Monkeypox: o que estamos esperando para agir?

Alexandra Crispim Boing Maria Rita Donalísio Tânia Maria de Araújo Ana Paula Muraro Jesem Douglas Yamall Orellana Ethel Leonor Maciel Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)Sobre os autores

Em 07 de maio de 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi informada de um caso confirmado da Monkeypox, causada pelo vírus Monkeypox (MPXV), no Reino Unido, em um paciente que havia viajado para a Nigéria11 World Health Organization. Monkeypox – United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland [Internet]. 2022 [cited on Jul 22, 2022]. Available at: https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2022-DON381
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. Desde então, vários casos foram reportados por países onde a doença não é endêmica, registrando-se rápida disseminação: em 24 de julho de 2022, totalizaram 16 mil casos em 75 países22 World Health Organization. Enhance surveillance, public health measures for monkeypox: WHO [Internet]. 2022 [cited on Jul 24, 2022]. Available at: https://www.who.int/southeastasia/news/detail/24-07-2022-enhance-surveillance––public-health-measures-for-monkeypox––who#:~:text=Globally%2C%20over%2016000%20cases%20of,been%20reported%20from%2075%20countries.
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. A OMS, em 23 de julho de 2022, passou a considerar a doença como emergência de saúde pública de interesse internacional33 World Health Organization. Second meeting of the International Health Regulations (2005) (IHR) Emergency Committee regarding the multi-country outbreak of monkeypox [Internet]. 2022 [cited on Jul 23, 2022]. Available at: https://www.who.int/news/item/23-07-2022-second-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-(ihr)-emergency-committee-regarding-the-multi-country-outbreak-of-monkeypox
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A Monkeypox é uma zoonose endêmica nas Áfricas Central e Ocidental causada por um orthopoxvírus, até então, em grande parte, ignorada globalmente44 Titanji BK. Monkeypox-not doing enough is not a option. BMJ 2022; 378: o1631. https://doi.org/10.1136/bmj.o1631
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. Apesar de ainda ser chamada de Monkeypox, essa denominação não é adequada, uma vez que o macaco não é o seu principal reservatório. Assim, é urgente que a doença e o vírus tenham seus nomes reclassificados, evitando-se rótulos estigmatizantes e discriminatórios, bem como ações de extermínio animal sem efeito efetivo no combate à doença.

O número de casos da doença tem aumentado ao longo dos anos nas regiões endêmicas, com surtos em países não endêmicos a partir de 2003, relacionados a viagens e importações de animais55 Bunge EM, Hoet B, Chen L, Lienert F, Weidenthaler H, Baer LR, et al. The changing epidemiology of human monkeypox-A potential threat? A systematic review. PLoS Negl Trop Dis 2022;16 (2): e0010141. https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0010141
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. Geralmente, é uma doença autolimitada e sua taxa de letalidade varia de 1 a 10%, respectivamente, entre os dois clados: África Ocidental e Bacia do Congo-África Central66 World Health Organization. Multi-country monkeypox outbreak in non-endemic countries: update [Internet]. 2022 [cited on Jul 24, 2022]. Available at: https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2022-DON388
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. Embora tenha sido detectada semelhança da sequência genômica dos casos recentes de 2022 (Europa e Américas) com o clado da África Ocidental, mais de 40 mutações no genoma viral já foram notificadas, possivelmente relacionadas com aumento da transmissibilidade inter-humana77 Kumar N, Acharya A, Gendelman HE, Byrareddy SN. The 2022 outbreak and the pathobiology of the monkeypox virus. J Autoimmun 2022; 131: 102855. https://doi.org/10.1016/j.jaut.2022.102855
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. Desde 2017, as poucas mortes relatadas foram associadas a idade jovem e paciente imunodeprimido66 World Health Organization. Multi-country monkeypox outbreak in non-endemic countries: update [Internet]. 2022 [cited on Jul 24, 2022]. Available at: https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2022-DON388
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. Dados indicam que a transmissão de pessoa-pessoa se dá por meio de contato direto com lesões cutâneas, fluidos corporais, gotículas respiratórias, durante contato físico próximo, relações sexuais e aglomerações22 World Health Organization. Enhance surveillance, public health measures for monkeypox: WHO [Internet]. 2022 [cited on Jul 24, 2022]. Available at: https://www.who.int/southeastasia/news/detail/24-07-2022-enhance-surveillance––public-health-measures-for-monkeypox––who#:~:text=Globally%2C%20over%2016000%20cases%20of,been%20reported%20from%2075%20countries.
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. A transmissão também pode ocorrer mediante contato com animais, superfícies ou objetos de uso pessoal contaminados, como: vestuário, copos, pratos, talheres ou roupas de cama e banho22 World Health Organization. Enhance surveillance, public health measures for monkeypox: WHO [Internet]. 2022 [cited on Jul 24, 2022]. Available at: https://www.who.int/southeastasia/news/detail/24-07-2022-enhance-surveillance––public-health-measures-for-monkeypox––who#:~:text=Globally%2C%20over%2016000%20cases%20of,been%20reported%20from%2075%20countries.
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. Análise de uma série de casos diagnosticados entre abril e junho de 2022 em 16 países verificou que 98% das pessoas com infecções era homens que fazem sexo com outros homens (HSH) ou bissexuais, com idade mediana de 38 anos88 Thornhill JP, Barkati S, Walmsley S, Rockstroh J, Antinori A, Harrison LB, et al. Monkeypox virus infection in humans across 16 countries - April-June 2022. N Engl J Med 2022. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2207323
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. Características sistêmicas, como febre, letargia, mialgia, cefaleia e linfadenopatia, foram relatadas antes das erupções cutâneas, que ocorreram em 95% dos casos, e nenhuma morte foi relatada88 Thornhill JP, Barkati S, Walmsley S, Rockstroh J, Antinori A, Harrison LB, et al. Monkeypox virus infection in humans across 16 countries - April-June 2022. N Engl J Med 2022. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2207323
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. Entretanto, ainda existem lacunas de conhecimento com relação a transmissão, fatores de risco e características clínicas88 Thornhill JP, Barkati S, Walmsley S, Rockstroh J, Antinori A, Harrison LB, et al. Monkeypox virus infection in humans across 16 countries - April-June 2022. N Engl J Med 2022. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2207323
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O primeiro caso importado no Brasil foi confirmado em 09 de junho de 2022. Em pouco mais de um mês, 25 de julho, já havia 813 casos confirmados e transmissão comunitária registrada no país99 Brasil. Ministério da Saúde. Informe diário de Monkeypox. no 07-25/07/2022, SE30. Situação Epidemiológica no Brasil. Distribuição dos casos confirmados de Monkeypox no Brasil até 25 de julho, 12h [Internet]. 2022 [cited on Jul 26, 2022]. Available at: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svs/resposta-a-emergencias/sala-de-situacao-de-saude/sala-de-situacao-de-monkeypox/atualizacao-dos-casos-no-brasil/card-situacao-epidemiologica-de-monkeypox-no-brasil-ndeg-7-se-30-25-07-22/view
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. Essa escalada de casos ocorre em meio a um cenário em que o país convive com a pandemia de COVID-19. Esse contexto continua sendo um significativo desafio sanitário que afirma a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), ao mesmo tempo em que demonstra a fragilidade do país em enfrentar uma emergência sanitária.

Entretanto, a negligência e a lentidão para a resposta ao enfrentamento da doença são preocupantes. Há falta de estrutura laboratorial para diagnóstico rápido de Monkeypox, verifica-se desestruturação dos serviços de vigilância, que apresentam baixa capacidade de identificação de casos e dificuldades de isolamento de contatos em tempo oportuno. Somam-se a isso as limitações de se estabelecer um sistema de informação em saúde transparente, ágil e apto para registrar e disseminar dados em tempo real, limitadas ações de capacitação aos trabalhadores de saúde e insuficientes iniciativas de comunicação adequada para a população e de combate ao estigma. Ações rápidas e coordenadas são urgentes e imprescindíveis.

Diante desse cenário, são necessários esforços para:

  • Definição de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas na rede de atenção à saúde;

  • Implementação de um sistema de informação unificado para registro dos casos confirmados e suspeitos, considerando-se aspectos clínicos, epidemiológicos e sociodemográficos, garantindo a transparência da informação em saúde para a população e profissionais de saúde, como também a sua descentralização para os três entes federados;

  • Ampliação de recursos para estruturação, qualificação e descentralização dos serviços de vigilância epidemiológica e laboratorial. A investigação de casos e o rastreamento de contatos são essenciais para prestar o atendimento clínico necessário, isolar os casos (para interromper a transmissão) e monitorar contatos. Apesar do aumento da capacidade de diagnóstico durante a pandemia de COVID-19, o diagnóstico laboratorial do Monkeypox é realizado em apenas quatro laboratórios de referência na Região Sudeste, o que dificulta a identificação dos casos em tempo oportuno, sobretudo em localidades historicamente negligenciadas, como a vasta Amazônia Brasileira;

  • Investimento em vigilância genômica do MPXV e integração com vigilância epidemiológica. Aumentar e articular parcerias para organizar de forma sistemática a vigilância genômica do orthopoxvírus no país;

  • Treinamento e formação de profissionais de saúde sobre o perfil epidemiológico e clínico da doença, bem como estabelecimento de dispositivos de acompanhamento das evidências científicas;

  • Campanhas e ações, junto à população, de comunicação de risco em saúde sobre a doença, os sinais, os sintomas, as medidas preventivas e o combate ao estigma, pensadas e organizadas com participação ativa das comunidades. Incorporação dessas ações destinadas ao público sob maior risco nesse estágio inicial de disseminação da doença, baseando-se as ações em direitos e evidências científicas que evitem a estigmatização;

  • Monitoramento, planejamento e avaliação contínuos das medidas de prevenção, da incorporação de vacinas e de medicamentos existentes, do seu uso e da definição de grupos prioritários, além de planejamento de ações no âmbito populacional;

  • Proatividade do Ministério da Saúde para aprovação e aquisição de medicamento e vacinas e/ou investimentos na produção nacional do imunobiológico; e

  • Investimento em pesquisa para o diagnóstico epidemiológico, o monitoramento e a avaliação dos impactos sociais.

Ainda que inicialmente a doença seja branda em pacientes saudáveis e o risco de complicações seja maior em crianças, grávidas e pacientes imunodeprimidos, este cenário de ausência de medidas coordenadas e planejadas é muito preocupante em um país marcado por desigualdades sociais. O Brasil, imerso em uma crise sanitária, econômica e política, mantém os mesmos equívocos na gestão dessa nova emergência sanitária — os mesmos equívocos que produziram dramáticos impactos na saúde da população brasileira e resultaram em centenas de milhares de óbitos evitáveis associados à COVID-19.

Importante pontuar que, assim como no enfrentamento da COVID-19, há desigualdade de distribuição de medicamentos e vacinas já aprovados e administrados em países da Europa e nos Estados Unidos, enquanto regiões em desenvolvimento sofrem sem a possibilidade de acesso a esses recursos. Dessa forma, para além das desigualdades restritas ao âmbito nacional, também se agregam as internacionais.

São urgentes medidas para o adequado enfrentamento dessa emergência sanitária, com coordenação de agências multilaterais, como a OMS, para que todos os países com casos de transmissão comunitária possam estar aptos para responder a mais essa emergência. As lições da pandemia de COVID-19 não podem ser negligenciadas, tampouco devem ser cometidos os mesmos erros, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Garantir o acesso igualitário aos recursos disponíveis para o enfrentamento da doença é indispensável diante de mais uma emergência de saúde pública de doença transmissível.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO: nenhuma.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2022
  • Aceito
    28 Jul 2022
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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