Sairé Mais Saudável: política intersetorial como marco de mudança para equidade local

Maria do Socorro Machado Freire Ronice Maria Pereira Franco de Sá Idê Gomes Dantas Gurgel Sobre os autores

Resumo

Estudos na área da saúde pública consideram a intersetorialidade uma estratégia de promoção de equidade no enfrentamento dos determinantes sociais da saúde. O município de Sairé, membro da Rede Pernambucana de Municípios Saudáveis (RPMS), se destaca pela adoção de uma política intersetorial denominada Sairé Mais Saudável. Este estudo visou conhecer como essa política impulsionou a equidade local. Foi realizado um estudo de caso que utilizou linha do tempo com registro de eventos críticos, análise documental, entrevistas e observação participante. Como referência teórica, utilizou-se a Teoria Ator -Rede, o que permitiu que fosse evidenciada a importância da adoção da política municipal para o empoderamento e equidade local. Os resultados, alicerçados na linha do tempo, demonstraram que foi necessário haver inicialmente uma tradução cognitiva, realizada mediante a influência e a responsabilidade direta da RPMS, a qual facilitou uma segunda tradução, desta vez estratégica, com a construção da política ancorada no programa municipal e que agora está sendo traduzida logisticamente em ações concretas direcionadas à equidade. O papel de uma liderança estratégica, valorização da formação e do que já estava construído foram categorias fundamentais nesse processo de mudança local.

Palavras-chave
Promoção da saúde; Cidades saudáveis; Ação intersetorial; Equidade; Políticas públicas

Introdução

A intersetorialidade é amplamente discutida no campo da saúde pública como estratégia de promoção de equidade no enfrentamento dos determinantes sociais da saúde. A intersetorialidade tem múltiplas definições. Neste estudo, ela é compreendida como um processo articulado e integrado na formulação e implementação de políticas públicas. Implica, portanto, na integração de estruturas, recursos e processos organizacionais e na corresponsabilidade dos diferentes setores governamentais, não governamentais e da sociedade civil, para promover o desenvolvimento humano e qualidade de vida11. Fernandez JCA, Mendes R. Promoção da Saúde e Gestão Local. São Paulo: Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação em Cidades Saudáveis; 2007.,22. McQueen DV, Wismar M, Lin V, Jones CM, Davies M. Intersectoral Governance for Health in All Policies: Structures, actions and experiences. Copenhagen: World Health Organization on behalf of the European Observatory on Health Systems and Policies; 2012..

No âmbito da promoção da saúde, abrange a ideia de integração, de território, de equidade, de direitos sociais, econômicos, ambientais, civis e políticos. Valoriza a dimensão territorial e as redes sociais, potencializando processos participativos que ampliem a perspectiva intersetorial dessas políticas e a ativação de atores nos processos decisórios33. Azevedo ED, Pelicioni MCF, Westphal MF. Práticas intersetoriais nas políticas públicas de promoção de saúde. Physis 2012; 22(4):1333-1356.,44. Magalhães R, Bodstein R. Avaliação de iniciativas e programas intersetoriais em saúde: desafios e aprendizados. Cien Saude Colet 2009; 14(3):861-868..

Considerada um dos eixos de ações programáticas da Política Nacional de Promoção da Saúde e da Estratégia de Municípios Saudáveis55. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: MS; 2006.,66. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde P. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): Revisão da Portaria MS/GM n° 687, de 30 de março de 2006. Brasília: MS; 2015., a intersetorialidade constitui um dos pilares de iniciativas de comunidades, cidades e municípios saudáveis, avaliada como estratégia potente de operacionalização e implementação de ações de promoção da saúde77. Rocha DG, Alexandre VP, Marcelo VC, Rezende R, Nogueira JD, Franco de Sá R. Processo de revisão da Política Nacional de Promoção da Saúde: múltiplos movimentos simultâneos. Cien Saude Colet 2014; 19(11):4313-4322.,88. Mendes R, Akerman M. Intersetorialidade: reflexões e práticas. In: Fernandes JCA, Mendes R, organizador. Promoção da saúde e gestão local. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2007. p. 85-109..

As agendas da Organização Mundial de Saúde (OMS) vêm priorizando abordagens e estratégias que incluam pesquisa, formulação e implementação de políticas públicas, buscando estimular interações intersetoriais com vistas à redução das desigualdades. Tal conjuntura tem colocado os conceitos de intersetorialidade e os desafios de sua aplicabilidade em debate no campo da saúde pública99. Santos FAS, Sousa IMC, Gurgel IGD, Bezerra AFB, Barros NF. Política de práticas integrativas em Recife: análise da participação dos atores. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1154-1159..

Estudos sobre o tema chamam atenção para a necessidade de se construir agendas de pesquisas que favoreçam aportes teóricos, para que a ação intersetorial não se torne apenas tentativa na gestão pública e possa se constituir em uma práxis de governo. No ideário do Sistema Único de Saúde-SUS a articulação intersetorial é recomendada para tornar cada vez mais visível que o processo saúde-adoecimento é complexo e exige a convocação de outros setores para avaliação de parâmetros sanitários na formulação de suas políticas específicas1010. Akerman M, Franco de Sá R, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Cien Saude Colet 2014; 19(11):4291-4300.,1111. Melo MNT, Franco de Sá RMP, Melo Filho DA. Sustentabilidade de um programa de alimentação escolar bem-sucedido: estudo de caso no Nordeste do Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1899-1908..

A necessidade de articulação intersetorial, para atender aos desafios de demandas por equidade em saúde no nível local, vem sendo reconhecida e contemplada no contexto de atuação da Rede Pernambucana de Munícipios Saudáveis (RPMS)1212. Franco de Sá R, Schmaller V, Salles R, Freire S. La construction du réseau de villes en santé de Pernambouc au Brésil: un exemple de mise à l'échelle. Glob Health Promot 2011; 18(1):98-101.. O reconhecimento da RPMS, como estratégia de produção de equidade em saúde na região, tem se respaldado nos valores, princípios e diretrizes da Política Nacional de Promoção da Saúde66. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde P. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): Revisão da Portaria MS/GM n° 687, de 30 de março de 2006. Brasília: MS; 2015., na medida em que o seu modelo de atuação tem como base a equidade, solidariedade, a felicidade, a ética e o respeito às diversidades e subjetividades das pessoas e coletividades.

Nesse sentido, a RPMS, mediante mecanismo de mobilização e participação social (Método Bambu)1313. Menezes A, Franco de Sá R, Freire S. Método Bambu. In: Franco de Sá R, Yuasa M, Viana VP, organizadores. Municípios Saudáveis no Nordeste do Brasil-Conceitos, Metodologia e Relações Institucionais. Recife: Editora Universitária UFPE; 2006. p. 53., busca a inclusão social nos três níveis de atuação (comunitário, municipal e regional), por meio de estimulo à participação social, à autonomia, ao empoderamento, à intersetorialidade, à sustentabilidade e à territorialidade no seu processo de atuação sobre os determinantes sociais da saúde. O Método Bambu também tem sido reconhecido como uma estratégia potente de ação intersetorial na elaboração de planos locais de promoção da saúde1414. Moysés ST, Franco de Sá R. Planos locais de promoção da saúde: intersetorialidade(s) construída(s) no território. Cien Saude Colet 2014; 19(11):4323-4330..

Considera-se como pressupostos deste estudo que: a) a intersetorialidade constitui-se um dos pilares necessários ao desenvolvimento de municípios e comunidades saudáveis1515. Rocabado F, Cambría C, Ruiz R. Guía de evaluación participativa para municipios y comunidades saludables. Lima: Organización Panamericana de la Salud. 2005.; b) O município de Sairé, por ser parte de uma rede de municípios saudáveis, tem a intersetorialidade como um dos seus pilares de ação local; c) a articulação intersetorial local, uma das diretrizes da PNPS66. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde P. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): Revisão da Portaria MS/GM n° 687, de 30 de março de 2006. Brasília: MS; 2015., estimula equidade, um dos princípios priorizados pela mesma política. Diante do exposto este estudo visou conhecer como a intersetorialidade impulsionou a equidade local no município de Sairé1616. Freire MSM, Salles RPS, Franco de Sá RMP. Mapeando iniciativas territoriais saudáveis, suas características e evidências de efetividade. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1757-1766.. Para fins deste estudo, a intervenção Sairé Mais Saudável será apresentada como política local. De acordo com Oliveira1717. Oliveira SRA. Sustentabilidade da estratégia saúde da Família: o caso de um município baiano. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2014., intervenção é qualquer política, programa, ou projeto, que compreenda um “modo de ação complexo produzido em um espaço social, isto é, um sistema organizado de ação que se constitui pelo processo de negociação dos atores envolvidos na intervenção em um tempo e contexto específico”.

O estudo utiliza fundamentos da Teoria Ator-Rede-TAR1818. Latour B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc; 2001.,1919. Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Bauru: Edusc; 2012. para analisar a construção da intersetorialidade nas ações de município saudável em Sairé. Essa teoria estuda as associações produzidas pelos atores humanos e não-humanos (actantes ou atuantes), as quais podem ser compreendidas pela noção de tradução. Segundo Callon2020. Callon M. Quatre modeles pour decrire la dynamique de la science. In: Akrich M, Callon M, Latour B, editors. Sociologie de la traduction: textes fondateurs. Paris: les Presses; 2006. p. 201-251., a tradução, além de colocar os atores em relação uns com os outros, articulando elementos díspares e heterogêneos, também modifica os envolvidos nesse processo. O entrelaçamento entre atores e atores, compreendido como um dinamismo processual e sempre constante de associações1717. Oliveira SRA. Sustentabilidade da estratégia saúde da Família: o caso de um município baiano. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2014., é denominado na Teoria do Ator-Rede por Rede Sociotécnicas (RST)2121. Akrich M, Callon M, Latour B. Sociologie de la traduction: textes fondateurs. Paris: les Presses; 2006.. Todos são “atores” (ou actantes, ou atuantes), com capacidade de produzir efeitos no mundo. A ação que designa os actantes2020. Callon M. Quatre modeles pour decrire la dynamique de la science. In: Akrich M, Callon M, Latour B, editors. Sociologie de la traduction: textes fondateurs. Paris: les Presses; 2006. p. 201-251. não é uma propriedade apenas dos humanos, mas fruto de uma associação entre humanos e não humanos.

Potvin2222. Potvin L. Que tipo de ação intersetorial pode promover equidade em saúde? Questões críticas para traduzir princípios em práticas. Intersetorialidade Conferência Internacional; 2015 30 abr.; São Paulo, Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2015. propõe traduções que exigem o esforço de conectar mundos antes desconectados (mundo sem fins lucrativos, mundo privado e mundo governamental) para se formar uma visão compartilhada numa ação colaborativa. Para se conectar estes mundos são necessárias três práticas de tradução, que têm funções essenciais na ação intersetorial: a) tradução cognitiva - transformar uma visão compartilhada em uma ação colaborativa e na formulação de objetivos comuns; b) a tradução estratégica - entender que a ação intersetorial é um espaço de relações de poder, procurando manter e ativar os parceiros, estabelecendo regras e redistribuindo o poder entre os membros desta parceria por meio da escuta dos que sofrem as desigualdades; c) a tradução logística - para criar e administrar o acordo colaborativo com a elaboração de agendas, minutas para desenvolver os interesses compartilhados numa linguagem comum.

Conforme a autora acima citada, para que a intersetorialidade aconteça, essas traduções precisam entrar em movimento para que os atores envolvidos na ação possam falar a mesma língua, fazendo-se necessário o alinhamento das posições de poder entre os atores envolvidos na ação, por meio da escuta dos que sofrem as iniquidades sociais.

Com base nesses pressupostos teóricos e estratégias metodológicas desenvolvidas anterior- mente, em pesquisas sobre promoção da saúde e equidade1717. Oliveira SRA. Sustentabilidade da estratégia saúde da Família: o caso de um município baiano. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2014.,2323. Franco Sá R, Senna SR, Freire S, Schmaller V. A Teoria Ator-Rede e a compreensão do processo de sustentabilidade das intervenções em Promoção da Saúde: contributos e lições aprendidas. In: Hartz Z, Potvin L, Bodstein R, organizadores. Avaliação em Promoção da Saúde. Brasília: CONASS; 2014. p. 201-211.,2424. Figueiró AC, Araújo Oliveira SR, Hartz Z, Couturier Y, Bernier J, Socorro Machado Freire M, Samico I, Medina MG, Sa RF, Potvin L. A tool for exploring the dynamics of innovative interventions for public health: the critical event card. Int J Public Health 2017; 62(2):177-186., o escopo do estudo buscou caracterizar os processos de colaboração entre os atores individuais, institucionais, organizacionais e governamentais envolvidos em intervenções locais, suas motivações e interesses; identificar quais os dispositivos, mecanismos e inovações que facilitam/dificultam a intersetorialidade em Sairé, as incertezas e controvérsias existentes na prática dos atores envolvidos nas ações locais.

A ação local sobre os determinantes sociais visando às desigualdades em saúde requer ações coordenadas, principalmente na forma de programas que reúnem atores de várias esferas e com diversos interesses e instrumentos de avaliação para compreender questões referentes à participação, parceria e cooperação intersetorial2525. Potvin L, Clavier C. Actor-Network Theory: The governance of intersectoral initiatives. Oxford: University Press Oxford; 2013..

Nessa perspectiva, para fins deste estudo, foi utilizado um modelo inspirado em Potvin2222. Potvin L. Que tipo de ação intersetorial pode promover equidade em saúde? Questões críticas para traduzir princípios em práticas. Intersetorialidade Conferência Internacional; 2015 30 abr.; São Paulo, Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2015. para alicerçar a análise, como mostra a Figura 1.

Figura 1
Intersetorialidade: da aprendizagem em rede à práxis de governo

Metodologia

Foi realizado um estudo de caso2727. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman; 2001.,2828. Tobar F, Yalour MR. Como fazer teses em saúde pública: conselhos e ideias para formular projetos e redigir teses e informes de pesquisas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001. que teve como fontes de evidências: observação participante, análise documental, entrevistas semiestruturadas, registro de eventos significativos, levantamento de linha do tempo. Os eventos significativos foram registrados em um formulário denominado Cartão de Evento Crítico desenvolvido por Figueiró et al.2424. Figueiró AC, Araújo Oliveira SR, Hartz Z, Couturier Y, Bernier J, Socorro Machado Freire M, Samico I, Medina MG, Sa RF, Potvin L. A tool for exploring the dynamics of innovative interventions for public health: the critical event card. Int J Public Health 2017; 62(2):177-186. que contém as seguintes categorias: ator/atuante, interesses em jogo, interações, mediação técnica, ações, inscrição, tempo, lugar, consequências e, evidências. Para cada evento significativo registrado foi construído um cartão de evento crítico.

Duas das autoras participaram ativamente nas ações da RPMS desde o seu nascedouro e, portanto, trazem na bagagem registros e vivências nas capacitações de rotina, nos fóruns e encontros da RPMS e nas visitas técnicas, seminários e pesquisa de avalição e reuniões de monitoramento, no município de Sairé. Essa bagagem foi necessária na construção dos roteiros (observação e entrevistas) e na busca por atores-chave. A análise documental pautou-se na caracterização dos processos de colaboração intersetorial, com base nos pressupostos teóricos que fundamentam a sistematização desse estudo. Os documentos analisados contemplaram o processo de formação da rede e as iniciativas locais recentes, que incluem desde o projeto que deu origem à Rede, os planos locais, documentos que registram os eventos, ao longo desse tempo, bem como as publicações que constam nas referências do presente estudo.

A observação e análise documental foram enriquecidas por meio das entrevistas semiestruturadas junto aos atores que têm ou tiveram um papel chave no que concerne às iniciativas locais de promoção da saúde, no período de 2004 a 2017, que se encontram registradas na linha do tempo da intervenção (Figura 2). Foram 11 participantes representantes da gestão municipal, do poder público local e da sociedade civil local, onde a maioria (8) também tinha a formação em promoção da saúde e municípios saudáveis.

Figura 2
Linha do tempo da intervenção Sairé Mais Saudável.

A análise desses dados destacou princípios, valores e estratégias metodológicas da Promoção da Saúde, que sustentam os eixos estruturadores da RPMS, e orientam a interação entre os atores, os contextos nos processos de colaboração intersetorial. O artigo é um dos produtos da tese da primeira autora e foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Aggeu Magalhães-FIOCRUZ e aprovado.

Uma vez que este estudo buscou compreender processos relativos à intersetorialidade e à inserção em redes, seja no nível macro (Sairé na RPMS), seja no nível meso (política pública local), seja no nível micro (informantes-chave de Sairé), a adoção da Teoria Ator-Rede-TAR teve como foco central o conceito de tradução2929. Callon M. Le réseau comme forme émergente et comme modalité de coordination: le cas des interactions stratégiques entre firmes industrielles et laboratoires académiques. In: Callon M, Cohendet P, Curien N, Dalle JM, Eymard-Duvernay F, Foray D, Schenk E. Réseau et coordination. Paris: Economica; 1999. p. 13-64.

30. Callon M. Éléments pour une sociologie de la traduction. L'Année Sociol 1986; 36:196-223.
-3131. Bilodeau A, Potvin L. Unpacking complexity in public health interventions with the Actor-Network Theory. Health Promot Int 2016; 4:1-9.. Em recente artigo publicado na Health Promotion International (2016), as autoras Bilodeau e Potvin se propõem a dissecar a complexidade das intervenções de saúde pública apoiadas exatamente no pressuposto de que a TAR serve como um guia eficaz para conciliar visões técnicas e sociais nesses tipos de intervenções. Foi realizada análise de conteúdo do tipo temática3232. Bardin L. Análise de conteúdo (Edição revista e actualizada). Lisboa: Edições 70; 2009..

Valorização da formação, reconhecimento do construído e liderança estratégica

A escolha pela TAR possibilitou que fosse analisada a trajetória da intersetorialidade na intervenção em estudo e o incentivo à equidade local decorrente da ampliação desse tipo de colaboração e visão que tira técnicos e população de “caixinhas setoriais”. A teoria da tradução ou teoria do Ator-Rede é uma abordagem sociológica que segue três princípios metodológicos, a saber: associação livre, agnosticismo e simetria generalizada1717. Oliveira SRA. Sustentabilidade da estratégia saúde da Família: o caso de um município baiano. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2014..

A associação livre nos permite trabalhar com as traduções, uma vez que os atores não são classificados por classes ou quaisquer outros conceitos hierárquicos, pois, para Latour1818. Latour B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc; 2001., os grupos sociais são continuamente recriados nas associações que dinamicamente se estabelecem entre os atores. O agnosticismo pressupõe que não se deve avaliar, criticar ou julgar os atores quando falam e argumentam sobre qualquer fato social. Não deve haver preconcepção. Já a simetria generalizada nos propõe a entender que “não há de antemão o mundo das coisas em si de um lado e o mundo dos homens entre si de outro, pois natureza e sociedade são ambos feitos de redes heterogéneas”3333. Freire LL. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Comum 2006; 11(26):46-65..

Isto posto, tendo utilizado linha do tempo, cartões de eventos críticos (totalmente embasados na TAR), diários de observação e analisado as entrevistas realizadas, trés categorias principais tomam forma neste estudo sobre a intersetorialidade em Sairé e o estímulo à equidade local:

a) Valorização da formação - ficou expressa na permanência voluntária da ação dos promotores de municípios saudáveis que nunca abandonaram os conceitos e os compromissos assumidos na formação.

Olhe, recordando do curso de promotores dos municípios saudáveis, eu me lembro da palavra felicidade, é, eu acho que nós fomos muito felizes ao participar daquele curso, não apenas pela possibilidade de ter contato, troca de experiência com outras pessoas, como também, com a possibilidade de aprender todo o conhecimento teórico que foi tão bem trabalhado, foi tão bem cuidado para que a gente realmente tivesse uma nova visão de um município, com qualidade de vida, de um município em prol da sociedade, de uma nova gestão pública, de uma gestão participativa, então, o período do curso, foi um período muito gratificante, nós tivemos oportunidades de contato com todo esse ambiente (E-10).

b) Reconhecimento do construído - os mecanismos de escuta colocados em prática incentivaram a participação e o empoderamento da população na expressão de direitos, na criação de ambientes saudáveis e equidade em saúde por meio de atividades como ação e cidadania, considerada uma inovação que influenciou no modelo de gestão. O resgate do Plano Diretor, como diretriz para nortear as agendas locais de políticas públicas, serviu como intermediário dos dispositivos de gestão, no que se refere ao respeito e cumprimento das promessas, colocando em prática os pactos acordados entre população e gestão em época anterior.

Então, de 2013 para cá, foi feita uma atitude diferenciada, foi quando a equipe passou a se reunir para construir realmente propostas, construir ideias. Ideias estas que iriam impactar todo o município, todos os setores. Eu digo sempre o seguinte, o Programa Sairé Mais Saudável, não é apenas um programa que atende, por exemplo, o serviço público, mas não, a gente pode pegar o programa de Municípios Saudáveis e utilizar dentro da nossa casa, se a gente pega aquelas diretrizes e usa dentro da nossa casa, a gente vai economizar água, consequentemente, vamos reduzir a conta que temos a pagar da água, vamos reduzir o consumo da energia elétrica, a gente passa a cuidar da nossa casa melhor (E-7).

c) Liderança Estratégica - Os mediadores já citados (promotores de municípios saudáveis) nunca deixaram de atuar como líderes, mesmo em menor escala. No entanto, ao encontrar um líder com maior poder de ação, que reconheceu o acúmulo e a persistência desses atores-chave e que reconheceu o que já havia sido construído, houve uma conjunção de fatores favoráveis para que as controvérsias se transformassem em inovação e o município vivesse mudanças fundamentais.

Eu acho que eu atribuo à nova gestão que entrou, ao secretariado, ao ator estratégico, mas ele já é um baluarte que já vem querendo implantar isso em Sairé. Inclusive, na outra gestão ele fez parte e tudo, foi um dos integrantes para que trouxesse esse projeto para cá, mas só que ele não tinha apoio, e hoje, lógico que existem algumas dificuldades, existem… cada um pensa de uma forma, mas hoje as coisas estão começando a andar. A semente foi plantada, e hoje estamos começando a colher alguns frutos, não é? Para o que foi desenvolvido, e para que foi desenvolvendo, a gente já vem vendo alguns resultados daquilo, daquilo que foi feito, não é? Durante esses 3 anos e 8 meses, a gente vem vendo esse desenvolvimento (E-6).

Ainda agregamos a estas categorias temáticas subcategorias emergentes denominadas cumprimento das promessas feitas e empoderamento da população. Essas categorias permitem compreender como a intersetorialidade acontece no local, ou seja, como traduzir princípios em práticas de promoção da saúde, quem e o que está contribuindo para que a intersetorialidade também venha a se traduzir em uma práxis de governo e em um modelo de gestão com vistas à equidade em saúde.

Além dessas categorias que se destacaram, a análise da linha do tempo demonstra como as traduções (Figura 1) foram acontecendo ao longo do tempo de maneira a propiciar a implementação de uma intervenção que destacasse intersetorialidade e equidade.

2004-2012 - Tradução cognitiva - eventos críticos possibilitando ação colaborativa

A análise e discussão dos dados dessa fase inicial contemplam os eventos críticos que estruturaram os alicerces do Programa Sairé Mais Saudável. Portanto, fazem parte do contexto do seu nascedouro e permanecem em interação enquanto atores /atuantes da RPMS. Por esta razão, estão incluídos no objeto de estudo. Foram considerados eventos críticos aqueles que transformaram as ações em curso. Eles estão inseridos na linha do tempo no período compreendido entre 2004 a 2012 e correspondem à tradução cognitiva.

Nessa perspectiva, foram analisados os eventos que foram transformadores e que enfrentaram controvérsias até se chegar ao Programa Sairé Mais Saudável, para se aproximar da cozinha dos fatos1919. Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Bauru: Edusc; 2012., ou seja, como estavam ocorrendo os processos de articulação da intersetorialidade local. Assim sendo, foram selecionados eventos que além da inclusão na linha do tempo, foram confirmados nas entrevistas, na observação e análise documental, como os mais importantes na intervenção, porque serviram de base na estruturação das mudanças ocorridas em Sairé, posto que criaram ações colaborativas e possibilitaram a formulação de objetivos comuns.

Analisando a linha do tempo, com base nos pressupostos da TAR e na sinalização dos eventos críticos prévios à intervenção Sairé Mais Saudável, podemos verificar que a Pesquisa de Avaliação de Capital Social, coordenada em 2004 pelo Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social da Universidade Federal de Pernambuco (NUSP/UFPE), possibilitou a descristalização de conceitos setorializados sobre ação comunitária e sobre gestão. A partir do estabelecimento desse ponto de virada foi possível iniciar, concretamente, discussões e ações intersetoriais locais durante os cursos de Formação de Promotores de Municípios Saudáveis (2006 a 2009) e durante o desenvolvimento e aplicação do Método Bambu (2005-informar o ano).

A ferramenta utilizada para aplicar a TAR se mostrou útil para seguir os atores/atuantes, identificar e analisar as interações, as motivações, os interesses, as controvérsias e as incertezas de todos os atores, ao permitir a abertura das caixas pretas, tornando possível visualizar a complexa rede de associações que contextualizaram e estruturaram a intervenção Sairé Mais Saudável.

Analisando esse primeiro momento da tradução, entende-se que a trajetória da intersetorialidade em Sairé precisou superar antigas controvérsias e gerar novas, mediante estímulos cognitivos, ampliação de perspectivas e visões e formulação de objetivos comuns concretos.

A comunidade inicialmente não entendia muito o porquê desse Sairé Mais Saudável, porque isso de municípios saudáveis. Mas com as capacitações, gradativamente foi entendendo, foi participando não só do projeto, mas do programa Sairé Mais Saudável, que abrange todas as secretarias, que já faz parte da vida do cidadão no dia a dia (E-1).

Eu diria o seguinte: que tudo o que está acontecendo, esta revolução que está acontecendo em Sairé, ela começou lá atrás. Eu diria que as experiências, as capacitações, os conteúdos, tudo o que nós vimos lá atrás está contribuindo muito para termos chegado até aqui. Então, essa revolução, esse novo modelo de gestão, o que está acontecendo hoje com Sairé Mais Saudável, tem muito a ver com o que nós vimos no programa de municípios saudáveis (E-1).

A linha do tempo ainda possibilitou registrar que desde o início do estudo a permanência de atores-chave (participantes dos eventos críticos no município em estudo) permitiu que as controvérsias fossem transformadas e socializadas. A presença desses atores-chave guardiões da memória, promotores de mudança das controvérsias faz deles os mediadores1919. Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Bauru: Edusc; 2012., que possibilitam que a rede sociotécnica nos faça acompanhar o ciclo de vida de uma intervenção dentro do que preconiza a TAR.

2013 - Sairé Mais Saudável: a tradução estratégica em direção à equidade

Em Sairé, estudos mostraram a existência de fragilidade nas articulações intersetoriais e pouca participação da população na gestão e no controle social dos programas sociais existentes no município concluindo que “sustentabilidade e empoderamento são temas muito distantes de serem visualizados nessas localidades”3434. Melo AP, Franco de Sá RMP. Promoção da saúde: reflexões sobre a concepções dos Secretários Municipais do Projeto Municípios Saudáveis no Nordeste do Brasil. In: Franco de Sá RMP, Nishida M, editores. Evidências de efetividade do Projeto Municípios Saudáveis no Nordeste do Brasil: O Olhar da Gestão. Recife: Editora Universitária UFPE; 2008. p. 79-94..

A análise dos dados mostra evidências de que as práticas oferecidas pela RPMS nos âmbitos de formação, pesquisa, monitoramento e atuação em rede com atores/atuantes governamentais e não governamentais, nas diversas esferas de poder - local, estadual, nacional e internacional, favoreceram a inovação na gestão e o empoderamento da população, implicando na criação de dispositivos que estimularam o processo de implantação de ações intersetoriais.

Com relação à intersetorialidade, percebeu-se que ela acontece de forma incipiente ou não acontece ainda por estar centrada no excesso de individualismo e setorização existente nas secretarias. E quando acontece, o trabalho é desenvolvido a partir de necessidades, demandas por ações pontuais trazidas pelas demandas de outras áreas3434. Melo AP, Franco de Sá RMP. Promoção da saúde: reflexões sobre a concepções dos Secretários Municipais do Projeto Municípios Saudáveis no Nordeste do Brasil. In: Franco de Sá RMP, Nishida M, editores. Evidências de efetividade do Projeto Municípios Saudáveis no Nordeste do Brasil: O Olhar da Gestão. Recife: Editora Universitária UFPE; 2008. p. 79-94..

Seguindo a trajetória da linha do tempo, verificou-se que, em 2013, os atores-chave (mediadores) encontraram apoio e ambiente propício (actantes) para que a intersetorialidade fosse estabelecida num espaço de relações de poder que pôde reativar os parceiros, estabelecer regras e redistribuir esse mesmo poder entre os membros da parceria (tradução estratégica), mediante a implementação da intervenção denominada Sairé Mais Saudável, que teve como base os pressupostos teóricos e metodológicos e as diretrizes do Plano de Município Saudável, elaborado em 2006 como conclusão de um dos cursos de promotores de municípios saudável (NUSP/UFPE). Dessa forma, a intervenção resgatou os conceitos e práticas que vinham sendo colocados em ação desde 2004. Com visão intersetorial, a gestão e a comunidade passaram a desenvolver projetos e ações propiciadores de equidade como: programas intergeracionais, o prefeito nas escolas (interagindo com estudantes de todos os níveis), rádio comunitária incentivando ações equitativas, estímulo ao pertencimento local (composição participativa de hino municipal e criação de brasão municipal mediante estudos de heráldica), compromisso coletivo de cuidado com equipamentos locais, embelezamento participativo das ruas e praças, concursos de fotografias nas escolas selecionando locais de orgulho no município, uso de mídia social para jovens, dentre outros.

2013 a 2017 - A tradução logística

A tradução logística é necessária para que o acordo colaborativo seja executado mediante elaboração de agendas e ações concretas que possam transformar os interesses compartilhados numa linguagem comum. Assim, a partir do ano de 2013, as ações construídas pelos atores envolvidos na iniciativa local de município saudável começaram a ser implementadas enquanto plano de governo, ao serem pautadas nos dispositivos da gestão municipal, como na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e no Plano Pluri Anual (PPA) e em outras estratégias governamentais como a realização de seminário de planejamento integrado reunindo todas as secretarias, representantes da comunidade e do poder público.

Este dispositivo da administração municipal foi construído a partir da escuta da população, incluindo as diretrizes do Plano Diretor Saudável e da intervenção Sairé Mais Saudável. De acordo com os achados do estudo que deu origem a este artigo, tal estratégia de gestão tem sido considerada inovadora no sentido de contribuir para moldar a elaboração de políticas públicas locais, pautadas na intersetorialidade de ações que visam diminuir as desigualdades e atuar sobre os determinantes e sociais da saúde.

A gente enxergava que as pessoas que queriam mudança, pessoas que queriam fazer parte de uma gestão inovadora, elas queria também ter uma participação … Sairé mais saudável, era exatamente que a gestão pudesse através de pesquisa, de conhecimento de área, trazer as pessoas para o debate, saber o que era melhor para a comunidade. Saber o que seria melhor para não deixar acontecer as doenças virem para nosso município através de um esgoto mau tratado, de lixo, de um entulho que ficasse na rua. Então seria um caminho para a gente dizer que nosso município tem condições de ser saudável (E-11).

…eu não diria que exista outro gestor estratégico para Sairé, não. Infelizmente, e eu digo isso com consciência de casa, Sairé se fazia política pela política, poder pelo poder, não tinha nem programa de governo, se elegia falando improviso nas ruas e municípios, mas não tinha nada escrito, onde está escrito o que você disse lá nas ruas?… (E-7).

Os achados da pesquisa permitiram visualizar ainda a importância dos atores-chave e seu poder de liderança nas mudanças ocorridas no percurso da ação estudada. Esses atores desempenharam o papel de mediadores (TAR) na integração das secretarias, para ouvir a população e discutir os rumos das políticas locais, a exemplo da realização do Seminário Gestão Público Saudável, ocorrido no dia 07 de fevereiro de 2017, que teve como objetivo o planejamento integrado das secretarias municipais para o ano em curso.

As práticas de formação, pesquisa, avaliação e parcerias acadêmicas, governamentais e internacionais, favoreceram a inovação na gestão e o empoderamento da comunidade. A atuação dos atores em rede e os dispositivos de gestão intersetorial - plano diretor, política de resíduos sólidos, programa para uma cidade mais saudável contribuíram na produção de processos colaborativos que reagregaram as forças coletivas para a construção da intersetorialidade das ações locais. Desse modo, o estudo trouxe alguns elementos para reflexão sobre o processo de construção da intersetorialidade na iniciativa local de município saudável em Sairé, a partir das premissas da TAR que se encontram resumidos no Quadro 1.

Quadro 1
Resumo das ações, atores/atuantes, interesses, inovações, incertezas e controvérsias nos processos de construção da intersetorialidade nas ações locais em Sairé.

Considerações finais

Apesar de haver uma vasta literatura sobre análise da RPMS, conforme referências apresentadas neste estudo, havia a necessidade de um aprofundamento no nível local, uma vez que os estudos existentes foram, em sua maioria, sobre a própria Rede e muito pouco sobre municípios específicos. O estudo ora realizado incumbiu-se de preencher uma lacuna existente, uma vez que ajustou o foco e deu conta de esmiuçar as ações locais, atores, registros, incertezas, controvérsias, interesses em jogo, saberes, interações, mediações e suas evidências. Essa era uma necessidade já apontada ao final de um estudo sobre a RPMS e que ficou assim registrada:

Entende-se, no entanto, que por mais que o estudo tenha tentado se aproximar da complexidade existente na intervenção, envolvendo multiplicidade de instituições, de cenários, de grupos comunitários, de culturas, de ações-fins, de atuações, de interesses em jogo, de momentos políticos, de desejos e vontades, ficou longe de descrevê-la. Por mais que os pesquisadores sejam também atores, da intervenção (até por isso) a sensação maior é que muitas controvérsias e que muitos eventos críticos não foram aprendidos, apreendidos, narrados e analisados…os eventos críticos afeitos ao nível local não aparecem nos resultados da pesquisa e isso não significa que os mesmos sejam menos importantes para a sustentabilidade da ação2323. Franco Sá R, Senna SR, Freire S, Schmaller V. A Teoria Ator-Rede e a compreensão do processo de sustentabilidade das intervenções em Promoção da Saúde: contributos e lições aprendidas. In: Hartz Z, Potvin L, Bodstein R, organizadores. Avaliação em Promoção da Saúde. Brasília: CONASS; 2014. p. 201-211..

Nessa perspectiva, considera-se que o estudo conseguiu o intento de se aproximar dos processos de interação entre os atores/atuantes no percurso da iniciativa local de municípios saudáveis em Sairé.

Seguir esses atores em ação permitiu, por meio da linha do tempo, da ferramenta de análise dos eventos críticos e das três modalidades de tradução proposta por Potvin2222. Potvin L. Que tipo de ação intersetorial pode promover equidade em saúde? Questões críticas para traduzir princípios em práticas. Intersetorialidade Conferência Internacional; 2015 30 abr.; São Paulo, Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2015. (cognitiva, estratégica, logística), visualizar os atores-chave (humanos e não humanos) que tiveram um papel relevante na tessitura da intersetorialidade e equidade local. A Teoria Ator-Rede mostrou-se relevante e pertinente para a compreensão desses processos. O registro dos eventos críticos numa linha do tempo que considerou atores e atuantes deixou clara a influência de cada um dos eventos no processo de construção da intersetorialidade no município estudado.

De acordo com o estudo realizado, a intersetorialidade no município de Sairé começou a ser implementada com a sua participação na Rede Pernambucana de Municípios Saudáveis (PMNSB), mediante a construção coletiva de novos conceitos e práticas que configuraram uma tradução cognitiva das interações que acontecem em intervenções contemporâneas, sistêmicas e abertas envolvendo gestão, sociedade civil e universidade.

Atores-chave que passaram pela tradução cognitiva tiveram papel fundamental na nova tradução deste processo: a tradução estratégica. Dessa forma, a intervenção Sairé Mais Saudável foi concebida de forma processual e reflexiva. A presença de uma liderança estratégica, da valorização da formação e o reconhecimento de ações já existentes foram as categorias destacadas nesse momento. Sairé Mais Saudável configura-se como um ponto de mudança para a intersetorialidade e a equidade local e está sendo traduzido logisticamente em ações concretas como: Unidade de Triagem e Compostagem, Plano Diretor Saudável revisitado e planejamento integrado intersetores e participativo.

Salienta-se o papel dos atores-chave como agentes catalizadores do processo de tradução de uma gestão setorializada para a intersetorialidade local. Mediadores que conseguiram transformar controvérsias em inovação.

Valorização da formação, liderança estratégica e reconhecimento do que já foi construído foram categorias temáticas encontradas que apontam para a sustentabilidade dessa política local. Vale ressaltar que, para fins deste estudo, alguns dispositivos gerados pelos atores humanos e não humanos, como atuar e aprender em rede também contribuíram na produção de inovações.

Sabe-se que o conhecimento e a capacitação3535. Brasil. Ministério da Saúde (MS). As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília: MS; 2002.,3636. Netto L, Silva KL, Rua MS. Desenvolvimento de Competências para a Promoção da Saúde e Mudança no Modelo Assistencial. Texto Context Enferm 2016; 25(2):1-7. dos atores para sua própria autonomia, desenvolvimento de habilidades e melhoria do ambiente e dos modos de vida são prerrogativas do empoderamento3737. Wallerstein N, Bernstein E. Introduction to community empowerment, participatory education, and health. Health Educ Q 1994; 21(2):141-148.,3838. Baquero RVA. Empoderamento: Instrumento De Emancipação Social? Uma Discussão Conceitual. Rev Debates 2012; 6(1):173. e imperativo ético da promoção da saúde.

O estudo traz evidências do quanto é importante o conhecimento (tradução cognitiva) para produzir reflexividade na ação, transformando princípios em prática de promoção da saúde, e o quanto o diálogo com a academia facilita a mediação desses processos. Isto foi evidenciado no desenvolvimento do Plano Diretor Saudável e na implantação da Unidade de Tratamento e Compostagem (UTC) no município. Tudo o que foi ressaltado acima contribuiu para a concepção e implantação de uma Sairé Mais Saudável enquanto política pública que tem como base a intersetorialidade das ações locais.

Percebe-se que o que deu mais concretude e sustentabilidade à intervenção, no estágio de incentivo à equidade em que se encontra, foi a existência de atores-chave influenciando a gestão e o papel de a liderança da gestão municipal e seu comprometimento político em relação aos pactos acordados com a população, a começar pelo respeito ao que já foi construído.

Agradecimentos

Agradecemos à Sydia Rosana de Araújo Oliveira, à Simone Tetu Moysés, à Leandro Castro e aos entrevistados do município de Sairé.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2017
  • Revisado
    04 Set 2017
  • Aceito
    04 Out 2017
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