Testagem rápida de infecções sexualmente transmissíveis entre travestis e mulheres transexuais em situação de prisão na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil

Carlos Renato Alves-da-Silva Claudia Bonan Saint Clair dos Santos Gomes Junior Rosilene Santarone Vieira Sobre os autores

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a taxa de soropositividade dos testes rápidos para HIV, sífilis e hepatite B e C entre travestis e mulheres transexuais (transfemininas) privadas de liberdade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, analisando os resultados diante do perfil sociodemográfico, prisional e acesso às tecnologias de saúde para prevenir infecções sexualmente transmissíveis (IST).

Métodos:

Estudo transversal do tipo censitário realizado com transfemininas em 11 prisões do Rio de Janeiro, entre os meses de abril e junho de 2021.

Resultados:

As taxas de soropositividade encontradas foram de 34,4% para o HIV, 48,9% para sífilis e 0,8% para as hepatites do tipo B e C. A soropositividade para mais de uma infecção foi verificada em 25,4% das participantes, e HIV/sífilis foi a mais prevalente. O aumento no nível de escolarização (p=0,037), e possuir parceiro fixo na prisão (p=0,041) foram considerados fatores de proteção para as IST nessa população. Foram identificadas dificuldades no acesso às tecnologias de prevenção contra IST, como preservativo masculino, gel lubrificante, testes rápidos e terapias antirretrovirais profiláticas para o HIV.

Conclusão:

As taxas de soropositividade para o HIV e sífilis foram elevadas, mas no perfil encontrado nessa população em outros estudos dentro e fora das prisões. Os dados encontrados indicam a necessidade de incorporar estratégias efetivas para o acesso às tecnologias em saúde para a prevenção das IST. A escassez de publicações científicas contendo dados epidemiológicos sobre IST na população transfeminina em situação de prisão limitou a realização de comparações mais profundas dos resultados obtidos neste estudo.

Palavras-chave:
Pessoas transgênero; Prisões; Sífilis; Hepatite; Soropositividade para HIV

INTRODUÇÃO

Os espaços de aprisionamento, no Brasil, em sua maioria, são reportados pela superlotação carcerária, estrutura física inadequada, deficiências em recursos humanos e materiais especializados à assistência e à promoção à saúde, entre outras situações mencionadas em publicações que apontaram a potencialidade desses espaços como violadores dos direitos humanos11 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37(9): e00224920. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00224920
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,22 Rangel FM, Bicalho PPG. Superlotação das prisões brasileiras: operador político da racionalidade contemporânea. Estud Psicol (Natal) 2016; 21(4): 415-23. https://doi.org/10.5935/1678-4669.20160040
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A condição do aprisionamento de grupos específicos, como mulheres, idosos, indígenas, estrangeiros, pessoas com deficiências e de pessoas autodeclaradas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos (LGBTI), é marcada pela exacerbação dessas violações, diante do não cumprimento do dever de cuidados inerentes às vulnerabilidades estabelecidas por cada grupo específico, como definido em algumas normativas nacionais e internacionais33 Nota Técnica n° 9/2020/DIAMGE/CGCAP/DIRPP/DEPEN/MJ: custódia de pessoas LGBTI. Revista Brasileira Execução Penal 2021; 2(2): 267-91. https://doi.org/10.1234/rbep.v2i2.395
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55 Alamino FNP, Del Vecchio VA. Os princípios de Yogyakarta e a proteção de direitos fundamentais das minorias de orientação sexual e de identidade de gênero. R Fac Dir Univ São Paulo 2018; 113: 645-68. https://doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v113i0p645-668
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A vulnerabilização social entre pessoas da população LGBTI não se apresenta de forma homogênea. Observa-se que as travestis e mulheres transexuais, também definidas como pessoas transfemininas, compõem um grupo-alvo de maiores discriminações e violências, tanto pelas dificuldades vivenciadas nos estabelecimentos de ensino e pela falta de oportunidade no mercado de trabalho formal quanto pela sua própria existência, já que vivem no país que mais mata travestis e transexuais no mundo66 Benevides BG. Dossiê. Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022 [Internet]. Brasília: Associação Nacional de Travestis e Transexuais; 2023 [cited on Jul 20, 2023]. Available at: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf
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Alguns estudos mostram as condições de privação de liberdade das transfemininas, desvelando cenários de práticas transfóbicas e de violações aos direitos à cidadania e à saúde77 Ferreira GG. Violência, interseccionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas. Temporalis 2014; 14(27): 99-117. https://doi.org/10.22422/2238-1856.2014v14n27p99-117
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,88 Zamboni M. Travestis e transexuais privadas de liberdade: a (des) construção de um sujeito de direitos. REA 2016; 2: 15-23. dessas pessoas, como o respeito ao uso do nome social, a utilização de roupas e acessórios, de acordo com o seu gênero, a garantia de hormonização, o acesso e a continuidade de sua formação escolar, entre outros dispositivos descritos na Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT99 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 e nas legislações que dispõem sobre o tratamento dessas pessoas no sistema penitenciário brasileiro.

O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) recentemente publicou um levantamento populacional, referente ao segundo semestre de 2022, registrando que, no Brasil, havia 830 mil pessoas em privação de liberdade, porém, desse total, 650 mil estavam cumprindo suas penas criminais em unidades prisionais e o restante em prisão domiciliar. Esse censo também revelou que, em torno de 12.500 pessoas autodeclaradas LGBTI estavam aprisionadas em unidades prisionais brasileiras11 Sánchez A, Toledo CRS, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2021; 37(9): e00224920. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00224920
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, das quais aproximadamente 1.600 eram travestis e mulheres transexuais. A metodologia adotada nesse levantamento para quantificar essa população foi baseada no preenchimento de um questionário enviado pelo Depen aos órgãos de todas as unidades federativas responsáveis pelo sistema penitenciário.

A população carcerária no estado do Rio de Janeiro (ERJ), registrada nessa mesma publicação, revelou que em torno de 48 mil pessoas se encontravam nas prisões fluminenses, entre as quais 579 se autodeclararam LGBTI, sendo registradas 176 travestis e mulheres transexuais em privação de liberdade, ocupando o segundo lugar no ranking nacional, em número absoluto, no custodiamento da população transfeminina1010 Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Coordenação de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos. Informação n° 95/2022/COAMGE/CGCAP/DIRPP/DEPEN. Mapeamento Nacional da População LGBTI [Internet]. [cited on Jul 18, 2023]. Available at: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/populacao-carceraria/presos-lgbti/presos-lgbti-2022.pdf
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Um documento técnico, publicado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2020, contendo o diagnóstico nacional do tratamento penal dessa população no Brasil, revelou que o aprisionamento das transfemininas em nosso país ocorre, em sua grande maioria, em unidades prisionais destinadas a pessoas do gênero masculino e, em grande parte, por meio de uma desproporção alarmante, sendo elas minoria no total de pessoas aprisionadas1111 Brasil. Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Proteção Global. Departamento de Promoção dos Direitos de LGBT. LGBT nas prisões no Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento [Internet]. Brasília: Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos; 2020 [cited on Jul 18, 2023]. Available at: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf
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. Essas condições afetam drasticamente a saúde integral dessas pessoas, seja pelos possíveis danos psicológicos, seja pelos agravos provocados à sua saúde física.

O acesso e a qualidade em saúde, no sistema penitenciário brasileiro é um dos grandes desafios a serem enfrentados. A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde Penitenciária (Pnaisp) tem se apresentando como uma potente estratégia de gestão para sanar esses obstáculos em diversos estados brasileiros. Essa política tem por objetivo a garantia do acesso ao atendimento integral à saúde em nível de atenção primária às pessoas privadas de liberdade1212 Soares Filho MM. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP): um desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. In: Miranda AE, Rangel C, Costa-Moura R (orgs). Questões sobre a população prisional no Brasil: saúde, justiça e direitos humanos [Internet]. Vitória: UFES, Proex; 2016. p. 8-37.,1313 Bartos MSH. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional: uma reflexão sob a ótica da intersetorialidade. Ciênc Saúde Coletiva 2023; 28(4): 1131-8. https://doi.org/10.1590/1413-81232023284.08962022
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. A implantação da Pnaisp, no ERJ, intensificou-se, a partir de janeiro de 2022, com a adesão da capital fluminense, entretanto, no período de realização deste estudo, apenas quatro unidades, do total de 46 unidades prisionais com atendimento ambulatorial, possuíam equipes da Pnaisp1414 Prefeitura do Rio de Janeiro. Município do Rio de Janeiro avança na cobertura de saúde no sistema prisional [Internet]. 2023 [cited on Sep 18, 2023]. Available at: https://prefeitura.rio/saude/municipio-do-rio-avanca-na-cobertura-de-saude-no-sistema-prisional/
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A propagação das infecções sexualmente transmissíveis (IST) nos espaços prisionais é um dos problemas a serem combatidos pelas equipes de saúde penitenciária, diante de ambientes com condições propícias às práticas sexuais inseguras, como descrito em estudos nacionais e internacionais1515 Sousa KAA, Araújo TME, Teles AS, Rangel EML, Nery IS. Fatores associados à prevalência do vírus da imunodeficiência em população privada de liberdade. Rev Esc Enferm USP 2017; 51: e03274. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2016040903274
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1818 Singh GP, Lata S, Swu AK, Virk NS, Singh J, Thakkar S. A retrospective study to find prevalence of HIV, HCV and dual HIV-HCV infections in the prison inmates. J Family Med Prim Care 2022; 11(10): 6250-4. https://doi.org/10.4103/jfmpc.jfmpc_788_22
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. Contudo é necessário conhecer e analisar essa realidade com o intuito de promover ações eficazes e efetivas para a redução de riscos das IST, como estratégias combinadas, a fim de melhorar o acesso a preservativos, terapias profiláticas para o HIV, testagem rápida das IST regularmente a cada seis meses, entre outras ações recomendadas pelo Ministério da Saúde (MS)1919 Brasil. Ministério da Saúde. Guia prático para execução de testes rápidos DIAG/DCCI/SVS/MS [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2022 [cited on Jul 7, 2023]. Available at: https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/2022/guia_pratico_execucao_de_testes_rapidos-1.pdf
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Este estudo tem como objetivo avaliar a taxa de soropositividade isolada e combinada para HIV, sífilis e hepatites do tipo B e C, por meio da utilização dos testes rápidos entre as transfemininas privadas de liberdade, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e identificar potenciais fatores associados, considerando características sociodemográficas, condições prisionais e acesso às tecnologias de saúde para a prevenção de IST, como preservativo masculino, gel lubrificante e testes rápidos.

MÉTODOS

Delineamento do estudo

Trata-se de um estudo transversal de abordagem quantitativa na forma censitária, ou seja, envolvendo toda a população autodeclarada transfeminina adulta em privação de liberdade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Cenário

Onze unidades prisionais masculinas que detinham pessoas transfemininas no período do estudo, com suas respectivas localizações, população carcerária total, quantidade de transfemininas participantes e a relação percentual entre as participantes e a população carcerária total (Quadro 1). E clarece-se que, no período do estudo, não havia nenhuma transfeminina em situação de prisão em unidades prisionais femininas e que as unidades selecionadas são classificadas como neutras, nas quais ingressam as pessoas LGBTI no ERJ.

Quadro 1
Mapa da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e as unidades prisionais selecionadas com seus respectivos dados populacionais, 2021.

Participantes

Pessoas transfemininas privadas de liberdade foram selecionadas previamente, mediante consulta ao Sistema de Identificação Penitenciária (Sipen) da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap-RJ), base de dados nominal e atualizada diariamente, por meio de informações referentes à pessoa que ingressa no sistema penitenciário do ERJ. O acesso a essa base de dados foi possível, já que um dos pesquisadores é servidor público farmacêutico que ocupava o cargo de diretor da Divisão de Apoio à Saúde e Cidadania LGBTI da Seap (RJ). O estudo também adotou o método conhecido como “bola de neve”, para identificar possíveis transfemininas não inseridas no Sipen2020 Vinuto J. A amostragem em bola de neve em pesquisas qualitativas: um debate em aberto. Temáticas 2014; 22(44): 203-20. https://doi.10.20396/temáticas,v22i44.10977
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, quando a participante selecionada informava a existência de transfemininas não cadastradas nessa base de dados, sendo posteriormente convidadas a participarem da pesquisa. Foram incluídas todas as pessoas que se autodeclararam transfemininas, por meio de termos, como travesti, trava, mulher transexual, trans, transex, mulher ou qualquer referência à identidade transfeminina. Foram excluídas as transfemininas que estavam há menos de seis meses em situação de prisão, intervalo temporal recomendado pelo MS para a testagem rápida entre travestis e mulheres transexuais em situação de prisão1919 Brasil. Ministério da Saúde. Guia prático para execução de testes rápidos DIAG/DCCI/SVS/MS [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2022 [cited on Jul 7, 2023]. Available at: https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/2022/guia_pratico_execucao_de_testes_rapidos-1.pdf
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. Também foram excluídas as entrevistadas que não tinham registros em seus prontuários dos resultados dos testes rápidos nos últimos seis meses e se manifestaram contra a realização da testagem rápida após a entrevista.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada no período compreendido entre os meses de abril e junho de 2021, sendo utilizado um questionário estruturado contendo perguntas com respostas fechadas e selecionadas pessoas que se autodeclararam travestis ou mulheres transexuais. Essas informações permitiram descrever os perfis sociodemográfico e prisional, bem como o acesso às tecnologias de saúde utilizadas para a prevenção de IST: preservativo masculino, gel lubrificante e testagem rápida. Entretanto as variáveis relacionadas ao tempo de permanência e existência de visitantes cadastrados foram extraídas do Sipen, estratégia adotada para melhorar a exatidão dos dados. Os dados relativos aos resultados dos exames sorológicos para HIV, sífilis e hepatite B e C nos últimos seis meses, conforme orientação do MS, foram extraídos dos prontuários de saúde das entrevistadas. Quando não havia essas informações, era solicitada a realização dos testes rápidos pela equipe de saúde da unidade prisional, não sendo observada nenhuma situação de desabastecimento de testes rápidos, inacessibilidade aos prontuários de saúde ou recusa pelos profissionais de saúde à execução dos testes rápidos, sendo esses profissionais responsáveis pelo registro dos resultados nos prontuários de saúde, bem como na confirmação dos resultados, por meio de testes laboratoriais confirmatórios, conforme procedimentos operacionais padronizados estabelecidos para cada infecção. Os testes rápidos registrados nos prontuários e realizados após as entrevistas foram baseados na tecnologia de imunocromatografia, sendo utilizado sangue total da punção digital.

Todos os testes rápidos foram disponibilizados às unidades prisionais fluminenses, por meio da Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ) e pelas Secretarias municipais de Saúde das respectivas cidades onde estavam localizadas as unidades prisionais e que possuíam equipes de saúde contratadas pela Pnaisp.

Variáveis do estudo

As variáveis sociodemográficas analisadas foram: faixa etária em anos (de 18 a 29, de 30 a 39, acima de 40); raça/cor (branca, não branca); escolaridade (fundamental incompleto e completo, médio incompleto e completo, superior); orientação sexual (heterossexual, bissexual); atividade remunerada antes da prisão (não estava trabalhando, profissional do sexo, emprego formal ou outro informal); e uso de substâncias ilícitas antes da prisão (sim, não). As variáveis prisionais foram: tempo de permanência na prisão (até um ano, acima de um ano); proporção entre transfemininas e homens na mesma cela (de 1/1 até 1/10, acima de 1/10); parceiro fixo na prisão (sim, não); quantidades de parceiros na prisão (até um, acima de um); visitante cadastrado (sim, não); atividade laborativa na prisão (sim, não); escolarização na prisão (sim, não). As tecnologias em saúde foram: acesso a preservativo masculino (sim, não); acesso a gel lubrificante (sim, não); realização de testes rápidos nos últimos seis meses (sim, não); e positividade do teste rápido (sim, não). As variáveis analisadas foram consideradas fatores associados às IST, sendo algumas utilizadas em alguns estudos1515 Sousa KAA, Araújo TME, Teles AS, Rangel EML, Nery IS. Fatores associados à prevalência do vírus da imunodeficiência em população privada de liberdade. Rev Esc Enferm USP 2017; 51: e03274. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2016040903274
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,2121 Russoto Y, Micali C, Laganà N, Marino A, Campanella E, Celesia BM, et al. Diagnosis, treatment and prevention of HIV infections among detainees: a review of the literature. Healthcare (Basel) 2022; 10(12): 2380. https://doi:10.3390/healthcare10122380
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Análise de dados

Os dados coletados foram analisados, por meio do programa estatístico Jasp (Jeffrey's Amazing Statistics Program) versão 0.17.1.0, sendo avaliadas análises percentuais das variáveis sociodemográficas, prisionais e de acesso às tecnologias de saúde, bem como dos resultados para cada testagem rápida de IST avaliada. Foi criada a variável denominada “positividade em pelo menos um dos testes de IST”, para avaliar as associações com as variáveis sociodemográficas, condições prisionais e de acesso às tecnologias de saúde dicotomizadas para encontrar significância estatística. O teste de qui-quadrado foi aplicado em todas as análises, sendo adotado o nível de significância estatística de 5% (p<0,05).

Aspectos éticos

A pesquisa foi devidamente aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF-Fiocruz), sob o CAAE n° 36338520.2.0000.5269, autorizado pela Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pela Escola de Gestão Penitenciária da Seap-RJ, por meio do Processo SEI-21/087/000987/2019. Foram observadas todas as questões éticas e de segurança envolvidas em pesquisas com pessoas privadas de liberdade (PPL), incluindo a assinatura dos termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) por todas as participantes do estudo. Todas as entrevistadas com resultados positivos aos testes rápidos foram assistidas pelas equipes de saúde da unidade prisional, sendo inseridas nos protocolos clínicos institucionais para o tratamento de IST.

RESULTADOS

Foram identificadas 151 pessoas autodeclaradas transfemininas, entretanto 13 pessoas estavam a menos de seis meses em situação de prisão e sete não consentiram a realização dos testes rápidos para as IST analisadas neste estudo. A base de dados identificou 92 das transfemininas selecionadas (60,1%), as outras entrevistadas foram alcançadas pelo método bola de neve. O recrutamento das entrevistadas foi realizado em 11 unidades prisionais (Quadro 1), sendo constatado que quatro unidades prisionais possuíam equipes de saúde, por meio da implantação da Pnaisp, e cinco unidades prisionais estavam dotadas de escolas penitenciárias. Os dados relativos ao perfil sociodemográfico e prisional das entrevistadas foram coletados de uma amostra composta por 131 transfemininas (Tabela 1), demonstrando que 85 eram jovens adultas com idade inferior a 29 anos (64,9%), e, não diferentemente da população carcerária brasileira, a amostra foi composta 113 pretas e pardas (86,3%). A escolarização desvelada demonstrou que somente 25 entrevistadas conseguiram concluir o ensino médio (19,1%) e 65 não concluíram o ensino fundamental (49,6%). A maioria, ou seja, 123 transfemininas revelou ser heterossexual (93,9%). A prostituição foi a fonte de renda mais citada por 55 entre as entrevistadas (42,0%), e o uso de substâncias ilícitas antes do aprisionamento foi revelado por 106 transfemininas (80,9%). A situação dentro das prisões também revelou que 72 entrevistadas estavam a mais de um ano em situação de prisão (55,0%) e 111 se encontravam encarceradas com homens cisgênero e heterossexuais, em uma proporção superior a 1/10 (84,7%). Foi revelado que 109 das entrevistadas se relacionaram com dois ou mais parceiros ao longo de suas prisões (83,2%) e, no momento das entrevistas, 77 revelaram manter relacionamento fixo (58,8%). Entre as entrevistadas, 66 não possuíam visitantes cadastrados (50,4%) e poucas estavam inseridas, ou estiveram inseridas em práticas ressocializadoras, sendo registrado que 23 estavam trabalhando ou trabalharam nas prisões (17,6%) e somente 26 tiveram a oportunidade de ingressar nas escolas penitenciárias (19,8%).

Tabela 1
Características socioeconômicas e demográficas e prisionais das transfemininas em privação de liberdade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil, 2021.

Os resultados sobre o acesso pelas transfemininas a preservativo masculino, gel lubrificante e testagem rápida, para IST (Tabela 2) demonstraram que 29 tiveram dificuldades de acesso a preservativo masculino (22,1%) e 95 a gel lubrificante (72,5%). Foi constatado que 37 estavam em terapia antirretroviral (Tarv) para o HIV (28,2%), dessa forma, foram consultados 94 prontuários de saúde para avaliar a realização da testagem rápida (71,8%), em que foram encontrados registros de testagem para o HIV, nos prontuários de 41 entrevistadas (43,6%), entre os quais, três tiveram o registro de positividade para o teste rápido de HIV (2,3%). Entre as 53 que realizaram a testagem rápida após a entrevista, cinco tiveram seus resultados positivos para HIV (9,4%). O total desses resultados revelou que 45 das transfemininas tiveram resultados positivos para HIV (34,4%). No momento da entrevista, não se observou nenhuma em tratamento para sífilis, e o perfil de testagem para sífilis revelou que 56 transfemininas possuíam registros de realização de testagem nos últimos seis meses (42,8%). Os resultados do teste rápido para sífilis nos últimos seis meses da data da entrevista revelaram que 56 possuíam positividades para essa infecção (69,6%), enquanto 25 delas tiveram resultados positivos após a realização da entrevista (33,3%). Dessa forma, entre elas, foi verificado que 64 pessoas apresentaram positividade para sífilis (48,9%). O perfil de testagem para as hepatites do tipo B e C se mostrou idêntico para ambas as infecções, já que, ao longo deste estudo, foi verificado que duas entrevistadas já estavam fazendo tratamento para essas infecções, uma para hepatite B (0,8%) e uma para hepatite C (0,8%). Nenhuma positividade foi encontrada nos 55 prontuários com registro da realização de testagens para essas hepatites nos últimos seis meses (42,0%), como também nenhum resultado positivo nos 75 testes rápidos realizados após as entrevistas (57,2%). O perfil sorológico para IST por meio da testagem rápida nas entrevistadas revelou que 71 possuíam resultados positivos para, pelo menos, uma das quatro IST testadas neste estudo (54,2%). Entre essas 71 transfemininas, foi verificado que 19 apresentaram mais de um resultado positivo nos testes rápidos realizados (26,8%), em que a soropositividade combinada mais prevalente foi a HIV/sífilis, que totalizou 18 dos casos (94,7%). As associações realizadas entre os resultados dos testes rápidos e as características sociodemográficas, prisionais e do acesso de tecnologias em saúde utilizadas para a prevenção de IST (Tabela 3) demonstraram que, entre as 46 transfemininas com idade superior a 29 anos, 31 tiveram resultados positivos para IST (67,4%), em comparação às 85 com idade entre 18 e 29 anos, nas quais se verificaram 40 resultados positivos (47,1%); (p=0,026). Foram revelados 44 testes positivos para IST entre as 70 entrevistadas que cursaram apenas o ensino fundamental (62,8%), em comparação aos 27 resultados positivos entre as 61 que cursaram o ensino médio e superior (44,3%); (p=0,033). Das 54 que declararam não ter parceiro fixo, 35 tiveram mais resultados positivos para IST (64,8%), quando comparadas com os 36 resultados positivos entre as 77 que relataram possuir estabilidade afetiva (46,8%); (p=0,041).

Tabela 2
Acesso as tecnologias em saúde associadas as infecções sexualmente transmissíveis e resultados de testes rápidos entre as transfemininas em privação de liberdade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil, 2021.
Tabela 3
Associação entre os resultados da testagem rápida para infecções sexualmente transmissíveis e as características sociodemográficas, prisional e acesso as tecnologias em saúde entre transfemininas em privação de liberdade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil, 2021.

DISCUSSÃO

A observação de que mais da metade dos prontuários verificados não possuíam registros das testagens rápidas regulares para IST demonstrou a fragilidade da assistência à saúde ofertada para essa população. A taxa de detecção para HIV foi similar, quando comparada com outros estudos nacionais com essa população fora das prisões2222 Santos PMR, Santos KC, Magalhães LS, Oliveira BR, Carneiro MAS, Souza MM, et al. Travestis and transexual women: who are at higher risk for sexually transmitted infections? Rev Bras Epidemiol 2021; 24: e210017. https://doi.org/10.1590/1980-549720210017
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,2323 Bastos FI, Bastos LS, Coutinho C, Toledo L, Mota JC, Velasco-de-Castro CA, et al. HIV, HCV, HBV, and syphilis among transgender women from Brazil: assessing different methods to adjust infections rates of a hard-to-reach, sparse population. Medicine (Baltimore) 2018; 97(suppl 1): S16-S24. https://doi.org/10.1097/md.0000000000009447
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e com um estudo realizado no México2424 Colchero MA, Cortés-Ortiz MA, Romero-Martínez M, Vega H, González A, Román R, et al. HIV prevalence, sociodemographic characteristics, and sexual behaviors among transwomen in Mexico City. Salud Publica Mex 2015; 57 Suppl 2: s99-106. https://doi.org/10.21149/spm.v57s2.7596
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. A maioria das entrevistadas eram jovens, adultas, pretas ou pardas, com baixa escolarização, tendo a prostituição como sua principal fonte de renda antes do aprisionamento. Maior nível de escolarização, possuir um parceiro fixo na prisão e menor idade se mostraram fatores de proteção para as IST analisadas.

A ausência de registros de testagens rápidas nos prontuários pode ser traduzida pelas dificuldades no acesso aos serviços de saúde reportadas nos diversos estudos com população transfeminina, tanto pelo despreparo técnico dos profissionais de saúde que assistem essas pessoas quanto pelo próprio sistema penitenciário brasileiro, ambiente potencializador de violações aos direitos à saúde da população em privação de liberdade2525 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no Brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab Edu Saúde 2020; 18(1): e0023469. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00234
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,2626 Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad Saúde Pública 2019; 35(4): e00111318. https://doi.org/10.1590/0102-311X00111318
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.

A taxa de detecção para HIV, de 34,4%, encontrada neste estudo, foi semelhante à encontrada em 2012, na cidade do México2424 Colchero MA, Cortés-Ortiz MA, Romero-Martínez M, Vega H, González A, Román R, et al. HIV prevalence, sociodemographic characteristics, and sexual behaviors among transwomen in Mexico City. Salud Publica Mex 2015; 57 Suppl 2: s99-106. https://doi.org/10.21149/spm.v57s2.7596
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, onde 31,9% das transfemininas encarceradas tiveram resultados para o HIV positivo nos testes rápidos. Na revisão sistemática com metanálise publicada em 20182727 Wirtz AL, Yeh PT, Flath NL, Beyrer C, Dolan K. HIV and viral hepatitis among imprisoned key populations. Epidemiol Rev 2018; 40(1): 12-26. https://doi.org/10.1093/epirev/mxy003
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, que buscou estudos sobre IST entre populações-chave encarceradas, foram encontrados apenas dois artigos, um realizado nos Estados Unidos da América e o outro na Argentina, sinalizando a escassez de estudos com essa população no ambiente prisional, conforme já registrado em pesquisa publicada em 20192828 Rodrigues NG, Silva CH, Araújo IS. Visibilidade de pessoas trans na produção científica brasileira. Reciis 2019; 13(3): 658-70. https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1723
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. Os poucos dados epidemiológicos publicados sobre o HIV e a ausência desses para sífilis e hepatites B e C na população transfeminina nas prisões foram fatores limitantes para fins comparativos. O perfil sociodemográfico e prisional revelado demonstrou uma situação conhecida em relação às transfemininas em situação de prisão77 Ferreira GG. Violência, interseccionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas. Temporalis 2014; 14(27): 99-117. https://doi.org/10.22422/2238-1856.2014v14n27p99-117
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,2929 Nascimento FEM. Agrupamento de travestis e transexuais encarceradas no Ceará, Brasil. Rev Estud Fem 2020; 28(1): e57687. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n157687
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,3030 Sanzovo NM. O lugar das trans na prisão. Belo Horizonte: Editora D'Plácido; 2020., uma realidade composta por fatores associados à necropolítica trans, como a desvinculação familiar precoce, as dificuldades em permanecer nos ambientes escolares e acessar o mercado de trabalho, a prostituição nas ruas, cercada de drogas e furtos, condições facilitadoras para as levarem ao cárcere ou à morte no seu sentido mais amplo3131 Caravaca-Morera JA, Padilha MI. Necropolítica trans: diálogos sobre dispositivos de poder, morte e invisibilização na contemporaneidade. Texto & Contexto Enferm 2018; 27(2): e3770017. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003770017
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. As condições de encarceramento observadas neste estudo, em que as transfemininas dividem os espaços com homens cisgênero e heterossexuais, são comparáveis com a retratada em um estudo realizado no estado de São Paulo88 Zamboni M. Travestis e transexuais privadas de liberdade: a (des) construção de um sujeito de direitos. REA 2016; 2: 15-23. e no relatório nacional publicado em 2020, situações favoráveis às práticas sexuais motivadas por diversos fatores, tanto pelo favorecimento econômico quanto pelas relações afetivas1111 Brasil. Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Proteção Global. Departamento de Promoção dos Direitos de LGBT. LGBT nas prisões no Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento [Internet]. Brasília: Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos; 2020 [cited on Jul 18, 2023]. Available at: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf
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.

O abandono dessa população nas prisões ocorre em proporções semelhantes às mulheres cisgênero. Como informado no estudo realizado em 2019, em torno de 60% das mulheres encarceradas nas prisões brasileiras não recebiam visitas de familiares3232 Becker A, Spessote DV, Sardinha LS, Matos LGS, Chaves NN, Bicalho PPG. O cárcere e o abandono: prisão, penalização e relações de gênero. Rev Psicol Divers Saúde 2016; 5(2): 141-54. https://doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i2.1050
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. O abandono familiar entre as transfemininas se inicia, na maioria das vezes, antes da prisão, situação que as leva, muitas vezes, à prostituição, que, apesar de ser uma profissão reconhecida no Brasil, não pode ser o único destino para essas pessoas66 Benevides BG. Dossiê. Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022 [Internet]. Brasília: Associação Nacional de Travestis e Transexuais; 2023 [cited on Jul 20, 2023]. Available at: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf
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,3333 Garcia MRV. Prostituição e atividades ilícitas entre travestis de baixa renda. Cad Psicol Soc Trab 2008; 11(2): 241-56.,3434 Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação brasileira de ocupações [Internet]. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego; 2010 [cited on Jul 2, 2023]. Available at: https://portalfat.mte.gov.br/wp-content/uploads/2016/04/CBO2002_Liv3.pdf
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.

A escolarização foi considerada um fator de proteção para as IST, conforme demonstrado em outros estudos com população transfeminina fora das prisões3535 Ferreira ACG, Coelho LE, Jalil EM, Luz PM, Friedman RK, Guimarães MRC, et al. Transcendendo: a cohort study of HIV-infected and uninfected transgender women in Rio de Janeiro, Brazil. Transgend Health 2019; 4(1): 107-17. https://doi:10.1089/trgh.2018.0063
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, entretanto os fatores que apontaram menores taxas de detecção para essas infecções entre as transfemininas mais jovens e com parceiro fixo necessitam de outros estudos para fins de comparações e extrapolações. A recusa de 5,1% à realização dos testes rápidos de IST observada neste estudo foi superior ao encontrado em um estudo realizado em 2007 com mulheres cisgênero em situação de prisão em São Paulo, quando 3% delas não aceitaram participar das testagens3636 Strazza L, Massad E, Azevedo RS, Carvalho HB. Estudo de comportamento associado à infecção pelo HIV e HCV em detentas de um presídio de São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública 2007; 23(1): 197-205. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007000100021
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. É importante salientar que, muitas vezes, a recusa à realização dos testes rápidos para IST, principalmente para HIV, está relacionada diretamente ao medo de receber uma notícia difícil e ao estigma da repercussão desse resultado no interior da unidade prisional, seja entre as outras transfemininas pelo orgulho e o poder3737 Teixeira FB, Paulino DB, Raimondi GA, Crovato CAS, Prado MAM. Entre o segredo e as possibilidades do cuidado: (re)pensando os silêncios em torno das narrativas das travestis sobre HIV/Aids. Sex, Salud Soc (Rio J) 2018; 29: 373-88. https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.29.17.a
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, seja pela violência que pode ser perpetrada pelos seus parceiros sexuais. Dessa forma, é necessário que as equipes de saúde tenham estratégias para a abordagem adequada, avaliando as consequências psicológicas e relativas à integridade física diante da realização das testagens rápidas para IST no interior das prisões. Mais do que revelar dados epidemiológicos, é necessário entender dinâmicas sociais, conhecimentos, atitudes e práticas estabelecidas no interior das prisões brasileiras para adoção de medidas preventivas efetivas que visem mitigar a propagação de IST, que vulnerabiliza ainda mais as transfemininas, como avaliado na revisão sistemática publicada em 20193838 Brömdal A, Mullens AB, Phillips TM, Gow J. Experiences of transgender prisoners and their knowledge, attitudes, and practices regarding sexual behaviors and HIV/STIs: a systematic review. Int J Transgend 2019; 20(1): 4-20. https://doi.org/10.1080/15532739.2018.1538838
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. É fundamental que as equipes de saúde penitenciária possam adotar ações de prevenção combinada para o enfretamento desses agravos, por meio de campanhas educativas sobre medidas de prevenção e tratamento dessas infecções, testagem rápida regularmente e incorporação e promoção do acesso às tecnologias profiláticas para o risco das IST. E, sobretudo, que essas ações possam acolher as demandas específicas em saúde para essa população na realidade prisional.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO: Programa de Incentivo a Pesquisa (PIP) do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF-Fiocruz).

AGRADECIMENTOS:

Agradecemos o apoio dos profissionais de saúde da Pnaisp e da Seap-RJ, bem como dos diretores e policiais penais das unidades prisionais visitadas. Agradecimento a equipe da Gestão em Saúde e da Escola de Gestão Penitenciária, e em especial a policial penal Luciana de Souza Resende lotada na Divisão de Apoio à Saúde e Cidadania da População LGBTI da Seap, e a mulher transexual ativista Alessandra Ramos Makkeda (in memoriam).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2023
  • Revisado
    27 Set 2023
  • Aceito
    04 Out 2023
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