McGill Entrevista Narrativa de Adoecimento - MINI: tradução e adaptação transcultural para o português

Erotildes Maria Leal Alicia Navarro de Souza Octavio Domont de Serpa Júnior Iraneide Castro de Oliveira Catarina Magalhães Dahl Ana Cristina Figueiredo Samantha Salem Danielle Groleau Sobre os autores

Resumo

Este artigo apresenta o processo de tradução e adaptação cultural para o português da McGill Illness Narrative Interview – MINI, um modelo de entrevista para a pesquisa dos sentidos e dos modos de narrar a experiência do adoecimento, testada, no contexto brasileiro, para os problemas psiquiátricos e os relacionados ao câncer. Foram realizadas duas traduções e respectivas retraduções, avaliada a equivalência semântica, elaboradas versões síntese e final e dois pré-testes nas populações-alvo (pessoas com alucinações auditivas verbais ou câncer de mama). Foi observado um grau elevado de equivalência semântica entre o instrumento original e os pares de tradução-retradução e da perspectiva dos significados referencial e geral. A equivalência semântica e operacional das modificações propostas foram confirmadas nos pré-testes. Disponibilizou-se para o contexto brasileiro a primeira adaptação de um modelo de entrevista que possibilita a produção de narrativas sobre a experiência de adoecimento.

Experiência de adoecimento; Narrativa; Entrevista; Tradução; McGill Entrevista de Narrativa de Adoecimento – MINI

Introdução

Este artigo apresenta o processo de tradução e adaptação transcultural para o Português da McGill Illness Narrative Interview – MINI, modelo de entrevista para a obtenção de narrativas de experiências e sentidos de adoecimento e sintomas, realizado por pesquisadores do Laboratório de Estudos em Psicopatologia e Subjetividade do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Esta entrevista, elaborada por Danielle Groleau, Allan Young e Laurence Kirmayer, da Divisão de Psiquiatria Transcultural e Social da Universidade McGill (Montreal, Canadá), foi originalmente publicada em inglês, em 200611. Groleau D, Young A, Kirmayer LJ. The McGill Illness Narrative Interview (MINI): An Interview Schedule to Elicit Meanings and Modes of Reasoning Related to Illness Experience. Transcult Psychiatry 2006; 43(4):697-717..

A McGill MINI é uma entrevista semiestruturada, qualitativa, que possibilita a produção de narrativas sobre a experiência de adoecimento para qualquer problema, condição ou evento de saúde, incluindo sintomas, conjunto dos sintomas, síndromes, diagnósticos biomédicos ou rótulos populares. Dependendo da pergunta da pesquisa, poderá ser utilizada para se conhecer a experiência de adoecimento de um individuo ou de um grupo, para comparar experiências individuais, para conhecer os aspectos culturais compartilhados, conhecer categorias de comportamentos da saúde ou modos de narrar de certos grupos culturais11. Groleau D, Young A, Kirmayer LJ. The McGill Illness Narrative Interview (MINI): An Interview Schedule to Elicit Meanings and Modes of Reasoning Related to Illness Experience. Transcult Psychiatry 2006; 43(4):697-717..

A McGill MINI é sequencialmente estruturada, tem três seções principais e duas suplementares, com o objetivo de promover:

  1. narrativa inicial e temporal da experiência de adoecimento, organizada em termos da sequência de eventos.

  2. narrativa sobre outras experiências prévias do entrevistado, de membros de sua família, de amigos, encontradas na mídia, e outras representações populares que serviram de modelo para a significação da experiência do adoecimento em questão. Estas experiências aparecem como protótipos relacionados ao problema de saúde estudado.

  3.  narrativas sob forma de modelos explicativos do sintoma ou da doença, incluindo rótulos, atribuições causais, expectativas de tratamento, curso e resultado.

  4. narrativas de busca e procura de ajuda, relatos sobre caminhos para chegar ao cuidado e sobre a experiência de tratamento e adesão.

  5. narrativas do impacto da doença sobre a identidade, a autopercepção e as relações com os outros.

Esquemas representacionais múltiplos e modalidades diferentes de atribuição de sentido são utilizados para produzir narrativas que são complexas e às vezes internamente inconsistentes ou contraditórias. O uso da entrevista McGill MINI permite o exame desses múltiplos modos de atribuição de sentido a partir da identificação de:

  1. modelos explicativos baseados em opiniões causais que podem envolver modelos convencionais, ou atribuições causais ou modelos mais elaborados que envolvam processos ou mecanismos específicos e similares ao modelo biomédico.

  2. modelos prototípicos que envolvam modos de atribuição de sentido baseados em episódios ou em eventos que emergem da sua própria vida ou da de outros e que permitam que os indivíduos elaborem o sentido para a sua experiência por analogia.

  3. complexos em cadeia em que as experiências passadas são ligadas metonimicamente a sintomas presentes através de uma sequência de eventos em torno dos sintomas, sem qualquer conexão causal explícita ou padrão evidente.

Medicina e narrativa sempre andaram juntas, se considerarmos a tensão doente/doença, inerente à prática médica22. Grossman E, Cardoso MHCA. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Rev Bras Edu Med 2006; 30(1):6-14.,33. Souza AN. Formação médica, racionalidade e experiência. Cien Saude Colet 2001; 6(1):87-96.. A força e a visibilidade dessa associação, entretanto, alcançaram expressões diferenciadas ao longo da história da medicina. Hoje prevalece o modelo biomédico que não valoriza a história e o contexto na compreensão do adoecimento. No campo dos transtornos mentais os manuais de classificação induzem profissionais a estabelecerem diagnósticos a partir de listagem de sintomas. A despeito disso, revisões bibliográficas sobre narrativa e medicina indicam que a importância da primeira na literatura médica ampliou-se nas duas últimas décadas22. Grossman E, Cardoso MHCA. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Rev Bras Edu Med 2006; 30(1):6-14.,44. Cardoso MH, Camargo Júnior KR, Llerena Júnior JC. A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico. Cien Saude Colet 2002; 7(3):555-569.. O estudo das narrativas tem sido valorizado nas discussões dos aspectos éticos e epistemológicos do método clínico e na formação médica55. Souza AN. A narrativa na transmissão da clínica. In: Ribeiro BT, Costa LC, Lopes Dantas MT, organizadoras. Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: IPUB-CUCA; 2001. p. 215-240.. Trisha Greenhalgh66. Greenhalgh T. Narrative based medicine in an evidence based world. BMJ 1999; 318(7179):323-325., referência da medicina baseada em narrativas, ressalta que esta perspectiva é indispensável, em tempos da medicina baseada em evidências, porque:

o conhecimento estabelecido pela observação empírica de populações em ensaios controlados randomizados e estudos de coorte não podem ser mecanicamente aplicados a pacientes individuais cujo comportamento é irremediavelmente contextual e idiossincrático.

É Connelly77. Connelly JE. Narrative possibilities: using mindfulness in clinical practice. Perspect Biol Med 2005; 48(1):84-94. quem afirmará que:

se a narrativa do paciente não for ouvida inteiramente, a possibilidade de erro diagnóstico e terapêutico aumenta, a probabilidade das conexões pessoais que resultam de uma experiência compartilhada diminui, as oportunidades empáticas são perdidas e os pacientes podem não se sentirem compreendidos ou considerados.

Consequentemente, os relatos em primeira pessoa88. Leal EM, Serpa Junior OD. Acesso à experiência em primeira pessoa na pesquisa em saúde mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2939-2948.,99. Varela FJ, Shear J. First Person Account: why, what and how. In: Varela FJ, Shear J, editors. The view from within. First-person approaches to the study of consciousness. Thorverton: Imprint Academic; 1999. p. 1-14. tornam-se ferramentas importantes tanto para a compreensão do processo de adoecimento vivido, quanto para o julgamento clínico adequado e para o desenho do projeto terapêutico. Os protocolos de diagnóstico e tratamento, independente do problema de saúde em foco, são insuficientes para instrumentalizar o julgamento clínico e a condução de um projeto terapêutico. O julgamento clínico e a definição do projeto terapêutico exigem um trabalho interpretativo que leve em conta as características da experiência: a consideração do modo como o sujeito vive e experimenta o seu adoecimento na sua relação consigo e com o seu ambiente. Segundo Kleinman et al.1010. Kleinman A, Eisenberg L, Good B. Culture, illness, and care: Clinical lessons from anthropologic and cross-cultural research. Ann Intern Med 1978; 88(2):251-258., conhecer a experiência humana do adoecimento permite saber como o doente, os membros de sua família ou a rede social mais próxima percebem, convivem e respondem aos sintomas e à incapacidade que deles pode advir, assim como ao monitoramento dos processos corporais. Sem esta dimensão qualquer projeto de intervenção terapêutica está limitado em sua possibilidade de sucesso.

Disponibilizar para a comunidade científica brasileira um modelo de entrevista que favoreça narrativas sobre a experiência de adoecimento e o exame dos múltiplos modos que os indivíduos utilizam para lhes atribuir sentido não é sem relevância. Breve levantamento em periódicos nacionais indicou que não há ferramenta padronizada para acesso da dimensão experiencial do adoecimento ou da vivência de sintomas no Brasil. A despeito disso, os estudos sobre narrativa e medicina são cada vez mais frequentes na literatura22. Grossman E, Cardoso MHCA. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Rev Bras Edu Med 2006; 30(1):6-14.,44. Cardoso MH, Camargo Júnior KR, Llerena Júnior JC. A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico. Cien Saude Colet 2002; 7(3):555-569.,55. Souza AN. A narrativa na transmissão da clínica. In: Ribeiro BT, Costa LC, Lopes Dantas MT, organizadoras. Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: IPUB-CUCA; 2001. p. 215-240., como indicado anteriormente. Revelam tanto a relevância atual do estudo das narrativas, quanto a importância crescente das pesquisas qualitativas no campo da saúde. Neste contexto de crescente interesse pelos modos de construção de sentido sobre as experiências de adoecimento, tem relevância para estudos deste tipo o aparecimento de um roteiro de entrevista que busca dar conta de três questões centrais do campo da pesquisa qualitativa em saúde.

A saber:

Como um sujeito constrói seu conhecimento sobre a sua experiência de adoecimento?

Quais são os conhecimentos que alicerçam as narrativas de experiência de adoecimento: como se organizam, como se estruturam?

É possível desenvolver estudos confiáveis sobre narrativas?

Por isso o nosso interesse em traduzi-la e validá-la para a comunidade científica da pesquisa qualitativa em saúde no Brasil.

Apresentaremos a seguir o processo de tradução e adaptação transcultural da McGill Illness Narrative Interview – MINI, e a versão final em língua portuguesa para uso corrente no Brasil.

Metodologia

O processo de tradução e adaptação transcultural tomou como base o método proposto por Herdman et al.1111. Herdman M, Fox-Rushby J, Badia X. A model of equivalence in the cultural adaptation of HRQoL instruments: the universalist approach. Qual Life Res 1998; 7(4):323-335., já empregado no Brasil por autores como Reichenheim et al.1212. Reichenheim ME, Moraes CL, Hasselmann MH. Equivalência semântica da versão em português do instrumento “Abuse Assessment Screen” para rastrear a violência contra a mulher grávida. Rev Saude Publica 2000; 34(6):610-616., Moraes et al.1313. Moraes CL, Hasselmann MH, Reichenheim ME. Adaptação transcultural para o português do instrumento “Revised Conflict Tactics Scales (CTS2)” utilizado para identificar violência entre casais. Cad Saude Publica 2002; 18(1):163-176., Mattos et al.1414. Mattos P, Segenreich D, Saboya E, Louzã M, Dias G, Romano M. Adaptação transcultural para o português da escala Adult Self-Report Scale para avaliação do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) em adultos. Rev Psiquiatr Clin 2006; 33(4):188-194. e Fizman et al.1515. Fiszman A, Cabizuca M, Lanfredi C, Figueira I. A adaptação transcultural para o português do instrumento “Dissociative Experiences Scale” para rastrear e quantificar os fenômenos dissociativos. Rev Bras Psiquiatr 2004; 26(3):164-173., dentre outros. A duração global do processo foi de aproximadamente um ano, com início no segundo semestre de 2007 e término no segundo de 2008.

Sete etapas são previstas: 1) tradução da entrevista original, 2) retrotradução, 3) avaliação da equivalência semântica, 4) elaboração da versão síntese, 5) pré-teste na população-alvo, 6) elaboração da versão final, 7) segundo pré-teste na população-alvo com crítica final por especialistas na área.

Na primeira etapa, duas traduções do instrumento original em inglês para o português foram realizadas, independentemente, por duas profissionais do campo da saúde, experientes e fluentes na língua inglesa (T1 e T2). Nesta etapa considerou-se a equivalência operacional – que consiste na possibilidade da utilização do roteiro de entrevista na mesma organização, modo de administração do instrumento original1616. Hauck S, Schestatsky S, Terra L, Knijnik L, Sanchez P, Ceitlin L. Adaptação transcultural para o português brasileiro do Parental Bonding Instrument (PBI). Rev Psiquiatr Rio Gd Sul 2006; 28(2):162-168. – com o propósito de manter as características do roteiro original da entrevista preservando sua maior confiabilidade e validade. Foi preservado o mesmo número de questões, a mesma divisão das seções e o mesmo enunciado e as mesmas orientações para cada uma das 46 perguntas.

Na segunda etapa, as duas traduções (T1 e T2) foram retraduzidas para o inglês, também independentemente, por dois tradutores bilíngues, nativos de língua inglesa.

Duas avaliações constituíram a etapa 3: a avaliação do significado referencial e a avaliação do significado geral. A avaliação da equivalência semântica, feita por dois pesquisadores, levou em consideração os significados referencial e geral. Avaliou-se, sob a perspectiva do significado referencial das palavras, a equivalência entre o instrumento original e cada uma das retraduções. O significado referencial diz respeito às idéias e aos objetos do mundo aos quais uma ou mais palavras se referem. Isto é, se uma palavra no instrumento original possui o mesmo significado referencial da palavra correspondente na retradução.

A segunda avaliação, na etapa 3, relacionou-se com o significado geral entre cada item do instrumento original e seu correspondente em cada versão em português. O significado geral leva em consideração não somente a correspondência literal entre as palavras, mas também os aspectos mais sutis, como, por exemplo, o impacto que elas assumem no contexto cultural da população-alvo. As divergências entre as análises de equivalência nesta etapa foram alvo de discussões, que conduziram o grupo às decisões tomadas na etapa seguinte.

A etapa 4 marcou-se pela elaboração de uma versão-síntese. Alguns itens foram incorporados de uma das duas versões, na íntegra ou modificados pelo grupo, enquanto outros resultaram da junção das duas versões. O conteúdo desta junção foi eventualmente modificado para melhor atender aos critérios de equivalência semântica.

A etapa 5 exigiu um pré-teste da versão-síntese numa amostra da população-alvo para detectar possíveis incongruências de significados entre esta versão e o instrumento original.

A etapa seguinte – etapa 6 – consistiu na discussão da aceitabilidade desta versão na população avaliada e a proposição de novas modificações que balizaram a elaboração da versão final.

Na sétima e última etapa, a versão final foi aplicada a um conjunto de pessoas com características sociodemográficas e diagnósticas semelhantes àquelas que participaram da etapa 5. As gravações das entrevistas aplicadas na etapa 7 foram escutadas por dois pesquisadores experientes que utilizaram uma ficha de análise para anotações sobre os ajustes necessários.

As versões síntese e final da entrevista McGill MINI foram aplicadas num conjunto de 28 pessoas que apresentavam naquele momento ou haviam apresentado uma experiência de sintoma ou doença. Este número inicial esteve aberto à revisão, caso pistas sobre o processo da tradução e adaptação transcultural da entrevista surgissem indicando, por exemplo, a pouca clareza e compreensibilidade das perguntas ou diferenças na apreensão e efeito das perguntas, decorrentes das diferenças entre as línguas, se considerada o objetivo das perguntas na versão original. A população alvo foi definida levando-se em conta os interesses de estudo dos pesquisadores envolvidos. Pessoas que vivenciaram a experiência da alucinação auditiva verbal e portadores do câncer de mama constituíram o grupo estudado. Além dos interesses de estudo dos pesquisadores concorreu para a constituição do perfil da população alvo o interesse de validar a versão em português em experiências diversas de adoecimento e sintomas de modo a garantir o caráter genérico da versão traduzida, um dos propósitos principais da versão original em inglês.

Na etapa 5 a versão síntese foi aplicada em oito pacientes que frequentavam o grupo de ouvidores de vozes do Centro de Atenção Diária do IPUB/UFRJ, dispositivo clínico e de pesquisa, e em seis pacientes com câncer de mama recrutados pelo projeto de pesquisa Caracterização de Mutações nos Genes BRCA1 e BRCA2 numa População de Mulheres com Câncer de Mama no Rio de Janeiro; aplicações para intervenções profiláticas e estudos sobre o impacto psico-social, desenvolvido no HUCFF/UFRJ.

A versão final foi aplicada a pessoas com características sociodemográficas e diagnósticas semelhantes as daquelas que participaram da etapa 5 e constituíram um universo de 14 pessoas, composto por dois subconjuntos, o subconjunto I, constituído por oito pessoas com alucinação auditiva verbal e o subconjunto II com seis portadores de câncer de mama. Nesta fase, a população entrevistada não necessariamente esteve envolvida nas pesquisas anteriormente mencionadas. Todos os participantes aceitaram voluntariamente responder as perguntas do roteiro da entrevista e assinaram o TCLE.

A entrevista foi aplicada por pesquisadores, alunos de mestrado e de graduação, ligados ao Laboratório de Estudos e Pesquisa em Psicopatologia e Subjetividade, IPUB/UFRJ, todos devidamente treinados, em oficina realizada diretamente com uma das autoras da entrevista, ou por pesquisadores por ela treinados.

Resultados e discussão

O resultado da etapa 1 (tradução do original em inglês para o português) feita por dois autores, e da etapa 2 (retradução para o inglês), feita por dois nativos da língua inglesa, constituíram-se em material para análise da etapa 3 (avaliação da equivalência semântica), realizada por dois outros autores, em dois passos, A e B. No passo A foi estabelecido o julgamento do significado referencial entre as perguntas que compunham o roteiro da entrevista original e das retraduções, atribuindo-se notas de 0% a 100%. No passo B avaliou-se o significado geral a partir da comparação entre as perguntas do roteiro original e das traduções, que foram qualificadas em quatro níveis: inalterado, pouco alterado, muito alterado ou completamente alterado.

Os resultados das etapas 1, 2 e 4, estão exemplificados no Quadro 1, para quatro questões da McGill Illness Narrative Interview – MINI.

Quadro 1
Exemplos de resultados das etapas de tradução (T1 e T2), retradução (R1 e R2) e versão síntese (Síntese)

Ao realizarmos a avaliação da equivalência semântica, as duas traduções e retraduções obtiveram medidas razoáveis de equivalência de significado geral e referencial, respectivamente, em relação à entrevista original. Os passos descritos no Quadro 2 foram seguidos para realização da análise desenvolvida nesta fase. Na avaliação da equivalência semântica – significado geral, que leva em conta a correspondência literal entre as palavras e também o impacto que estas assumem no contexto cultural da população – 4 perguntas foram avaliadas como completamente alteradas, e 6 perguntas como muito alteradas para o primeiro par. Para o segundo par apenas 1 pergunta foi considerada completamente alterada, e 1 pergunta muito alterada (a tradução do verbo ‘experienciar’ e dos tempos verbais variaram de modo importante). Na avaliação da equivalência semântica – significado referencial, que diz respeito às ideias e aos objetos do mundo aos quais uma ou mais palavras se referem e que observa se uma palavra no instrumento original possui o mesmo significado referencial da palavra correspondente na retradução – a concordância entre o primeiro par variou entre 40% e 100% para o conjunto de perguntas da entrevista, tendo alcançado uma média de 88%. A concordância entre o segundo par variou também entre 40% e 100%, com uma média de 90%.

Quadro 2
Metodologia de Avaliação da Equivalência Semântica (Etapa 3).

Para elaboração da versão síntese (etapa 4) juntou-se o conteúdo das duas traduções. Quando necessário, pequenas modificações foram realizadas no intuito de garantir maior clareza, maior proximidade da versão original, bem como assegurar a obtenção das narrativas almejadas por ela. Na totalidade dos casos optou-se por escolher palavras que fossem compreendidas por pessoas numa ampla faixa de escolaridade, orientação que não havia sido oferecida aos tradutores. Assim palavras como ‘experienciar’, muito importantes na versão original, foram substituídas por outras que assegurassem o mesmo sentido, mas que fossem de uso mais frequente na linguagem coloquial. Embora a tradução correta para o verbo to experience seja ‘experienciar’, ele não é um verbo de uso corrente em nossa fala e apresentaria grande risco de não ser entendido ou gerar confusão. O verbo “sentir” adotado pelos autores nesta etapa, alcançou boa compreensão dos participantes e foi capaz de garantir o sentido buscado pela entrevista original. Procurou-se igualmente a correspondência entre a percepção e o impacto de diferentes palavras1111. Herdman M, Fox-Rushby J, Badia X. A model of equivalence in the cultural adaptation of HRQoL instruments: the universalist approach. Qual Life Res 1998; 7(4):323-335.. Por exemplo, as palavras helper e healer, (If you went to see a helper or healer of any kind, tell us about your visit and what happened afterwards.) poderiam ser adequadamente traduzidas por ‘ajudante’ e ’curandeiro’. A palavra ajudante, embora comum em nossa língua, não tem uso neste contexto. Já a palavra curandeiro, mais frequentemente utilizada em contextos de cuidado e cura, não raro ganha, em determinados meios, conotação negativa. Neste caso os autores escolheram descrever o que estas palavras pretendiam indicar (algum tipo de ajuda ou tratamento espiritual, ou alternativo ou tratamento de qualquer outro tipo) no intuito de garantir o propósito da pergunta. Situação semelhante se deu com o uso do verbo to go que é aberto a várias significações na língua inglesa. No caso da pergunta acima identificada – If you went to see a... – com o propósito de garantir maior clareza possível, optou-se por utilizar o verbo ‘procurar’ e desmembrar a pergunta em duas (Você procurou algum tipo de ajuda, tratamento espiritual, tratamento alternativo ou tratamento de qualquer outro tipo? Nos fale como foi e o que aconteceu depois).

A etapa 5 – aplicação da versão síntese – não indicou grandes dificuldades de compreensão para nenhuma das perguntas. Por isso a etapa 6 requereu apenas ajustes, por exemplo, mudança de tempos verbais para que as perguntas favorecessem a compreensão desejada e estivessem mais próximas da linguagem coloquial, ou mudança da forma de construção de algumas perguntas de modo a garantir que o seu uso promovesse o tipo de narrativa buscada pela entrevista original.

Destacamos, a titulo de exemplo, que a tradução mais literal da Pergunta 1 da Seção I – Quando você sentiu que estava com o seu problema de saúde ou dificuldades pela primeira vez? – deixou o entrevistado muito preso ao aspecto temporal, quando a pergunta tinha o propósito de fazê-lo falar igualmente das circunstâncias presentes naquele momento. Neste caso, optamos por não utilizar a conjunção ‘quando’, construindo de outro modo a pergunta, de forma a garantir que estimulasse a narrativa desejada: Fale sobre a primeira vez que você sentiu que estava com o seu problema de saúde ou dificuldade (PS) (Quadro 1).

A etapa 7 transcorreu praticamente sem nenhum problema de compreensão. Apenas para a pergunta 37 (Seção III): Que outra terapia, tratamento, ajuda ou cuidado você buscou? foi sugerida a mudança: Que outra terapia, tratamento, ajuda ou cuidado você procurou? – no intuito de garantir maior clareza, já que o verbo buscar, neste contexto, foi de difícil compreensão e a utilização do verbo ‘procurou’, literalmente mais próximo do verbo utilizado em inglês sought out, mostrou-se mais adequada.

Por fim, sugerimos que a seção III, que tem o propósito de estimular narrativas sobre o modelo explicativo adotado pelo entrevistado, seja aplicada integralmente, mesmo que este não tenha um termo propriamente popular para descrever o seu problema de saúde. A escuta das entrevistas audiogravadas nos indicou que mesmo quando o entrevistado não tem um termo popular para indicar o seu problema de saúde e utiliza um termo médico para descrevê-lo, a realização das perguntas 21 a 27 auxiliam o entrevistador a conhecer melhor os sentidos e os usos que o entrevistado faz do termo médico para descrever e compreender o seu problema de saúde.

A versão final da adaptação transcultural da McGill Illness Narrative Interview – MINI, para o português, proposta neste trabalho é apresentada no Quadro 3.

Quadro 3
McGill MINI Narrativa de Adoecimento.

Conclusão

Este trabalho disponibiliza a primeira adaptação para o contexto brasileiro de um instrumento específico para promover narrativas de adoecimento, com caráter genérico, útil para experiências de mal estar, sintomas ou doenças. A tradução e a validação deste modelo de entrevista foi feito para duas populações diferentes: pessoas com sintomas psiquiátricos e com problemas físicos. A análise das sete etapas da adaptação transcultural da McGill Illness Narrative Interview – MINI satisfizeram os critérios de equivalência semântica e indicaram que este roteiro de entrevista serve em nosso meio para acessar o mesmo tipo de narrativa sobre a experiência de adoecimento a que se propõe na cultura de sua origem.

Agradecimentos

À FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – pelo apoio através da Bolsa de Pesquisador Visitante concedida à primeira autora, e do Auxilio a Vinda do Pesquisador Visitante (APV). Ao Fonds de La Recherche en sante du Quebec (FRSQ), que financia o trabalho da pesquisadora Danielle Groleau.

Referências

  • 1
    Groleau D, Young A, Kirmayer LJ. The McGill Illness Narrative Interview (MINI): An Interview Schedule to Elicit Meanings and Modes of Reasoning Related to Illness Experience. Transcult Psychiatry 2006; 43(4):697-717.
  • 2
    Grossman E, Cardoso MHCA. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Rev Bras Edu Med 2006; 30(1):6-14.
  • 3
    Souza AN. Formação médica, racionalidade e experiência. Cien Saude Colet 2001; 6(1):87-96.
  • 4
    Cardoso MH, Camargo Júnior KR, Llerena Júnior JC. A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico. Cien Saude Colet 2002; 7(3):555-569.
  • 5
    Souza AN. A narrativa na transmissão da clínica. In: Ribeiro BT, Costa LC, Lopes Dantas MT, organizadoras. Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: IPUB-CUCA; 2001. p. 215-240.
  • 6
    Greenhalgh T. Narrative based medicine in an evidence based world. BMJ 1999; 318(7179):323-325.
  • 7
    Connelly JE. Narrative possibilities: using mindfulness in clinical practice. Perspect Biol Med 2005; 48(1):84-94.
  • 8
    Leal EM, Serpa Junior OD. Acesso à experiência em primeira pessoa na pesquisa em saúde mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2939-2948.
  • 9
    Varela FJ, Shear J. First Person Account: why, what and how. In: Varela FJ, Shear J, editors. The view from within. First-person approaches to the study of consciousness Thorverton: Imprint Academic; 1999. p. 1-14.
  • 10
    Kleinman A, Eisenberg L, Good B. Culture, illness, and care: Clinical lessons from anthropologic and cross-cultural research. Ann Intern Med 1978; 88(2):251-258.
  • 11
    Herdman M, Fox-Rushby J, Badia X. A model of equivalence in the cultural adaptation of HRQoL instruments: the universalist approach. Qual Life Res 1998; 7(4):323-335.
  • 12
    Reichenheim ME, Moraes CL, Hasselmann MH. Equivalência semântica da versão em português do instrumento “Abuse Assessment Screen” para rastrear a violência contra a mulher grávida. Rev Saude Publica 2000; 34(6):610-616.
  • 13
    Moraes CL, Hasselmann MH, Reichenheim ME. Adaptação transcultural para o português do instrumento “Revised Conflict Tactics Scales (CTS2)” utilizado para identificar violência entre casais. Cad Saude Publica 2002; 18(1):163-176.
  • 14
    Mattos P, Segenreich D, Saboya E, Louzã M, Dias G, Romano M. Adaptação transcultural para o português da escala Adult Self-Report Scale para avaliação do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) em adultos. Rev Psiquiatr Clin 2006; 33(4):188-194.
  • 15
    Fiszman A, Cabizuca M, Lanfredi C, Figueira I. A adaptação transcultural para o português do instrumento “Dissociative Experiences Scale” para rastrear e quantificar os fenômenos dissociativos. Rev Bras Psiquiatr 2004; 26(3):164-173.
  • 16
    Hauck S, Schestatsky S, Terra L, Knijnik L, Sanchez P, Ceitlin L. Adaptação transcultural para o português brasileiro do Parental Bonding Instrument (PBI). Rev Psiquiatr Rio Gd Sul 2006; 28(2):162-168.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2015
  • Revisado
    23 Ago 2015
  • Aceito
    25 Ago 2015
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br