Viés nas estimativas epidemiológicas em estudos com amostragem complexa

Epidemiological bias in studies with complex sampling

Achilles de Souza Andrade Roberta Stofeles Cecon Matheus Rodrigues Lopes Johnnatas Mikael Lopes Sobre os autores

Prezado editor,

Consideramos de grande valia a proposta do artigo “Anemia e fatores associados em mulheres de idade reprodutiva de um município do Nordeste brasileiro”11. Bezerra AGN, Leal VS, Lira PIC, Oliveira JS, Costa EC, Menezes RCE, et al. Anemia e fatores associados em mulheres de idade reprodutiva de um município do Nordeste brasileiro. Rev Bras Epidemiol 2018; 21: e180001. http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720180001
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, que determina que a prevalência de anemia e seus fatores associados em mulheres em idade reprodutiva do município de Vitória de Santo Antão segue a tendência mundial dos países em desenvolvimento. O artigo sugere a adoção de medidas eficazes de prevenção e intervenção precoce e a definição de políticas e construção de ações programáticas com embasamento nos resultados encontrados.

Os dados elencados pelo artigo e sua comparação com outros trabalhos merecem algumas considerações, primeiro ao afirmar que os resultados encontrados são similares aos de países em desenvolvimento. Os dados elencados como referenciais para a prevalência da anemia no Brasil e no mundo são de mais de dez anos22. World Health Organization (WHO). Worldwide prevalence of anaemia 1993-2005: WHO global database on anaemia [Internet]. Genebra: WHO; 2008. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/publications/2008/9789241596657_eng.pdf
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,33. Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006): Dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.. Dessa forma, acreditamos que a conclusão do artigo não se trata de uma afirmativa, e sim de uma possibilidade de que os dados sejam similares.

Além disso, alguns trabalhos elencados como base comparativa para a prevalência de anemia utilizam metodologias de coleta distintas44. Silva DC, Santos ACF, Magalhães RCSM, Silva LMMO, Melo TMTC, Alencar GCA. Anemia em mulheres universitárias e sua associação com o consumo de alimentos. Rev Enferm UFPE on line 2016; 10(Supl. 1): 284-8. http://dx.doi.org/10.5205/reuol.7901-80479-1-SP.1001sup201612
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,55. Beinner MA, Morais EAH, Lopes Filho JD, Jansen AK, Oliveira SR, Reis IA, et al. Fatores associados à anemia em adolescentes escolares do sexo feminino. Rev Baiana de Saúde Pública 2013; 37(2): 439-51. ou pontos de corte de hemoglobina/ferritina diferentes55. Beinner MA, Morais EAH, Lopes Filho JD, Jansen AK, Oliveira SR, Reis IA, et al. Fatores associados à anemia em adolescentes escolares do sexo feminino. Rev Baiana de Saúde Pública 2013; 37(2): 439-51., inviabilizando uma comparação direta com os resultados encontrados.

A questão metodológica também merece consideração. Estudos com representatividade populacional são de grande valia em qualquer temporalidade de delineamento epidemiológico. Suas principais implicações são a elucidação de relações causais ou condicionantes e também na tomada de decisão por meio de políticas públicas.

O estudo de Bezerra et al.11. Bezerra AGN, Leal VS, Lira PIC, Oliveira JS, Costa EC, Menezes RCE, et al. Anemia e fatores associados em mulheres de idade reprodutiva de um município do Nordeste brasileiro. Rev Bras Epidemiol 2018; 21: e180001. http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720180001
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está dentro dessa situação referida anteriormente e, possivelmente, tem implicações consideráveis nas práticas de saúde pública. Contudo, é salutar destacar o não relato de suma importância da ponderação das unidades amostrais na análise descritiva e inferencial dos dados e, portanto, possível equívoco cometido que compromete o potencial de inferência dos achados.

Os autores expõem que se trata de desenho epidemiológico transversal com amostragem probabilística complexa, em que existem dois níveis de conglômeros sorteados aleatoriamente (setor censitário e domicílio) e o nível individual de seleção também por amostragem aleatória simples nos domicílios com mais de uma mulher. Tal estratégia de amostragem traz um efeito na construção das estimativas pontuais e intervalares na análise66. Szwarcwald CL, Damacena GN. Amostras complexas em inquéritos populacionais: planejamento e implicações na análise estatística dos dados. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2008 [acessado em 10 ago. 2019]; 11(Supl. 1): 38-45. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2008000500004
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Sabendo-se que a probabilidade de seleção dos domicílios, nos 10% dos setores censitários alocados, é diferente entre eles, pois os setores censitários podem ter espaços amostrais distintos, assim como a probabilidade das mulheres em idade fértil nos domicílios com mais de uma delas, cria uma amostra de participantes com pesos amostrais de representatividade distinta. Para exemplificar esse cenário, pode-se aventar uma situação de participante A selecionada em um domicílio com três mulheres em idade reprodutiva (33,3%) e o domicílio que compõe um setor censitário com 298 domicílios (0,33%), o que geraria uma probabilidade de seleção discrepante da participante B que tiver um espaço amostral no domicílio e/ou no setor censitário inferior ou superior ao daquela.

A implicação desses pesos amostrais diferentes recai sobre as prevalências de anemias e seus intervalos de confiança e, consequentemente, nos testes de hipóteses associativos realizados que, a rigor, consideram nos seus cálculos uma probabilidade igual de seleção dos participantes na elaboração das estimativas.

É importante também frisar que o uso de métodos multivariados de análise não consegue corrigir essas distorções de estimativas. É possível que os dados reais possam ser inferiores ou superiores aos apresentados, o que pode enviesar tomadas de decisões nas políticas públicas setoriais e intersetoriais ou inferências associativas equivocadas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Bezerra AGN, Leal VS, Lira PIC, Oliveira JS, Costa EC, Menezes RCE, et al. Anemia e fatores associados em mulheres de idade reprodutiva de um município do Nordeste brasileiro. Rev Bras Epidemiol 2018; 21: e180001. http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720180001
    » http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720180001
  • 2
    World Health Organization (WHO). Worldwide prevalence of anaemia 1993-2005: WHO global database on anaemia [Internet]. Genebra: WHO; 2008. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/publications/2008/9789241596657_eng.pdf
    » http://whqlibdoc.who.int/publications/2008/9789241596657_eng.pdf
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006): Dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.
  • 4
    Silva DC, Santos ACF, Magalhães RCSM, Silva LMMO, Melo TMTC, Alencar GCA. Anemia em mulheres universitárias e sua associação com o consumo de alimentos. Rev Enferm UFPE on line 2016; 10(Supl. 1): 284-8. http://dx.doi.org/10.5205/reuol.7901-80479-1-SP.1001sup201612
    » http://dx.doi.org/10.5205/reuol.7901-80479-1-SP.1001sup201612
  • 5
    Beinner MA, Morais EAH, Lopes Filho JD, Jansen AK, Oliveira SR, Reis IA, et al. Fatores associados à anemia em adolescentes escolares do sexo feminino. Rev Baiana de Saúde Pública 2013; 37(2): 439-51.
  • 6
    Szwarcwald CL, Damacena GN. Amostras complexas em inquéritos populacionais: planejamento e implicações na análise estatística dos dados. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2008 [acessado em 10 ago. 2019]; 11(Supl. 1): 38-45. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2008000500004
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2008000500004

  • Fonte de financiamento: nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2019
  • Aceito
    19 Ago 2019
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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