O processo de trabalho no arquivo médico: novas perspectivas na produção do ato de cuidar em saúde

Maria Amelia Costa Ana Lúcia Abrahão Sobre os autores

Resumo

Geralmente, estudos referidos ao arquivo médico se restringem à análise documental. Suas atividades alcançam pouca expressividade para além das teorias da administração científica, dificultando a percepção de que nestas possa ocorrer a produção do cuidado. O presente estudo propõe analisar o processo de trabalho dos trabalhadores do arquivo médico hospitalar a partir da dinâmica da micropolítica articulada à análise institucional. Enquanto pesquisa qualitativa descritiva, com referenciais da micropolítica do processo de trabalho em saúde e da Análise Institucional, o estudo identifica com analisadores questões do cotidiano do arquivo médico capazes de revelar estratégias elaboradas por seus trabalhadores e disputas que ocorrem no dia a dia. Assim, foi possível reconhecer em dois hospitais que estes trabalhadores detinham saberes importantes sobre a dinâmica do processo de trabalho em saúde. Como dinamizadores do processo de cuidado do usuário, estabelecem estratégias próprias na dinâmica de cuidar que incidem diretamente na dimensão cuidadora desses hospitais. Nesta perspectiva, introduzir novas investigações sobre este processo de trabalho possibilita diversificar o debate acerca do cuidado em saúde e ampliar o escopo de pesquisa referidas à saúde coletiva.

Palavras-chave
Fluxo de trabalho; Serviços de saúde; Pesquisa qualitativa

Introdução

O presente artigo traz para o centro do debate questões pertinentes ao cotidiano do processo de trabalho do setor de arquivo. Especificamente, investiga como ocorre seu processo de produção em um ambiente responsável pela guarda de documentos em unidades hospitalares. Entretanto, não se detém aos riscos da ocupação e da carga de trabalho que são exigidos nesta atividade, remetendo-se ao aprofundamento acerca do processo de trabalho que se verifica no interior de um arquivo médico hospitalar, lembrando que os trabalhadores do arquivo médico, assim como suas ações, compõem e fazem parte do universo da saúde.

Este cotidiano, em que o fazer, de certa forma, congrega conhecimentos da área da administração, tem em sua gênese a tradição de metodologias consideradas mais “duras”, hard, a chamada administração científica ou Teorias Gerais da Administração. Talvez, por isso, quando se observam e analisam as atividades desenvolvidas pelo grupo de trabalhadores deste setor, muitas vezes os referenciais teórico-metodológicos adotados para tratá-las estejam associados diretamente ao estudo de questões relativas à área da administração. Isto se verifica especialmente a partir de informações associadas à análise e/ou ao diagnóstico de resultados encontrados em prontuários, através de processos, cadastros, registros de dados estatísticos, entre outras evidências desta natureza.

Além de todos esses aspectos que envolvem estes referenciais, eles também são atravessados por questões do campo epidemiológico por meio de dados estatísticos, axiológicos, entre outros. De certa forma, por se originar de uma mesma área do conhecimento (administração), a princípio, suas atividades pouco se diferenciam do que se pode encontrar em espaços destinados aos Arquivos de quaisquer estabelecimentos; seja em museus e bibliotecas, seja em “repartições” públicas ou entidades privadas. Isto porque o Arquivo é por excelência o lugar da guarda documental. Portanto, não pretendemos apresentar neste artigo o contexto referente às revoluções tecnológicas no âmbito dos arquivos de saúde e, sim, a perspectiva do cuidado produzida pelos trabalhadores do arquivo no espaço hospitalar.

A historiadora e ensaísta Arlette Farge11. Farge A. Le goût de l'archive. Paris: Le Seuil; 1989. elaborou um estudo sobre o tema em seu livro Le goût de l'archive Neste, investigou a relação da “vida” de consultores que pesquisam assuntos variados em alguns espaços de arquivos institucionais públicos nacionais e internacionais ao terem acesso a diversos tipos de documentos (cartas, manuscritos, novelas, documentos oficiais etc.). Ao longo do ensaio, não há qualquer referência às atividades do cotidiano do grupo de trabalhadores que garantem a guarda de seus acervos, mesmo porque este não é o enfoque para gestores e público em geral.

Entretanto, quando se trata do processo de trabalho de um arquivo no campo da saúde, de um hospital, ao atender, identificar, localizar, separar, distribuir… os trabalhadores desempenham processos de trabalho que passam a compor as atividades e práticas da assistência em saúde, com arranjos próprios, integrados às características inerentes ao campo. Tal processo de trabalho se torna específico na medida que impulsiona, regula e controla as ações neste fazer, sendo na intencionalidade e na finalidade em satisfazer as necessidades humanas que é possível reconhecê-lo enquanto processo de trabalho em saúde. Esta intencionalidade se encontra na dimensão microscópica do cotidiano do trabalho em saúde e nela está reproduzida, também, a dinâmica do trabalho humano22. Donnangelo MCF. Medicina e sociedade: o médico e o seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975.66. Peduzzi M, Schraiber LB. 2009. [acessado 2014 Set 7]. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/protrasau.html
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Neste sentido, os processos de subjetivação77. Guattari F, Rolnik S. Subjetividade e História. In: Guattari F, Rolnik S, organizadores. Micropolítica: cartografias do desejo. 10ᵃ ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2010. p. 33-148. que ocorrem no movimento dos encontros entre trabalhador/trabalhador, trabalhador/usuário, mobilizam estratégias, provocam novos sentidos para o trabalho, inovam nas práticas, reforçam hábitos, enfim, movimentam os aspectos subjetivos que compõem a ação constituída no processo de trabalho do arquivo. Neste passo, inauguram aspectos singulares bastante interessantes a serem investigados, podendo propiciar outras e novas maneiras de se conduzir o próprio processo de trabalho, seja entre grupos de trabalhadores que desempenham suas atividades laborais, seja entre estes e usuários que buscam o atendimento de suas necessidades.

Este estudo se apoia em dois referenciais teóricos que, em certa medida, complementam-se: um deles é a micropolítica do processo de trabalho em saúde. Detém-se no estudo das distintas forças instituintes que disputam projetos, constroem territórios e operam na dinâmica do encontro (trabalhador/trabalhador, trabalhador/usuário). O que se observa é que a dinâmica da micropolítica se dá a partir da capacidade inventiva permanente do trabalhador, operando na dimensão pública e coletiva, capaz de repercutir novas dinâmicas de produção, ou mesmo abrirse a dimensões não pensadas na produção do cuidado; em síntese, na micropolítica do processo de trabalho em saúde88. Pires D. Processo de trabalho em saúde, no Brasil, no contexto das transformações atuais na esfera do trabalho: estudo em instituições escolhidas [tese] Campinas: Unicamp; 1996.,99. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2005..

Como segundo referencial, optamos pela Análise Institucional. Enquanto abordagem teórica, surgiu na França nos anos de 1960 e 1970, elaborada pelo sociólogo francês René Lourau (1933-2000), e outros estudiosos. Seus questionamentos eclodiram da percepção da atmosfera porque passava a própria sociedade francesa, da efervecência de acontecimentos precursores e desencadeadores dos movimentos de “Maio de 68” e suas reverberações pela Europa1010. Lourau R. A Análise Institucional. Petrópolis: Vozes; 1975.. Os conceitos de “instituição”1111. L'Abbate S. Análise institucional e intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine [periódico na internet] 8(1):194-219, jan. 2012 [acessado 2014 Dez 14]. Disponível em: http://www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/247/pdf_232.
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e “analisador”1010. Lourau R. A Análise Institucional. Petrópolis: Vozes; 1975. foram vitais e responderam como balizadores no processo da pesquisa.

Segundo L'Abbate1111. L'Abbate S. Análise institucional e intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine [periódico na internet] 8(1):194-219, jan. 2012 [acessado 2014 Dez 14]. Disponível em: http://www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/247/pdf_232.
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, o conceito instituição se funda a partir da articulação entre três momentos:

O momento da universalidade ou o instituído, pelo qual a instituição é reconhecida e nomeada; o momento da particularidade ou o instituinte, que não cessa de negar o momento anterior; e o momento da singularidade, resultado da relação dialética entre os dois momentos anteriores, que é a institucionalização, mediante a qual a instituição é tensionada e se atualiza na ação dos sujeitos que a constituem.

A partir destes referenciais, estabeleceram-se os parâmetros para a pesquisa qualitativa, cujo foco não se restringiu à análise de viés epidemiológico ou estatístico documental, comumente empregado em estudos que tomam o arquivo para investigação. Deste modo, tomamos como objetivo deste estudo analisar o processo de trabalho dos trabalhadores do arquivo médico hospitalar a partir da dinâmica da micropolítica articulada à análise institucional.

Métodos

A investigação desenvolveu-se enquanto uma pesquisa qualitativa descritiva, cujo fundamento teórico, além de permitir desvelar processos sociais ainda poucos conhecidos referentes a grupos particulares, propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde 10ᵃ ed. São Paulo: Hucitec; 2007.. Para tanto, o material empírico foi constituindo-se a partir das idas ao campo da pesquisa, onde observações, registros em diário de campo e entrevistas compuseram as ferramentas necessárias à investigação. Ademais, reconhecermo-nos como participantes e produtores de conhecimento foi fundamental ao processo de investigação acerca das ações cotidianas dos sujeitos em seus locais de trabalho, e contribuiu à superação do discurso da neutralidade e da objetividade científica como essenciais à comprovação e validação de um trabalho de pesquisa.

A imersão no campo ocorreu apoiada em permanente discussão e reflexão com grupo de pesquisa “Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gestão e Trabalho em Saúde” (Nupges), facilitando o processo de reconhecimento das implicações da pesquisadora com o objeto de estudo. Implicação no sentido em que Lourau1010. Lourau R. A Análise Institucional. Petrópolis: Vozes; 1975. a compreende, como sendo tudo aquilo que está presente e nos atravessa, como a política, as questões sociais etc., e que também fazem parte do objeto. Neste sentido, estar em constante movimento de reflexão sobre as implicações ampliou as possibilidades de análise do material, ultrapassando o discurso da neutralidade em pesquisa e consolidou a condição de sujeitos implicados no dizer de Merhy1313. Merhy EE. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio em reconhecê-lo como saber válido. Niterói: UFF; 2004 [acessado 2014 nov 23]. Disponível em: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-02.pdf.
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, colocando-nos enquanto pesquisadores e pesquisados à frente desta produção do conhecimento.

Para tanto, instrumentalizamo-nos com elementos que nos levem a pensar e a produzir, em ato1414. Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface (Botucatu) 2014; 18(49):313-324., conceitos-ferramentas, à medida que avancemos em arranjos que ativem a mudança na produção do cuidado, para desenvolver a investigação acerca do processo de trabalho no setor de arquivo médico em dois estabelecimentos hospitalares.

Os campos de observação são institutos de ensino/pesquisa/extensão, pertencentes à rede federal do Sistema Único de Saúde (SUS) no município do Rio de Janeiro, exercendo atividades de hospitais/escola.

Compondo um complexo médico hospitalar de uma universidade federal, o hospital 1, além de desenvolver ensino, pesquisa e extensão, notabiliza-se enquanto centro de referência em pediatria no Brasil. Atende a diversas especialidades pediátricas, em todos os níveis de assistência, abriga o Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina. Conta com serviço de emergência, enfermarias, Unidades de Terapia Intensiva, e atua, inclusive, como Centro de Referência para o Ministério da Saúde em diversas especialidades pediátricas. É referência tanto para casos de toxoplasmose em gestantes como para os de recém-nascidos expostos à toxoplasmose, além de atender e acompanhar casos de sífilis congênita.

Neste, o processo de trabalho desenvolvido pelo grupo de trabalhadores do setor de arquivo médico responde pela guarda documental (prontuários, laudos exames laboratoriais e radiológicos etc.), garantindo acesso ao acervo aos diferentes serviços do estabelecimento hospitalar, de segunda à sexta-feira, das 7 às 17h.

O segundo estabelecimento, hospital 2, além de realizar atendimento a diversos serviços e especialidades pediátricas, desempenha a função de maternidade-escola. Desenvolve, coordena e avalia ações integradas, direcionadas à área da saúde feminina e infanto-juvenil em âmbito nacional. Responde por inúmeros projetos estratégicos voltados à saúde da criança e da mulher e à assistencia de usuários originários da rede de saúde básica do Município do Rio de Janeiro, por demanda espontânea ou referenciada (com encaminhamento). Suas atividades ocorrem semanalmente durante 24 horas.

Devido às características deste hospital, seu setor de arquivo médico desempenha múltiplas funções: desde a guarda e distribuição de prontuários, exames e laudos e tudo que destes derive (“abertura” e conferência de documentos que compõem os prontuários), confecção de Cartão SUS, fornecimento de resultados de exames e laudos aos usuários, até a liberação de material para estudo aos pesquisadores, residentes, alunos e a diversas categorias de profissionais, entre outras atividades. Parte de seus integrantes é diaristas, de segunda a sexta feira, das 7h às 17h; parte, plantonistas, perfazendo 12h/36h ou 24h/72h, de segunda à segunda-feira, executando as mesmas tarefas que os diaristas.

O processo de trabalho nos estabelecimentos 1 e 2 responde pela guarda do acervo documental (prontuários, laudos exames laboratoriais e radiológicos etc.), que preserva histórias de vida e das patologias de pacientes infantis e seus acompanhantes, de mães e seus bebês, de trabalhadores. A importância destes documentos se revela porque, além de servirem de base ao atendimento diário de usuários, também se constituem enquanto imprescindível material para o acompanhamento em consultas médicas, de material de pesquisa, rico em dados epidemiológicos, nosológicos, demográficos, estatísticos, de financiamento etc.. Também trazem informações necessárias ao desenvolvimento do ensino/pesquisa, tanto a professores/pesquisadores, como a alunos, residentes, médicos, enfermeiros, gestores, inclusive aos cursos de pós-graduação afins.

A pesquisa, submetida e aprovada pelos Comitês de Ética e Pesquisa (CEP) principal e coparticipante, desenvolveu-se a partir do acompanhamento e observação do processo de trabalho no setor arquivo médico desses dois estabelecimentos hospitalares, aproximadamente durante oito meses, agosto/2013 a abril/2014. Ao longo deste período, essas observações se tornaram fontes a partir de duas ferramentas potentes para a AI (Análise Institucional): o diário de momentos e as entrevistas temáticas sobre o tema “processo de trabalho”.

No diário de momentos1515. Pezzato L, L'abbate S. O uso de diários como ferramenta de intervenção da Análise Institucional: potencializando reflexões no cotidiano de Saúde Bucal Coletiva. Physis [periódico na internet]. 2011; 21[4]:1297-1314 [acessado 2014 Abr 28]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v21n4/a07v21n4.pdf.
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(DMs), coube-nos registrar questões cotidianas observadas no campo que mereceram destaque e revelaram algumas peculiaridades do processo de trabalho daqueles arquivos em ambos estabelecimentos hospitalares.

Com um total de 21 trabalhadores integrando os dois setores de arquivo médico, cada um apresentava composição própria. O arquivo médico do hospital 1 conta com 07 trabalhadores, 04 homens e 03 mulheres, apresentando níveis de escolaridade variados: 01, com nível superior completo, e 02 incompletos; 03 deles com nível médio e 01 com o ensino fundamental. Destes, 05 são servidores públicos e os outros 02, terceirizados. Todos os trabalhadores aprenderam o ofício a partir da prática cotidiana, sem formação específica para a área, na medida em que eram deslocados para este setor por alguma razão; em geral, devido à falta de contingente suficiente para atender a demanda hospitalar. Dentre estes, um assume a chefia frente ao coletivo, num sistema de rodízio entre os que são servidores. Contudo, mesmo que haja uma divisão de tarefas entre eles (tirar prontuário da estante por posto, conferir agenda, levantar pasta, liberar documentos para pesquisa etc.), todos assumem as atividades diárias coletivamente, para o caso de ausência momentânea ou falta de trabalhador.

No arquivo médico do hospital 2, há um total de 14 trabalhadores: 11 homens e 04 mulheres. Destes, 03 têm nível superior completo e 02 incompletos; 05 com ensino médio e 04 com ensino fundamental. Apenas 03 são servidores públicos e o restante é terceirizado. Como a dinâmica deste arquivo médico é diferente da do hospital 1, dada sua especificidade enquanto maternidade-escola, 03 trabalhadores se revezam no atendimento ao público (confecção do cartão SUS, liberação de documentos para reprodução, abertura de fichas etc.), 01 responde pela movimentação diária (agenda e controle na devolução dos prontuários), e os outros são responsáveis pela rotina (tirar prontuário da estante por posto, conferir agenda, levantar pasta etc.), alternando suas funções devido à condição de diarista e/ou plantonista. Neste arquivo, 02 de seus integrantes apresentam necessidades especiais (deficiência auditiva).

Para procedermos às atividades do campo da pesquisa, estabelecemos alguns critérios para a seleção das participações no momento das entrevistas do trabalhadores nos dois estabelecimentos hospitalares: tempo de permanência no arquivo (mínimo de 05 anos) e limite de faixa etária (a partir de 21 anos). Dentre aqueles integrantes do setor que contemplaram tais critérios, apenas 05 do hospital 1, e 04, do hospital 2, participaram da pesquisa. Portanto, 09 trabalhadores participaram mediante autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Para análise dos depoimentos dos participantes, elaboramos alguns artifícios de acordo com o estabelecido no TCLE, garantindo com total anonimato a preservação de suas identidades. Os fragmentos dos depoimentos foram incorporados ao corpo da pesquisa da seguinte maneira: F1 a F5, designaram os participantes de um arquivo médico; F6 a F9, do outro. Outros recursos foram criados para preservar a identidade de todos que, de alguma forma, estiveram presentes nas narrativas dos participantes: colega1, colega2, assim por diante, para os outros integrantes do grupo que não se dispuseram à entrevista; mensageiro, para o estabelecimento que contasse apenas com um assistente; mensageiro1, mensageiro2, assim por diante, para situações com mais de um assistente ou recepcionista; D1, D2, assim por diante, para médicos; e, CH1, CH2, assim por diante, para todos os gestores. Posteriormente, todas as entrevistas gravadas foram transcritas e fornecidas aos entrevistados para que estes procedessem à conferência de fidelidade de seus depoimentos. Mediante a liberação por parte destes, passamos a análise do material. Desta maneira, deu-se início ao trabalho com o material fornecido pelos participantes, fazendo sempre a interlocução deste com as narrativas do diário de momentos, além da própria produção dos pesquisadores implicados.

A possibilidade de nos reconhecermos enquanto pesquisadores implicados favoreceu-nos a percepção do material que dispúnhamos (diário de momentos e depoimentos das fontes). Sua análise foi realizada a partir do referencial da Análise Institucional. Após a leitura e releitura deste, percebemos a nossa importância como ferramenta necessária à construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação1111. L'Abbate S. Análise institucional e intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação na Saúde Coletiva. Mnemosine [periódico na internet] 8(1):194-219, jan. 2012 [acessado 2014 Dez 14]. Disponível em: http://www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/247/pdf_232.
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, quando da efetivação desta pesquisa qualitativa.

Apresentação e análise do material

Na perspectiva da AI, consideramos o conceito de analisador como central à pesquisa, porque, como elemento que nos leva a pensar e produzir, em ato1414. Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface (Botucatu) 2014; 18(49):313-324., permite-nos revelar diferentes situações vivenciadas pelas Instituições em seus embates diários. Além disso, tornaram-se evidentes algumas questões no âmbito do processo de trabalho em saúde devido a sua própria especificidade, na medida em que suas atividades, de certa forma, mostraram-se invisíveis à produção do cuidado.

Além deste, tomamos da AI o conceito “instituição” como outro componente importante no processamento do material e sua análise. A princípio, no sentido de possibilitar o reconhecimento e a diferenciação da dinâmica laboral de distintos grupos de trabalhadores envolvidos com o ato de cuidar. A partir deste entendimento, foi possível perceber como se estabeleciam relações, arranjos e estratégias entre tais grupos na condução de suas rotinas ao formularem seus próprios acordos, regras, normas e, principalmente, suas próprias verdades no exercício das ações diárias, garantindo-lhe a condição de Instituição.

Por outro lado, à medida que trabalhamos no plano da micropolítica do processo de trabalho em saúde foi possível estabelecer como se configuravam cenários de disputas que permeavam as relações entre os grupos de trabalhadores nas distintas Instituições.

O material recolhido possibilitou explorar a maneira como diferentes grupos de trabalhadores conduziam suas rotinas no processo de trabalho. Ao formularem seus acordos, regras, normas e, principalmente, suas próprias verdades no exercício das ações diárias, restringindo a seus pares o domínio destas formulações, estruturavam-se internamente estabelecendo arranjos e estratégias próprias para exercer suas atividades, contituindo-se em Instituições. Neste movimento, foi possível reconhecer e diferenciar as dinâmicas do processo de trabalho do arquivo médico, da enfermagem, da medicina, da gestão, entre outros setores, em ambos estabelecimentos hospitalares; e, principalmente, tomá-los enquanto Instituições, o que foi fundamental para o prosseguimento da análise do material produzido ao longo da investigação.

Além das ferramentas conceituais apontadas, o emprego desses conceitos (Instituição e Analisador) favoreceu a condução dos trabalhos e possibilitou que a análise do material empírico permitisse um exercício necessário ao provocar o reconhecimento de questões pertinentes ao processo de trabalho que, em geral, alcançam pouca ou nenhuma visibilidade.

À medida que as três fontes (a condição de “pesquisador implicado”, os registros no diário de momentos e os depoimentos fornecidos pelos participantes nas entrevistas temáticas), cruzaram-se, tornou-se possível identificar dentre os elementos aquele conceito-ferramenta analisador que revelou processos de disputa entre as Instituições: documento perdido; ou seja, ao ser empregado na análise, este foi capaz de evidenciar a imbricada relação estabelecida pelas instituições que atravessam o processo de trabalho no arquivo dos dois hospitais estudados. Este evidenciamento foi interessante na medida em que viabilizou certa exposição ou explicitação do quanto, no cotidiano das ações, um processo de trabalho se coloca vulnerável frente a outro, deixando à mostra contradições que surgem através do embate entre “verdades” e os questionamentos dessas verdades; inclusive, colocando em cheque as relações entre as Instituições presentes no processo de trabalho dos estabelecimentos hospitalares.

Com o analisador “documento perdido”, foi possível capturar aspectos que demonstraram os ruídos existentes na própria Instituição arquivo médico e, principalmente, aqueles presentes em sua relação com a Instituição medicina, evidenciando tensões existentes entre as Instituições, onde o agir médico hegemônico pôde ser confrontado. Este analisador permitiu revelar as ditas “verdades” que sustentavam este agir da Instituição medicina e, paradoxalmente, mostravam suas contradições a partir de suas relações com outras tantas Instituições.

Ao confrontar, nas entrevistas, diversos depoimentos fornecidos pelo grupo de trabalhadores da Instituição arquivo médico dos hospitais 1 e 2, em que se configuraram as “certezas” e verdades secularmente difundidas por parte da Instituição medicina, o analisador cumpriu a função a que se destinara na pesquisa como máquinas de fazer ver e de fazer falar1616. Deleuze G. O mistério de Ariana: cinco textos e uma entrevista de Gilles Deleuze. Lisboa: Estudo Vega/Passagens; 1996. os depoimentos, ao apontar questões no processo de trabalho em saúde que poderiam ter passado despercebidas ao longo das investigações.

Ademais, a própria condição de sujeito implicado no processo de pesquisa também favoreceu ao reconhecimento do analisador “documento perdido” enquanto um conceito-ferramenta. Através desta condição, por experimentarmos processos de subjetivação, em certa medida, “(re) inventamo-nos” e, ao nos debruçarmos sobre os materiais da investigação (diários de momentos e depoimentos das fontes), tais questões entre as Instituições puderam ser acionadas, orientando nossas análises sobre este conjunto de materiais.

Em diversos relatos dos entrevistados, apontou-se a questão referente ao tempo investido na procura por documentos perdidos ou mesmo extraviados (prontuários, laudos e pedidos de exames, fichas de atendimento etc.), levando a processos contínuos de desgastes devido a cobranças e responsabilização que lhes eram imputadas.

[…] [o prontuário] fica preso nos ambulatórios, no armário, na gaveta, é complicado. E a culpa é de quem? A visão deles [gestores] é negativa em relação a gente por isso, porque some prontuários. Pode ser que esteja arquivado errado, acontece! Mas, muitas vezes, está na gaveta, no armário, na casa de um médico. Quem leva a culpa? O arquivo médico; a gente é criticado à beça por isso! (Depoimento – F7)

Em inúmeros depoimentos, parte dos problemas recorrentes no dia a dia se remetia a busca por documentos (prontuários, exames, laudos etc.) necessários ao atendimento a diferentes consultas e intervenções cirúrgicas de qualquer ordem previamente agendadas. A partir da orientação da Instituição arquivo médico, ou mesmo da dinâmica de funcionamento dos estabelecimentos hospitalares 1 e 2, todos os documentos sob a guarda do setor deveriam retornar para seu devido arquivamento após a utilização, conforme as especificações de agendamento, substituindo suas respectivas “guias fora”.

[…] [o exame] não, estava arquivado, ficava na pasta azul [guia fora]; quando o prontuário volta, nós abrimos o prontuário e colocamos [os exames] dentro. Até o prontuário voltar, [a guia fora fica] com a resposta, aquela resposta com o pedido: - Foi pra “X”; a data e tudo certo; saiu tal dia pra determinado médico e nunca voltou. […] No mesmo dia ela [médica] desceu aqui, a D1, [para] saber porque os exames não estavam dentro do prontuário. Só que ela mesma [é que] estava segurando o prontuário. (Depoimento – F1)

Entretanto, vez por outra, desapareciam, não retornavam, cabendo ao grupo de trabalhadores do arquivo sair em campo na busca por seu paradeiro. Alguns eram encontrados nos próprios consultórios dos ambulatórios a que se destinaram, mas por alguma razão foram “esquecidos” por quem os utilizou; alguns eram redirecionados entre consultórios sem que isso fosse previamente informado ao arquivo; outros eram “levados” inadvertidamente por algum profissional para atender sua necessidade específica sem que este fizesse a devida solicitação ao setor para que este avaliasse tal possibilidade, além de outras tantas situações.

[…] hoje em dia está dando muito problema de prontuário perdido. É médico que leva o prontuário pra casa… Então, assim, tudo é culpa do arquivo, infelizmente! O prontuário sai de um setor, dali, o prontuário vai pra outro setor, ninguém comunica que o prontuário foi de W para a Y, ninguém avisa. Aí você vai na W procurar o prontuário, o prontuário não está lá, e a médica fala: “Eu devolvi, não está mais comigo, pode procurar!” Mas não está mais ali porque eles levaram para a Y e não comunicaram ao arquivo médico. Por isso que nós inventamos essa questão da filipeta, porque a secretária quando leva um prontuário para a W, um agendamento, são cinquenta, cem prontuários, então, tem a listagem e ela vai conferindo um por um na listagem, o que não foi ela coloca um M do lado, que a gente sabe… (Depoimento – F8)

No DMs (diários de momentos) de 12/08/20131515. Pezzato L, L'abbate S. O uso de diários como ferramenta de intervenção da Análise Institucional: potencializando reflexões no cotidiano de Saúde Bucal Coletiva. Physis [periódico na internet]. 2011; 21[4]:1297-1314 [acessado 2014 Abr 28]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v21n4/a07v21n4.pdf.
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, registramos alguns episódios marcantes, em que o analisador “documento perdido” deixava explícito frequentes ruídos na relação entre a Instituição arquivo médico e suas Instituições interlocutoras. Dentre estes, episódio em que presenciamos a recuperação por parte de uma assistente/mensageira de um prontuário que estava “perdido” desde abril de 2013 e foi encontrado no setor X. Nesta ocasião, os trabalhadores da Instituição arquivo disseram, quase que em coro: “por isso que o documento estava sumido”. Alertando, também, que tal fato era “comum”, isto é, o setor X era “famoso” por reter os prontuários para pesquisa sem comunicar aos trabalhadores do arquivo, ou ao ambulatório, onde o paciente estivera em sua última consulta, já que no programa do sistema de computação não constava sua devolução ou qualquer outra movimentação.

O médico D2 levou o prontuário, ele não devolveu. De lá ele empresta para outro médico, aí você vai atrás dele: “- Doutor, tem uma saída nessa data com seu nome desse prontuário”. “- Mas eu devolvi pro arquivo”. “- Devolveu como, que não está lá?” “-Vocês devem ter arquivado errado”. Então o sistema não funciona, a gente tá assinando atestado de burrice porque infelizmente, o controle que a gente tem, ninguém acredita, então tudo é culpa do arquivo médico. Aí, depois que a chefia pegou [a] médica colocando prontuário – porque agora se tornou uma coisa tão normal, entre aspas, porque daqui a gente já viu médico colocando prontuário dentro da bolsa… Da outra vez o chefe viu a médica fazendo isso, foi atrás dela lá no estacionamento: “-Olha, eu queria pegar esses prontuários que estão dentro da sua bolsa”. “- Ah! não, não vou levar para casa, só vim deixar o jaleco no carro”. “- Então tá bom, você pega o prontuário e devolve no arquivo”. Aí ela voltou pro hospital e voltou com o jaleco, aí ele disse: “Ué, você não ia deixar o jaleco, porque você voltou com o jaleco?” Quer dizer, ela ia levar os prontuários para casa, e agora é proibido levar a pesquisa para outro setor, tem que olhar dentro do arquivo, por isso que foi proibido. (Depoimento – F8)

Fragmentos de narrativas dos entrevistados mostram a maneira como elaboram suas estratégias para a recuperação de documentos. No caso do “sumiço” do documento do episódio anterior:

[…] quando, as vezes, a gente desconfia de alguma coisa, a gente manda o NE1 em algum lugar, porque ele não fala e não ouve, mas ele entende tudo; e ninguém fala [com o NE1. Farge A. Le goût de l'archive. Paris: Le Seuil; 1989.], porque já sabe como ele é, ninguém reclama dele (Depoimento - F6)

Neste caso, ficara evidente a dimensão potente, enquanto uma ferramenta, que o analisador “documento perdido” demonstrou ter ao repercutir uma das estratégias que foi empregada para que se estabelecessem procedimentos adequados e necessários ao andamento do processo de trabalho cotidiano da Instituição arquivo médico.

Certamente, esta estratégia fora empregada pelos trabalhadores porque, em certa medida, as relações no campo da saúde ainda se baseiam em formas hierarquizadas e estratificadas, apoiadas diretamente em práticas sustentadas em processos de trabalho em saúde a partir da dimensão do agir médico hegemônico. De certa forma, estas se reproduziam e repercutiam enquanto regimes de verdades, normas e regras, responsáveis por constituir a Instituição medicina, estabelecendo condutas e práticas cotidianas, que, sutilmente, passaram a ser explicitadas por nós pesquisadores através do exercício revelador do analisador “documento perdido”. Em relatos sobre a procura a prontuários extraviados, este exercício foi inúmeras vezes explicitado:

[…] muita coisa, foi assim encontrada. […] Ambulatório e cirurgia infantil, dali parte pra enfermaria, porque o médico quer olhar, quer estudar [o prontuário]. Sai do ambulatório pra enfermaria tal: [setor] X?… Tem um monte de prontuário lá. […] [setor] X, tem arquivo lá também, tem mesmo! Um monte de prontuário lá, um monte! (Depoimento - F6)

De certa forma, o “documento perdido” permitiu revelar como essas práticas apontadas em parágrafos anteriores comprometiam as atividades cotidianas, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo eram medidas de produção de cuidado sendo realizadas. Os atropelos produzidos pelas Instituições interlocutoras repercutiram na própria dinâmica do processo de trabalho, atravessando as relações entre sujeitos de outras Instituições. Desde o manuseio dos documentos sob a guarda da Instituição arquivo médico que teriam que respeitar certos procedimentos estabelecidos por conjunto de normas e regras, até transtornos causados ao atendimento à Instituição usuário, podemos reconhecer a capacidade reveladora deste analisador. Este fato também ficou evidente quando um entrevistado afirmou que

Cada dia tem coisa nova pra poder aprender nisso [processo de trabalho], porque tem sempre coisas novas que a gente, sabe, que aparece; sobre os médicos também, que sempre tá segurando prontuário, sempre segura. […] Fica com eles! Pesquisa, pra trabalho, estudo, tipo um estudo, dão aulas com esses prontuários. Tem vários médicos aí, várias especialidades, têm prontuários lá desde 2010, 2009. […] com certeza, atrapalha… com certeza! […] (Depoimento – F2)

Em diversos momentos, depoimentos como esse nos convocaram a investigar que outros problemas foram ocasionados devido à perda ou “supressão” momentânea de prontuários, afetando diretamente a Instituição usuário. Outras falas revelaram quais seriam os procedimentos adequados e suas consequências:

O certo é [o prontuário] ter que descer todo dia; teve a consulta, tem que descer, mas no caso eles seguram, e nisso, atrapalha muito. Às vezes a criança tem consulta em outro médico, outra especialidade, e o prontuário tá com outro médico, em outra especialidade (Depoimento - F2)

Através da micropolítica do processo de trabalho em saúde, o conhecimento acerca da dinâmica cotidiana de trabalho do grupo do arquivo médico pode ser percebido. Ao acompanhar a rotina de toda programação veiculada nas agendas de atendimento diário das diversas Instituições nos dois estabelecimentos hospitalares, os trabalhadores demonstravam deter um conhecimento importante, podendo identificar e estabelecer quais seriam os problemas que o erro no manuseio e o extravio de um documento poderia ocasionar.

Considerações finais

Ao acompanharmos o cotidiano do arquivo médico nos hospitais 1 e 2, o depoimento de algumas fontes “sabidas”, permitiram-nos especular que a Instituição arquivo médico é invisível na relação com seus interlocutores, só existindo nos interstícios, como estratégia para que não se admita sua capacidade promotora do cuidado em saúde1717. Deleuze G, Guattari F. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago Editora; 1977..

Ao conduzirem suas atividades, mesmo com pouca ou nenhuma visibilidade, fizeram-no com a perspectiva de possibilitar a manutenção das ações, tanto de outras Instituições, como dos próprios estabelecimentos hospitalares na produção do cuidado em saúde. Tal processo pode ser observado na medida em que a Instituição arquivo médico, ao ser atravessada por diferentes Instituições, representa um vetor de transversalidade das Instituições que compõem processo de trabalho em saúde. Logo, é possível reconhecer a participação deste grupo de trabalhadores no contexto e na produção do cuidado, na medida em que suas atividades enquanto depositário de documentos, informações e dados, sustentam inúmeras outras formas de cuidado. Além disso, buscam solucionar situações difíceis através de produções micropolíticas do trabalho em saúde em ato, desempenhando suas funções de maneira criativa, silenciosa, paciente, observadora.

Entretanto, mesmo que esses atravessamentos possibilitem visibilidades momentâneas a partir de diferentes manejos, arranjos e estratégias elaboradas na administração de problemas frequentes de “documentos perdidos”, é na invisibilidade que os trabalhadores do arquivo médico – e suas ações – se tornam presentes.

De certa forma, foi a partir dessa invisibilidade que, através da Instituição arquivo médico, pode-se desmistificar e problematizar algumas “verdades” consagradas acerca da produção do cuidado no campo da saúde, onde práticas e ações rotineiras foram sustentadas por estas “verdades”, principalmente aquelas apoiadas no agir médico hegemônico. A estruturada das ações no processo de trabalho em saúde construiu-se verticalmente na Instituição Médica, sustentada por verdades vindas da concepção da doença elaborada no século XVII, quando a doença era o centro da medicina e o que precisava ser combatido. Naquele movimento, deixava-se de lado o sujeito. Este, forte e balizador, sustentava uma prática que desconhecia a necessidade de outros elementos integrantes do processo de trabalho, como os trabalhadores do arquivo médico.

O grupo de trabalhadores do arquivo, como dinamizador do processo de cuidado do usuário, enfrenta em algum momento da vida, limitações da sua autonomia diária, e deflagra mecanismos de superação, deixando à mostra que o arquivo médico estabelece um movimento próprio de cuidar que incide diretamente sobre o cuidado nos estabelecimentos estudados.

E, finalmente, consideramos que, a partir deste trabalho, vislumbre-se outra e nova perspectiva na produção do ato de cuidar em saúde, ampliando o espectro de pesquisas voltadas a temáticas tanto da saúde coletiva como da saúde pública. Da mesma forma, pensamos que, com este debate introdutório acerca do grau de opacidade de uma Instituição potente como o arquivo médico, seja possível o reconhecimento de que seu processo de trabalho em saúde produz vida, produz cuidado.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos trabalhadores do setor de Arquivo Médico dos dois estabelecimentos médicos pela disponibilidade em nos receber e dividir conosco suas experiências cotidianas de trabalho. Agradecemos também aos integrantes da linha de pesquisa Micropolítica do Cuidado e do Trabalho em Saúde, da Pós-Graduação em Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelas contribuições nos debates realizados durante o processo de desenvolvimento da pesquisa e da redação deste artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2015
  • Revisado
    24 Jun 2016
  • Aceito
    26 Jun 2016
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