Sofrimento mental e o Sistema Único de Saúde

Taís Freire Galvão Sobre o autor

Neste primeiro número de 2023 da Epidemiologia e Serviços de Saúde: revista do SUS (RESS), seis contribuições relevantes em saúde mental são apresentadas ao público. Os desafios à construção de políticas de atenção em saúde mental e sofrimento relacionado ao trabalho são discutidos, trazendo luz ao cenário existente e perspectivas na área.11. Araújo TM, Torrenté MON. Saúde Mental no Brasil: desafios à construção de políticas e de monitoramento de seus determinantes. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2023005. doi: 10.1590/S2237-96222023000100028
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A saúde mental de trabalhadores da atenção primária foi investigada em inquérito realizado em Minas Gerais em 2021, com efeitos da sobrecarga de trabalho e transtornos prévios na ocorrência de adoecimento mental durante a pandemia de covid-19.22. Oliveira FES, Trezena S, Dias VO, Martelli Júnior H, Martelli DRB. Transtornos mentais comuns em profissionais da atenção primária à saúde no período de pandemia da COVID-19: estudo transversal na macrorregião norte de Minas Gerais, 2021. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022432. doi: 10.1590/S2237-96222023000100012
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Duas análises do Sistema de Informações Hospitalares observaram redução nas internações psiquiátricas no Sistema Único de Saúde (SUS) entre 2008 e 2021,33. Carvalho CN, Fortes S, Castro APB, Cortez-Escalante J, Rocha TAH. A pandemia da covid-19 e a morbidade hospitalar por transtorno mental e comportamental no Brasil: uma análise de série temporal interrompida, janeiro de 2008 a julho de 2021. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022547. doi: 10.1590/S2237-96222023000100016
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e internações devido ao uso de álcool entre 2010 e 2020,44. Oliveira RSC, Matias JC, Fernandes CAOR, Gavioli A, Marangoni SR, Assis FB. Internações por transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool no Brasil e regiões: análise de tendência temporal, 2010-2020. Epidemiol Serv Saude. 2023; 32(1):e20221266. doi: 10.1590/S2237-96222023000100005
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possivelmente refletindo efeitos da reforma psiquiátrica e sua luta antimanicomial, bem como consequências da pandemia na cadeia de cuidados. Um indicador extremo de sofrimento mental, o suicídio, foi avaliado com dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade, entre 1996 e 2018, e observou maior risco entre indivíduos do sexo masculino e idosos em Chapecó/SC, com identificação de regiões geográficas de maior risco a partir de análise espacial.55. Bando DH, Rodrigues LA, Biesek LL, Luchini Junior D, Barbato PR, Fonsêca GS, et al. Padrões espaciais e caracterização epidemiológica dos suicídios na microrregião de Chapecó, Santa Catarina, Brasil: estudo ecológico, 1996-2018. Epidemiol Serv Saude. 2023:32(1):e2022593. doi: 10.1590/S2237-96222023000100007
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Uma coorte a partir das Autorizações de Procedimentos de Alta Complexidade, de 2008 a 2017, observou que o uso off-label de antipsicóticos atípicos em crianças e adolescentes foi frequente entre usuários assistidos pelo Componente Especializado da Assistência Farmacêutica do SUS.66. Fulone I, Silva MT, Lopes LC. Uso de antipsicóticos atípicos no tratamento da esquizofrenia no Sistema Único de Saúde do Brasil: estudo de coorte, 2008-2017. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022556. doi: 10.1590/S2237-96222023000100015
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Ponto comum entre as pesquisas, dados gerados no âmbito do SUS constituíram a fonte dos artigos originais. Quatro dessas pesquisas se basearam em sistemas alimentados por profissionais e gestores de saúde,33. Carvalho CN, Fortes S, Castro APB, Cortez-Escalante J, Rocha TAH. A pandemia da covid-19 e a morbidade hospitalar por transtorno mental e comportamental no Brasil: uma análise de série temporal interrompida, janeiro de 2008 a julho de 2021. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022547. doi: 10.1590/S2237-96222023000100016
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4. Oliveira RSC, Matias JC, Fernandes CAOR, Gavioli A, Marangoni SR, Assis FB. Internações por transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool no Brasil e regiões: análise de tendência temporal, 2010-2020. Epidemiol Serv Saude. 2023; 32(1):e20221266. doi: 10.1590/S2237-96222023000100005
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5. Bando DH, Rodrigues LA, Biesek LL, Luchini Junior D, Barbato PR, Fonsêca GS, et al. Padrões espaciais e caracterização epidemiológica dos suicídios na microrregião de Chapecó, Santa Catarina, Brasil: estudo ecológico, 1996-2018. Epidemiol Serv Saude. 2023:32(1):e2022593. doi: 10.1590/S2237-96222023000100007
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-66. Fulone I, Silva MT, Lopes LC. Uso de antipsicóticos atípicos no tratamento da esquizofrenia no Sistema Único de Saúde do Brasil: estudo de coorte, 2008-2017. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022556. doi: 10.1590/S2237-96222023000100015
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ressaltando o papel do SUS em fornecer informações que são base para pesquisas que retroalimentam o sistema e a sociedade, além de prover os cuidados integrais e universais em sua rede capilarizada. O registro e acesso à informação originada nas diversas atividades do SUS, e o seu aprimoramento por meio da análise dos indicadores, devem ser reconhecidos e fomentados em toda a sociedade, em especial na comunidade científica.

Todas essas atividades humanas, tanto as assistenciais quanto as gerenciais, são realizadas por trabalhadores do SUS, que igualmente necessitam de valorização. Segundo o inquérito mineiro, profissionais da atenção básica sofreram consequências da sobrecarga na saúde mental, o que indica também o papel dos serviços de saúde no adoecimento dos seus trabalhadores.22. Oliveira FES, Trezena S, Dias VO, Martelli Júnior H, Martelli DRB. Transtornos mentais comuns em profissionais da atenção primária à saúde no período de pandemia da COVID-19: estudo transversal na macrorregião norte de Minas Gerais, 2021. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022432. doi: 10.1590/S2237-96222023000100012
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Além do estresse decorrente das atividades laborais, ameaças à estabilidade dos profissionais, com terceirizações e precarização das relações de trabalho, tornam-se frequentes no âmbito do SUS e precisam ser combatidas para se prevenir o adoecimento mental entre os trabalhadores da saúde.11. Araújo TM, Torrenté MON. Saúde Mental no Brasil: desafios à construção de políticas e de monitoramento de seus determinantes. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2023005. doi: 10.1590/S2237-96222023000100028
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Há relação estreita entre sofrimento mental e os determinantes sociais. Sentimentos de inquietação, como preocupações, medo, vergonha, perda de identidade e pertencimento, percepção de falta de controle frente a dificuldades financeiras - comumente observadas em situações de desemprego, por exemplo - embasam o racional biológico entre contexto e sofrimento mental que levam ao adoecimento do indivíduo e da comunidade.77. Hamm AO. Fear, anxiety, and their disorders from the perspective of psychophysiology. Psychophysiology. 2020;57(2):e13474. doi: 10.1111/psyp.13474
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,88. Guerra O, Agyapong VIO, Nkire N. A Qualitative Scoping Review of the Impacts of Economic Recessions on Mental Health: Implications for Practice and Policy. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(10):5937. doi: 10.3390/ijerph19105937
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De maneira contraditória, a visão neoliberal busca atomizar os problemas coletivos em questões fragmentadas. Fracassos seriam culpa do indivíduo ou das famílias, vistas como empreendimentos que demandam gestão adequada e responsável que não onere o Estado. Nessa perspectiva meritocrática, a sociedade desestruturada torna-se ofuscada, e discussões para resolução de injustiças históricas são inviabilizadas. Problemas de saúde são questões particulares a serem tratadas pontualmente para assegurar a produtividade. Igualmente, o sofrimento mental é uma disfuncionalidade a ser resolvida individualmente, normalizando-se a medicalização na vida. O próprio acesso à saúde é um problema pessoal que deve ser resolvido de acordo com a condição econômica - em última análise, reflexo de opções prévias -, legitimando a cobertura universal de saúde, em que cada um paga de acordo com suas possibilidades, em detrimento do sistema de saúde universal baseado na solidariedade, como o SUS. Obviamente, há sofrimento na ausência de preocupações socioeconômicas, reflexo da natureza humana de sentir e amadurecer permeada por emoções, e que podem resultar em transtornos mentais que requerem terapia apropriada. Longe de despersonalizar o indivíduo ao reduzi-lo ao seu contexto, a relação entre saúde mental e sociedade é indissociável.

A RESS reforça seu papel como incentivadora e disseminadora de pesquisas que fortaleçam o SUS, nos seus diferentes aspectos e com a visibilidade de temas essenciais para a sociedade brasileira, com a compreensão de que a saúde da população - em especial, o sofrimento mental - não se restringe a uma questão médica.

Referências bibliográficas

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    Araújo TM, Torrenté MON. Saúde Mental no Brasil: desafios à construção de políticas e de monitoramento de seus determinantes. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2023005. doi: 10.1590/S2237-96222023000100028
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  • 2
    Oliveira FES, Trezena S, Dias VO, Martelli Júnior H, Martelli DRB. Transtornos mentais comuns em profissionais da atenção primária à saúde no período de pandemia da COVID-19: estudo transversal na macrorregião norte de Minas Gerais, 2021. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022432. doi: 10.1590/S2237-96222023000100012
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    Carvalho CN, Fortes S, Castro APB, Cortez-Escalante J, Rocha TAH. A pandemia da covid-19 e a morbidade hospitalar por transtorno mental e comportamental no Brasil: uma análise de série temporal interrompida, janeiro de 2008 a julho de 2021. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022547. doi: 10.1590/S2237-96222023000100016
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    Oliveira RSC, Matias JC, Fernandes CAOR, Gavioli A, Marangoni SR, Assis FB. Internações por transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool no Brasil e regiões: análise de tendência temporal, 2010-2020. Epidemiol Serv Saude. 2023; 32(1):e20221266. doi: 10.1590/S2237-96222023000100005
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    Bando DH, Rodrigues LA, Biesek LL, Luchini Junior D, Barbato PR, Fonsêca GS, et al. Padrões espaciais e caracterização epidemiológica dos suicídios na microrregião de Chapecó, Santa Catarina, Brasil: estudo ecológico, 1996-2018. Epidemiol Serv Saude. 2023:32(1):e2022593. doi: 10.1590/S2237-96222023000100007
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    Fulone I, Silva MT, Lopes LC. Uso de antipsicóticos atípicos no tratamento da esquizofrenia no Sistema Único de Saúde do Brasil: estudo de coorte, 2008-2017. Epidemiol Serv Saude. 2023;32(1):e2022556. doi: 10.1590/S2237-96222023000100015
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  • 7
    Hamm AO. Fear, anxiety, and their disorders from the perspective of psychophysiology. Psychophysiology. 2020;57(2):e13474. doi: 10.1111/psyp.13474
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  • 8
    Guerra O, Agyapong VIO, Nkire N. A Qualitative Scoping Review of the Impacts of Economic Recessions on Mental Health: Implications for Practice and Policy. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(10):5937. doi: 10.3390/ijerph19105937
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023
Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente - Ministério da Saúde do Brasil Brasília - Distrito Federal - Brazil
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