Cadastro na Atenção Primária e mortalidade por COVID-19: coorte de diabéticos de cinco regiões administrativas de saúde do município do Rio de Janeiro, 2020–2021

Jéssica Chagas de Almeida Natalia Santana Paiva Gerusa Gibson Leonardo Soares Bastos Roberto de Andrade Medronho Katia Vergetti Bloch Sobre os autores

RESUMO

Objetivo:

O presente estudo realizou uma análise de sobrevivência segundo situação de cadastro na Atenção Primária à Saúde (APS) e de fatores associados ao óbito por COVID-19, nos casos residentes da Área Programática 3.1 (AP3.1) com diagnóstico de diabetes (na ficha de notificação ou no prontuário eletrônico) do município do Rio de Janeiro, em 2020–2021.

Métodos:

Foi realizado relacionamento probabilístico de bases de dados com base nas informações dos casos notificados por COVID-19 e dos dados de prontuário eletrônico de pessoas que vivem com diabetes. Conduziu-se uma análise de sobrevivência, utilizando-se o modelo de regressão de Cox estratificado por faixa etária e ajustando-se por variáveis confundidoras.

Resultados:

Verificou-se que indivíduos cadastrados na APS da AP3.1 possuíam risco quase duas vezes maior de óbito por COVID-19 (hazard ratio ajustada — HRaj=1,91) quando comparados aos não cadastrados na APS da AP3.1. Essa associação foi mais forte naqueles com 18 a 59 anos, cadastrados na APS (HRaj=2,82), do que nos de 60 anos ou mais (HRaj=1,56).

Conclusão:

Estratégias de vigilância para a identificação e acompanhamento adequado de grupos de maior risco de mortalidade, dentre indivíduos que vivem com DM, no âmbito da APS podem contribuir para a redução da mortalidade em decorrência da COVID-19.

Palavras-chave:
COVID-19; SARS-CoV-2; Diabetes mellitus; Doenças crônicas não transmissíveis; Atenção primária à saúde; Vigilância em saúde

INTRODUÇÃO

A COVID-19 (Coronavirus Infectious Disease 2019) é uma doença infecciosa, transmitida de pessoa a pessoa e de rápida disseminação, com elevado potencial de levar ao óbito. A partir de 2020 o vírus SARS-CoV-2 foi responsável pelo aumento de casos de Síndrome Gripal (SG) por COVID-19 e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por COVID-19. Considerada uma emergência de saúde pública global até 5 de maio de 2023, esta doença pode apresentar manifestações clínicas de leves a moderadas (SG por COVID-19), que podem ser conduzidas no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS), até casos graves e críticos (SRAG por COVID-19), que provavelmente necessitarão de hospitalização e suporte ventilatório11. Galvão MHR, Roncalli AG. Fatores associados a maior risco de ocorrência de óbito por COVID-19: análise de sobrevivência com base em casos confirmados. Rev Bras Epidemiol 2021; 23: E200106. https://doi.org/10.1590/1980-549720200106
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,22. Almeida-Pititto B, Dualib PM, Zajdenverg L, Dantas JR, Souza FD, Rodacki M, et al. Severity and mortality of COVID 19 in patients with diabetes, hypertension and cardiovascular disease: a meta-analysis. Diabetol Metab Syndr 2020;12:75. https://doi.org/10.1186/s13098-020-00586-4
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. Comorbidades como doenças cardiovasculares, diabetes mellitus (DM), doenças respiratórias, entre outras, contribuem como fatores de risco de óbito por COVID-1911. Galvão MHR, Roncalli AG. Fatores associados a maior risco de ocorrência de óbito por COVID-19: análise de sobrevivência com base em casos confirmados. Rev Bras Epidemiol 2021; 23: E200106. https://doi.org/10.1590/1980-549720200106
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,33. Ojo O, Wang XH, Ojo OO, Orjih E, Pavithran N, Adegboye ARA, et al. The effects of COVID-19 lockdown on glycaemic control and lipid profile in patients with type 2 diabetes: a systematic review and meta-analysis. Int J Environ Res Public Health 2022; 19(3): 1095. https://doi.org/10.3390/ijerph19031095
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,44. De Negri F, Galiezz R, Miranda P, Koeller P, Zucoloto G, Costa J, et al. Socioeconomic factors and the probability of death by Covid-19 in Brazil. J Public Health (Oxf) 2021; 43(3): 493-8. https://doi.org/10.1093/pubmed/fdaa279
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5. Ranzani OT, Bastos LSL, Gelli JGM, Marchesi JF, Baião F, Hamacher S, et al. Characterisation of the first 250 000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data. Lancet Respir Med 2021; 9(4): 407-18. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9
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-66. Pepera G, Tribali MS, Batalik L, Petrov I, Papathanasiou J. Epidemiology, risk factors and prognosis of cardiovascular disease in the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) pandemic era: a systematic. Rev Cardiovasc Med 2022; 23(1): 28. https://doi.org/10.31083/j.rcm2301028
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.

Desde o início da pandemia de COVID-19 até a semana epidemiológica (SE) 17 de 2023, foram registrados 6 milhões de óbitos por COVID-19 no mundo. O Brasil ocupa a quinta colocação, com 700 mil mortes por COVID-19. O município do Rio de Janeiro (MRJ), até a SE 17 de 2023, notificou 1.327.889 casos de COVID-19, dos quais 38.225 foram casos de óbito por COVID-1977. Brasil. Ministério da Saúde. COVID-19: painel coronavirus [Internet]. Atualizado 2023 [cited on Apr. 29, 2023]. Available at: https://covid.saude.gov.br/
https://covid.saude.gov.br/...
,88. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Observatório Epidemiológico do Rio de Janeiro. Painel Rio COVID-19. Vacinação contra COVID-19 [Internet]. [cited on Apr. 29, 2023]. Available at: https://epirio.svs.rio.br/painel/painel-rio-covid-19/
https://epirio.svs.rio.br/painel/painel-...
.

Partindo da hipótese que indivíduos que vivem com DM, cadastrados na APS, podem apresentar menor risco de óbito por COVID-19 quando comparados com indivíduos não cadastrados, o objetivo do presente estudo foi realizar uma análise de sobrevivência e fatores associados ao óbito por COVID-19 segundo situação de cadastro na APS, nos casos residentes da Área Programática 3.1 (AP3.1) notificados por COVID-19 com diagnóstico de diabetes (na ficha de notificação ou no prontuário eletrônico), do MRJ.

MÉTODOS

Delineamento e população do estudo

Coorte retrospectiva de casos incidentes de COVID-19, em residentes da AP3.1 do MRJ com 18 anos ou mais e que vivem com diabetes, com data de início de sintomas no período entre 1o de março de 2020 e 31 de março de 2021.

Critérios de inclusão e exclusão

Inclusão: data de início dos sintomas a partir de 1o de março de 2020; indivíduos com 18 anos ou mais; residentes da AP3.1 e que vivem com DM.

Exclusão: data de início dos sintomas não preenchida; data do óbito não preenchida; categorias de variáveis cujas frequências foram menores que 5% (por exemplo: raça amarela/indígena).

Local de estudo

O estudo foi realizado na AP3.1, que compreende uma das dez AP do MRJ. A AP3.1 apresenta um território de 86 km2 aproximadamente, com população estimada de 871.024 habitantes (hab.)99. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Coordenação de Atenção Primária. Território da AP 3.1. População da área de planejamento 3.1 [Internet]. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde; 2017 [cited on Jan. 20, 2022]. Available at: http://cap31.blogspot.com/p/demografia.html
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. Na AP3.1, aproximadamente 40% da população vive em áreas de favela. Seu território abriga alguns dos maiores complexos de favelas do MRJ: Complexo da Maré (64.094 hab.), Complexo do Alemão (63.484 hab.), Complexo da Penha/ Vila Cruzeiro (36.862 hab.), Vigário Geral/Parada de Lucas (20.570 hab.)1010. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública. Regiões administrativas do Rio de Janeiro [Internet]. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Governo; 2018 [cited on Jan. 20, 2022]. Available at: https://www.rio.rj.gov.br/web/cvl/ra
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. O território possui seis regiões administrativas (RA) e 28 bairros, com 42 equipamentos de saúde, sendo: 14 centros municipais de saúde, 18 clínicas da família, duas policlínicas e oito hospitais1010. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública. Regiões administrativas do Rio de Janeiro [Internet]. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Governo; 2018 [cited on Jan. 20, 2022]. Available at: https://www.rio.rj.gov.br/web/cvl/ra
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, para atender uma população que, em sua grande maioria, reside em áreas vulneráveis.

Variáveis e fontes de dados

Os dados de notificação de casos de COVID-19 ocorridos entre março de 2020 e março de 2021, inseridos nos sistemas e-SUS Notifica e/ou Sistema de Informação e Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), foram solicitados à Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. Os dados de usuários cadastrados nos prontuários eletrônicos dos pacientes (PEP) até maio de 2018 na APS com diagnóstico de DM em unidades da AP3.1 foram solicitados à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.

A variável tempo (em dias), considerada como desfecho, foi definida como o período entre a data de início de sintomas de COVID-19 e a evolução do caso (óbito por COVID-19, cura/em tratamento). Para a análise de sobrevida, definiu-se óbito como o evento e o “não óbito” (cura/em tratamento)como censura.

Considerou-se o cadastro na APS como exposição, e as seguintes covariáveis foram incorporadas ao modelo de regressão para controlar confundimento: sexo — feminino, masculino; raça/cor — branca, negra (preta + parda); cadastrado na APS — não, sim; comorbidades (doenças cardíacas, doenças respiratórias, doença renal) e sintomas (febre, dispneia) — não, sim.

Relacionamento das bases de dados

Com a finalidade de identificar os indivíduos cadastrados na APS da AP3.1 que vivem com DM, foi realizado o relacionamento probabilístico (Record Linkage — RL) entre a base de dados do prontuário eletrônico das pessoas que vivem com DM na APS da AP3.1 e a base de dados dos casos notificados por COVID-19 que viviam com DM, em todo estado do Rio de Janeiro, entre 1o de março de 2020 e 31 de março de 2021.

Primeiramente, as bases de dados passaram pela etapa de padronização, com a retirada de registros equivocados e de caracteres (acentos, cedilhas etc.) presentes nas chaves principais, como “nome” e “data de nascimento”, por exemplo, que pudessem interferir no processo do relacionamento probabilístico. Posteriormente, passaram pela etapa de blocagem, que divide as bases em blocos lógicos e comparáveis entre si a fim de otimizar RL.

É nessa etapa que se realiza o Soundex do nome do paciente e/ou da mãe, criando blocos de comparação com a variável data de nascimento, o primeiro nome do paciente e/ou o primeiro nome da mãe. O relacionamento dos registros baseia-se na construção de escores para os diferentes pares possíveis e pareamento dos registros1111. Jaro MA. Advances in record-linkage methodology as applied to matching the 1985 census of Tampa, Florida. J Am Stat Assoc 1989; 84(406): 414-20. https://doi.org/10.2307/2289924
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. Isto por meio dos pacotes RL1212. Sariyar M, Borg A. RecordLinkage: record linkage functions for linking and deduplicating data sets. R package version 0.4-12.1. The R Journal 2010; 2(2): 61-7. https://doi.org/10.32614/RJ-2010-017
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, SoundexBR1313. Marcelino D. SoundexBR: Phonetic-coding for Portuguese. R package version 1.2 [Internet]. 2015 [cited on Feb. 28, 2021]. Available at: http://CRAN.R-project.org/package=SoundexBR
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e outros pacotes auxiliares do software livre R.

Análise estatística

Realizou-se análise dos dados sociodemográficas e clínicos dos casos de COVID-19, estratificando-se por faixa etária (de 18 a 59 anos e 60 anos ou mais), para caracterizar a população do estudo por meio da distribuição de frequências segundo cadastro na APS. As diferenças das proporções de cada grupo foram comparadas utilizando-se o teste χ2. O nível de significância adotado foi de 5%.

A seguir, foi realizada a análise de sobrevivência com o uso do estimador produto-limite de Kaplan-Meier1414. Kaplan EL, Meier P. Nonparametric estimation from incomplete observations. J Am Stat Assoc 1958; 53(282): 457-81. https://doi.org/10.1080/01621459.1958.10501452
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no cálculo das curvas de sobrevivência para a exposição estratificada por faixa etária e o teste log-rank na comparação delas, com a finalidade de testar a hipótese nula de que o risco de óbito por COVID-19 seja o mesmo para todos os grupos e esses riscos sejam proporcionais. Foi utilizado o nível de significância de 5%.

A razão de risco (hazard ratio — HR), bruta e ajustada, junto com seus intervalos de confiança de 95% (IC95%), para todos os indivíduos e por faixa etária, foram estimadas por meio do modelo de regressão de Cox simples e múltiplo, respectivamente. As variáveis estatisticamente significativas do modelo de regressão mais simples, ao nível de 20%, foram incluídas no modelo múltiplo. Características que alteravam o HR em pelo menos 10% foram consideradas confundidoras. A modificação de efeito foi avaliada pela significância estatística do termo de interação incluído no modelo. O ajuste do modelo (análise de deviance) foi realizado por meio da razão de verossimilhança do modelo proposto em relação ao modelo saturado.

As análises foram realizadas no software R Development Team1515. The R Project for statistical computing: Core Team. 2020. R: a language and environment for statistical computing [Internet]. Vienna: The R Foundation; 2019 [cited on Feb. 27, 2021]. Available at: https://www.R-project.org/
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, versão 4.0.3.

Aspectos éticos

O estudo recebeu aprovação (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética — CAAE 39769220.6.0000.5286) pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e pelo CEP da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro (SMS/RJ) (CAAE 39769220.6.3001.5279). Além disso, recebeu o consentimento da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES /RJ) (processo SEI-080001/005459/2021) para a dispensação dos dados.

RESULTADOS

Quanto ao processo de RL, ao final da terceira etapa (relacionamento dos registros) foram encontrados 369 verdadeiros pares (links) e 5.831 possíveis verdadeiros pares (possibility of link). Após a verificação manual, foram classificados 143 casos como verdadeiros pares. Ao realizar o “merge” das bases de dados, foram obtidos 512 casos de COVID-19 cadastrados na APS (até maio de 2018) do total de 2.777 indivíduos que vivem com DM, residentes da AP3.1, notificados para COVID-19. A estruturação da base de dados, após o RL, aplicando os critérios de exclusão do estudo, resultou na amostra de 2.074 casos de COVID-19 em pessoas que vivem com DM na AP3.1, sendo 533 óbitos por COVID-19 (evento) e 1.541 censuras (cura ou em tratamento). Esses passos estão detalhados no diagrama da Figura 1 (vide material suplementar).

Figura 1.
Diagrama de sobrevida.

A Tabela 1 apresenta informações dos casos de COVID-19 que vivem com DM, estratificados por faixa etária (de 18 a 59 anos e 60 anos ou mais). Observa-se que 43,6% dos cadastrados foram ao óbito por COVID-19. O sexo feminino foi predominante entre ambas as faixas etárias independentemente da situação cadastral. Na faixa etária de 60 anos ou mais, identificou-se o maior quantitativo de pessoas cadastradas e maior percentual de óbito por COVID-19 em comparação com a faixa etária de 18 a 59 anos.

Tabela 1
Características sociodemográficas e clínicas de COVID-19 em pessoas que vivem com diabetes mellitus residentes da Área Programática 3.1 confirmados para COVID-19 segundo cadastro na Atenção Primária à Saúde e faixa etária, março de 2020 a março de 2021, município do Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Observa-se que cadastrados na APS desenvolveram a forma mais grave da doença (SRAG por COVID-19), sendo o percentual de casos entre os idosos (60 anos ou mais) mais elevado. As doenças cardiovasculares, assim como as renais, foram mais presentes nos indivíduos com 60 anos ou mais, sendo 70,5% entre os cadastrados na APS. A doença respiratória, a raça/cor, o número de comorbidades e a febre não apresentaram associação com significância estatística (p<0,05).

A curva de Kaplan-Meier (KM) segundo situação de cadastro na APS é apresentada na Figura 2 (vide curvas KM para as variáveis sociodemográficas e fatores de risco no Material Suplementar). As probabilidades de sobrevivência (em dias) dos casos de COVID-19 segundo cadastro na APS, independentemente da faixa etária, é maior entre os indivíduos não cadastrados. Analisadas as curvas KM segundo a situação de cadastro na APS por faixa etária, observa-se que indivíduos não cadastrados de 60 anos ou mais apresentam maior probabilidade de sobrevivência em comparação com indivíduos não cadastrados de 18 a 59 anos. Em relação aos cadastrados, indivíduos com 60 anos ou mais apresentam probabilidade de sobrevivência menor em comparação com indivíduos da faixa etária de 18 a 59 anos.

Figura 2.
Curva de sobrevivência, estimada pelo método Kaplan-Meier, dos casos de COVID-19 em pessoas com 18 anos ou mais que vivem com diabetes mellitus segundo situação de cadastro na Atenção Primária à Saúde e faixa etária, residentes da AP3.1 do município do Rio de Janeiro, de março de 2020 a março de2021.

Das covariáveis estudadas, entraram no modelo múltiplo final o cadastro na APS, desfecho de interesse e, como variáveis de ajuste, as seguintes covariáveis: sexo, cor, doenças cardíacas, doenças renais, doenças respiratórias, febre e dispneia (Tabela 2). Destaca-se nos modelos (simples e ajustados) que indivíduos cadastrados apresentam duas vezes mais risco de óbitos por COVID-19 em comparação aos não cadastrados. Quanto ao risco entre as faixas etárias, observa-se que indivíduos cadastrados de 18 a 59 anos apresentaram um HR de óbito por COVID-19 em relação aos não cadastrados quase duas vezes maior do que o HR dos indivíduos de 60 anos ou mais no modelo simples. O HR de óbito por COVID-19 entre os cadastrados com de 18 a 59 anos permanece mais elevado do que os de 60 anos ou mais no modelo ajustado.

Tabela 2
Hazard ratio bruta (HRb) e ajustada* (HRaj) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% de mortalidade por COVID-19 em pessoas com 18 anos ou mais que vivem com diabetes mellitus segundo situação de cadastro na Atenção Primária à Saúde e faixa etária, residentes da Área Programática 3.1 do município do Rio de Janeiro, março de 2020 a março de 2021.

DISCUSSÃO

De março de 2020 a março de 2021 foram notificados 533 óbitos por COVID-19 entre pessoas que vivem com DM na AP3.1. Os resultados mostraram que indivíduos cadastrados na APS da AP3.1 possuem aproximadamente duas vezes mais risco de óbito por COVID-19 quando comparados com pessoas não cadastrados na APS. Um dos desafios durante o primeiro ano de pandemia de COVID-19 no MRJ1616. O’Dwyer G, Graever L, Britto FA, Menezes T, Konder MT. A crise financeira e a saúde: o caso do município do Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2019; 24: 4555-67. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.23212019
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17. Fernandes L, Ortega F. A Atenção Primária no Rio de Janeiro em tempos de Covid-19. Physis (Rio J.) 2020; 30(3): e300309. https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300309
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202030...
-1818. Lima ALS, Périsse ARS, Leandro B, Batistella CE, Araújo F, Santos JLMS, et al. Covid-19 nas favelas: cartografia das desigualdades. In: Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, eds. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021. p. 111-21 foi o contexto político, que contribuiu para a subutilização da APS e o baixo nível de testagem dos casos suspeitos, principalmente nas áreas mais vulneráveis.

O território da AP3.1 é composto de quatro dos principais complexos de favelas do MRJ, o que justifica a importância do acompanhamento de saúde (pelo menos uma consulta médica e uma consulta de enfermagem no período de um ano)1919. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde. Superintendência de Atenção Primária. Diabetes mellitus [Internet]. Rio de Janeiro: SMS; 2016 [cited on Apr. 05, 2023]. Available at: https://subpav.org/SAP/protocolos/arquivos/GUIAS_REFERENCIA/guia_de_referencia_rapida_-_diabetes_mellitus.pdf
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,2020. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica: diabetes mellitus [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited on Apr. 05, 2023]. Available at: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/cab36
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dos indivíduos que vivem com DM cadastrados na APS, com a finalidade de evitar um desequilíbrio e agudização do DM2121. Sanjuliani A, Torres M, Paula L, Bassan F. Eixo Renina-angiotensina-aldosterona: bases fisiológicas e fisiopatológicas. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto. 2011; 10(3): 20-30..

Quando infectado pelo SARS-CoV-2, o indivíduo que vive com DM pode evoluir para um quadro clínico desfavorável rapidamente, o que reduz o tempo de sobrevivência11. Galvão MHR, Roncalli AG. Fatores associados a maior risco de ocorrência de óbito por COVID-19: análise de sobrevivência com base em casos confirmados. Rev Bras Epidemiol 2021; 23: E200106. https://doi.org/10.1590/1980-549720200106
https://doi.org/10.1590/1980-54972020010...
,2222. Zeiser FA, Donida B, Costa CA, Ramos GO, Scherer JN, Barcellos NT, et al. First and second COVID-19 waves in Brazil: a cross-sectional study of patients’ characteristics related to hospitalization and in-hospital mortality. Lancet Reg Health Am 2022; 6: 100107. https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.100107
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23. Ganesh A, Randall MD. Does metformin affect outcomes in COVID-19 patients with new or pre-existing diabetes mellitus? A systematic review and meta-analysis. Br J Clin Pharmacol 2022; 88(6): 2642-56. https://doi.org/10.1111/bcp.15258
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-2424. Cefalu WT, Rodgers GP. COVID-19 and metabolic diseases: a heightened awareness of health inequities and a renewed focus for research priorities. Cell Metab 2021; 33(3): 473-8. Os cadastrados apresentaram menor sobrevivência quando comparados com os não cadastrados. Possivelmente os indivíduos não cadastrados na APS possuem mais acesso a serviço privado de saúde, principalmente durante a pandemia.

No presente estudo, raça/cor apresentou uma significância estatística limítrofe. Contudo, a raça tem sido um marcador de risco para os casos graves de COVID-192222. Zeiser FA, Donida B, Costa CA, Ramos GO, Scherer JN, Barcellos NT, et al. First and second COVID-19 waves in Brazil: a cross-sectional study of patients’ characteristics related to hospitalization and in-hospital mortality. Lancet Reg Health Am 2022; 6: 100107. https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.100107
https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.1001...
,2525. Instituto Brasileiro de Geografia E Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil [Internet]. [cited on Apr. 10, 2022]. Available at: https://www.ibge.gov.br/
https://www.ibge.gov.br/...
. Oriunda da urbanização discriminatória, parte significativa dos residentes das favelas é de negros, sem acompanhamento de saúde adequado das doenças preexistentes (como diabetes ou hipertensão), com baixo nível de escolaridade, sem suporte econômico do governo para usufruir de uma alimentação saudável, dificuldade de acesso a insumos e exames de alta qualidade2626. Observatório de Favelas. Mapa social do corona [Internet]. [cited on May 08, 2022]. Available at: https://observatoriodefavelas.org.br/acervo/mapa-social-do-corona/
https://observatoriodefavelas.org.br/ace...
. Pessoas que vivem em áreas vulneráveis possuem riscos elevados de desenvolverem doenças crônicas e de apresentarem desinformação sobre seu estado de saúde22. Almeida-Pititto B, Dualib PM, Zajdenverg L, Dantas JR, Souza FD, Rodacki M, et al. Severity and mortality of COVID 19 in patients with diabetes, hypertension and cardiovascular disease: a meta-analysis. Diabetol Metab Syndr 2020;12:75. https://doi.org/10.1186/s13098-020-00586-4
https://doi.org/10.1186/s13098-020-00586...
,44. De Negri F, Galiezz R, Miranda P, Koeller P, Zucoloto G, Costa J, et al. Socioeconomic factors and the probability of death by Covid-19 in Brazil. J Public Health (Oxf) 2021; 43(3): 493-8. https://doi.org/10.1093/pubmed/fdaa279
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. Observou-se um tempo mediano de 20 dias da admissão até o óbito e, após 65 dias de internação, a probabilidade de sobrevivência foi de 50%.

As doenças cardiovasculares (DCV) podem ser uma das complicações do diabetes e um fator de risco para o desenvolvimento dos casos graves e críticos da COVID-1966. Pepera G, Tribali MS, Batalik L, Petrov I, Papathanasiou J. Epidemiology, risk factors and prognosis of cardiovascular disease in the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) pandemic era: a systematic. Rev Cardiovasc Med 2022; 23(1): 28. https://doi.org/10.31083/j.rcm2301028
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. No presente estudo, aproximadamente 80% dos cadastrados evoluíram para SRAG por COVID-19 e 68% dos cadastrados viviam com alguma DCV, o que potencializa o risco de óbito, principalmente quando não há acompanhamento integral77. Brasil. Ministério da Saúde. COVID-19: painel coronavirus [Internet]. Atualizado 2023 [cited on Apr. 29, 2023]. Available at: https://covid.saude.gov.br/
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,88. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Observatório Epidemiológico do Rio de Janeiro. Painel Rio COVID-19. Vacinação contra COVID-19 [Internet]. [cited on Apr. 29, 2023]. Available at: https://epirio.svs.rio.br/painel/painel-rio-covid-19/
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do estado de saúde do usuário cadastrado.

Quando estratificamos o modelo por faixa etária, observamos que aqueles indivíduos de 18 a 59 anos apresentaram o dobro de risco de óbito por COVID-192727. Garces TS, Souza GJB, Cestari VRF, Florêncio RS, Damasceno LLV, Pereira MLD, et al. Diabetes como um fator associado ao óbito hospitalar por COVID-19 no Brasil, 2020. Epidemiol Serv Saúde 2022; 31(1): e2021869. https://doi.org/10.1590/S1679-49742022000100021
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202200...
,2828. Teixeira MG, Kerr LRFS, Ximenes RAA, Almeida RLF, Ichihara MY, Albuquerque MFM, et al. Fortalecer as atividades de informação e vigilância epidemiológica é essencial e urgente para reduzir a força de transmissão do SARS-CoV-2. Rev Bras Epidemiol. 2021; 24: E210049. https://doi.org/10.1590/1980-549720210049
https://doi.org/10.1590/1980-54972021004...
quando comparados com indivíduos de 60 anos ou mais. Observa-se que as diferenças entre os não cadastrados e os cadastrados quanto à ocorrência de fatores de risco e prognóstico é maior na faixa etária de 18 a 59 anos comparada com a de 60 anos ou mais (Tabela 1), fazendo com que o HR dos mais jovens seja mais elevado em comparação com os mais velhos. Isto pode se dar pelo perfil da população residente e cadastrada nas unidades da APS da AP3.12929. Redes da Maré. Direitos urbanos e socioambientais: censo Maré [Internet]. [cited on May 04, 2023]. Available at: https://www.redesdamare.org.br/br/info/12/censo-mare
https://www.redesdamare.org.br/br/info/1...
.

A ausência de informação dos cadastrados na APS da AP3.1, até março de 2021, constitui-se como um limitador do presente estudo. Em virtude da mudança de prontuário eletrônico, em todo o MRJ, no ano de 2018, algumas variáveis perderam a continuidade de coleta, acarretando a falta de informações importantes. Quanto ao processamento do linkage, foi necessário estabelecer um recorte para todas as pessoas notificadas por COVID-19 no estado do Rio de Janeiro, tendo o DM como comorbidade. Ou seja, se no momento do preenchimento da ficha de notificação não foi informada a condição crônica do usuário, o RL não conseguiu captar este caso.

O estudo apresentou informações relevantes para a coordenação de doenças crônicas não transmissíveis do MRJ e da AP3.1. Espera-se que sejam elaboradas estratégias de fortalecimento da linha de cuidado do DM, além do trabalho em conjunto com a Vigilância Epidemiológica, a fim de proporem ações integradas que visem mitigar a ocorrência de desfecho desfavorável.

Vê-se como essencial a identificação oportuna dos casos e a possível tomada de decisão que culmine no acompanhamento adequado2020. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica: diabetes mellitus [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited on Apr. 05, 2023]. Available at: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/cab36
http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblio...
,3030. Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012., voltando a responsabilidade para a APS de a promoção da integralidade do cuidado em toda a rede de atenção. Com isso, evitam-se a agudização da pessoa que vive com diabetes, o descontrole dos níveis glicêmicos, a evasão de consultas periódicas e o surgimento de outros fatores que possam levar ao óbito em uma eventual infecção por SARS-CoV-2.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos ao Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).

  • FONTE DE FINANCIAMENTO: nenhuma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2023
  • Revisado
    25 Maio 2023
  • Aceito
    30 Jun 2023
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revbrepi@usp.br