Marcos legais para registro civil e sistemas de estatísticas vitais

Ashley Frederes Aaron Ross Schwid Sobre os autores

Os Estados têm a obrigação de garantir que todos no território sejam incluídos, independentemente da nacionalidade, etnia ou estatuto de cidadania. O sistema de registro civil (RC), por meio da emissão de documentos oficiais, como certidões de nascimento, casamento e óbito, serve como porta de entrada para o reconhecimento legal do indivíduo pelo Estado. A natureza rotineira dessas tarefas burocráticas muitas vezes obscurece a importância fundamental do sistema de RC; no entanto, as falhas no sistema têm consequências devastadoras para as pessoas deixadas sem documentos. Idealmente, o registro civil e o sistema de estatísticas vitais (RCSEV) devem produzir dados oportunos, necessários para a elaboração de políticas e devem medir o progresso dos países em alcançar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os governos devem priorizar o fortalecimento do ambiente jurídico e regulatório do RCSEV, dada a importância crucial das estatísticas de saúde e de população derivadas desses dados, as implicações jurídicas da falta de registro, a complexidade da operacionalização dos processos da RCSEV, e a multiplicidade de gestores envolvidos no sistema11. Lopez AD, AbouZahr C, Shibuya K, Gollogly L. Keeping count: births, deaths and causes of death. Lancet. 2007;370(9601):1744-6. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61419-6
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Os sistemas de RC fornecem dados fundamentais para as estatísticas vitais de um país, incluindo dados de mortalidade desagregados por idade, sexo e causas de morte em diferentes populações. A saúde e a formulação de políticas sociais dependem muito da cobertura do registro de óbitos, da proporção de óbitos registrados com uma causa de morte certificada por médicos e da qualidade dessas certificações22. Okonjo-Iweala N, Osafo-Kwaako P. Improving health statistics in Africa. Lancet. 2007;370(9598):1527-8. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61644-4
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. Apesar dos esforços renovados para melhorar o sistema RCSEV, o registro universal da mortalidade continua sendo um desafio para a maioria dos países de baixa e média renda (PBMR). Muitos sistemas de RCSEV empregam legislações antiquadas que colocam a responsabilidade de registrar os acontecimentos vitais que ocorrem no decorrer da vida sobre as famílias e indivíduos. No caso do registro de óbito, muitas vezes há falta de incentivo para que os membros da família registrem o fato, devido a práticas herdadas de informalidade e dificuldades para efetuar o registro. Essas dificuldades incluem custos diretos e indiretos, muitas vezes envolvendo várias viagens a cartórios para atender às solicitações de provas exigidas para o registro. Além disso, uma proporção significativa de óbitos em PBMR ocorre na comunidade e sem atendimento médico, levando ao não registro do óbito e da causa da morte33. Setel PW, Macfarlane SB, Szreter S, Mikkelsen L, Jha P, Stout S, et al. A scandal of invisibility: making everyone count by counting everyone. Lancet. 2007;370(9598):1569-77. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61307-5
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Um fator que dificulta a obtenção e produção de dados de alta qualidade relacionados à mortalidade é a proporção de óbitos que ocorrem fora da alçada do setor de saúde, particularmente por causas externas, incluindo homicídios, suicídios, acidentes e mortes suspeitas. Essas mortes trazem outras partes interessadas para o sistema, incluindo a polícia, os médicos legistas e o sistema judicial11. Lopez AD, AbouZahr C, Shibuya K, Gollogly L. Keeping count: births, deaths and causes of death. Lancet. 2007;370(9601):1744-6. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61419-6
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. As responsabilizações ambíguas entre instituições comumente desfocam a responsabilidade de registrar e determinar as causas de morte, o que leva à subnotificação de mortes. A maior parte dos dados de mortalidade produzidos e utilizados para a formulação de políticas em PBMR são desproporcionalmente provenientes de óbitos ocorridos em hospitais de áreas urbanas44. Mahapatra P, Shibuya K, Lopez AD, Coullare F, Notzon FC, Rao C, et al. Civil registration systems and vital statistics: successes and missed opportunities. Lancet. 2007;370(9599):1653-63. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61308-7
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. Esses óbitos podem não representar toda a população, uma vez que as populações urbanas podem ter um maior nível socioeconômico e melhor acesso aos serviços de saúde do que aquelas residentes em áreas rurais e remotas. Enquanto isso, essas comunidades vulneráveis permanecem não incluídas e invisíveis55. Gostin LO, Monahan JT, Kaldor J, DeBartolo M, Friedman EA, Gottschalk K, et al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. Lancet. 2019;393(10183):1857-910. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)30233-8
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Os sistemas RCSEV fornecem aos indivíduos provas de identidade e formas jurídicas de identificação (ID), como certidões de nascimento, títulos de eleitores ou carteiras de habilitação. Um sistema de RC incompleto, que não cumpre este papel, provoca desafios reais para homens, mulheres e crianças excluídas dele. Sem um ID permanente e oficial, a pessoa fica sem o direito humano fundamental de possuir uma identidade jurídica, portanto sem pleno acesso aos serviços sociais e à participação cívica. O acesso à saúde e à educação pode ser limitado ou completamente inacessível sem identificação legal, o que pode impactar negativamente o curso de vida dos indivíduos e suas famílias11. Lopez AD, AbouZahr C, Shibuya K, Gollogly L. Keeping count: births, deaths and causes of death. Lancet. 2007;370(9601):1744-6. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61419-6
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. No entanto, muitos países ultrapassaram os quadros jurídicos do RCSEV que exacerbam a marginalização de populações vulneráveis, incluindo mulheres, refugiados, trabalhadores migrantes e minorias étnicas, e aprofundam as desigualdades dentro e entre países; assim, a legislação do RCSEV deve ser enquadrada com uma perspectiva baseada em direitos55. Gostin LO, Monahan JT, Kaldor J, DeBartolo M, Friedman EA, Gottschalk K, et al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. Lancet. 2019;393(10183):1857-910. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)30233-8
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As principais funções dos sistemas CRVS, como registro e certificação de eventos vitais, e a produção e disseminação de estatísticas vitais, são geralmente divididas entre ministérios governamentais. Por exemplo, o registro de óbito pode exigir a colaboração entre oficiais de registro, hospitais, médicos certificadores, departamentos de polícia, ambulatórios e organizações de gerenciamento de desastres11. Lopez AD, AbouZahr C, Shibuya K, Gollogly L. Keeping count: births, deaths and causes of death. Lancet. 2007;370(9601):1744-6. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61419-6
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. Estas partes, muitas vezes, não coordenam adequadamente essa colaboração devido a estruturas de gestão frágeis e funções mal definidas. Realizar reforma jurídica é uma intervenção estratégica para mediar a complexa rede de múltiplas partes a nível nacional e delinear mandatos para unidades descentralizadas de governo55. Gostin LO, Monahan JT, Kaldor J, DeBartolo M, Friedman EA, Gottschalk K, et al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. Lancet. 2019;393(10183):1857-910. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)30233-8
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Embora o RCSEV tenha as mesmas funções principais em todos os lugares, alguns países adaptaram sua abordagem baseada em sua estrutura constitucional, histórica e cultural. Isso criou muitas maneiras de organização e implementação dos sistemas e processos RCSEV em países de baixa e média renda11. Lopez AD, AbouZahr C, Shibuya K, Gollogly L. Keeping count: births, deaths and causes of death. Lancet. 2007;370(9601):1744-6. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61419-6
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. Os governos precisam adotar uma abordagem abrangente de sistemas e aplicar métodos como o mapeamento de processos de negócios para identificar lacunas e ineficiências que precisam ser confrontadas e corrigidas55. Gostin LO, Monahan JT, Kaldor J, DeBartolo M, Friedman EA, Gottschalk K, et al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. Lancet. 2019;393(10183):1857-910. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)30233-8
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Um sólido quadro jurídico é a base de um sistema robusto de RCSEV, essencial para alcançar uma cobertura universal, obrigatória, permanente e contínua. Reformar a legislação ultrapassada, ambígua ou discriminatória potencializa a eficiência, assim como a segurança e a demanda para serviços de RCSEV. Os benefícios incluem a consolidação da gestão e a coordenação entre os setores governamentais, resultando no uso e alocação mais eficiente de recursos assim como na elaboração de políticas conscientes, com o intuito de promover melhorias na saúde e na expectativa de vida da população11. Lopez AD, AbouZahr C, Shibuya K, Gollogly L. Keeping count: births, deaths and causes of death. Lancet. 2007;370(9601):1744-6. http://doi.org/10.1016/S0140-6736(07)61419-6
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. Os países que procuram fortalecer os seus sistemas RCSEV devem rever e, se necessário, reformular a sua legislação para garantir um sistema baseado em direitos não excludentes.

REFERÊNCIAS

  • Financiamento: Financiado pela Vital Strategies como parte da Iniciativa Bloomberg Philanthropies Data for Health (Projeto 23998 Fundep/UFMG).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    5 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2019
  • Aceito
    24 Jul 2019
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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