Resiliência e morte: o profissional de enfermagem frente ao cuidado de crianças e adolescentes no processo de finitude da vida

Rosilene Aparecida dos Santos Martha Cristina Nunes Moreira Sobre os autores

Resumo

O presente artigo dedica-se a analisar a resiliência da equipe de enfermagem pelo recorte do processo de cuidar de crianças e adolescentes com doença crônica, o que inclui lidar com sua finitude. De aporte qualitativo, a pesquisa teve como participantes profissionais de enfermagem que atuam na pediatria de um hospital do Rio de Janeiro. A produção dos dados se deu a partir da: aplicação da escala de resiliência, devolução das escalas em grupo e entrevista semiestruturada. Na análise dos dados, advindos das entrevistas individuais e em grupo, sobressaiu a relação entre resiliência profissional e o gerir/cuidar do processo de morrer de crianças e adolescentes. A assistência à criança e ao adolescente no processo de finitude desencadeia respostas relacionadas ao tema da resiliência no que toca a buscar saídas que oscilam entre respostas individuais (apoio religioso, psicológico) e a busca de um apoio coletivo incipiente baseado em relações pessoais. Apontamos para a necessidade de que se encare o tema como estratégico para a formação profissional em saúde, com suporte do ambiente coletivo, assumido no seu interior e no ambiente das práticas de gestão da humanização no ambiente hospitalar.

Resiliência; Doença crônica; Morte; Saúde da Criança; Enfermagem


Introdução

O processo de viver e de morrer e/ou as práticas profissionais da saúde a ele associados são alvo de produções no campo da epidemiologia, história e antropologia1Menezes RA. Em busca da boa morte: uma antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond, Fiocruz; 2004.

Ariès P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003.

Bronfman M. Como se vive se muere: família, redes sociales y muerte infantil. Buenos Aires: Lugar Editorial; 2001.

Elias NA. Solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.
- 5Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé; 1983.. Essas produções nos orientam na discussão e compreensão de um cenário de internação hospitalar de crianças e adolescentes cronicamente adoecidos no qual há uma interlocução entre cuidado e morte. Apesar da discussão acumulada, o cuidado ao processo saúde/doença ainda é entendido como um enigma para os profissionais de saúde, quando seu desfecho é a morte ou situações de finitude.

Na Idade Média, o fim da vida acontecia de forma natural e o doente permanecia no ambiente familiar até a morte. As causas eram, geralmente, consequentes de doenças infecciosas. Já no século XX, o progresso da medicina induz a uma alteração na representação da morte, por torná-la institucionalizada com a preocupação da longevidade humana, interesses econômicos e capitalistas. O evento da morte passa então a pertencer ao cenário hospitalar, porém sem que os profissionais de saúde estejam preparados para o enfrentamento deste6Borges MS, Mendes N. Representações de profissionais de saúde sobre a morte e o processo de morrer. Rev bras Enferm 2012; 65(2):324-331.. Embora a morte faça parte do cotidiano do profissional de enfermagem, este apresenta dificuldades na prestação de cuidados ao paciente em processo de fenecimento. A responsabilidade pelo cuidado parece ser inerente ao desejo de cura e gera conflito e sofrimento para o profissional que cuida7Mota MS, Gomes GC, Coelho MF, Filho WDL, Sousa LD. Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente à morte dos pacientes sob seus cuidados. Rev Gaúcha Enferm 2011; 32(1):129-135.. E este ainda tem como "tarefa a administração da expressão das emoções de todos os envolvidos no processo de morrer: pacientes, familiares e da própria equipe de saúde"8Menezes RA. Profissionais de saúde e a morte: emoções e forma de gestão. Teoria e sociedade 2005; 13(1):200-225..

Durante uma pesquisa realizada com a equipe de enfermagem de uma enfermaria pediátrica de um hospital de referência no município do Rio de Janeiro, fomos surpreendidos pela associação entre a discussão de resiliência e o cuidado a crianças e adolescentes cronicamente adoecidos9Santos RA. A construção da resiliência pelos trabalhadores de enfermagem na atenção a crianças e adolescentes cronicamente adoecidos [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.. Ganhou destaque nessa análise a discussão sobre o processo de "gestão" das situações de morte. Esse destaque torna-se então alvo de análise neste artigo associado ao processo de construção da resiliência dos trabalhadores de enfermagem.

A resiliência, etimologicamente origina-se de resilio, de re + salio e significa ser elástico. É um termo comumente vinculado à física e à mecânica como "qualidade de resistência de um material ao choque, à tensão, à pressão que lhe permite voltar à sua forma ou posição inicial"1010 Tavares J. Resiliência e educação. 3º ed. São Paulo: Cortez; 2002..

No campo da psicologia, a resiliência é compreendida como um atributo individual. Resiliar [résilier] é recuperar-se, ir para a frente depois de uma doença, um trauma ou um estresse. É vencer as provas e as crises da vida. Implica que o indivíduo traumatizado se sobreponha e se reconstitua. É a capacidade para desenvolver-se bem, para continuar projetando-se no futuro apesar dos acontecimentos desestabilizadores, de condições de vida difíceis e de traumas às vezes graves. É a capacidade humana universal de lidar com a crise e de superá-la, aprender ou mesmo ser transformado com a adversidade inevitável da vida e, inclusive, de sair fortalecido da situação1111 Rocca L SML. Resiliência: uma perspectiva de esperança na superação das adversidades. In: Hoch LC, Rocca L SM, organizadores. Sofrimento, resiliência e fé: implicações para as relações de cuidado. São Leopoldo: Sinodal; 2011. p. 9-27..

A resiliência é uma capacidade que todo ser humano tem, em algum grau. É um recurso que é, em parte, inato, mas também se adquire ao longo do tempo, pois a resiliência, como diz Cyrulnik1212 Cyrulnik B. El amor que nos cura. Barcelona: Gedisa; 2005., "se tece" durante todo o ciclo vital. Pode ir crescendo, ajudada pelas situações e condições externas e pode ser promovida com o apoio de pessoas ou instituições1111 Rocca L SML. Resiliência: uma perspectiva de esperança na superação das adversidades. In: Hoch LC, Rocca L SM, organizadores. Sofrimento, resiliência e fé: implicações para as relações de cuidado. São Leopoldo: Sinodal; 2011. p. 9-27..

Por construção da resiliência profissional, entendemos a capacidade de enfrentamento das dificuldades desenvolvidas no cuidado aos processos de vida e morte no adoecimento crônico. São capacidades geradas a partir do contato com o sofrimento da clientela assistida, das crenças e valores do profissional, construídas nas relações face a face, gerando significados que podem ou não ter ligações com ações no âmbito da realidade.

Objetivamos contribuir com o campo da saúde coletiva, nos associando a outros estudos que explorem os significados da morte e do processo desta no âmbito da saúde coletiva, em crianças e adolescentes com doença crônica. A diferença se dá pela associação desse tema ao estudo sobre a resiliência do trabalhador de enfermagem no circuito saúde/doença/cuidado de crianças e adolescentes com condições crônicas de saúde. E ainda torna-se relevante associar essa discussão a um cenário epidemiológico onde condições crônicas de saúde - destacando as doenças raras, aquelas de base genética, como síndromes, que podem abreviar a vida - se destacam no perfil de morbimortalidade de crianças e adolescentes1313 Costa MTF, Gomes MA, Pinto M. Dependência crônica de ventilação pulmonar mecânica na assistência pediá trica: um debate necessário para o SUS. Cien Saude Colet 2011; 16(10):4147-4159.

14 Moreira MEL, Goldani MZ. A criança é o pai do homem: novos desafios para a área de saúde da criança. Cien Saude Colet 2010; 15(2):321-327.
- 1515 Lyra GV, Nations MK, Catrib AMF. Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar. Texto Contexto Enferm 2004; 13(1):147-55.. O artigo pretende contribuir com a desnaturalização da ideia de que sofrimento/morte são constitutivos da dinâmica de trabalho em saúde1616 Moreira MCN, Souza WS. A temática da humanização na saúde: alguns apontamentos para debate. Interface (Botucatu) 2008; 12(25):327-338..

Material e métodos

Este artigo é parte de uma pesquisa maior, aprovada pelo CEP IFF/Fiocruz, pautada na investigação dos significados da construção da resiliência pelos profissionais de enfermagem no âmbito da atenção ao adoecimento crônico de crianças e adolescentes. A pesquisa original contou com uma primeira etapa quantitativa centrada na aplicação da Escala de Resiliência1717 Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Deslandes SF. Superação de dificuldades na infância e adolescência: Conversando com profissionais de saúde sobre resiliência e promoção da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.. Para este artigo, selecionamos as análises qualitativas que foram geradas a partir da segunda etapa centrada na associação de entrevistas em grupo e individuais.

Os sujeitos da pesquisa foram 20 profissionais de enfermagem atuantes em duas unidades pediátricas de um hospital de média e alta complexidade, situado no município do Rio de Janeiro, lugares nos quais muitas situações estão relacionadas às intercorrências de doenças crônicas. Para identificação dos sujeitos foram utilizados nomes fictícios, a fim de preservar seus anonimatos. A escolha dessa categoria profissional se justifica por: terem atribuições centradas na proximidade e intensidade do contato e cuidado dos pacientes e familiares; atuação nos aspectos voltados para o acolhimento, abordagem, interação, gerência e educação em saúde; representar uma centralidade numérica e de intervenção no cuidado à saúde na hospitalização.

Sinteticamente, em uma primeira etapa foi aplicado um instrumento denominado "Escala de resiliência"17 17 Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Deslandes SF. Superação de dificuldades na infância e adolescência: Conversando com profissionais de saúde sobre resiliência e promoção da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.para 56 sujeitos, de modo a identificar os que tivessem pontuação alta, ou seja, mais resilientes. Esse critério serviu como corte para seleção dos sujeitos a serem entrevistados na segunda etapa. Desses, 37 foram elegíveis para a realização das entrevistas individuais. Após a realização de 20 entrevistas semiestruturadas, alcançou-se o patamar de saturação teórica para pré-categorias ou categorias novas1818 Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidee MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica 2011; 27(2):389-394.. A análise técnica do material se baseou na adaptação da análise de conteúdo de Bardin1919 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec; 2008.. Selecionamos temas com significado relacionado ao objeto analítico, priorizando as estruturas de relevância e valores. A análise teórica dos dados baseou-se no interacionismo simbólico pelo desenho das técnicas e posteriormente por interpretação das experiências dos sujeitos. A valorização das ações e interações humanas cotidianas confere privilégio às relações face a face, aos encontros muitas vezes mediados por marcas de atribuição de status ou ainda estigmas2020 Nunes ED. Goffman: Contribuições para a Sociologia da Saúde. Physis 2009; 19(1):173-187.

21 Moreira MCN, Souza WS. A microssociologia de Erving Goffman e a análise relacional: um diálogo metodológico pela perspectiva das redes sociais na área de saúde. Teoria & Sociedade 2002; 9(9):38-61.
- 2222 Goffman, E. Estigma. Petrópolis: Vozes; 1988..

Resultados e discussão

O processo de viver e morrer no cuidado pediátrico

O cuidado profissional a crianças e adolescentes que vivem com doenças crônicas se pauta em um investimento na qualidade de vida e manejo de um quadro clínico não marcado pela cura. Culturalmente, a presença da doença crônica parece não combinar com a imagem de vitalidade e desenvolvimento futuro vinculado à infância e adolescência. A doença crônica na vida desse segmento pode muitas vezes representar que o crescimento e o desenvolvimento a fazem aproximar-se da morte e das marcas simbólicas a ela relacionadas. Estas marcas mediam as relações face a face e interações em um ambiente relacional mediado por marcas corporais, limites físicos, administração de sintomas agudos de doenças crônicas, que demarcam estigmas2222 Goffman, E. Estigma. Petrópolis: Vozes; 1988..

Sobre o significado da morte em adultos, e sua diferença com relação a este processo em crianças, Rodrigues assinala:

A morte de uma pessoa adulta significa normalmente dor e solidão para as pessoas que sobrevivem a ela: verdadeira chaga que põe em perigo a vida social. É diferente, e mais branda em geral, a reação que a morte de crianças produz na consciência coletiva. Na realidade, a comunidade investiu nelas pouco mais que esperança. Não chegou a lhes imprimir sua marca. Não se conhece nelas e por isso sente-se pouco atingida. Tudo se passa como se tratasse de uma morte menor, de um fenômeno infrassocial menor para conservar a expressão5Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé; 1983..

Quando o autor compara a morte de adultos com a de crianças, ele destaca a característica menos marcante da morte destas últimas, atribuindo uma reação mais branda ao falecimento destas. No entanto, sua análise marcada por uma externalidade ao campo dos cuidados em pediatria, coloca-o numa linha de pensamento cuja posição vincula-se aos ideais de inserção produtiva da criança numa história prolongada, o que acaba por desvalorizar o reconhecimento desta como um sujeito situado no presente, e também protagonista de uma história, com um lugar socialmente construído.

Ao dialogarmos com esta perspectiva, desconstruímos a posição adultocêntrica e reconhecemos que o curso da vida, ao ser interrompido na infância e adolescência, desencadeia a extinção de uma relação e de um cotidiano que foram compartilhados com intensidade, ainda que na linha do tempo isso signifique ter vivido poucos anos:

A morte da L. (uma adolescente) me marcou muito, porque eu a acompanhei desde pequenininha, acho que quando ela chegou aqui tinha uns 5 ou 6 anos. E nós duas nos apegamos muito. Ela dizia que eu era mãe dela e ela dizia que era minha filha. (Felícia)

O cuidado de crianças e adolescentes exige do profissional o desenvolvimento de habilidades relacionais que contribuam para a segurança, o vínculo e a conquista de confiança. No trecho anterior, vale analisar a associação entre a temporalidade que marca o cuidado a uma criança com doença crônica, por 2 perspectivas: 1) a de um tempo de cuidado profissional prolongado; 2) a de um tempo marcado pelo vínculo, lido como uma maternagem, assemelhando-se a um relacionamento entre mãe e filha.

Diante das especificidades dessa clientela, é pertinente usufruirmos da perspectiva de maternagem e de ambiente em algumas reflexões. Winnicott2323 Winnicott DW. Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes; 1999. aponta para a influência do meio no crescimento e desenvolvimento da criança, enfatizando a importância de: "conhecer" a criança, ter uma relação pessoal intensa e estimulante com ela, fornecer uma estabilidade viva e humana no cuidado para que ela se sinta segura, cresça e se desenvolva adequadamente. O meio tanto se refere ao ambiente físico como ao relacional, que inclui a interação entre a criança e um adulto de referência, e os significados que são construídos pelo olhar, linguagem verbal, gestos e cuidado corporal.

Como apontam diversos autores1313 Costa MTF, Gomes MA, Pinto M. Dependência crônica de ventilação pulmonar mecânica na assistência pediá trica: um debate necessário para o SUS. Cien Saude Colet 2011; 16(10):4147-4159.

14 Moreira MEL, Goldani MZ. A criança é o pai do homem: novos desafios para a área de saúde da criança. Cien Saude Colet 2010; 15(2):321-327.
- 1515 Lyra GV, Nations MK, Catrib AMF. Cronicidade e cuidados de saúde: o que a antropologia da saúde tem a nos ensinar. Texto Contexto Enferm 2004; 13(1):147-55., a perspectiva do adoecimento crônico não aparece como uma prerrogativa dos ciclos de vida a que pertencem os adultos. A transição epidemiológica, fruto de inúmeros fatores que resultam de alterações em indicadores sociais e de saúde, contribui para o surgimento de uma "nova pediatria"1414 Moreira MEL, Goldani MZ. A criança é o pai do homem: novos desafios para a área de saúde da criança. Cien Saude Colet 2010; 15(2):321-327.. Essa "nova pediatria" é formada pelo contingente de crianças e adolescentes com doenças crônicas e dependentes de tecnologia, aquelas que vivem com quadros neurológicos decorrentes de eventos perinatais e o segmento que nasceu com síndromes genéticas variadas e doenças raras. A relação com este segmento provoca a necessidade de ressignificação do cuidado profissional em saúde:

Era tranquilo no começo [antes da mudança do perfil da pediatria do hospital], depois que foi começando a marcar mais, nós tínhamos crianças que passavam três, quatro anos com a gente, sem mãe, que na época não tinha acompanhante... (Beija-flor)

A demarcação de uma temporalidade, um corte, entre o momento atual e o anterior, é associada ao significado da cronicidade, no perfil de cuidado em pediatria. Essa associação vem vinculada àquilo que foi uma mudança no campo dos direitos da criança e do adolescente quando hospitalizados: a presença do acompanhante, a garantia do alojamento conjunto instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E ainda, o tempo prolongado de internação em virtude da impossibilidade de alta clínica e social, leva muitas vezes o profissional a acompanhar longitudinalmente o desenvolvimento e o crescimento de lactentes e crianças em um ambiente onde isso, a princípio, não era imaginado: o hospital.

Mesmo quando o quadro clínico desses pacientes limita a comunicação verbal, ainda assim são estabelecidos processos comunicacionais baseados no afeto, criatividade e envolvimento:

Gosto do que eu faço, mas eu tô um pouco saturada, cansada, eu tô querendo mudar... porque esse desgaste que a gente tá vivendo aqui tá evoluindo pra isso, entendeu... depois de 'n' anos, eu tô muito cansada desse tipo de paciente já que você não vê retorno... você faz, faz, faz e não consegue ver um retorno positivo, você vê o retorno com ele morrendo. (Girassol)

O fato das interações humanas cotidianas nesse cenário se darem de maneira pouco refletida e não serem alvo de espaços coletivos e de discussão acaba as associando a processos de desgaste físico e emocional. A análise das entrevistas possibilitou identificar o quanto a aproximação afetiva esteve associada à interpretação de um incremento do sofrimento diante das instabilidades e das experiências de finitude.

Acrescenta-se a isso a interpretação da criança e do adolescente como seres projetados para o futuro. Essa visão socialmente compartilhada, de base adultocêntrica, entra em conflito com a realidade de um cuidado a um segmento de crianças e adolescentes no qual a doença pode interromper projetos e vínculos. Os profissionais são formados para um trabalho que, por princípio, investiria na vida, saúde e projeto de futuro que, na dimensão da doença crônica, precisa ser ressignificado. Para alguns entrevistados, uma visão mais ampliada e apurada de como se dá o rompimento desse processo relacional diverge de outras posições que justificam o ato mecânico de cuidar e não se envolver como uma estratégia de proteção frente ao sofrimento2424 Pitta A. Hospital: dor e morte como ofício. São Paulo: Hucitec; 2003. , 2525 Pinto LF. As crianças do Vale da Morte: Reflexões sobre a criança terminal. Jornal de Pediatria 1996; 72(5):287-294..

A literatura aponta que os profissionais de saúde, por vezes, pelo comportamento nas visitas técnicas diárias, acabam demonstrando desesperança às crianças e adolescentes que parecem estar próximos de morrer. O evitamento do contato ocular e diálogos impessoais diante desse paciente pode ser refletido como: 1) atitude protetiva2222 Goffman, E. Estigma. Petrópolis: Vozes; 1988.; 2) um comportamento oposto ao processo de construção de resiliência, por não se caracterizar como uma ação de enfrentamento.

Sobre o desgaste gerado pelo significado atribuído ao trabalho com o adoecimento crônico de crianças e adolescentes, registramos a densidade da prática assistencial, que com o decorrer dos anos pode deixar o profissional saturado e cansado, influenciando na sua vida e nas suas ações para além do universo laboral. A dificuldade em lidar com a morte tem ocasionado inúmeros problemas que afetam o sistema público e privado de saúde, principalmente devido ao adoecimento dos profissionais2626 Palú LA, Labrocini LM, Albini L. A morte no cotidiano dos profissionais de enfermagem de uma unidade de terapia intensiva. Cogitare Enferm 2004; 9(1):33-41..

Considerando um perfil de atenção pediátrica, marcado pela cronicidade, algumas interpretações delimitam um campo de impossibilidades para a prática e a competência profissional:

Aqui... você tem que ter aquele equilíbrio, você conseguir e lidar com esse tipo de clientes, crianças que não têm perspectiva nenhuma de vida, você sabe que vão morrer, que vão sofrer o tempo todo, porque todas ou a maioria não tem perspectiva, né? (Rosa)

O desafio maior de você ver essas crianças crônicas é saber que você não pode fazer nada por elas. O desafio maior é chegar aqui todo plantão e ver as crianças ali sofrendo, sendo aspiradas, ambuzadas, fazendo o puff e na semana que vem a mesma coisa [...]. Tem que lidar com o sofrimento das mesmas crianças o tempo todo, saber que nem os médicos e nem a enfermagem pode fazer nada para melhorar o estado delas. São crônicas, infelizmente. Param e depois elas voltam e não tem mais muito o que lesar porque elas já estão todas lesadas mesmo. (Antúrio)

Nesse cenário, o foco é o cuidado e não a cura, porém, o trabalho com adoecimento e morte, por muitos anos, coloca o sujeito numa posição de fragilidade e/ou esgarçamento das potencialidades básicas para o cuidado. A realidade apontada é compatível com a afirmação de Santos e Bueno2727 Santos JL, Bueno SM. Educação para a morte a docentes e discentes de enfermagem: revisão documental da literatura científica. Rev Esc Enferm USP 2011; 45(1):272-276.: pode ocorrer o adoecimento por parte do profissional, decorrente do desgaste emocional, devido às experiências estressantes acumuladas ao longo do tempo de determinada atividade laboral.

Ao se analisar a associação e o destaque atribuídos entre o perfil crônico da clientela e o caráter de sofrimento permanente, de lesão e impossibilidade, esses profissionais evidenciam um cenário de desesperança e desafio, interpretado como impossível de ser transformado e gerando sentimentos de impotência. Nessa direção, assumimos como urgentes as questões: quais as consequências dessas leituras para a construção da resiliência por parte desses profissionais? Nas ações de cuidado, a mediação simbólica da falta de esperança e reconhecimento de incapacidade podem provocar um enrijecimento do profissional e um empobrecimento em seu processo de cuidado?

Essa análise à luz da resiliência nos faz inferir o seguinte: as falas registradas são interpretações de uma realidade, que não necessariamente vão se relacionar a práticas de cuidado profissional, pautadas em não investimento e ausência de competência técnica. O nível da interpretação é alvo de ressignificações, a partir do contato com cada situação particular.

O estado clínico pouco ativo ou reativo da criança ou adolescente parece mobilizar nos profissionais significados que baseiam interpretações que podem provocar desmotivação: Você vai na pediatria e o que você vê? Crônicos... crônicos, poucos aqueles que interagem... é um trabalho pra enfermagem que eu acho que ela não consegue ver a resposta do seu trabalho. [...] Eu tentei continuar, trabalhar, é assim que a gente faz... a gente prepara um corpo, desce o corpo e continua trabalhando... é só mais um que morre... (Girassol)

Na fala acima, ganha destaque a relação entre cronicidade e redução da resposta ao trabalho profissional, vida e morte. Vemos acionada a frustração diante de um trabalho que parece ter se baseado em um modelo de atenção aos quadros agudos de adoecimento. Este modelo é reproduzido nas escolas e formações da área de saúde, fundamentando políticas que no cenário atual se veem em revisão2828 Organização Mundial de Saúde (OMS). Cuidados inovadores para condições crônicas: componentes estruturais de ação. Brasília: OMS; 2003.

29 Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). As redes de atenção à saúde. 2ª ed. Brasília: OPAS; 2011.
- 3030 Araújo PVR, Vieira MJ. A questão da morte e do morrer. Rev Bras Enferm 2004; 57(3):361-363..

O sistema de evolução de quadros crônicos de saúde pode desencadear interpretações pautadas numa antecipação do processo de morrer, identificado pela não visualização da pessoa no tempo presente. A visão de que a criança e o adolescente são um vir a ser, lançando-as em um futuro que será abreviado, compromete o presente e a perspectiva da vida em sua intensidade e qualidade hoje:

A gente vê que as crianças vão adoecendo e ficando cada vez mais debilitadas... e você sabe que um dia elas não vão estar mais aqui. Você olha pra determinada criança e diz que daqui a pouco vai acontecer o que a gente já sabe, né? (Crisântemo)

A interpretação do processo de viver de crianças e adolescentes com uma doença crônica parece simbolicamente marcado pelos significados de finitude de projeto, de falta de perspectiva e interação.

Estratégias de resiliência profissional no processo de viver e morrer no cuidado pediátrico

Neste núcleo analisamos os significados identificados como estratégias para enfrentar os limites gerados a partir da interação dos profissionais com o cuidado aos quadros crônicos de saúde. Ao identificar as estratégias cabe analisar também que estas não devem ser apostas individuais, mas sim garantidas através de mecanismos de gestão coletiva do processo de trabalho, integradas no fazer em saúde. Para fortalecimento dessa discussão, recorremos a Rodrigues5Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé; 1983., que afirma que "a morte do outro evocará sempre minha própria morte; ela testemunhará minha precariedade, ela me forçará a pensar nos meus limites".

Com o passar dos séculos, a morte foi sendo compreendida e vivenciada de diferentes formas, conforme o contexto sociocultural dos povos. O processo de morrer foi sendo ressignificado e diferentes comportamentos foram adotados: naturalização, comoção social, negação da morte e do sujeito, cerimônia pública, ritualidade e profissionalização da morte1Menezes RA. Em busca da boa morte: uma antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond, Fiocruz; 2004. , 5Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé; 1983.. Estes comportamentos, situados no âmbito de processos de interação, cujo objetivo é profissional, podem ser lidos à luz da resiliência.

No hospital a morte parece rotineira por ser um local de concentração de pacientes em estágio de agravamento das doenças, necessidades de suporte tecnológico, terapia medicamentosa e assistência. Este cenário contrasta com a perspectiva histórica onde a morte era um acontecimento que podia ser vivido no âmbito familiar2Ariès P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003. , 5Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé; 1983..

Os estágios de agravamento, impossibilidade de comunicação, manifestações de dor e agonização, muitas vezes levam o profissional de saúde a questionar o porquê da existência daquele paciente e da prorrogação da vida.

Autores nacionais3131 Oliveira MAP, Ogasawara M. Uma contribuição para uma postura humana em situação que se relaciona com a morte. Rev Esc Enf USP 1992; 26(3):365-378. , 3232 Bernieri J, Hirdes A. O preparo dos acadêmicos de enfermagem brasileiros para vivenciarem o processo morte-morrer. Texto Contexto Enferm 2007; 16(1):89-96. exploraram esta oposição entre o modelo da morte em casa versus aquela no hospital, a fim de mostrar que o silêncio relativo em torno do morrer acaba por confrontar o profissional com os sentimentos relacionados à morte de quem ele assiste e à sua própria morte.

A formação completa, que inclua sensibilidade e técnica como ingredientes de competência profissional, é fundamental para que a diminuição das potencialidades humanas do paciente não interfira na prática assistencial, reduzindo ainda mais a qualidade de vida do mesmo.

Uma das estratégias de resiliência se assenta na busca de razões religiosas que "justifiquem" a situação de sofrimento e morte. A atribuição ao adoecimento, sofrimento e "estado vegetativo" da criança ou do adolescente ganha diferentes significados no senso comum: "karma" por erros em vidas passadas, escolha divina pelos pais para cuidar de um filho especial ou apenas um erro inato da natureza. A interpretação e atribuição do estado de saúde, morte, sofrimento e escolha profissional como algo divino pode fortalecer ou fragilizar as relações e interações. Se a influência se dá de forma positiva, como por ex., "foi Deus que me escolheu", o cuidado é considerado missão divina, é uma chance de proporcionar maior qualidade de vida à clientela. Se considerado como "karma", "ele está pagando pelo que fez em vidas passadas", o profissional estará fazendo um julgamento que não lhe cabe e sua prática poderá ser apenas mecânica, com o mínimo de envolvimento. Estas leituras religiosas merecem ser refletidas durante a formação profissional, o que parece ainda estar muito aquém do desejável no conteúdo dos currículos das profissões de saúde3232 Bernieri J, Hirdes A. O preparo dos acadêmicos de enfermagem brasileiros para vivenciarem o processo morte-morrer. Texto Contexto Enferm 2007; 16(1):89-96..

Nos períodos que antecedem a morte, os valores profissionais e pessoais são colocados à prova pela intensidade do sofrimento e às vezes pelo consenso da equipe de saúde em não investir mais naquele paciente. As mudanças no perfil pediátrico, hoje marcado pela evolução epidemiológica das doenças crônicas, comprometem o acesso dos casos agudos e desencadeiam dilemas de ordem ética1313 Costa MTF, Gomes MA, Pinto M. Dependência crônica de ventilação pulmonar mecânica na assistência pediá trica: um debate necessário para o SUS. Cien Saude Colet 2011; 16(10):4147-4159.. O não investir, aqui, significa poder preservar a clientela de um sofrimento, repensando a obstinação terapêutica e revendo a pertinência de realização de procedimentos cirúrgicos, de suporte tecnológico e ventilatório. Tal processo não é tranquilo, pois parece contrapor com uma formação voltada para o investimento na vida em qualquer circunstância. Em alguns momentos, mesmo que tratamentos e cuidados para manutenção da vida não sejam recomendados, o profissional de enfermagem os realiza:

Eu pedi que não deixassem eles sofrerem tão perto de mim. Que sedasse essas crianças porque o sofrimento é muito grande pra eles e pra gente. Porque eles colocam a medicação pra dor, mas é uma criança que fica acordada implorando à gente que não deixe eles morrerem e a gente não pode fazer nada. Quando são crianças que não interagem totalmente, que não sabem falar, a gente sente o sofrimento deles porque vê eles chorarem e a gente chora junto. Mas quando é criança que sabe expressar, que fala, que sabe pedir, é mais sofrido ainda. [...] eu não posso ver essa criança morrer sufocada na minha frente. (Felícia)

No trecho acima é importante refletir sobre uma estratégia voltada para o estabelecimento compartilhado de condutas que privilegiem um processo de morrer sem sofrimento, para o doente e para o profissional. É fundamental um diálogo sobre os processos de cuidado, protocolos de dor e abordagem do paciente, respeitando faixa etária e compreensão, bem como de seus familiares. Não se trata de abreviar sofrimento, mas de manejá-lo.

É importante que o profissional tenha algum conhecimento sobre a compreensão da morte pela criança e pelo adolescente, para que seu diálogo seja pertinente com as crenças, as idealizações e com o que consideram como verdade sobre morte e pós-morte. O processo de conhecimento e evolução da interpretação da morte na infância se dá gradativamente com o grau de maturidade física, mental e emocional. De uma forma geral, é a partir dos 8 ou 9 anos que o conceito de morte para elas se aproxima do que significa para os adultos5Rodrigues JC. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé; 1983..

Perante a peculiaridade do cuidado dessa clientela seria importante que a gestão e a chefia oferecessem uma rede de apoio para enfrentamento e amadurecimento da equipe. Deslandes3333 Deslandes SF. Análise do discurso oifical sobre a humanização da assistência hospitalar. Cien Saude Colet 2004; 9(1):7-14. aponta para a deficiência de diálogo, debilidade do processo comunicacional entre profissionais e usuários e gestores como fatores que com frequência geram desgaste e sofrimento psíquico. Afirma que "humanizar a assistência é humanizar a produção dessa assistência"3333 Deslandes SF. Análise do discurso oifical sobre a humanização da assistência hospitalar. Cien Saude Colet 2004; 9(1):7-14.. Os entrevistados assinalaram a inexistência de diálogo acerca das questões conflituosas que geram sofrimentos. A constituição de rede de apoio pode contribuir com a construção individual e coletiva de resiliência, tendo reflexo para colaboradores e organização.

Com a institucionalização do moribundo, a morte passou a ocorrer com mais frequência nos hospitais e o preparo do corpo passou a ser realizado pela equipe de enfermagem. Estudos apontam que o preparo do corpo apresenta-se como gerador de grande desconforto aos profissionais e referem que estes podem vivenciar sentimentos como tristeza, depressão e angústia ao realizarem este ritual podendo apresentar reações de fuga, ao delegar para outro o fazer7Mota MS, Gomes GC, Coelho MF, Filho WDL, Sousa LD. Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente à morte dos pacientes sob seus cuidados. Rev Gaúcha Enferm 2011; 32(1):129-135.. Aqui eu nunca fiz um pacote de criança, eu já falo logo que não faço. Se eu até chegar perto assim... eu saio, choro... (Rosa)

O profissional não fica imune aos acontecimentos. A vulnerabilidade é um aspecto constitutivo da resiliência, na qual o indivíduo consegue responder positivamente aos sofrimentos e é capaz de ressignificar suas práticas1717 Assis SG, Avanci JQ, Pesce RP, Deslandes SF. Superação de dificuldades na infância e adolescência: Conversando com profissionais de saúde sobre resiliência e promoção da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.. No entanto, se compreendemos que existem técnicas constitutivas e necessárias do fazer de determinada categoria - aqui citamos o "arrumar o corpo morto" - as dificuldades diante dessa técnica não devem ser lidas como um problema individual. Isso merece ser tratado como um objeto digno de discussão e reflexão pela equipe a ponto de criar mecanismos que permitam que o enfrentamento desse processo não seja atributo de capacidades individuais, destituído de componentes coletivos.

Participantes destacaram a vulnerabilidade diante do processo de finitude da vida de pacientes:

E ele fez uma parada na minha frente [...] e quando ele morreu quase que eu morri junto com ele. Aí me tiraram de lá porque eu estava mais fria que a criança que estava morta. Foi horrível, foi uma experiência péssima. (Felícia)

A capacidade de executar o trabalho, ainda que mobilizado, sem perder de vista o objetivo das técnicas de cuidado, se reúne ao oferecimento de atenção e suporte emocional aos familiares. Para tanto, a sustentação da própria equipe ou o apoio especializado, buscado no suporte coletivo de supervisão e discussão interprofissional pode contribuir para a construção de estratégias coletivas de resiliência.

Tal análise não exclui outra leitura possível que é a do desequilíbrio perante a exposição frequente a situações-limite:

Em meados de fevereiro eu descompensei com uma criança que ia morrendo... eu fiz todos os cuidados na criança, porém chorando, durante o período todo... e não deixava ninguém me ajudar. [...] eu faço tudo aquilo que eu tenho que fazer, mas eu me afeto emocionalmente, fico tremendo... então eu comecei a me descompensar... aí o que me fez sair mesmo da assistência, eu tinha que sair da assistência, só que eu estava sendo resistente... [...] eu acho que o trabalho me marcou muito assim em perder... então eu não conseguia me apegar a muitas coisas, eu comecei a não querer me apegar muito a ninguém. (Beija-flor)

Esse discurso aponta para um comportamento de uma pessoa que já sofreu muito e talvez esteja desgastada pelas circunstâncias do ambiente de trabalho. Quando seu percurso na assistência é colocado em paralelo com as questões de risco e vulnerabilidade, percebemos que a exposição no decorrer dos anos a afetou tanto, que, embora possua características muito pertinentes à resi liência, o constante estresse a levou ao desgaste de sua tenacidade para as ações de cuidado. Percebemos que a redução a um polo individualizado gera solidão que, no decorrer do tempo, incrementa o desgaste e a falência afetiva.

Algumas condutas do profissional, como desespero e choro, demonstram a intensidade do sofrimento originado no processo de cuidado e que foram vividas como efeito da autorresponsabilização, sem apoio coletivo:

E duas semanas depois ele morreu. E assim eu chorei muito, muito mesmo... Eu imaginei a dor que ele sentiu... E quando eu fui arrumar o corpo dele e tal, eu não consegui... Tive que chamar minha colega, que eu, eu chorei demais, na hora de preparar o corpo. E quando fui levar a mãe pra vê-lo, também já lá embaixo, né. [...] E assim, eu não procurei ajuda nenhuma, eu sofri calada, chorei, chorei... (Cisne)

Schmidt et al.3434 Schmidt B, Gabarra LM, Gonçalves JR. Intervenção psicológica em terminalidade e morte: relato de expe riência. Paidéia 2011; 21(50):423-430. discutem sobre a importância do suporte emocional estendido à equipe profissional da instituição, visto que os membros da equipe mobilizam-se em situações de terminalidade e morte de pessoas hospitalizadas. Nos relatos dos participantes fica clara a necessidade da atenção a suas necessidades emocionais, de um profissional que os ajude a compreender as situações limites da prática assistencial.

Eu fiquei ali ambuzando a criança por quase meia hora e vendo ela morrer e sem poder fazer nada, tendo que dar uma de forte, de herói... Aquilo foi muito forte pra mim. [...] E como eu já falei, são crianças crônicas que estão prorrogando só o inevitável que é a morte delas. Então é isso que mais me marca, em perder uma criança, em saber que ela vai morrer. Aí depois eu tive que pegar, fazer o pacote, descer, mostrar pra mãe. Eu acho que deveria ter uma pessoa específica pra preparar o corpo. Porque que tenho que ser eu que estou cuidando enquanto ele está vivo? (Antúrio)

O encontro com as instabilidades é marcante e provoca no profissional uma reação de fuga da técnica. A maneira como o processo de viver, adoecer e morrer é descrito evoca uma relação onde o corpo se torna um objeto sem que, no entanto, ele seja. A apresentação do corpo morto à mãe coloca-se como um episódio onde não há uma referência de vínculo e afeto que permita dar sentido e justificar ser aquele profissional a fazê-lo.

No cenário estudado, não há trabalho voltado para as equipes cuidadoras. Muitos sujeitos falam dessa deficiência institucional, afirmando acharem necessário cuidar de quem cuida. A promoção da resiliência para os profissionais, nesse campo, deve buscar a construção coletiva, dialogando apoios, formação técnica, redes de suporte qualificadas e trajetória pessoal na construção da carreira e das escolhas de trabalho.

Considerações finais

A experiência profissional com situações-limite, como as do processo de viver e morrer de crianças e adolescentes, produz marcas no profissional de saúde. Estas constituem o caminho de construção da resiliência, no qual o sujeito sofre um impacto, é atingido por ele e, transformado, enfrenta-o, e ainda consegue se fortalecer e adquirir competências afetivas e profissionais para sua vida. A morte e a maneira de vivenciá-la no cuidado precisa ser reconhecida como parte do processo de trabalho em saúde. Uma análise sobre o que o trabalho com crianças e adolescentes cronicamente adoecidos em fase final da vida precisa enfrentar: 1) o fato de a morte nesses ciclos de vida afrontar as representações culturais sobre a pujança, projeto de futuro e alegria que os constitui; 2) As formações profissionais da área de saúde ainda dialogam e valorizam de forma minoritária leituras socioantropológicas, históricas e filosóficas; 3) Uma certa naturalização da ideia de que sofrimento/morte são constitutivos da dinâmica de trabalho em saúde, acabam por contribuir com uma desvalorização das marcas desenvolvidas ao longo do tempo pelas situações-limite nas relações de cuidado; 4) a necessidade de valorizar nas análises sobre resiliência os aspectos coletivo e socioculturalmente compartilhados da experiência de trabalhar em ambientes de desgaste físico e emocional. Destacamos aqui esses ambientes hospitalares de cuidado pediátrico onde a doença crônica coloca limites ao desenvolvimento da vida fora do hospital e muitas vezes seu desfecho é a morte precoce. É preciso construir vínculos de confiança no interior das instituições, nas quais grupos se revelam equipes e fornecem contingente para os momentos de fragilidade que podem atingir os seus membros.

Constatamos que os profissionais de saúde utilizam as seguintes estratégias de resiliência: no contato com o processo de viver e de morrer com o quadro crônico de saúde apostam nas suas formulações enquanto pessoas, associando técnica e afeto; assentam-se na busca de razões de ordem religiosa; evitam que haja sofrimento para os pacientes no processo de morrer; fazem trocas em equipe.

Essas estratégias não encontram respostas coletivas e organizadas no interior dos processos de trabalho, no campo investigado. A individualização do sofrimento leva a uma busca de saídas solitárias que se reduzem por vezes a desabafos e conversas esporádicas, baseadas na amizade. Partimos do imperativo ético-político de que se foi no trabalho que o sofrimento e o desgaste foram gerados, o sujeito merece atenção dos dispositivos de gestão. Essa conclusão entra em sintonia com os princípios da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão e os temas que mobilizam os trabalhadores e os fazem compreender a importância de seu escopo. Mais do que evocar a temática da humanização na saúde, legítima e relevante, vale compreender o que motiva, dificulta, compõe alianças ou esgarça laços nos microambientes, nos quais algumas atitudes e condutas podem até "ser veladas", mas se revelam na fragilidade da prática e na influência desse sofrimento profissional na vida pessoal dos sujeitos. Os temas da morte, dor e doença em crianças e adolescentes, só para citar alguns exemplos transversais a este artigo, parecem dialogar com a promoção da resiliência no trabalho e, portanto, com a qualificação da atenção e gestão na saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2013
  • Aceito
    06 Nov 2013
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