Carvalho ME, Silva RA, Barata JM, Domingos MF, Ciaravolo RM, Zacharias F. Soroepidemiologia da tripanosomíase americana na região do litoral sul, São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37(1): 49-58..

Considerando que o consumo de carne de caça é um hábito comum das populações rurais do Brasil1818. Sangenis LH, Saraiva RM, Georg I, Castro L, Santos Lima V, Roque AL, et al. Autochthonous transmission of Chagas disease in Rio de Janeiro State, Brazil: a clinical and eco-epidemiological study. BMC Infect Dis 2015; 15: 4.,2929. Sampaio DT. A caça ilegal de animais silvestres na Mata Atlântica, Baixada Litorânea do estado do Rio de Janeiro, Brasil: eficiência de proteção de reservas biológicas e triangulação do perfil da caça. Tese [Doutorado em Ecologia e Recursos Naturais] - Centro de Biociências e Biotecnologia: Universidade Estadual do Norte Fluminense; 2011., é possível que a transmissão da doença por essa via seja bem mais frequente do que se tem documentado. Como a colonização do ambiente domiciliar por triatomíneos é o fator mais significativo para a ocorrência de transmissões em uma determinada região11. Coura JR. Chagas disease: what is known and what is need - A background article. Mem Inst Oswaldo Cruz 2007; 102(1): 113-22.,22. Rassi A Jr, Rassi A, Marin-Neto JA. Chagas disease. Lancet 2010; 375(9723): 1388-402., tal critério pode ter mascarado eventuais transmissões pela via oral. É provável que o novo cenário epidemiológico observado na América Latina nas últimas décadas, com a redução de novos casos por transmissão vetorial e transfusões de sangue, revele mais casos de transmissões consideradas incomuns, como a transmissão oral por consumo de alimentos33. Coura JR. The main sceneries of Chagas disease transmission. The vectors, blood and oral transmissions - a comprehensive review. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 277-82.,44. Moncayo A, Silveira AC. Current epidemiological trends for Chagas disease in Latin America and future challenges in epidemiology, surveillance and health policy. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104(1): 17-30.. Relatos recentes já apontam nessa direção, como os casos de transmissão oral no Brasil, na Colômbia, na Venezuela e na Guiana Francesa77. Organização Pan-Americana da Saúde. Doença de Chagas - Guia para vigilância, prevenção, controle e manejo clínico da doença de Chagas aguda transmitida por alimentos. Série de Manuais Técnicos 12. Rio de Janeiro; 2009.,88. Shikanai-Yasuda MA, Carvalho NB. Oral transmission of Chagas disease. Clin Infect Dis 2012; 54(6): 845-52.,99. Magalhães-Santos IF. Transmissão oral da Doença de Chagas: breve revisão. Rev Ciênc Méd Biol 2014; 13(2): 226-35.,1010. Rueda K, Trujillo JE, Carranza JC, Vallejo GA. Transmisión oral de Trypanosoma cruzi: una nueva situación epidemiológica de la enfermedad de Chagas en Colombia y otros países suramericanos. Biomédica 2014; 34(4): 631-41.,1111. Noya BA, Díaz-Bello Z, Colmenares C, Ruiz-Guevara R, Mauriello L, Muñoz-Calderón A, et al. Update on oral Chagas disease outbreaks in Venezuela: epidemiological, clinical and diagnostic approaches. Mem Inst Oswaldo Cruz 2015; 110(3): 377-86.,1212. Blanchet D, Brenière SF, Schijman AG, Bisio M, Simon S, Véron V, et al. First report of a family outbreak of Chagas disease in French Guiana and posttreatment follow-up. Infect Genet Evol 2014; 28: 245-50., embora o consumo de bebidas contaminadas por triatomíneos macerados, ou por suas fezes, seja o principal fator envolvido na transmissão oral88. Shikanai-Yasuda MA, Carvalho NB. Oral transmission of Chagas disease. Clin Infect Dis 2012; 54(6): 845-52.,99. Magalhães-Santos IF. Transmissão oral da Doença de Chagas: breve revisão. Rev Ciênc Méd Biol 2014; 13(2): 226-35.,1010. Rueda K, Trujillo JE, Carranza JC, Vallejo GA. Transmisión oral de Trypanosoma cruzi: una nueva situación epidemiológica de la enfermedad de Chagas en Colombia y otros países suramericanos. Biomédica 2014; 34(4): 631-41.. Estudos de características biológicas e fisico-químicas demonstraram que o T. cruzi é eliminado após o processo de cocção com temperatura acima de 45ºC, constituindo-se em uma medida profilática eficaz1313. Dias JC. Notas sobre o Trypanosoma cruzi e suas características bio-ecológicas, como agente de enfermidades transmitidas por alimentos. Rev Soc Bras Med Trop 2006; 39(4): 370-5..

CONCLUSÃO

As poucas evidências de transmissão por consumo de carne de animais infectados por T. cruzi, reveladas por este estudo de revisão, indicam que a aquisição da DC por essa prática é um evento raro. Contudo, o hábito comum da caça, do manuseio da carcaça e do consumo de mamíferos silvestres reservatórios por populações rurais do Brasil e da América Latina deve ser sempre considerado como hipótese de transmissão da doença, particularmente quando não estão presentes outros fatores de suspeição. Medidas educativas com o intuito de desestimular a caça e o consumo de animais silvestres reservatórios de T. cruzi devem ser adotadas nos países endêmicos em função dos riscos de transmissão da DC, inerentes a essas práticas.

AGRADECIMENTOS

Este estudo foi realizado em colaboração com o Laboratório de Pesquisa Clínica em Doença de Chagas do Instituto Nacional de Infectologia, Fundação Oswaldo Cruz, com a Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, através de Projeto de extensão universitária Pesquisa e Produtividade.

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  • Fonte de financiamento: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2015
  • Aceito
    08 Set 2016
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