Concordância entre estado nutricional e percepção da imagem corporal em indígenas khisêdjê do Parque Indígena do Xingu

Kennedy Maia dos Santos Mario Luiz da Silva Tsutsui Lalucha Mazzucchetti Patrícia Paiva de Oliveira Galvão Fernanda Serra Granado Douglas Rodrigues Luciana Yuki Tomita Raquel da Rocha Paiva Maia Suely Godoy Agostinho Gimeno Sobre os autores

RESUMO:

Objetivos:

Verificar a concordância entre autoimagem corporal (escala de silhuetas de Stunkard et al.) e estado nutricional e avaliar a satisfação corporal em indígenas khisêdjê do Parque Indígena do Xingu.

Métodos:

Estudo transversal que incluiu 131 indígenas khisêdjê, com 20 anos ou mais. Coletaram-se dados sobre imagem corporal, índice de massa corporal e perímetro da cintura. Foram utilizados a estatística kappa, o teste χ2 (p < 0,05), as razões de prevalências brutas e ajustadas e o teste t de Student.

Resultados:

As prevalências de sobrepeso e obesidade foram, respectivamente, 42 e 5,3%. A porcentagem de satisfação com o perfil corporal foi de 61,8%, sem diferença entre os sexos. Houve boa concordância entre autoimagem real e autoimagem ideal (p < 0,001), porém baixa concordância entre a autoimagem real e ideal e o estado nutricional para ambos os sexos. Maior prevalência de insatisfação corporal por excesso de peso foi detectada entre indivíduos com obesidade central e excesso de peso.

Conclusão:

Os resultados sugerem que a autoimagem corporal avaliada por meio da escala de silhuetas de Stunkard et al. tem pouca aplicabilidade como indicador do estado nutricional de indígenas khisêdjê do Parque Indígena do Xingu.

Palavras-chave:
População indígena; Percepção; Imagem corporal; Estado nutricional

INTRODUÇÃO

Em todas as épocas e culturas, o corpo sempre exerceu importante papel na construção dos valores das sociedades, sendo um dos reguladores das relações e do comportamento dos indivíduos11. Alves D, Pinto M, Alves S, Mota A, Leirós V. Cultura e imagem corporal. Motricidade 2009; 5(1): 1-20.. As concepções de saúde, beleza e estética ligadas à imagem corporal (IC) de determinado indivíduo estão associadas aos valores socioculturais e utilitários do corpo e podem balizar o valor que os indivíduos atribuem ao corpo ideal11. Alves D, Pinto M, Alves S, Mota A, Leirós V. Cultura e imagem corporal. Motricidade 2009; 5(1): 1-20.,22. Barros DD. Body image: discovering one’s self. Hist Cienc Saude-Manguinhos 2005; 12(2): 547-54. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702005000200020
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. Entre os indígenas, a percepção sobre o corpo e seu valor simbólico estão presentes nas características e nos modos de organização sociocultural, entretanto os ritos, valores e símbolos, aludidos à cultura corporal indígena, são tão vastos quanto o número de etnias existentes33. Luciano GS. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: LACED/Museu Nacional; 2006..

Para os khisêdjê, o significado do corpo transcende o aspecto físico, sendo compreendido como parte do universo que o cerca. Sua importância e significado ficam mais evidentes quando ocorrem as cerimônias e festas, podendo ser percebidos por meio da peculiar ornamentação corporal, que não se relaciona ao aspecto estético apenas, mas sobretudo à identidade44. Seeger A. Nature and Society in Central Brazil: The Suya Indians of Mato Grosso. Cambridge: Harvard University Press; 1981.. Entre os indígenas bororo do Mato Grosso, o corpo é valorizado por meio da dança, sempre presente nos rituais de passagem, tendo finalidade educativa de transferência às gerações mais jovens dos valores, das técnicas corporais, dos rituais, dos ornamentos e das músicas55. Grando BS. Corpo e cultura: a educação do corpo em relações de fronteiras étnicas e culturais e a constituição da identidade Bororo em Meruri-MT. Pensar a Prática. 2006; 8(2): 163-79..

Imagem corporal é a percepção que o indivíduo tem a respeito do próprio corpo, não apenas do que ele pode observar ou lembrar-se de si, e sim também quanto ao desejo e à aspiração que tem para si66. Castro IRR, Levy RB, Cardoso LO, Passos MD, Sardinha LMV, Tavares LF, et al. Body image, nutritional status and practices for weight control among Brazilian adolescents. Ciênc Saúde Coletiva 2010; 15(Supl. 2): 3099-108. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232010000800014
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,77. McCabe MP, Ricciardelli LA. Body image dissatisfaction among males across the lifespan: a review of past literature. J Psychosom Res 2004; 56(6): 675-85. https://doi.org/10.1016/S0022-3999(03)00129-6
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, entretanto a IC não é estática. Ela pode mudar de acordo com as experiências e transformações ocorridas ao longo da vida do sujeito e ser influenciada por fatores de ordem física, psicológica, ambiental, cultural, bem como pelos meios de comunicação, crenças e valores88. Becker AE, Burwell RA, Gilman SE, Herzog DB, Hamburg P. Eating behaviours and attitudes following prolonged exposure to television among ethnic Fijian adolescent girls. Brit J Psychiatry 2002; 180: 509-14. https://doi.org/10.1192/bjp.180.6.509
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,99. Craig PL, Swinburn BA, Matenga-Smith T, Matangi H, Vaughn G. Do Polynesians still believe that big is beautiful? Comparison of body size perceptions and preferences of Cook Islands, Maori and Australians. N Z Med J 1996; 109(1023): 200-3.,1010. Craig P, Halavatau V, Comino E, Caterson I. Perception of body size in the Tongan community: differences from and similarities to an Australian sample. Int J Obes Relat Metab Disord 1999; 23(12): 1288-94. https://doi.org/10.1038/sj.ijo.0801069
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,1111. Williams LK, Ricciardelli LA, McCabe MP, Waqa GG, Bavadra K. Body image attitudes and concerns among indigenous Fijian and European Australian adolescent girls. Body Image 2006; 3(3): 275-87. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2006.06.001
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.

Entre os instrumentos utilizados para autoavaliação da IC, destacam-se as escalas de silhuetas, por causa do seu baixo custo e da facilidade na administração do método, manipulação e transporte, além de apresentar coeficientes de confiabilidade semelhantes aos obtidos por outras técnicas consideradas mais precisas, porém de maior custo e dificuldade logística, desde que tomados os devidos cuidados em sua aplicação. Consistem na exibição de uma série de figuras/silhuetas que, geralmente, variam da silhueta mais magra até a mais gorda, e o avaliado deve escolher a silhueta que representa seu corpo atual, ideal ou desejado11. Alves D, Pinto M, Alves S, Mota A, Leirós V. Cultura e imagem corporal. Motricidade 2009; 5(1): 1-20.,1212. Cororve Fingeret M, Gleaves DH, Pearson CA. On the methodology of body image assessment: the use of figural rating scales to evaluate body dissatisfaction and the ideal body standards of women. Body Image 2004; 1(2): 207-12. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2004.01.003
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.

A concordância entre a IC e o estado nutricional (EN) tem sido investigada por meio de estudos epidemiológicos que levam em conta o aumento observado da prevalência de insatisfação ou distorções na IC, mesmo em condição de eutrofia1313. Conti MA, Frutuoso MFP, Gambardella AMD. Excesso de peso e insatisfação corporal em adolescentes. Rev Nutr 2005; 18(4): 491-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-52732005000400005
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,1414. Kakeshita IS, Almeida SS. Relação entre índice de massa corporal e a percepção da auto-imagem em universitários. Rev Saúde Pública 2006; 40(3): 497-504. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000300019
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,1515. Pinheiro AP, Giugliani ER. Body dissatisfaction in Brazilian schoolchildren: prevalence and associated factors. Rev Saúde Pública 2006; 40(3): 489-96. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000300018
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. Alguns resultados apontam maior insatisfação com a IC entre pessoas com excesso de peso1313. Conti MA, Frutuoso MFP, Gambardella AMD. Excesso de peso e insatisfação corporal em adolescentes. Rev Nutr 2005; 18(4): 491-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-52732005000400005
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,1414. Kakeshita IS, Almeida SS. Relação entre índice de massa corporal e a percepção da auto-imagem em universitários. Rev Saúde Pública 2006; 40(3): 497-504. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000300019
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, enquanto outros sugerem que mesmo naquelas com massa corporal adequada existe alta prevalência de insatisfação1515. Pinheiro AP, Giugliani ER. Body dissatisfaction in Brazilian schoolchildren: prevalence and associated factors. Rev Saúde Pública 2006; 40(3): 489-96. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000300018
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.

Até o momento não foram identificados estudos relacionados à avaliação da IC entre os indígenas brasileiros, entretanto a literatura dispõe de inúmeras pesquisas que revelam aumento dos desequilíbrios nutricionais com prevalências importantes de sobrepeso e obesidade nessa população1616. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas: relatório final. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2010.,1717. Castro TG, Schuch I, Conde WL, Veiga J, Leite MS, Dutra CLC, et al. Nutritional status of Kaingáng Indians enrolled in 12 indigenous schools in the State of Rio Grande do Sul, Brazil. Cad Saúde Pública 2010; 26(9): 1766-76. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2010000900010
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,1818. Coimbra Jr. CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, et al. The First National Survey of Indigenous People’s Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13: 52. https://doi.org/10.1186/1471-2458-13-52
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. Até o início da década de 1990, a literatura não apontava o excesso de peso como um problema entre as populações indígenas do Brasil1919. Coimbra Jr. CEA, Santos RV, Escobar AL, editores. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ABRASCO; 2003. p. 13-47.. A partir de então, há evidências crescentes de aumento importante do número de casos, com grandes variações de acordo com a etnia avaliada1616. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas: relatório final. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2010.,1818. Coimbra Jr. CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, et al. The First National Survey of Indigenous People’s Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13: 52. https://doi.org/10.1186/1471-2458-13-52
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,2020. Santos KM, Tsutsui MLS, Galvão PPO, Mazzucchetti L, Rodrigues D, Gimeno SGA. Grau de atividade física e síndrome metabólica: um estudo transversal com indígenas Khisêdjê do Parque Indígena do Xingu, Brasil. Cad Saúde Pública 2012; 28(12): 2327-38. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2012001400011
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.

As prevalências de excesso de peso avaliadas por meio do índice de massa corporal (IMC) variam de 8,9% em indígenas caingangue (Rio Grande do Sul)1717. Castro TG, Schuch I, Conde WL, Veiga J, Leite MS, Dutra CLC, et al. Nutritional status of Kaingáng Indians enrolled in 12 indigenous schools in the State of Rio Grande do Sul, Brazil. Cad Saúde Pública 2010; 26(9): 1766-76. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2010000900010
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a 78% entre indivíduos da Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande (Mato Grosso)2121. Gugelmin SA, Santos RV. Use of Body Mass Index to evaluate the nutritional status of Xavánte Indigenous adults, Sangradouro-Volta Grande, Mato Grosso State, Central Brazil. Cad Saúde Pública 2006; 22(9): 1865-72. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2006000900017
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. No Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas realizado no Brasil em 2008/2009, a prevalência foi de 45,9% entre mulheres na faixa etária de 14 a 49 anos1616. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas: relatório final. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2010.. Esse aumento é particularmente preocupante, dado que valores de IMC elevados (acima de 25 kg/m2) exercem considerável poder explicativo na determinação de algumas doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), o que ratifica a importância da identificação de sujeitos com distúrbios nutricionais2222. Prospective Studies Collaboration, Whitlock G, Lewington S, Sherliker P, Clarke R, Emberson J, et al. Body-mass index and cause-specific mortality in 900 000 adults: collaborative analyses of 57 prospective studies. Lancet Lond Engl 2009; 373(9669): 1083-96. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(09)60318-4
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Dessa forma, o aumento da prevalência de excesso de peso observado nas últimas décadas entre diferentes etnias1616. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas: relatório final. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2010.,1717. Castro TG, Schuch I, Conde WL, Veiga J, Leite MS, Dutra CLC, et al. Nutritional status of Kaingáng Indians enrolled in 12 indigenous schools in the State of Rio Grande do Sul, Brazil. Cad Saúde Pública 2010; 26(9): 1766-76. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2010000900010
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,1818. Coimbra Jr. CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, de Souza MC, Garnelo L, et al. The First National Survey of Indigenous People’s Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13: 52. https://doi.org/10.1186/1471-2458-13-52
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
, bem como o significado do corpo na cultura indígena33. Luciano GS. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: LACED/Museu Nacional; 2006., é questão bem documentada na literatura, entretanto existe uma lacuna de estudos ligados à percepção da IC entre indígenas brasileiros. Sabe-se que a IC sofre influência de aspectos físicos, psicológicos, culturais e de outras variáveis sociodemográficas e que distorções na percepção dessa imagem interferem no processo saúde-doença e na escolha de comportamentos e atitudes em saúde. Assim, investigações sobre o tema são relevantes para identificar possíveis distorções e auxiliar no planejamento e direcionamento das ações em saúde e orientação dos sujeitos envolvidos.

Nesse contexto, o presente estudo teve como objetivos avaliar a satisfação corporal e verificar a concordância entre IC e EN avaliado por meio do IMC entre indígenas khisêdjê do Parque Indígena do Xingu (PIX).

MÉTODOS

Trata-se de um estudo epidemiológico do tipo transversal que incluiu todos os indivíduos da etnia khisêdjê de ambos os sexos, com idade de 20 anos ou mais, exceto grávidas ou doentes na ocasião da coleta (n = 131). Durante a execução do projeto, os pesquisadores contaram com o consentimento e auxílio dos profissionais do Projeto Xingu e da equipe de profissionais de saúde vinculados à Universidade Federal de São Paulo responsáveis pela assistência à saúde no PIX. Utilizaram-se fichas médicas individuais, as quais permitem a identificação de todos os habitantes do local e o registro de suas informações de saúde. Essas fichas são periodicamente atualizadas, o que ajudou no desenvolvimento de pesquisas com essa população, permitindo até mesmo saber com exatidão o quantitativo populacional da etnia por idade.

Para obtenção do consentimento de participação, realizou-se reunião com a comunidade para esclarecer os objetivos e os procedimentos do estudo, deixando claro que a participação seria voluntária e que em qualquer momento os indivíduos poderiam desistir de fazer parte da investigação. Para isso, contou-se com o auxilio dos agentes de saúde e tradutores indígenas, sendo tudo devidamente gravado.

A coleta de dados foi realizada na aldeia Ngojwere, no posto indígena Wawi, no PIX, por profissionais treinados, em dois períodos: julho de 2010 e agosto/setembro de 2011. No segundo momento, coletaram-se informações apenas dos sujeitos que não haviam sido contemplados em 2010 por motivo de gravidez, doença ou que não se encontravam na aldeia. Compuseram a equipe de investigação 17 pesquisadores, sendo estes médicos, enfermeiras, nutricionistas, profissionais de educação física, antropólogos e acadêmicos dos cursos de medicina e enfermagem.

De forma a garantir a uniformidade na coleta e no registro dos dados, foram feitas em média duas reuniões mensais com a equipe, entre os meses de fevereiro e agosto de 2010 (14 reuniões), para treinamento relacionado aos procedimentos de coleta e preenchimento dos dados no formulário padrão. Os formulários foram revisados e codificados em reunião todos os dias na aldeia, com vistas a detectar falhas de preenchimento e necessidade de confirmação dos resultados. Além disso, as reuniões também visavam ao planejamento da coleta de dados do dia seguinte.

VARIÁVEIS DO ESTUDO

A IC foi avaliada por meio do silhouette matching task (SMT)2323. Mueller WH, Joos SK, Schull WJ. Alternative measurements of obesity: accuracy of body silhouettes and reported weights and heights in a Mexican American sample. Int J Obes 1985; 9(3): 193-200., que se baseia em uma escala de silhuetas que contém nove IC do sexo masculino e nove do sexo feminino. Os avaliados foram submetidos a duas perguntas diretas sobre sua imagem:

  • Como se vê?: variável denominada de autoimagem real. Para responder a ela, o indivíduo deveria indicar na folha/cartão a IC/silhueta que melhor representava sua própria imagem naquele momento;

  • Como gostaria de ser?: variável denominada de autoimagem ideal. O indivíduo deveria indicar na folha/cartão a imagem ideal que desejaria ter.

A satisfação com a IC foi avaliada por intermédio da construção de uma variável chamada de satisfação com o perfil corporal. Para isso, realizou-se uma operação de subtração entre o valor da figura que representava a silhueta real menos o valor da figura que representava a silhueta ideal, gerando valores que poderiam variar de -8 a +8. De acordo com o resultado da operação, o indivíduo foi classificado como: satisfeito (se o resultado foi igual a zero), insatisfeito por magreza (se o resultado foi um valor negativo) e insatisfeito por excesso de peso (se o resultado foi um valor positivo)2424. Tehard B, van Liere MJ, Com Nougué C, Clavel-Chapelon F. Anthropometric measurements and body silhouette of women: validity and perception. J Am Diet Assoc 2002; 102(12): 1779-84. https://doi.org/10.1016/s0002-8223(02)90381-0
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.

Para avaliação do EN, foram aferidas as medidas antropométricas, em duplicata, segundo os procedimentos indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS)2121. Gugelmin SA, Santos RV. Use of Body Mass Index to evaluate the nutritional status of Xavánte Indigenous adults, Sangradouro-Volta Grande, Mato Grosso State, Central Brazil. Cad Saúde Pública 2006; 22(9): 1865-72. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2006000900017
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,2525. Stunkard AJ, Sørensen T, Schulsinger F. Use of the Danish Adoption Register for the study of obesity and thinness. Res Publ Assoc Res Nerv Ment Dis 1983; 60: 115-20.. Para a mensuração do peso e da altura, utilizaram-se, respectivamente, balança eletrônica portátil (Líder, modelo P200m) e um estadiômetro portátil em madeira (WCS, escala variando de 20 a 220 cm). O IMC foi calculado pela divisão do peso (em quilos) pela altura (em metros) elevada ao quadrado. Para a classificação do EN, categorizou-se o IMC segundo os pontos de corte sugeridos pela OMS2525. Stunkard AJ, Sørensen T, Schulsinger F. Use of the Danish Adoption Register for the study of obesity and thinness. Res Publ Assoc Res Nerv Ment Dis 1983; 60: 115-20.. Consideraram-se excesso de peso valores de IMC ≥ 25 kg/m2.

O perímetro da cintura (PC) foi verificado em duplicata, utilizando-se fita métrica de fibra de vidro inelástica, flexível e autorretrátil, com botão para travar e destravar (TBW), com escala de 0 a 150 cm, largura de 0,8 cm e resolução de 0,1 cm, para obtenção do valor da menor curvatura localizada entre as costelas e a crista ilíaca. O valor final foi a média aritmética entre as medidas. A presença de obesidade central foi caracterizada por valores de PC ≥ 94 cm para homens e ≥ 80 cm para mulheres2626. Bissochi CO, Juzwiak CR. Avaliação nutricional e da percepção da autoimagem corporal de atletas adolescentes de voleibol. Rev Soc Bras Alim Nutr 2012; 37(1): 34-53. http://dx.doi.org/10.4322/nutrire.2012.004
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.

ANÁLISE DOS DADOS

Foram realizadas estatísticas descritivas com frequências absolutas e relativas e medidas de posição e dispersão. Para avaliação da relação entre os grupos, utilizaram-se o teste χ2 para as variáveis categóricas e o teste t de Student para as variáveis quantitativas. A estatística χ2 (p < 0,05) e as razões de prevalência (por ponto e por intervalo com 95% de confiança) foram aplicadas na análise de associação entre as variáveis de interesse. Para obtenção da razão de prevalência, empregou-se a regressão de Poisson.

Para avaliar a concordância entre autoimagem real e autoimagem ideal e entre ambas e o EN, o presente estudo determinou correspondência das categorias das imagens/silhuetas à cada categoria do EN:

  • abaixo do peso: silhuetas 1, 2 e 3;

  • eutrofia: silhuetas 4, 5 e 6;

  • excesso de peso: silhuetas 7, 8 e 9.

A concordância entre autoimagem real e autoimagem ideal foi verificada por meio do teste χ2, e a concordância das variáveis relativas à IC com o EN, mediante a estatística kappa. Para isso, o EN de cada indivíduo foi classificado como: baixo peso (IMC < 18,5 kg/m2), eutrofia (IMC ³ 18,5 - < 25,0 kg/m2) e excesso de peso (IMC ³ 25,0 kg/m2). Nas análises foi utilizado o programa Stata (StataCorp, College Station, TX, Estados Unidos).

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, sob número do parecer 1.145.268, em 29 de junho de 2015.

RESULTADOS

Do total de indivíduos avaliados (n = 131), 37,4% era do sexo feminino e 62,6% do sexo masculino. A idade média foi de 37,3 anos (desvio padrão - DP = 14,4 anos), não havendo diferença estatisticamente significante entre os sexos. A Tabela 1 apresenta a distribuição de indígenas khisêdjê segundo variáveis de interesse e sexo. Os homens, quando comparados às mulheres, exibiram maior porcentagem de sobrepeso e obesidade (p = 0,016). Tanto na variável autoimagem real quanto na variável autoimagem ideal, houve maior porcentagem de indivíduos que escolheram as imagens/silhuetas de 4 a 6: 54,2 e 57,3%, respectivamente. Quanto à satisfação corporal, 61,8% dos indivíduos foram classificados como satisfeitos. Não houve diferença entre os sexos.

Tabela 1.
Número e porcentagem de indígenas khisêdjê segundo sexo e variáveis de interesse. Parque Indígena do Xingu, 2010-2011.

Nas Tabelas 2 e 3 podem ser observados os números, porcentagens e razões de prevalência (RP) das variáveis de interesse conforme a satisfação com o perfil corporal. A diferença principal entre as duas tabelas está na forma como a variável resposta foi categorizada. Na Tabela 2 os indivíduos foram categorizados como: satisfeitos ou insatisfeitos por magreza. Na Tabela 3, classificaram-se os sujeitos em: satisfeitos ou insatisfeitos por excesso de peso. Não foi detectada associação estatisticamente significante entre as variáveis independentes e a satisfação com o perfil corporal quando esta foi categorizada em satisfeito ou insatisfeito por magreza (Tabela 2). Entretanto, quando essa variável foi categorizada em satisfeito e insatisfeito por excesso de peso, viu-se maior prevalência de insatisfação corporal por excesso de peso entre indivíduos com obesidade central (RP ajustada = 2,76 e intervalo de confiança de 95% - IC95% 1,10 - 6,92) e excesso de peso (RP ajustada = 2,77 e IC95% 1,19 - 6,47) (Tabela 3).

Tabela 2.
Número, porcentagem e razões entre as prevalências (RP) de variáveis de interesse segundo satisfação com o perfil corporal (satisfeito; insatisfeito por magreza) de indígenas khisêdjê. Parque Indígena do Xingu, 2010-2011.
Tabela 3.
Número, porcentagem e razões entre as prevalências (RP) de variáveis de interesse segundo satisfação com o perfil corporal (satisfeito; insatisfeito por excesso de peso) de indígenas khisêdjê. Parque Indígena do Xingu, 2010-2011.

Em relação à concordância entre autoimagem real e autoimagem ideal, constatou-se elevada proporção de concordantes nas categorias baixo peso e eutrofia (p<0,001) para ambos os sexos (Tabela 4), porém o grau de concordância entre as variáveis autoimagem real e autoimagem ideal e o EN (IMC) foi baixo nos dois sexos (Tabela 5). Ao repetir a análise de concordância separadamente para indivíduos com idade inferior a 40 anos e para aqueles com idade igual ou maior que 40 anos, observou-se que apenas entre as mulheres com 40 anos ou mais o valor do kappa (0,4331) foi estatisticamente significante (p < 0,001), indicando concordância moderada entre autoimagem real e o EN.

Tabela 4.
Concordância entre autoimagem real e autoimagem ideal em indígenas khisêdjê segundo o sexo. Parque Indígena do Xingu, 2010-2011.
Tabela 5.
Concordância entre autoimagem (real e ideal) e o estado nutricional (índice de massa corporal - IMC) de indígenas khisêdjê segundo o sexo. Parque Indígena do Xingu, 2010-2011.

DISCUSSÃO

O presente estudo avaliou a percepção da IC e sua concordância com o EN de indígenas khisêdjê do PIX. Com base na literatura específica para a população indígena, pesquisas relacionadas a esse tema são pouco exploradas no cenário internacional e ainda inexistentes no Brasil. Mesmo entre não indígenas, a maioria dos estudos restringe-se a grupos específicos, como indivíduos com transtornos alimentares e que sofreram alteração da IC em decorrência de uma doença2727. Finato S, Rech RR, Migon P, Gavineski IC, Toni V de, Halpern R. Insatisfação com a imagem corporal em escolares do sexto ano da rede municipal de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Rev Paul Pediatr 2013; 31(1): 65-70. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-05822013000100011
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,2828. Gonzalez GAL, Sacomani Junior E, Rondina R de C. As vivências de um grupo de pacientes com transtornos alimentares: a relação com o espelho e a imagem corporal. Rev Subj 2014; 14(3): 383-94.,2929. Prates ACL, Freitas-Junior R, Prates MFO, D’Alessandro AAB, Veloso MF. Indicadores de insatisfação relacionados à imagem corporal em pacientes submetidas à mastectomia. Rev Bras Mastologia 2014; 24(1): 23-8. http://dx.doi.org/10.5327/Z201400010005RBM
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, o que dificulta a comparação e discussão dos resultados.

A avaliação da satisfação com o perfil corporal revelou que 61,8% dos indígenas está satisfeito com a IC. Ou seja, a maioria dos khisêdjê respondeu que a IC que eles gostariam de ter é a imagem que eles já possuíam naquele momento. Esse resultado é ratificado por meio da análise de concordância entre a autoimagem real e a autoimagem ideal, que revelou boa concordância entre as duas variáveis. Em pesquisa com jovens indígenas australianos e jovens anglo-europeus3030. Cinelli RL, O’Dea JA. Body image and obesity among Australian adolescents from indigenous and Anglo-European backgrounds: implications for health promotion and obesity prevention among Aboriginal youth. Health Educ Res 2009; 24(6): 1059-68. https://doi.org/10.1093/her/cyp040
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, os resultados também mostraram elevada porcentagem de satisfação com o perfil corporal para as duas populações estudadas (71,2 e 72,9% para homens e mulheres indígenas australianos e 77 e 70,1% para homens e mulheres anglo-europeus, respectivamente), não havendo diferença estatisticamente significante entre as duas populações, um dado intrigante considerando a diferença cultural entre as duas populações.

De forma oposta, resultados de outro estudo revelaram que, quando comparadas com mulheres não aborígenes australianas, as aborígenes australianas, embora tenham apresentado maior prevalência de excesso de peso, perceberam sua condição de peso com maior precisão, apontaram menor desejo de perder peso e eram mais propensas a notar um tamanho corporal maior como ideal para as mulheres.

Mesmo entre as aborígenes obesas, aproximadamente 15% demonstrou IC positiva3131. Cinelli R, O’Dea J. Body image, desired weight and body figure preferences of Aboriginal and non-Aboriginal Australian women across the lifespan. Univ Syd Pap HMHCE 2012; 1: 1-15.. Uma possível explicação para tal é que as mulheres de populações tradicionais podem não se sentir julgadas pelos ideais culturais ocidentais3232. Snapp S. Internalization of the thin ideal among low-income ethnic minority adolescent girls. Body Image 2009; 6(4): 311-4. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2009.05.005
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De fato, enquanto em muitas sociedades ocidentais uma silhueta pequena representa o padrão estético desejável, estudos afirmam que em algumas sociedades tradicionais o tamanho corporal grande pode ser socialmente desejável, pois está associado com melhor desempenho para o trabalho e reprodução e representa beleza, prestígio, boa saúde, riqueza e alta posição social1111. Williams LK, Ricciardelli LA, McCabe MP, Waqa GG, Bavadra K. Body image attitudes and concerns among indigenous Fijian and European Australian adolescent girls. Body Image 2006; 3(3): 275-87. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2006.06.001
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,3333. Poran MA. Denying Diversity: Perceptions of Beauty and Social Comparison Processes among Latina, Black, and White Women. Sex Roles 2002; 47: 65-82. https://doi.org/10.1023/A:1020683720636
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. Entre as mulheres indígenas fiji, o quadril largo costumava representar vantagem tanto na reprodução quanto na capacidade de suporte das crianças. Pernas e panturrilhas largas refletiam ausência de preguiça e maior capacidade para trabalhar88. Becker AE, Burwell RA, Gilman SE, Herzog DB, Hamburg P. Eating behaviours and attitudes following prolonged exposure to television among ethnic Fijian adolescent girls. Brit J Psychiatry 2002; 180: 509-14. https://doi.org/10.1192/bjp.180.6.509
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,1111. Williams LK, Ricciardelli LA, McCabe MP, Waqa GG, Bavadra K. Body image attitudes and concerns among indigenous Fijian and European Australian adolescent girls. Body Image 2006; 3(3): 275-87. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2006.06.001
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Com o decorrer do tempo e com o processo de modernização e influência da mídia, o ideal de IC vem sofrendo mudanças mesmo entre populações tradicionais3434. Tsai G, Curbow B, Heinberg L. Sociocultural and developmental influences on body dissatisfaction and disordered eating attitudes and behaviors of Asian women. J Nerv Ment Dis 2003; 191(5): 309-18. https://doi.org/10.1097/01.NMD.0000066153.64331.10
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. Estudos indicam que a preferência por silhuetas maiores observadas entre mulheres mais velhas pertencentes às populações tradicionais do Pacífico não é mais recorrente entre as mulheres mais jovens, que, por sua vez, priorizam um corpo mais esbelto99. Craig PL, Swinburn BA, Matenga-Smith T, Matangi H, Vaughn G. Do Polynesians still believe that big is beautiful? Comparison of body size perceptions and preferences of Cook Islands, Maori and Australians. N Z Med J 1996; 109(1023): 200-3.,1010. Craig P, Halavatau V, Comino E, Caterson I. Perception of body size in the Tongan community: differences from and similarities to an Australian sample. Int J Obes Relat Metab Disord 1999; 23(12): 1288-94. https://doi.org/10.1038/sj.ijo.0801069
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. É possível que a inserção da cultura ocidental, pelos aparatos de comunicação, esteja provocando transformações socioculturais quanto à percepção e satisfação com o perfil corporal, haja vista que a autoimagem está em constante processo de transformação, sendo tecida pelas relações com o mundo que a circunda3434. Tsai G, Curbow B, Heinberg L. Sociocultural and developmental influences on body dissatisfaction and disordered eating attitudes and behaviors of Asian women. J Nerv Ment Dis 2003; 191(5): 309-18. https://doi.org/10.1097/01.NMD.0000066153.64331.10
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Uma pesquisa que comparou a IC de dois grupos de adolescentes do sexo feminino, indígenas fijianas e australianas entre 13 e 18 anos de idade, revelou em ambos os grupos preferência por magreza, insatisfação com o peso e preocupações associadas com o ganho de peso. Apesar disso, as meninas fiji valorizavam o corpo musculoso por sua funcionalidade física, enquanto as australianas, por seu apelo estético. Os autores associaram o aumento da insatisfação corporal e o desejo por uma silhueta mais fina à introdução da televisão entre as adolescentes indígenas fijianas88. Becker AE, Burwell RA, Gilman SE, Herzog DB, Hamburg P. Eating behaviours and attitudes following prolonged exposure to television among ethnic Fijian adolescent girls. Brit J Psychiatry 2002; 180: 509-14. https://doi.org/10.1192/bjp.180.6.509
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O presente estudo avaliou também a prevalência de insatisfação por magreza e por excesso de peso entre categorias de diferentes variáveis, com o objetivo de identificar possíveis diferenças entre grupos de indivíduos. Não foi detectada associação estatisticamente significante entre as variáveis independentes e a insatisfação por magreza, entretanto observou-se maior prevalência de insatisfação por excesso de peso entre indivíduos com obesidade central (RP ajustada = 2,76 e IC95% 1,10 - 6,92) e excesso de peso (RP ajustada = 2,77 e IC95% 1,19 - 6,47) segundo o IMC. Tais achados são importantes, pois podem ser indicativos de que tais condições já estejam afetando a qualidade de vida desses sujeitos nas atividades do cotidiano. É possível que a insatisfação por excesso de peso não seja pelo fator estético, mas sim pelo fator limitante da condição que o indivíduo se encontra. Essa é uma diferença entre grupos étnicos ligada aos motivos da insatisfação por excesso de peso referidos por populações distintas. Em geral, a insatisfação por excesso de peso em populações urbanas pode até mesmo influenciar no humor, ou no surgimento de crises e neuroses. Já em populações não ocidentais, incluindo indígenas, nem sempre tem relação com o fato de estar com excesso de peso3535. Ramberan K, Austin M, Nichols S. Ethnicity, body image perception and weight-related behaviour among adolescent females attending secondary school in Trinidad. West Indian Med J 2006; 55(6): 388-93. https://doi.org/10.1590/s0043-31442006000600004
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No presente estudo houve baixa concordância entre IC e EN. Apenas entre mulheres com 40 anos ou mais, observou-se concordância moderada entre as duas variáveis. Esses resultados sugerem que a autoimagem corporal, avaliada por meio da escala de silhuetas de Stunkard et al., apresentou pouca aplicabilidade como indicador do EN. Tais achados são diferentes daqueles encontrados por McElhone et al.3636. McElhone S, Kearney JM, Giachetti I, Zunft HJ, Martínez JA. Body image perception in relation to recent weight changes and strategies for weight loss in a nationally representative sample in the European Union. Public Health Nutr 1999; 2(1A): 143-51. https://doi.org/10.1017/s1368980099000191
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, em que se identificou forte associação do EN, avaliado por intermédio do IMC, com as figuras da IC correspondente à classificação proposta.

Os resultados de um estudo que avaliou 13.595 indivíduos de diferentes grupos étnicos da Colômbia revelaram que apenas 3,8% da população indígena adulta pesquisada superestima sua IC no que se refere ao EN segundo o IMC, 39% subestima a autoimagem, enquanto 57,2% apresenta concordância entre as duas variáveis3737. Rodríguez M, Gempeler J. Self-perception of body image and risk eating behaviors in Colombian indigenous people and afro-descendant population. In: Equilíbrio. Atas. Porto; 2012..

A não concordância entre autoimagem corporal real e EN entre os khisêdjê observada no presente estudo e a existência de concordância em estudos com populações ocidentais1414. Kakeshita IS, Almeida SS. Relação entre índice de massa corporal e a percepção da auto-imagem em universitários. Rev Saúde Pública 2006; 40(3): 497-504. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000300019
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podem estar associadas à identidade sociocultural, que é o balizador das concepções e dos valores individuais subjetivos da IC satisfatória em determinada sociedade. Dessa forma, é compreensível que a percepção da autoimagem corporal seja diferente quando se comparam grupos étnicos distintos.

CONCLUSÃO

Os resultados revelaram que, apesar da alta prevalência de excesso de peso, a satisfação com a IC foi elevada em ambos os sexos. Tais achados, aliados à baixa concordância observada entre EN e autoimagem real, sugerem que é possível que, entre os khisêdjê, o perfil corporal apreciado seja aquele com uma silhueta maior em comparação com o idealizado nas populações ocidentais. Além disso, a baixa concordância entre as duas variáveis sugere que a escala de silhuetas não é um instrumento apropriado para avaliação do EN de indígenas khisêdjê do PIX. Entretanto, tratando-se de populações indígenas, o próprio IMC como indicador do EN e dos pontos de corte utilizados para definição de excesso de peso/obesidade precisa ser alvo de investigações científicas para avaliar a sua adequação às populações tradicionais.

Os resultados enfatizam a importância de ações de vigilância e controle relacionados ao excesso de peso e obesidade, bem como a morbidades associadas a esses agravos.

AGRADECIMENTOS

Aos khisêdjê, que possibilitaram a realização deste estudo e nos acolheram com alegria e cordialidade, e a todos os profissionais do Projeto Xingu, que nos acolheram de forma especial.

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  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2010/52263-7

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2018
  • Revisado
    25 Mar 2019
  • Aceito
    03 Maio 2019
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