Códigos garbage declarados como causas de morte nas estatísticas de saúde

Elisabeth Barboza França Sobre o autor

Todos os anos ocorre aproximadamente 1,3 milhão de mortes no Brasil. Destas, mais de 600 mil são mortes prematuras de pessoas com menos de 70 anos de idade, a maioria devido a doenças cardiovasculares, violências ou acidentes, e neoplasias11. Brasil. Ministério da Saúde. Informações de Saúde (tabnet): Estatísticas vitais-Mortalidade geral [Internet]. 2019 [citado em 16 jun. 2019]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&id=6937
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; muitas delas evitáveis. Diante desse cenário, como obter informações precisas e oportunas sobre mortes ocorridas e suas causas? Para o processo de tomada de decisão sobre as intervenções de saúde necessárias, torna-se estratégico avaliar a qualidade da informação sobre causas de morte22. Mathers CD, Fat DM, Inoue M, Rao C, Lopez AD. Counting the dead and what they died from: an assessment of the global status of cause of death data. Bull World Health Organ. 2005;83(3):171-7. http://doi.org/10.1590/S0042-96862005000300009
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. Nesse aspecto, o Brasil se destaca pelos avanços alcançados com a criação de sistemas de informação em saúde de abrangência nacional33. Mello Jorge MHP, Laurenti R, Gotlieb SLD. Análise da qualidade das estatísticas vitais brasileiras: a experiência de implantação do SIM e do SINASC. Ciênc Saúde Coletiva. 2007;12(3):643-54. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232007000300014
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. O Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) é um exemplo disso, pois registrou mais de 95% dos óbitos estimados no período 2000-201044. Lima EEC, Queiroz BL. Evolution of the deaths registry system in Brazil: associations with changes in the mortality profile, under-registration of death counts, and ill-defined causes of death. Cad Saúde Pública. 2014;30(8):1721-30. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00131113
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A qualidade das estatísticas sobre causas de morte é, entretanto, questionada, uma vez que são registrados no SIM anualmente cerca de 400 mil óbitos com causas classificadas como códigos garbage (CG)1. Este termo se refere a um conceito introduzido no primeiro estudo de Carga Global de Doença (Global Burden of Disease - GBD) (55. Murray CJL, Lopez AD, editores. The Global Burden of Disease. A comprehensive assessment of mortality and disability from diseases, injuries and risk factors in 1990 and projected to 2020. Cambridge: Harvard University Press; 1996. para causas que não seriam as básicas do óbito ou seriam pouco específicas, sendo, portanto, pouco úteis para se pensar a prevenção. Por exemplo, septicemia e insuficiência cardíaca podem advir de diferentes patologias, sendo classificadas no mais alto nível de gravidade para CG, considerando o potencial impacto na orientação de políticas públicas para prevenir mortes prematuras66. Mikkelsen L, Richards N, Lopez AD. Redefining 'garbage codes' for public health policy: Report on the expert group meeting, 27-28 February 2017. Melbourne: University of Melbourne; 2018.. Segundo o método do estudo GBD, todos os CG devem ser redistribuídos para causas específicas, conforme algoritmos definidos77. Naghavi M, Makela S, Foreman K, O'Brien J, Pourmalek F, Lozano R. Algorithms for enhancing public health utility of national causes-of-death data. Popul Health Metr. 2010 May 10;8:9. http://dx.doi.org/10.1186/1478-7954-8-9
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), (88. GBD 2017 Causes of Death Collaborators. Global, regional, and national age-sex-specific mortality for 282 causes of death in 195 countries and territories, 1980-2017: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet. 2018;392(10159):1736-88. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32203-7
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No Brasil, quais poderiam ser as iniciativas para enfrentar esse problema? Em 2016, o Ministério da Saúde (MS) propôs 4 intervenções prioritárias para melhoria da informação sobre causas de óbito, como parte do projeto Data for Health Initiative (D4H) da Fundação Bloomberg, no qual o Brasil foi um dos 20 países convidados. Dentre as intervenções propostas, priorizou-se a investigação dos casos de CG registrados no SIM em 2017 e a capacitação dos médicos para correto preenchimento da declaração de óbito. Ao assumir o projeto D4H no Brasil, o MS identificou na Universidade Federal de Minas Gerais uma parceira apta que propôs, por sua vez, como parte do projeto, monitoramento sistemático e pesquisa avaliativa no país.

Avaliar implica julgamento de valor e sempre representa um grande desafio em pesquisa. E tem como maior objetivo influenciar decisões99. Habicht JP, Victora CG, Vaughan JP. Evaluation designs for adequacy, plausibility and probability of public health programme performance and impact. Int J Epidemiol. 1999;28(1):10-8. https://doi.org/10.1093/ije/28.1.10
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. Avaliações dessa natureza influenciam os campos de ensino-pesquisa que são o objetivo maior da universidade. Além disso, incorpora-se a dimensão ético-político-social, que deve pautar a articulação entre esses campos para atender o destinatário final, a sociedade na qual a universidade se insere. Nesta perspectiva, como incorporar um maior número de profissionais que participaram da investigação dos CG na produção científica com o enfoque de estudo avaliativo?

Com assessoria e apoio da Vital Strategies, foi realizado em setembro de 2018 um curso sobre escrita de artigos, ministrado pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) para profissionais de saúde de 17 municípios do país, de todas as regiões. Ao final desse intenso e bem-sucedido curso, foram definidos os temas de artigos científicos a serem assumidos por grupos específicos. Além de várias reuniões regionais para discussão dos possíveis delineamentos de pesquisa, metodologias e resultados parciais, foram realizadas duas oficinas nacionais em fevereiro e maio de 2019 para apresentação e discussão dos artigos.

Este suplemento especial da RBE resume, mas não esgota o resultado desse importante esforço. Nele são apresentados 13 artigos originais com análises relativas à qualidade da informação sobre causas de morte no Brasil e resultados da intervenção proposta para redução dos CG. Devido à importância do projeto D4H, a participação de alguns pesquisadores internacionais foi solicitada, de modo a oferecer um panorama sobre o alcance do projeto em outros países, por meio de comunicações breves. Essas comunicações exploram as iniciativas criadas para melhorar os dados de estatísticas vitais e o seu uso para elaboração de políticas de saúde, possibilitando um diálogo com a experiência brasileira. Nesse espaço, Marinho aborda a inserção do Brasil no projeto que contemplou, além da investigação de CG, várias outras intervenções como estratégia mais ampliada para qualificar a informação sobre causas de morte.

A organização dos artigos originais foi pensada de modo a demonstrar a potencialidade dos estudos realizados, que podem ser classificados em 4 grupamentos. O primeiro refere-se aos artigos sobre avaliação da qualidade do SIM antes da intervenção (Teixeira et al., Vidor et al.). Os artigos do segundo grupo referem-se aos resultados da investigação no país desde o estudo piloto (Lima et al.) e resultados gerais (Marinho et al.), bem como em algumas regiões brasileiras (Benedetti et al., Oliveira et al.), ou grandes capitais do Sudeste (Martinez et al., Correa et al.). O terceiro grupo de artigos avalia resultados para causas garbage selecionadas (França et al., Soares Filho et al., Santos et al., Mamed et al.). E, por último, Ishitani et al. apresentam estudo que avalia o aplicativo AtestaDO para smartphone, produzido para apoio na certificação médica de causas de morte.

Mas qual seria de fato o impacto desse projeto de investigação de CG? Além de ter reduzido a proporção de CG pela reclassificação dessas causas em outras mais úteis para a saúde pública, abre a perspectiva de utilizar esses resultados para possível redistribuição dos casos de causas garbage remanescentes que, mesmo com as investigações, ainda representam grande proporção dos óbitos.

A precisão desses 2 termos aqui utilizados, reclassificação e redistribuição, deve ser considerada com cuidado. Para a reclassificação de óbitos hospitalares utiliza-se de procedimento quase similar ao dos casos registrados com causa específica. Ou seja, um médico avalia as informações coletadas de prontuários e define as causas. O conceito de redistribuição implica procedimentos indiretos para definição da causa básica dos CG, em geral baseados em métodos estatísticos ou análise de causas múltiplas para inferências77. Naghavi M, Makela S, Foreman K, O'Brien J, Pourmalek F, Lozano R. Algorithms for enhancing public health utility of national causes-of-death data. Popul Health Metr. 2010 May 10;8:9. http://dx.doi.org/10.1186/1478-7954-8-9
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), (88. GBD 2017 Causes of Death Collaborators. Global, regional, and national age-sex-specific mortality for 282 causes of death in 195 countries and territories, 1980-2017: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet. 2018;392(10159):1736-88. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(18)32203-7
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. Neste aspecto, no caso do Brasil, os procedimentos de redistribuição poderiam ser aprimorados e mais precisos com os resultados de causas reclassificadas, ou seja, causas específicas detectadas entre os casos de CG investigados.

Óbitos por CG representam também um indicador de qualidade da assistência à saúde. A desigualdade no acesso e a qualidade da atenção médica são resultados relacionados à proporção de óbitos por causa mal definida1010. Teixeira CLS, Klein CH, Bloch KV, Coeli CM. Reclassificação dos grupos de causas prováveis dos óbitos de causa mal definida, com base nas Autorizações de Internação Hospitalar no Sistema Único de Saúde, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2006;22(6):1315-24. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2006000600020
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. Assim, a redução de óbitos por CG não depende somente do médico, pois pode ocorrer por insuficiente informação clínica no momento do óbito. Portanto, a avaliação da investigação de CG significa um importante instrumento de auxílio à gestão das intervenções de saúde na busca por melhor qualidade das informações e por serviços de saúde mais qualificados. Apresenta ainda uma faceta de reflexão para o aprendizado e aperfeiçoamento contínuo. A qualidade da informação sobre causas de morte não está relacionada exclusivamente à reclassificação ou redistribuição de CG, e deve ser cada vez mais entendida como uma condição para práticas visando melhorar a situação de saúde da população brasileira.

REFERÊNCIAS

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    Brasil. Ministério da Saúde. Informações de Saúde (tabnet): Estatísticas vitais-Mortalidade geral [Internet]. 2019 [citado em 16 jun. 2019]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&id=6937
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    Teixeira CLS, Klein CH, Bloch KV, Coeli CM. Reclassificação dos grupos de causas prováveis dos óbitos de causa mal definida, com base nas Autorizações de Internação Hospitalar no Sistema Único de Saúde, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2006;22(6):1315-24. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2006000600020
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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