Estresse ocupacional e satisfação dos usuários com os cuidados de saúde primários em Portugal

Occupational stress and user satisfaction with primary healthcare in Portugal

Hugo Roque Ana Veloso Isabel Silva Patrício Costa Sobre os autores

Resumo

Os cuidados de saúde primários sofreram alterações decorrentes de uma reforma cujos princípios se podem inscrever num quadro conceitual designado por alguns autores como "New Public Management". Estas mudanças podem ser geradoras de maiores níveis de estresse ocupacional, com impacto negativo a nível individual e organizacional. Este estudo analisa a experiência de estresse em 305 profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e secretários clínicos) e a satisfação, com os serviços prestados por estes, em 392 usuários. A população em estudo está repartida por 10 Unidades de Saúde Familiar modelo A e 10 modelo B. Os resultados encontrados mostram que 84.2% dos profissionais relatam um nível moderado a elevado de estresse ocupacional, sendo os enfermeiros os que apresentam valores mais elevados. Os usuários apresentam bons níveis de satisfação, principalmente com os serviços de enfermagem. Não se verificaram diferenças ao nível de estresse entre as USF modelo A e B, mas verificaram-se ao nível da satisfação dos usuários, estando os das USF modelo B mais satisfeitos. Constatou-se um efeito preditor das dimensões da satisfação dos usuários no estresse relativo ao excesso de trabalho.

Palavras-chave
Estresse; Satisfação; Cuidados de saúde primários

Abstract

The Portuguese primary healthcare sector has suffered changes due to a reform on the lines of the conceptual framework referred to by some authors as "New Public Management." These changes may be generating higher levels of occupational stress with a negative impact at individual and organizational levels. This study examines the experience of stress in 305 health professionals (physicians, nurses and clinical secretaries) and satisfaction with the services provided by them from 392 users. The population under scrutiny is taken from 10 type A and 10 type B Family Health Units (FHU). The results show that 84.2% of professionals report moderate to high levels of occupational stress with the nurses being those with higher levels. Users reported good levels of satisfaction, especially with the nursing services. There were no differences in stress level between type A and type B FHU, though there were at the level of user satisfaction of type B FHU users who show higher levels of satisfaction. It was seen that dimensions of user satisfaction were affected by stress related to excess work.

Key words
Stress; Satisfaction; Primary health-care

Introdução

As organizações, privadas e públicas, sofrem constantemente mudanças. Um exemplo disso são as diversas reformas a que se tem assistido no setor público designadas na literatura como New Public Management (NPM) e que vão no sentido de aproximar a gestão pública da gestão privada. Na maioria dos países da OCDE (Organisation for Economic Co-operation and Development) pode ser caracterizada por uma referência comum para um certo número de princípios: tornar a gestão de recursos humanos (GRH), na esfera pública, orientada por objetivos de negócios; promover a descentralização dos recursos humanos (RH), dando aos gestores de primeira linha maiores responsabilidades; e atingir um novo equilíbrio entre qualidade e desempenho, dentro da esfera pública, através do desenvolvimento de competências11. Pichault F. HRM-based Reforms in Public Organisations: Problems and Perspectives. Hum Resource Manage J 2007; 17(3):265-282.. De uma forma geral, o sector público começa a adotar políticas organizacionais características do setor privado, diminuindo os níveis de hierarquia e de burocracia, para formas mais simples e flexíveis22. Morris J, Farrel C. The ‘post-bureaucratic’ public sector organization. New organizational forms and HRM in ten UK public sector organizations. Int J Hum Resour Man 2007; 18(9):1575-1588.55. Fertonani H, Pires D, Biff D, Scherer M. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Cien Saude Colet2015; 20(6):1869-1878..

Estas mudanças encontram obstáculos na sua implementação que, de acordo com Pichault11. Pichault F. HRM-based Reforms in Public Organisations: Problems and Perspectives. Hum Resource Manage J 2007; 17(3):265-282., podem ser caracterizados por três aspetos: a) falta de coerência interna e discursiva, quando não existe uma transformação simultânea de várias variáveis "centrais" dos RH e não há um entendimento claro e comum dos objetivos desde início; b) falta de coerência contextual, quando é inexistente uma reestruturação profunda da forma usual de trabalho do núcleo operacional; c) e falta de coerência processual, quando não se opta por uma mudança mais transacional. Estes obstáculos exigem da GRH no setor público uma abordagem estratégica e focada em garantir que as organizações tenham a capacidade sustentável de que precisam para prestar serviços públicos essenciais de alta qualidade66. Royles D. Commentary: A point of inflection for HR in the NHS. Hum Resource Manage J 2010; 20(4):329-331..

As organizações da saúde não passam imunes a estas alterações e apresentam também obstáculos ao nível dos RH, principalmente dificuldades em estabelecer práticas eficazes e em transmitir os objetivos da organização77. Harris C, Cortvriend P, Hyde P. Human resource management and performance in healthcare organisations. J Health Organ Manag 2007; 21(4):448-459.; grande variabilidade, e pouco consenso, de indicadores de avaliação dos resultados finais88. Bartram T, Stanton P, Leggat S. Lost in translation: exploring the link between HRM and performance in healthcare. Hum Resource Manage J 2007; 17(1):21-41.; e, algumas vezes, diminuta especialização (as funções dos RH são exercidas por profissionais da saúde, sem formação e que perante a sobrecarga de trabalho, passam para segundo plano)99. Hutchinson S, Purcell J. Managing ward managers for roles in HRM in the NHS: overworked and under-resourced. Hum Resource Manage J 2010; 20(4):357-374..

Estas mudanças são fundamentais para uma melhoria contínua dos serviços e podem ser recebidas pelos colaboradores de forma positiva. No entanto, podem também ser percepcionadas de forma ameaçadora e causarem insegurança1010. Neves P. Can I trust when we change? Antecedents, consequences and moderators of interpersonal trust within organizational change interventions. Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; 2007.. Os colaboradores, perante um panorama de mudanças constantes, em que as exigências laborais são amplificadas, podem apresentar maiores níveis de estresse1111. Antón C. The impact of role stress on workers behaviour through job satisfaction and organizational commitment. Int J Psychol 2009; 44(3):187-194.. Este tipo de estresse é nomeado na literatura de estresse ocupacional e, de acordo com Lazarus1212. Lazarus S. Emotion and Adaptation. New York: Oxford University Press; 1991., tende a afluir quando os colaboradores experienciam que os seus recursos pessoais não são suficientes para enfrentar as exigências da atividade laboral.

O estresse ocupacional tem sido uma área muito estudada devido aos seus "custos" e efeitos negativos a diversos níveis, do individual ao organizacional. Verificam-se, a nível individual, problemas de insatisfação e realização, desinteresse e desmotivação, exaustão emocional e física que podem conduzir a problemas de saúde física e mental, como por exemplo de alterações no humor, do consumo excessivo de tabaco e álcool e de diversas queixas sintomáticas1313. Cooper L. Job Distress: Recent research and the emerging role of the clinical occupational psychologist. Bull Br Psychol Soc 1986; 39:325-331.. A nível organizacional, o estresse pode conduzir à insatisfação profissional, ao absentismo, baixo rendimento/produtividade, turnover, menor qualidade de serviços e a diminuição dos lucros, tudo isto num ambiente organizacional onde se prioriza, cada vez mais, os valores econômicos1414. Gomes A, Melo B, Cruz J. Stress ocupacional, Saúde e Absentismo: Estudo com Quadros Médios e Superiores de uma Empresa Têxtil. Avaliação Psicológica: Formas e Contextos 1997; 5:499-509.,1515. Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508.. Em síntese, o estresse ocupacional decorre da incapacidade do colaborador enfrentar as fontes de tensão laborais, criando problemas a nível individual e organizacional.

Englobado no estudo do estresse ocupacional está o estudo das fontes de estresse no trabalho. Neste tema, o modelo onde se constata maior consenso é o modelo de estresse ocupacional de Cooper1111. Antón C. The impact of role stress on workers behaviour through job satisfaction and organizational commitment. Int J Psychol 2009; 44(3):187-194. que indica seis fontes principais de estresse no trabalho: 1) fontes intrínsecas ao trabalho (ex: sobrecarga de trabalho); 2) papel que desempenha na organização (ex: ambiguidade de papéis); 3) estresse inerente às relações interpessoais no contexto laboral (ex: relações com superiores); 4) estresse relativo ao desenvolvimento da carreira (ex: segurança no emprego); 5) estresse proveniente do clima e estrutura organizacional (ex: grau de envolvimento); e 6) estresse intrínseco à "interface" casa-trabalho.

Os efeitos negativos do estresse, também, têm sido analisados em função da profissão. Verificou-se que existem razões especiais para considerar os profissionais da saúde como um grupo particularmente afetado pelo estresse1616. Melo B, Gomes A, Cruz J. Stress ocupacional em profissionais da saúde e do ensino. Psicologia: Teoria, Investigação e Prática 1997; 2:53-71.. Estes profissionais são considerados um grupo de risco por: a tomada de decisão, nesta profissão, implicar um paciente no processo e qualquer erro nessa decisão poder levar a um agravamento do estado de saúde e, em situações extremas, à morte; o seu próprio estresse poder gerar mal-estar no doente, que é foco da sua atenção; e ainda, devido á natureza do próprio trabalho, por estarem em contato com patologias. De uma forma geral, estes profissionais estão expostos a situações de maior exaustão emocional, enfrentando constantemente situações estressantes de casos de lesões graves, sofrimento, dor física, trauma e morte dos pacientes1717. Quick J, Murphy L, Hurrel J. Stress & Well-being at work: Assessments and interventions for occupational mental health. Washington: American Psychological Association; 1992.1919. Gomes A, Cruz J, Cabanelas S. Estresse ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com enfermeiros portugueses. Psicologia: Teoria e Pesquisa 2009; 25(3): 307-318.. Em estudos portugueses, os enfermeiros parecem ser os que apresentam maiores níveis de estresse1515. Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508.,1616. Melo B, Gomes A, Cruz J. Stress ocupacional em profissionais da saúde e do ensino. Psicologia: Teoria, Investigação e Prática 1997; 2:53-71.,1919. Gomes A, Cruz J, Cabanelas S. Estresse ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com enfermeiros portugueses. Psicologia: Teoria e Pesquisa 2009; 25(3): 307-318..

O foco, deste estudo, nos profissionais da saúde centra-se na lógica de que, à parte de ser um grupo particularmente afetado pelo estresse, ainda tem de lidar com as exigências inerentes ao NPM. Neste âmbito, um dos contextos de relevância são as Unidades de Saúde Familiar (USF). As USF, de acordo com o Ministério da Saúde de Portugal (Dec. Lei n.° 298/2007, de 22 de agosto), são pequenas unidades operativas com autonomia funcional e técnica, que contratualizam objetivos de acessibilidade, adequação, efetividade, eficiência e qualidade, e que garantem aos pacientes um pacote básico de serviços. Há três modelos de USF (A, B e C), de acordo com o grau de autonomia organizacional, da diferenciação do modelo retributivo e de incentivos dos profissionais, do modelo de financiamento e respectivo estatuto jurídico. O modelo A compreende as USF com regras e remunerações definidas pela Administração Pública, aplicáveis ao setor e às respetivas carreiras dos profissionais que as integram, com possibilidade de contratualizar uma carteira adicional de serviços e o cumprimento de metas, que se traduz em incentivos institucionais reversíveis para as mesmas. O modelo B abrange as USF do sector público administrativo com um regime retributivo especial para todos os profissionais, integrando remuneração base, suplementos e compensações pelo desempenho. O modelo C abrange as USF dos setores sociais, cooperativo e privado, sendo o seu funcionamento baseado num contrato-programa. Para este estudo apenas é relevante os modelos A e B, visto que até ao momento não existe nenhuma USF modelo C.

Todas as USF têm origem num projeto de equipes de profissionais que se autopropõem ao Ministério da Saúde português, sendo as USF modelo B consideradas unidades com maior amadurecimento organizacional, em que os profissionais estão dispostos a aceitar um nível de contratualização de limiares de desempenho mais exigentes. É, ainda, de salientar que uma das metas obrigatórias para todos os modelos de USF contratualizadas é a avaliação da satisfação dos pacientes.

Este contexto é relevante, principalmente, por dois motivos: 1) a maior parte dos estudos com profissionais de saúde centram-se nos hospitais, fazendo com que as organizações dos Cuidados Primários de Saúde (CPS) sejam pouco estudadas nesta temática; 2) os CPS estão em processo de reforma, sendo as USF parte dessa mesma reforma2020. Rocha P, Sá A. Family Health Reform in Portugal: analysis of its implementation. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2853-2863., o que os coloca num momento favorável para estudar o processo de adaptação à reforma. Além do mais, sendo as USF modelo A as que se encontram no processo de adaptação, por estarem na etapa inicial em termos temporais do processo de constituição, e as modelo B as que já se encontram ajustadas a este novo sistema (por terem obtido a classificação Modelo B com base em critérios de performance), será interessante perceber se existem diferenças nos temas que pretendemos analisar, numa fase inicial e mais adaptada de um processo de mudança organizacional.

O objetivo deste estudo é analisar o estresse ocupacional nos profissionais da saúde e o seu impacto nos pacientes através dos níveis de satisfação. Mais concretamente, pretende-se:

  1. Analisar os níveis do estresse nos profissionais da saúde e averiguar se existem diferenças entre profissionais das USF modelo A e os profissionais do modelo B;

  2. Analisar o efeito do estresse ocupacional dos profissionais no nível de satisfação dos pacientes;

  3. Analisar e comparar os níveis de satisfação dos pacientes das USF modelo A com os pacientes das USF modelo B.

De forma a alcançar estes objetivos, o estudo em questão guiou-se pelas seguintes hipóteses:

  1. Os profissionais de saúde, mais concretamente os enfermeiros, apresentam elevados níveis de estresse.

  2. Os profissionais de saúde das USF modelo B apresentam maiores níveis de estresse que os profissionais de saúde das USF modelo A.

  3. Os pacientes das USF modelo B apresentam maiores níveis de satisfação que os pacientes das USF modelo A.

  4. O estresse dos profissionais de saúde tem efeitos preditores na satisfação dos pacientes e, por sua vez, esta tem efeitos preditores no estresse dos profissionais de saúde.

Para terminar, é fundamental salientar que este estudo está inserido num projeto mais extenso financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA).

Método

Procedimentos

O estudo foca nas USF da região norte de Portugal (Braga, Viana do Castelo e Porto). Este foco centra-se sobre questões de acessibilidade e econômicas. De acordo com a Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar2121. USF-AN. [Online]. 2014. [acessado 2014 maio 22]. Disponível em: http://www.usf-an.pt/index.php/unidades.
http://www.usf-an.pt/index.php/unidades...
, existem 353 USF operando em Portugal, sendo que 172 operam nos distritos de Braga, Porto e Viana do Castelo.

Foram contatadas e convidadas a participar no estudo USF dos distritos de Braga, Porto e Viana do Castelo. Das USF que acederam a participar no estudo foram selecionadas por proximidade geográfica, 20, mais concretamente, 10 USF modelo A e 10 modelo B. Foi agendada uma reunião com o coordenador de cada USF, onde foram expostos os objetivos do estudo e entregues os questionários para os profissionais. Após duas semanas, procedeu-se a coleta dos questionários dos profissionais e aplicação dos questionários de satisfação dos pacientes. Esta aplicação ocorreu de forma presencial, junto dos pacientes que se encontravam na USF no momento do recolhimento dos questionários dos profissionais. Quando os usuários apresentavam baixo nível de escolaridade e/ou sem escolaridade, o investigador lia o questionário e o preenchia com as respostas dos usuários (heterorrelato).

A coleta ocorreu entre outubro de 2013 e janeiro de 2014. Obteve-se um total de respostas de 305 profissionais de saúde e de 392 pacientes, correspondente a uma taxa de resposta de 80,9% e 90,7%, respetivamente.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte (Portugal). Aos participantes do estudo foi garantido o direito ao consentimento informado, livre e esclarecido. Não ocorreram conflitos de interesses para a realização deste trabalho.

Amostra

A amostra é constituída por 305 profissionais da saúde e 392 pacientes das USF.

Relativamente aos profissionais, estes apresentam idades entre os 28 e 64 anos, com uma média de 42.22 (D.P. = 10.36). A maioria, 241 (79.8%), é do sexo feminino e são casados(as), 214 (71.3%). Ao nível das categorias profissionais estão distribuídos da seguinte forma: 105 (34.7%) médicos(as), 115 (38.0%) enfermeiros(as) e 83 (27.4%) secretários(as) clínicos. Exercem funções na mesma USF entre 0 e 7 anos, com uma média de 3.89 anos (D.P. = 1.54).

Os pacientes (participantes) apresentam idades entre os 14 e 84 anos, com uma média de 41.67 (D.P. = 15.94). A maioria, 303 (77.3%), é do sexo feminino e 225 são casados(as), (57.4%). Destes pacientes, a maioria, 385 (98.2%), não é a primeira vez que buscou os serviços da USF e recorreu no último ano, em média, 4.66 vezes (D.P. = 5.01). Estes pacientes estão inscritos na USF entre 0 e 7 anos, com uma média de 3.85 (D.P. = 1.57). É de salientar que apenas 51 (13.0%) dos participantes responderam em formato de heterorrelato.

Instrumentos

A seguir são apresentados os instrumentos utilizados e, entre parêntesis, os respetivos valores de fiabilidade (alfa de Cronbach) encontrados neste estudo.

O questionário de dados demográficos permite a caracterização da amostra e o estudo de variáveis demográficas relacionadas com os aspetos em estudo. Foram recolhidos dados relativos a sexo, idade, antiguidade e categoria profissional.

Questionário de Stress nos Profissionais de Saúde (QSPS)2222. Gomes A. Questionário de Stress para Profissionais de Saúde. Braga: Universidade do Minho; 2010.. Constituído por duas partes distintas, numa primeira parte é avaliado o nível de estresse global experienciado na realização da atividade profissional. A segunda parte é constituída por 25 itens que avaliam as potenciais fontes de estresse no exercício da atividade profissional dos profissionais da saúde. Os itens distribuem-se por seis subescalas:

  1. Lidar com clientes (4 itens; α = .76): refere-se aos sentimentos negativos dos profissionais relacionados com as pessoas a quem prestam os seus serviços;

  2. Excesso de trabalho (4 itens; α = .83): diz respeito à excessiva carga de trabalho e de horas de serviço a realizar;

  3. Carreira e remuneração: indica os sentimentos de mal-estar relacionados com a falta de perspectivas de desenvolvimento da carreira profissional e de insatisfação com o salário recebido;

  4. Relações profissionais (5 itens; α = .84): descreve o mal-estar dos profissionais relativamente ao ambiente de trabalho, bem como à relação mantida com os colegas de trabalho e superiores hierárquicos;

  5. Ações de formação: reporta as experiências negativas dos profissionais em situações onde devem elaborar e conduzir ações de formação e efetuar apresentações públicas;

  6. Problemas familiares (4 itens; α = .79): descreve os problemas de relacionamento familiar e a falta de apoio por parte de pessoas significativas.

Os itens são respondidos numa escala tipo "likert" de 5 pontos (0 = nenhum stress; 5 = elevado stress). Devido a este estudo estar inserido num projeto mais amplo e de forma a não ocupar demasiado tempo dos participantes, não foi utilizado o item de estresse global nem os itens correspondentes às subescalas "carreira e remuneração" e "ações de treinamento", já avaliado por outras escalas, optando-se pela utilização dos itens relativos às escalas mais relacionais. Assim, o questionário final ficou constituído por 17 itens que representavam as seguintes subescalas: lidar com clientes, excesso de trabalho, relações profissionais e problemas familiares.

Questionário de Satisfação dos Pacientes (QSU)2323. Ferreira P, Raposo V, Godinho P. A Voz dos Utilizadores dos Centros de Saúde. Lisboa: Instituto da Qualidade em Saúde; 2005.,2424. Wensing M, Mainz J, Grol R. A Standardised Instrument for Patient Evaluations of General Practice Care in Europe. Eur J Gen Pract 2000; 6(3):82-87.. Os indicadores EUROPEP são a base deste questionário. O Europep avalia a satisfação dos utilizadores com os cuidados primários de saúde prestados, a nível europeu. Entre os resultados alcançados por estudos anteriores no âmbito do EUROPEP, encontra-se um questionário de avaliação da satisfação dos pacientes dos cuidados primários, validado em vários países europeus, e a definição dum conjunto de indicadores de satisfação relativos aos serviços prestados na área dos cuidados primários de saúde2525. Ferreira P, Raposo V. A Governação em Saúde e a Utilização de Indicadores de Satisfação. Rev Portuguesa de Clinica Geral 2006; 22:285-296.2727. Wensing M, Elwyn G. Improving the Quality of Health Care: Methods for Incorporating Patients’ Views in Health Care. BMJ 2003; 326(7394):877-879..

É composto por 35 itens que avaliam a satisfação do paciente em 5 domínios: serviços médicos (19 itens; α = .97), serviços de enfermagem (3 itens; α = .87), serviços de secretariado clínico (3 itens; α = .92), a USF (5 itens; α = .89) e acessibilidade (5 itens; α = .86). Contém, ainda, 3 itens de avaliação geral, mais concretamente, se o paciente considera que a USF responde às necessidades dos pacientes, se recomendaria a USF e se tem motivos para mudar de USF. Os itens são cotados numa escala tipo "likert" de 5 pontos (0 = mau; 4 = excelente) e nos itens de avaliação geral de "0 = discordo muito" a " 4 = concordo muito".

Resultados

Primeiramente serão apresentados os resultados relativos ao estresse ocupacional, seguidos dos resultados relativos à satisfação dos pacientes e, por fim, a interação entre ambos.

Os testes estatísticos utilizados na análise dos dados dependeram do tipo de variável analisada e/ou do cumprimento dos pressupostos para o uso de testes paramétricos. Quando estes pressupostos não se verificaram, foram aplicados testes não paramétricos.

Foi utilizado, no tratamento e análise dos dados, o programa estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS)®, versão 22.

Estresse ocupacional

Considerando o nível global de estresse (escala completa) sentido pelos profissionais, é possível constatar que 123 (40.3%) dos participantes relataram níveis de estresse elevados (junção dos valores "bastante" e "elevado" da escala), enquanto 134 (43.9%) relataram níveis moderados e 48 (15.7%) assinalaram níveis baixos de estresse (junção dos valores "nenhum" e "pouco" da escala).

Realizou-se, relativamente às dimensões do estresse (subescalas do QSPS), uma análise dos profissionais que apresentaram valores extremos na escala "likert" (junção dos valores "bastante" e "elevado"), resultando assim numa indicação da percentagem de profissionais para quem cada uma das dimensões foi avaliada como altamente estressante. Como se poderá verificar na Tabela 1, "lidar com clientes" constituiu o principal problema referenciado pelos profissionais, sendo que para os médicos(as) o principal problema é o "excesso de trabalho" e para os enfermeiros(as) e secretários(as), "lidar com clientes".

Tabela 1
Níveis de estresse elevado na escala total e nas dimensões do QSPS.

O autor deste instrumento propõe a apresentação dos 10 itens geradores de maior tensão (cotados como "elevado" na escala)2020. Rocha P, Sá A. Family Health Reform in Portugal: analysis of its implementation. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2853-2863.. Contudo, como neste estudo não se utilizou o questionário completo, serão apenas apresentados os 6 itens geradores de maior tensão (Tabela 2).

Tabela 2
Itens geradores de estresse "elevado".

Analisando a Tabela 2, é possível constatar que a dimensão "excesso de trabalho" não só é a mais representada como, também, todos os itens que a compõem esta dimensão estão presentes entre os mais geradores de tensão. O item "Tomar decisões onde os erros podem ter consequências graves para os pacientes", pertencente à dimensão "lidar com clientes", é o que demonstra maiores porcentagens, sendo deste modo considerado o aspecto funcional do trabalho em análise que mais tensão gera.

Análises comparativas ao nível da experiência global de estresse

Foram realizadas análises para observar eventuais diferenças na experiência global de estresse em função do tipo de USF, grupo profissional, antiguidade na USF e de características individuais (sexo e idade).

Constata-se que não existem diferenças estatisticamente significativas na experiência global de estresse entre profissionais das USF modelo A e profissionais das USF modelo B. Também não se verificam diferenças estatisticamente significativas na experiência global de estresse ao nível da idade e da antiguidade na USF.

Encontraram-se diferenças marginalmente significativas na experiência global de estresse em função do grupo profissional [F (2,300) = 2.50, p = .08]. Testes Post Hoc de Scheffe revelaram que os secretários clínicos tendem a experimentar menos estresse que os enfermeiros.

Há, também diferenças significativas na experiência global de estresse ao nível do sexo (t (300) = 2.45, p = .02), sendo os participantes do sexo feminino que relatam maiores níveis de estresse.

Análises comparativas ao nível das dimensões do estresse (subescalas do QSPS)

O objetivo desta análise foi observar eventuais diferenças nas dimensões do estresse considerando o modelo de USF, grupo profissional, antiguidade na USF e características individuais (sexo e idade).

Não existem diferenças estatisticamente significativas em nenhuma dimensão do estresse entre os profissionais das USF modelo A e das USF modelo B.

Contudo, em função do grupo profissional, há diferenças significativas nas dimensões "excesso de trabalho" (χ2(2) = 6.51, p = .04) e "problemas familiares" (χ2(2) = 8.48, p = .01). E ainda diferenças marginalmente significativas nas dimensões "lidar com clientes" (χ2(2) = 6.00, p = .05) e "relações profissionais" (χ2(2) = 4.68, p = .09). Testes Mann-Whitney com correção Bonferroni revelaram que o "excesso de trabalho" é percebido como maior fonte de estresse para os médicos do que para os secretários clínicos (Z = −2.50, p < .017). E que os "problemas familiares" são experimentados pelos enfermeiros como geradores de maior estresse do que pelos secretários clínicos (Z = −2.81, p < .017).

Considerando as características individuais, verifica-se que, em função do sexo dos participantes, existem diferenças significativas nas dimensões "lidar com clientes" (Z = −2.12, p = .03) e "excesso de trabalho" (Z = −2.00, p = .04). Os participantes do sexo feminino percebem estas dimensões mais geradoras de estresse que os participantes do sexo masculino. E, existem diferenças marginalmente significativas na dimensão "relações profissionais" (Z = −1.90, p = .06), em que os participantes do sexo feminino, em comparação com o masculino, tendem a perceber esta dimensão como mais geradora de estresse.

Não foram verificadas diferenças estatisticamente significativas em nenhuma dimensão do estresse ao nível da idade e da antiguidade na USF.

Satisfação dos Pacientes

Verificou-se existirem diferenças significativas no nível de satisfação em função do tipo de relato (Z = −6.86, p = .000). Os heterorrelatos demonstram maiores níveis de satisfação. Como estes níveis elevados de satisfação podem ter origem em outros fenômenos (ex: desejabilidade social) e de forma a evitar vieses nos dados, estes participantes (n = 51, 13.0%) foram retirados das análises posteriores.

Na Tabela 3 é possível constatar que, em geral, os pacientes estão satisfeitos, sendo a média de satisfação global de 3.02 (D. P. = .71). Dos aspectos mais satisfatórios, avaliados pelos pacientes, ressaltam os serviços de enfermagem com uma média de 3.28 (D. P. = .78).

Tabela 3
Níveis de satisfação dos pacientes das USF.

Analisando os 3 itens de avaliação geral (junção de "concordo" e "concordo muito" da escala) verifica-se o seguinte: 284 (83.3%) participantes afirmam que a USF responde às necessidades dos pacientes; 297 (87.1%) participantes recomendariam a USF a familiares e amigos; e 299 (87.7%) participantes não veem razões para mudar de USF.

Análises comparativas ao nível da satisfação global dos pacientes

Pretendia-se verificar eventuais diferenças na satisfação global dos pacientes com os serviços prestados pelas USF em função das caraterísticas individuais (sexo e idade) e da USF (tempo inscrito, número de visitas no último ano e modelo).

Verificaram-se diferenças significativas na satisfação global dos pacientes em função da idade (χ2(3) = 18.06, p = .000). Testes Mann-Whitney com correção Bonferroni (.05/6 = .0083) revelaram que os participantes com mais de 45 anos apresentam maiores níveis de satisfação que os participantes com idades inferiores a 25 anos (Z = −3.07, p < .0083), e que os participantes com idades entre os 25 e 35 anos (Z = −3.94, p < .0083).

Verificaram-se também diferenças significativas na satisfação global dos pacientes em função do modelo de USF que frequentam (Z = −1.97, p = .04), sendo que os pacientes das USF modelo B apresentam maiores níveis de satisfação.

Análises Preditivas

O objetivo deste nível de análise foi compreender qual o efeito preditor do estresse na satisfação dos pacientes e desta no estresse dos profissionais. As primeiras análises foram realizadas com os indicadores globais, através duma regressão linear simples, e depois foram realizadas análises com as fontes de estresse e as dimensões da satisfação.

A regressão linear simples mostrou que .05% da variância da satisfação global dos pacientes é explicada pelo estresse global dos profissionais sendo não significativo (R2aj = -.009, n.s.) (F (4,299) = .34, n.s.). Também foi possível observar que .01% da variância do estresse global é explicada pela satisfação global, sendo não significativo (R2aj = -.002, n.s.) (F (1,302) = .40, n.s.).

A regressão linear múltipla revelou que 4 das 5 dimensões da satisfação dos pacientes explicam 4.9% da variância do estresse dos profissionais relativo ao "excesso de trabalho" (R2aj = .04, p < .01) (F (4,299) = 3.86, p < .01). A satisfação com a "acessibilidade" é o preditor mais significativo do estresse relativo ao "excesso de trabalho" (t = −2.98, p < .01), sendo que quanto menor a satisfação com a "acessibilidade", maiores são os níveis de estresse relativo ao excesso de trabalho (Tabela 4).

Tabela 4
Modelo de regressão entre as dimensões da satisfação e o estresse relativo ao "excesso de trabalho".

Uma análise focada no modelo de USF exibe, apenas nas USF modelo A, um efeito preditivo das dimensões da satisfação dos pacientes no estresse dos profissionais. Assim, estas dimensões explicam 10.1% do estresse dos profissionais (R2aj = .06, p < .03) (F (5,118) = 2.64, p < .03). A satisfação com a acessibilidade (t = −2.91, p < .01) e com os serviços de secretariado (t = 2.91, p < .01) são os preditores mais significativos do estresse global: quanto maior a satisfação dos pacientes com os serviços de secretariado e menor com a acessibilidade, maiores níveis de estresse global dos profissionais (Tabela 5).

Tabela 5
Modelo de regressão entre as dimensões da satisfação e o estresse global (USF modelo A).

Discussão

O estudo do estresse ocupacional em profissionais de saúde tem suscitado a atenção de investigadores que pretendem compreender como este fenômeno afeta colaboradores e os serviços que estes prestam. É também de grande interesse para muitos investigadores entender as mudanças que o NPM, aqui consubstanciado na reforma dos cuidados de saúde primários, aporta consigo. É nesta lógica, de entender o fenômeno do estresse, mas também as mudanças inerentes ao NPM, que se insere este estudo. Neste sentido, esta investigação pretende compreender o fenômeno do estresse, mas também as diferenças no processo de adaptação à reforma nos cuidados de saúde primários e o impacto nos resultados finais.

Oitenta e quatro por cento dos profissionais relatam níveis moderados a elevados de estresse ocupacional, o que representa uma elevada percepção do nível de exigência colocado pela prática profissional. Em referência aos níveis elevados de estresse expressos pelos profissionais, verifica-se que os enfermeiros são os que apresentam indicadores mais altos (48.6%), seguidos pelos secretários clínicos (36.1%) e por fim os médicos (34.3%). No que concerne aos enfermeiros, estudos portugueses mostram valores mais baixos do que os que foram aqui identificados, entre 18.5% a 30%1515. Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508.,1919. Gomes A, Cruz J, Cabanelas S. Estresse ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com enfermeiros portugueses. Psicologia: Teoria e Pesquisa 2009; 25(3): 307-318., e estudos internacionais mostram valores mais elevados, cerca de 80%2828. Petterson I, Arnetz B, Arnetz J, Horte L. Work environment, skills utilization an health of Swedish nurses. Psychotherapy and Psychosomatics1995; 64(1):20-31.. Os valores apresentados pelos médicos da nossa amostra encontram-se acima de outros estudos internacionais2929. Firth-Cozens J. Doctors, their wellbeing, and their stress. BMJ 2003; 326(7391):670-671., mas abaixo de outros estudos portugueses1515. Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508..

Nesta investigação, os participantes do sexo feminino demonstram maiores níveis de estresse, o que está de acordo com os resultados obtidos em outros estudos1515. Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508.,1919. Gomes A, Cruz J, Cabanelas S. Estresse ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com enfermeiros portugueses. Psicologia: Teoria e Pesquisa 2009; 25(3): 307-318.,3030. Narayan L, Menon S, Spector. Stress in the Workplace: A comparison of gender and occupations. Journal of Organizational Behaviour 1999; 20:63-73.. É de salientar que estas comparações são com estudos realizados em contexto hospitalar e que, até a finalização deste trabalho, não se encontraram outros estudos sobre estresse no contexto dos cuidados de saúde primários. Por este motivo, estas comparações devem ser tomadas com alguma precaução e, também por este motivo, não é possível comparar os resultados dos secretários clínicos. Contudo e relativamente aos indicadores encontrados referentes às fontes de estresse, há correspondências com outras investigações nacionais e internacionais1515. Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia. Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508.,1919. Gomes A, Cruz J, Cabanelas S. Estresse ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com enfermeiros portugueses. Psicologia: Teoria e Pesquisa 2009; 25(3): 307-318.,3030. Narayan L, Menon S, Spector. Stress in the Workplace: A comparison of gender and occupations. Journal of Organizational Behaviour 1999; 20:63-73..

A avaliação realizada com o QSU mostra que os pacientes se encontram bastante satisfeitos com os serviços recebidos, em especial com os serviços de enfermagem, sendo a "acessibilidade" o aspecto menos satisfatório para os pacientes.

Para este estudo foram elaboradas inicialmente quatro hipóteses das quais apenas uma se verifica. Relativamente à primeira hipótese, constata-se que os enfermeiros apresentam maiores níveis de estresse que os médicos, mas estas diferenças não são significativas, pelo que não se confirma a hipótese. Contudo é de salientar que os secretários clínicos apresentam menores níveis de estresse, principalmente em relação aos enfermeiros e aos médicos (na dimensão "excesso de trabalho"). Uma explicação para este fenômeno pode ser o fato de o trabalho dos secretários clínicos – administrativo – se distinguir claramente em termos do conteúdo funcional dos restantes grupos profissionais, não incluindo aspectos como lidar com as consequências para o paciente da tomada de decisão clínica.

A segunda hipótese não foi confirmada pois não se verificam diferenças significativas entre os níveis de estresse dos profissionais das USF modelo A e os profissionais das USF modelo B. Todavia, verificam-se diferenças na satisfação dos pacientes das USF modelo A e modelo B (terceira hipótese), sendo que os pacientes das USF modelo B apresentam maiores níveis de satisfação. Uma possível explicação para estes resultados pode ser o facto de que para os profissionais, o tipo de trabalho e exigências é o mesmo independentemente do modelo de USF. No entanto, as USF modelo B já se encontram mais adaptadas ao novo sistema e, em princípio, com um maior foco no cumprimento das metas, sendo uma destas a satisfação do cliente/paciente. Por outro lado, não podemos deixar de realçar que a percepção de esforço por parte dos profissionais se mantém ou seja, mesmo que a experiência em termos do modelo de gestão e desempenho possa permitir ser mais eficiente (profissionais modelo B), estes mantêm o nível de estresse e percepção de esforço dos profissionais com menor experiência (USF modelo A). Este grau de adaptação e focalização pode conduzir a uma melhor percepção da qualidade dos serviços por parte dos pacientes.

A quarta hipótese não foi confirmada. As análises realizadas não demonstraram efeitos preditivos do estresse dos colaboradores na satisfação dos pacientes nem da satisfação no estresse. Contudo, a regressão linear múltipla demonstrou um efeito das dimensões da satisfação na fonte de estresse relativa ao "excesso de trabalho", sendo mais evidente o efeito da satisfação com a "acessibilidade": quanto menor os níveis de satisfação na dimensão "acessibilidade", maior os níveis de estresse relativos ao "excesso de trabalho". É de salientar que os resultados relativos a estas duas dimensões podem revelar algo mais em futuros estudos, pois o estresse devido ao "excesso de trabalho" foi uma das dimensões com níveis mais altos e a mais cotada. Nos itens como "estresse elevado" e a "satisfação relativa à acessibilidade" foi a dimensão mais penalizada entre todas as dimensões da satisfação. É, ainda, de salientar que uma análise focada no modelo de USF mostra que nas USF modelo A existe um efeito preditivo das dimensões da satisfação dos pacientes no estresse dos profissionais, sendo a "satisfação com a acessibilidade" e com os "serviços de secretariado" os preditores mais significativos do estresse. Estes resultados realçam o facto de maior envolvimento dos colaboradores, independentemente do grupo profissional, na prestação de serviços de saúde poder reverter seguramente em maior satisfação para os clientes. Contudo, poderá ter implicações ao nível de estresse experimentado pelos profissionais, o que terá consequências futuras em termos da degradação da sua performance, tal como foi apontado na introdução.

Concluindo, os resultados apresentados por este estudo reforçam a necessidade de se obter uma maior compreensão da relação do estresse com a atividade laboral dos profissionais de saúde e com os resultados finais da sua atividade, de forma a se poder elaborar e implementar medidas de prevenção e remediação ao nível individual e organizacional. De facto, as fontes de estresse identificadas decorrem da natureza do próprio trabalho, nomeadamente de médicos e enfermeiros, ou seja, trabalhar com pessoas e tomar decisões que implicam risco. Esta constatação é reforçada pelo facto de que os secretários clínicos, com diferente conteúdo funcional, apresentam menor nível de estresse. Sendo difícil e impossível alterar estes aspectos relativos à especificidade das exigências funcionais do trabalho de médicos e enfermeiros, seria importante identificar e introduzir práticas que permitam a estes profissionais se recuperarem deste esforço acrescido. Reforça-se assim a necessidade de mais estudos na área dos cuidados de saúde primários e nas organizações públicas que atravessam as mudanças que o NPM acarreta.

É de salientar que este estudo teve como uma das principais limitações a homogeneidade da amostra – todas as USF pertencem ao norte do país- e que futuros estudos poderiam recorrer a uma amostra mais heterogênea, envolvendo UFS do norte ao sul do país. Outra limitação encontrada foi o recurso apenas a um indicador dos resultados finais da atividade laboral (a satisfação dos pacientes). Futuros estudos poderiam englobar mais indicadores como, por exemplo, o tempo de espera ou o número de reclamações. Contudo, este estudo tem um caráter inovador pela sua focalização numa área negligenciada pela investigação – os cuidados de saúde primários – e pelo estudo das relações entre problemáticas do colaborador e da organização (estresse ocupacional) e os resultados finais (satisfação dos pacientes).

Referências

  • 1
    Pichault F. HRM-based Reforms in Public Organisations: Problems and Perspectives. Hum Resource Manage J 2007; 17(3):265-282.
  • 2
    Morris J, Farrel C. The ‘post-bureaucratic’ public sector organization. New organizational forms and HRM in ten UK public sector organizations. Int J Hum Resour Man 2007; 18(9):1575-1588.
  • 3
    Junqueira LAP. Gerência dos serviços de saúde. Cien Saude Colet 1990; 6(3):247-259.
  • 4
    Costa e Silva V, Escoval A, Hortale V. Contratualização na Atenção Primária à Saúde: a experiência de Portugal e Brasil. Cien Saude Colet2014; 19(8):3593-3604.
  • 5
    Fertonani H, Pires D, Biff D, Scherer M. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Cien Saude Colet2015; 20(6):1869-1878.
  • 6
    Royles D. Commentary: A point of inflection for HR in the NHS. Hum Resource Manage J 2010; 20(4):329-331.
  • 7
    Harris C, Cortvriend P, Hyde P. Human resource management and performance in healthcare organisations. J Health Organ Manag 2007; 21(4):448-459.
  • 8
    Bartram T, Stanton P, Leggat S. Lost in translation: exploring the link between HRM and performance in healthcare. Hum Resource Manage J 2007; 17(1):21-41.
  • 9
    Hutchinson S, Purcell J. Managing ward managers for roles in HRM in the NHS: overworked and under-resourced. Hum Resource Manage J 2010; 20(4):357-374.
  • 10
    Neves P. Can I trust when we change? Antecedents, consequences and moderators of interpersonal trust within organizational change interventions Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; 2007.
  • 11
    Antón C. The impact of role stress on workers behaviour through job satisfaction and organizational commitment. Int J Psychol 2009; 44(3):187-194.
  • 12
    Lazarus S. Emotion and Adaptation New York: Oxford University Press; 1991.
  • 13
    Cooper L. Job Distress: Recent research and the emerging role of the clinical occupational psychologist. Bull Br Psychol Soc 1986; 39:325-331.
  • 14
    Gomes A, Melo B, Cruz J. Stress ocupacional, Saúde e Absentismo: Estudo com Quadros Médios e Superiores de uma Empresa Têxtil. Avaliação Psicológica: Formas e Contextos 1997; 5:499-509.
  • 15
    Ribeiro L, Gomes A, Silva M. Stresse ocupacional em profissionais de saúde: Um estudo comparativo entre médicos e enfermeiros a exercer em contexto hospitalar. In: Nogueira C, Silva I, Lima L, Almeida A, Cabecinhas R, Gomes R, Machado C, Maia A, Sampaio A, Taveira MC. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Lisboa: Associação Portuguesa de Psicologia; 2010; p. 1494-1508.
  • 16
    Melo B, Gomes A, Cruz J. Stress ocupacional em profissionais da saúde e do ensino. Psicologia: Teoria, Investigação e Prática 1997; 2:53-71.
  • 17
    Quick J, Murphy L, Hurrel J. Stress & Well-being at work: Assessments and interventions for occupational mental health Washington: American Psychological Association; 1992.
  • 18
    Sauter S, Murphy L. Organizational risk factors for job stress Washington: American Psychological Association; 1995.
  • 19
    Gomes A, Cruz J, Cabanelas S. Estresse ocupacional em profissionais de saúde: um estudo com enfermeiros portugueses. Psicologia: Teoria e Pesquisa 2009; 25(3): 307-318.
  • 20
    Rocha P, Sá A. Family Health Reform in Portugal: analysis of its implementation. Cien Saude Colet 2011; 16(6):2853-2863.
  • 21
    USF-AN. [Online]. 2014. [acessado 2014 maio 22]. Disponível em: http://www.usf-an.pt/index.php/unidades.
    » http://www.usf-an.pt/index.php/unidades
  • 22
    Gomes A. Questionário de Stress para Profissionais de Saúde Braga: Universidade do Minho; 2010.
  • 23
    Ferreira P, Raposo V, Godinho P. A Voz dos Utilizadores dos Centros de Saúde Lisboa: Instituto da Qualidade em Saúde; 2005.
  • 24
    Wensing M, Mainz J, Grol R. A Standardised Instrument for Patient Evaluations of General Practice Care in Europe. Eur J Gen Pract 2000; 6(3):82-87.
  • 25
    Ferreira P, Raposo V. A Governação em Saúde e a Utilização de Indicadores de Satisfação. Rev Portuguesa de Clinica Geral 2006; 22:285-296.
  • 26
    Grol R, Wensing M, Mainz J, Jung HP, Ferreira P, Hearnshaw H, Hjortdahl P, Olesen F, Reis S, Ribacke M, Szecsenyi J; European Task Force on Patient Evaluations of General Practice Care (EUROPEP). Patients in Europe evaluate general practice care: an international comparison. Br J Gen Pract 2000; 50(460):882-887.
  • 27
    Wensing M, Elwyn G. Improving the Quality of Health Care: Methods for Incorporating Patients’ Views in Health Care. BMJ 2003; 326(7394):877-879.
  • 28
    Petterson I, Arnetz B, Arnetz J, Horte L. Work environment, skills utilization an health of Swedish nurses. Psychotherapy and Psychosomatics1995; 64(1):20-31.
  • 29
    Firth-Cozens J. Doctors, their wellbeing, and their stress. BMJ 2003; 326(7391):670-671.
  • 30
    Narayan L, Menon S, Spector. Stress in the Workplace: A comparison of gender and occupations. Journal of Organizational Behaviour 1999; 20:63-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2015

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2014
  • Revisado
    28 Mar 2015
  • Aceito
    30 Mar 2015
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br