Qualidade de vida, coesão e adaptabilidade em famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família

Maria Helena Pereira Rosalini Livia Fernandes Probst Inara Pereira da Cunha Brunna Verna Castro Gondinho Karine Laura Cortellazzi Rosana de Fátima Possobon Antonio Carlos Pereira Luciane Miranda Guerra Sobre os autores

Resumo

Avaliou-se a associação entre qualidade de vida, coesão familiar e fatores sociodemográficos de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF). Estudo transversal, analítico e de caráter exploratório com amostra representativa de 385 entrevistados. A variável dependente foi a qualidade de vida (WHOQOL-BREF), e as variáveis independentes quantificadas em características sociodemográficas, autopercepção sobre saúde, coesão e adaptabilidade familiar (FACES III). A melhor qualidade de vida associou-se com idade menor ou igual a 36 anos (OR = 2,15), maior nível educacional (OR = 1,54), boa/muito boa saúde (OR = 6,39), não ter problema de saúde atual (OR = 5,68), sem tratamento (OR = 1,76), moderada (OR = 3,39) e alta (OR = 3,66) coesão familiar e moderada adaptabilidade (OR = 2,23). Indivíduos provenientes de famílias com moderada e alta coesão familiar tiveram mais chance de ter uma melhor qualidade de vida do que aqueles vindos de famílias com baixa coesão. Os voluntários do sexo masculino tiveram 3,54 vezes mais chance de apresentar uma melhor qualidade de vida. Concluiu-se que níveis moderados e altos de coesão podem impactar positivamente uma melhor qualidade de vida das pessoas beneficiárias do PBF, indicando que as ações sociais devem buscar o fortalecimento dessa dinâmica.

Palavras-chave
Qualidade de vida; Relações familiares; Pobreza; Adaptação; Política social

Introdução

Desde o início do século XXI, a maior e mais crescente diferença entre os indivíduos de uma mesma sociedade diz respeito ao acúmulo de capital. Na maioria dos países, apenas 10% da população está acima da média da riqueza, sendo que nas nações mais desiguais 1% desse extrato pode acumular até cem mil vezes essa média11. Shorrocks A, Davies J, Lluberas R. Thought leadership from Credit Suisse Research and the world's foremost experts. Geneva: Research Institute; 2014. (Global Wealth Report 2014).. Apesar de ainda ser considerada uma nação com desigualdade muito alta11. Shorrocks A, Davies J, Lluberas R. Thought leadership from Credit Suisse Research and the world's foremost experts. Geneva: Research Institute; 2014. (Global Wealth Report 2014)., entre os anos de 2000 e 2007 houve certa redução na desigualdade da distribuição de renda no Brasil, o que pode ser explicado pelo crescimento econômico associado a uma conjuntura política focalizada em programas de transferência de renda22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – 2013. [acessado 2010 Dez 16]. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/
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Um dos meios propostos pelo Estado Brasileiro para alcançar essa melhoria foi o Programa Bolsa Família (PBF). Implementado em 2003, trata-se de um dos eixos centrais de proteção social, com intuito de combater a fome e a miséria das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza33. Brasil. Decreto n° 5.209 de 17 de setembro de 2004. Regulamenta o Programa Bolsa Família. Diário Oficial da União 2004; 18 set.. A emancipação das 13,8 milhões famílias beneficiárias é promovida por meio de repasse monetário mensal e de exigências de condicionalidades obrigatórias relacionadas ao acesso à saúde e à educação, bem como a participação em ações complementares de integração no mercado de trabalho44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE; 2014..

O PBF teve um impacto positivo nas populações assistidas55. Roque DM, Ferreira MAM. O que realmente importa em programas de transferência condicionada de renda? Abordagens em diferentes países. Saúde Soc 2015; 24(4):1193-1207., contudo, pouco mensurado em relação à qualidade de vida. Ademais, nesse cenário de oportunidades igualitárias, existe uma parcela da população que não se beneficia das mesmas condições ofertadas pela política, devido a fatores externos66. Bohn S, Veiga LF, Dalt SD, Brandão AAP, Gouvêa VHC. Can conditional cash transfer programs generate equality of opportunity in highly unequal societies? Evidence from Brazil. Revista de Sociologia e Política 2014; 22(51):111-133. ou possivelmente intrínsecos.

Em comunidades em que as desigualdades e heterogeneidades são muito fortes, os padrões e as concepções de bem-estar são estratificados, uma vez que a ideia de qualidade de vida está relacionada ao bem-estar das camadas superiores e à passagem de um limiar a outro77. Minayo MCS, Hartz ZMA, Buss PMi. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Cien Saude Colet 2000; 5(1):7-18.. Para Schuler88. Schuler BR. Health Perceptions and Quality of Life among Low-Income Adults. Health Soc Work 2015 40(3):225-232., percepções subjetivas de saúde em indivíduos de baixa renda podem ser um melhor indicador de qualidade de vida do que a presença de alterações sistêmicas.

Trajetórias marcadas por acontecimentos negativos repercutem na dinâmica da família e no desenvolvimento e maturação de seus membros, repercutindo até mesmo na fase adulta99. Salinas-Miranda AA, Salemi JL, King LM, Baldwin JA, Berry EL, Austin DA, Scarborough K, Spooner KK, Zoorob RJ, Salihu HM. Adverse childhood experiences and health-related quality of life in adulthood: revelations from a community needs assessment. Health Qual Life Outcomes 2015; 13:123.. No processo de socialização, alguns constructos das relações familiares são utilizados para análise de suas funcionalidades, como as dimensões de coesão e adaptabilidade. A coesão familiar se define como uma variação entre separação e conexão dos membros da família ou o vínculo emocional que seus integrantes possuem uns com os outros, enquanto que a adaptabilidade se refere à capacidade da família de ser flexível para mudanças, por meio da variação na estrutura de poder e nas regras de relacionamento, em detrimento de novos obstáculos ou eventos estressantes que ocorrem no seu interior1010. Baptista MN. Desenvolvimento do Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF):estudos psicométricos preliminares. PsicoUSF 2005; 10(1):11-19.. Sabe-se por estudos anteriores que piores condições socioeconômicas estão associadas à baixa coesão familiar e comportamentos prejudiciais à saúde1111. Ferreira LL, Brandão GAM, Garcia G, Batista MJ, Costa LST, Ambrosano GMB . Coesão familiar associada à saúde bucal, fatores socioeconômicos e comportamentos em saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(8):2461-2473.,1212. Ferreira MSM, Pereira MG. O papel moderador do tipo de família na relação entre incapacidade funcional e qualidade de vida em doentes com lombalgia crônica. Cien Saude Colet 2016; 21(1):303-309.. Entender como os indivíduos de uma família se relacionam e conhecer o grau de união entre os familiares, ou seja, a coesão familiar, é essencial para otimizar as relações e melhorar condições de saúde e qualidade de vida para os entes familiares.

Por sua vez, o tema qualidade de vida, com muitos significados, é uma construção social com a marca da relatividade cultural; uma noção eminentemente humana, que tem aproximação com o grau de satisfação encontrado na vida familiar, amorosa, social e ambiental e com a própria estética existencial77. Minayo MCS, Hartz ZMA, Buss PMi. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Cien Saude Colet 2000; 5(1):7-18.. De fato, poucos trabalhos têm se dedicado a entrar nos meandros familiares para obter, das famílias que estão em condições vulneráveis e convivem em contextos de desigualdade social, suas percepções sobre as relações, e se estas interferem na sua saúde e, consequentemente, na sua qualidade de vida. E o conhecimento de tais percepções pode ser um importante indicativo para a implementação de melhorias nos programas. Tendo em vista o exposto, o objetivo deste estudo foi investigar a associação entre qualidade de vida, coesão, adaptabilidade familiar e variáveis sociodemográficas em beneficiários do Programa Bolsa Família.

Metodologia

Aspectos éticos

O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Piracicaba-Universidade Estadual de Campinas (FOP-Unicamp).

Caracterização do estudo, local de desenvolvimento e amostra

Estudo analítico, transversal, de caráter exploratório e metodologia quantitativa, realizado em 2012, na cidade de São Carlos, São Paulo, Brasil. Por se tratar de um benefício governamental, os nomes e o número dos beneficiários do PBF eram de domínio público. Os seus endereços, porém, foram solicitados à Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC) que pertencia ao atualmente extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).

Os beneficiários representavam aproximadamente 2,3% da população total do município. Dentre as 5170 famílias beneficiárias cadastradas no PBF no momento da pesquisa, utilizou-se 5076 (cinco mil e setenta e seis) para o cálculo da amostra, devido a alguns endereços incompletos, que impossibilitaram incluir todas as famílias em nossa população. As famílias estavam distribuídas da seguinte forma: Bairro Aracy, 2001 famílias; Bairro Sede, 626 famílias; Bairro Santa Eudóxia, 110 famílias; Bairro Santa Felícia, 777 famílias; Bairro Pacaembu, 831 famílias; Bairro São Carlos VIII, 731 famílias.

O tipo de amostragem utilizada foi a probabilística por conglomerado em 2 estágios, bairros e beneficiários. Foi calculado um número amostral de 385 famílias com resposta para a população levantada, considerando um nível de confiança de 95%, erro amostral de 5%, tomando como critério de cálculo a proporção de 0,50 (50% de mesma chance de participação entre beneficiários de cada bairro).

Os critérios de inclusão foram sujeitos pertencentes à família de beneficiários, compondo o mesmo domicílio, com ou sem grau de parentesco entre si, recebendo o benefício há, no mínimo, seis meses, sendo maiores de 18 anos. Os beneficiários ou pessoas que estavam residindo com família de beneficiários, num período menor que seis meses, e os beneficiários com dificuldades de dicção cognitiva para expressar suas respostas, ou que eram menores de 18 anos foram excluídos.

Instrumentos utilizados e coleta dos dados

Dados sociodemográficos: em um questionário semiestruturado autoaplicado em domicílio, foram coletadas as seguintes informações sobre o respondente: sexo; idade; nível educacional; quantidade de pessoas na família (núcleo familiar); como está a sua saúde, classificando em 5 itens a saber: muito ruim (1) fraca (2) nem ruim nem boa (3) boa (4) muito boa (5); problemas de saúde atual onde o respondente podia escolher entre 18 opções de condições pré-determinadas e um item denominado “Outros”, em que se podia especificar outros problemas e; por fim, o regime de cuidado de saúde que elencou: Sem tratamento (1), Tratamento ambulatorial, que correspondia a tratamento em Unidade de Atenção Primária à Saúde (2) e, Internação (3).

Nível de qualidade de vida: para avaliação do nível de qualidade de vida foi utilizada a forma curta do instrumento World Health Organization Quality of life (WHOQOl-bref), o qual permite avaliar a qualidade de vida de populações adultas e que foi validado para o português por Fleck et al.1313. Fleck MPA, Louzada S, Xavier M, Chachamovich E, Vieira G, Santos L, Pinzon V. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida “WHOQOL-bref”. Rev Saúde Pública 2000; 34(2):178-183.. O WHOQOl-bref consta de 26 questões com alternativas de respostas pela escala de Likert, sendo duas questões gerais e 24 representando as facetas que compõem o instrumento original, estando relacionadas a 4 domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio-ambiente. Os resultados obtidos foram transformados em escalas lineares e os scores mais altos denotam uma melhor qualidade de vida.

Coesão e adaptabilidade: para avaliar o funcionamento familiar quanto a coesão e adaptabilidade foi aplicada a escala Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales (FACES III), criada por Olson et al.1414. Olson DH, Sprenkle D, Russel C. Circumplex model: systemic assessment and treatment of families. New York: The Harworth Press; 1989. e validada no Brasil por Falceto et al.1515. Falceto OG, Busnell ED, Bozzetti MC. Validação de escalas diagnósticas do funcionamento familiar para a utilização em serviços de atenção primária à saúde. Pan Am J Public Health 2000; 7(4):255-263.. A escala avaliativa FACES III é um questionário autoaplicável que propõe avaliar o funcionamento e o risco familiar mediante avaliação da coesão e adaptabilidade familiar. São dez perguntas para cada dimensão, que possuem um valor atribuído de 1 a 5, 1 a “quase nunca” até o valor 5 “quase sempre”. A pontuação varia de 10 a 50 para cada domínio.

Variáveis analisadas e análise dos dados

No presente estudo, a classificação em grupos foi feita por meio da obtenção da média e desvio padrão da coesão e da adaptabilidade familiar da população estudada. Para a coesão valores abaixo e acima do desvio-padrão correspondem às famílias desligadas e aglutinadas (que foi denominada coesão baixa e alta), respectivamente. Valores entre o desvio-padrão e a média correspondem a famílias com coesão média (que foi denominada coesão moderada), sendo que as famílias separadas foram aquelas com coesão familiar abaixo da média, e famílias conectadas, acima da média, conforme estudo de Ferreira et al.1111. Ferreira LL, Brandão GAM, Garcia G, Batista MJ, Costa LST, Ambrosano GMB . Coesão familiar associada à saúde bucal, fatores socioeconômicos e comportamentos em saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(8):2461-2473.. Para adaptabilidade valores abaixo e acima do desvio-padrão correspondem às famílias Caóticas e Rígidas (que foi denominada adaptabilidade baixa e alta) respectivamente. Valores entre o desvio-padrão e a média correspondem a famílias com adaptabilidade média (que foi denominada adaptabilidade moderada), sendo que as famílias Flexíveis foram aquelas com coesão familiar abaixo da média e as famílias Estruturadas, acima da média.

Considerou-se como variável dependente a qualidade de vida, dicotomizada pela mediana do WHOQOl-bref em ≤ 13,69 (pior qualidade de vida) e > 13,69 (melhor qualidade de vida). As variáveis independentes foram categorizadas da seguinte forma: idade (dicotomizada pela mediana em ≤ 36 anos e > 36 anos); sexo (feminino e masculino); nível educacional (dicotomizada pela mediana em ≤ 8 anos de estudo e > 8 anos de estudo); “como está a sua saúde?” (dicotomizada pela mediana em “não boa” que aglutinou as respostas muito ruim, fraca e nem ruim nem boa e em “boa/muito boa” que reuniu as respostas boa e muito boa); problema de saúde atual (tem e não tem problema); regime de cuidados de saúde (como nenhum participante marcou a opção “internação”, essa variável foi dicotomizada em sem tratamento e com tratamento ambulatorial), núcleo familiar (dicotomizada pela mediana em ≤ 4 pessoas na família e > 4 pessoas), coesão familiar (baixa, moderada e alta) e adaptabilidade (baixa, moderada e alta).

O teste de Qui-quadrado foi utilizado para testar a associação entre as variáveis independentes com a qualidade de vida. As variáveis que apresentaram p<0,20 na análise bivariada foram testadas nos modelos de regressão logística múltipla. Os Odds Ratio (OR) e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC) foram estimados para as variáveis que permaneceram no modelo final no nível de significância de 5%. Todos os testes estatísticos foram realizados pelo programa SAS1616. SAS User's Guide. Statistics, version 9.4. Cary: SAS Institute Inc; 2001..

Resultados

A maior parte da amostra foi composta de mulheres (94,81%), sendo que 197 (57%) indivíduos possuíam 36 anos ou menos. Prevaleceram, dentre os pesquisados, os que possuíam 08 anos de estudo ou menos (63,09%). A maior parte (59,16%) das pessoas avaliou sua saúde como boa ou muito boa. Quanto a ter algum problema de saúde, 203 (52,73%) pessoas relataram ter à época da pesquisa algum problema de saúde. A maior parte (62, 34%) das pessoas também respondeu que faz acompanhamento ambulatorial em Unidade de Atenção Primária à Saúde e 60,26% das famílias era composta por um número menor ou igual a quatro pessoas.

Na análise bivariada (Tabela 1), a melhor qualidade de vida associou-se com idade menor ou igual a 36 anos (OR = 2,15), maior nível educacional (OR = 1,54), boa/muito boa saúde (OR = 6,39), não ter problema de saúde atual (OR = 5,68), sem tratamento (OR = 1,76), moderada (OR = 3,39) e alta (OR = 3,66) coesão familiar e moderada adaptabilidade (OR = 2,23).

Tabela 1
Análise bivariada para associação da variável dependente (qualidade de vida).

No modelo final (Tabela 2), os indivíduos provenientes de famílias com moderada e alta coesão familiar tiveram mais chance de ter uma melhor qualidade de vida do que aqueles vindos de famílias com baixa coesão. Os voluntários do sexo masculino tiveram 3,54 vezes mais chance de apresentar uma melhor qualidade de vida do que os do sexo feminino. Além disso, aqueles com saúde boa/muito boa e sem problema de saúde atual tiveram maior chance de ter qualidade de vida melhor.

Tabela 2
Modelos de Regressão logística múltipla para a qualidade de vida como variável dependente. São Carlos /2012.

Discussão

Este estudo evidenciou que as relações familiares, no que diz respeito a seus limites interpessoais e processos de tomada de decisão no cotidiano, levaram os beneficiários do PBF a uma maior chance de qualidade de vida. Neste aspecto é que se encontra o ineditismo deste estudo, na análise da percepção sobre coesão e adaptação familiar e sua influência na qualidade de vida em famílias de titulares de direito do programa bolsa família.

Um sistema familiar em equilíbrio proporciona íntima relação emocional entre seus membros oportunizando a autonomia e suporte social1717. Olson D. Circumplex Model of Marital and Family Systems. J Fam Ther 2000; 22(1):144-167.. Essa coesão moderada ou alta e a adaptabilidade moderada permitem que uma família que vivenciou a privação de bens essenciais reconquiste a autoestima, recrie projetos individuais, reaja às mudanças inesperadas e perceba a vida com uma melhor qualidade dentro dos seus diferentes aspectos.

Ferreira e Pereira1212. Ferreira MSM, Pereira MG. O papel moderador do tipo de família na relação entre incapacidade funcional e qualidade de vida em doentes com lombalgia crônica. Cien Saude Colet 2016; 21(1):303-309. demonstraram que a relação entre a incapacidade funcional e a qualidade de vida é forte quando os indivíduos doentes pertencem a uma família equilibrada. Além disso, o tipo de coesão e adaptabilidade familiar já foi associado com variáveis comportamentais de saúde. Uma alta coesão familiar, por exemplo, pode ser um fator de proteção a hábitos deletérios1111. Ferreira LL, Brandão GAM, Garcia G, Batista MJ, Costa LST, Ambrosano GMB . Coesão familiar associada à saúde bucal, fatores socioeconômicos e comportamentos em saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(8):2461-2473..

As famílias que apresentam uma elevada taxa de desemprego e uma acentuada precariedade educativa, de renda e profissional, ou que sofreram um número significativo de acontecimentos estressantes, relacionados, sobretudo, a problemas psicológicos, conjugais, com elevado impacto emocional, podem ter a adaptabilidade familiar afetada1818. Teodoro MLM, Hess ARB, Saraiva LA, Cardoso BM. Problemas Emocionais e de Comportamento e Clima Familiar em Adolescentes e seus Pais. Psico 2014; 45(2):168-175..

Os dados demonstraram que mesmo pertencentes ao PBF, sendo definidas como famílias em situação de pobreza, a coesão e a adaptabilidade moderada mostraram-se presentes, inclusive na percepção da qualidade de vida. Essas famílias poderiam partilhar esse saber, transportar esse conhecimento para qualificar cada vez mais os serviços de proteção social do Estado numa comunicação horizontal, onde programas sociais e beneficiários construíssem o fortalecimento dos vínculos sócio familiares, tão importantes para o enfrentamento de vulnerabilidades sociais e econômicas.

A análise das relações entre a saúde das populações, as desigualdades nas condições de vida e o grau de desenvolvimento da trama de vínculos, identificam que não são as sociedades mais ricas que possuem melhores níveis de saúde, mas as mais igualitárias e com alta coesão social1919. Buss PM. Globalização, pobreza e saúde. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1575-1589.,2020. Azevedo ALS, Silva RA, Tomasi E, Quevedo LA. Doenças crônicas e qualidade de vida na atenção primária à saúde. Cad Saúde Pública 2013; 29(9):1774-1782.. Entretanto, segundo Rosalini2121. Rosalini MHP. Tecendo Cuidados Inter-relacionais e Empoderamento. In: Carvalho AMP, Zuim AAS, Andrade AS, Rossi AD, Seton AL, Guarnieri C, editores. Temas em Educação e Saúde. Araraquara: CENPE, FCL/UNESP; 2012. p. 165-184., as ações assistenciais voltadas para o desenvolvimento da cidadania devem buscar estratégias que possam “construir com” as comunidades, reconhecendo a aprendizagem dos indivíduos que desenvolveram seus próprios recursos frente a contextos excludentes.

Os desafios econômicos enfrentados pelas famílias pobres, tanto em âmbito nacional, quanto local, no que se refere a trabalho, renda e qualificação profissional, exigem políticas estruturais. Ou seja, não se trata de esperar que todas as mudanças necessárias à superação da pobreza possam ser alcançadas por um programa de transferência de renda condicionada, ainda que dadas as desigualdades sociais presentes, o PBF tem sido apontado como um dos responsáveis pela redução da desigualdade de renda entre os anos de 2004 a 201322. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – 2013. [acessado 2010 Dez 16]. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/
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,2222. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A década inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Brasília: IPEA; 2012. (Comunicados do Ipea,155)..

O desenho do programa é normativo e requer uma complexa estrutura das condicionalidades previstas, respaldadas na intersetorialidade e na cooperação federativa2323. Araújo FR, Araújo MAD, Souza FJV, Santos DF, Santana MB. Uma avaliação do Índice de Gestão Descentralizada do Programa Bolsa Família. Rev Adm Pública 2016; 49(2):367-393.. Em primeiro lugar, as famílias participantes devem possuir renda mensal per capita entre R$ 77,00 a R$154,00; em segundo, devem manter crianças e adolescentes com certa frequência escolar, e por último, realizar o acompanhamento do desenvolvimento infantil e das mulheres, desde a realização do pré-natal ao acompanhamento da saúde da mãe e do bebê2424. Brasil. Decreto n° 8.232, de 30 de abril de 2014. Altera os arts. 18, 19 do Decreto 5.209 de 17 de setembro de 2004, que regulamenta o Programa Bolsa Família e o artigo 2°, 3° e 4° do Decreto 7.492, de 2 de junho de 2011, que institui o Plano Brasil sem Miséria. Diário Oficial da União 2014; 2 maio..

O acesso da população aos cuidados primários em saúde, combinado com a transferência de renda, contribui para vários aspectos de saúde, como a segurança alimentar2525. Santos FPC, Vitta FCF, Conti MHS, Marta SN, Gatti MAN, Simeão SFAP, Vitta A. Nutritional condition of children who benefit from the “Bolsa Família” programme in a city of northwestern São Paulo state, Brazil. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum 2015; 25(3):313-318. e nas mudanças de indicadores básicos como a mortalidade infantil pós-natal2626. Guanais FC. The Combined Effects of the Expansion of Primary Health Care and Conditional Cash Transfers on Infant Mortality in Brazil, 1998-2010. Am J Public Health 2015; 593:598.. Considerando o conceito mais abrangente de qualidade de vida, como sendo a relação das necessidades biológicas, decorrentes da interação entre saúde, alimentação, ambiente, moradia, recursos econômicos, relacionamentos, lazer e fatores de satisfações psicológicas, autoestima, identidade e espiritualidade2727. Campos MO, Neto JFR. Qualidade de vida um instrumento para promoção da saúde. Rev Ba Saúde Pública 2008; 32(2):232-240., esperava-se que a promoção da saúde e da educação contribuíssem com a qualidade de vida dos beneficiários.

A qualidade de vida, no presente estudo, também foi associada à boa/muito boa saúde (67,7%). Noronha et al.2828. Noronha DD, Martins AMEBL, Dias DS, Silveira MF, Paula AMB, Haikal DSA. Qualidade de vida relacionada à saúde entre adultos e fatores associados: um estudo de base populacional. Cien Saude Colet 2016; 21(2):463-474., em uma pesquisa de base populacional com adultos, destacou que a qualidade de vida relacionada a saúde está associada a posse de bens e ausência de doenças crônicas. Na Noruega, 405 beneficiários de um programa de assistência social, relataram dor crônica (29,7%), fato este que contribuiu para o impacto negativo no estado físico e mental dos sujeitos, pois intefere nas atividades diárias e nos compromissos de trabalho2929. Loyland B, Miaskowski C, Paul SM, Dahl E, Rustøen T. The relationship between chronic pain and health-related quality of life in long-term social assistance recipients in Norway. Qual Life Res 2010; 19(10):1457-1465..

Cada vez mais dados demonstram que a idade influencia na qualidade de vida3030. Araujo CCR, Guimarães ACA, Meyer C, Boing L, Ramos MO, Souza MC, Parcias SR. Influência da idade na percepção de finitude e qualidade de vida. Cien Saude Colet 2013; 18(9):2497-2505.,3131. Lima MG, Barros MBA, César CLG, Goldbaum M, Carandina L, Ciconelli RM. Health related quality of life among the elderly: a population-based study using SF- 36 survey. Cad Saúde Pública 2009; 25(10):2159-2167.. No entendimento desses autores, indivíduos mais velhos podem apresentar maiores chances de comprometimento mental e físico. Apesar de a saúde autorreferida ter sido relatada como boa ou muito boa, e à ausência de tratamento no momento (47,2%), na análise dos resultados, os voluntários acima de 36 anos (48%), tiveram uma percepção baixa de qualidade de vida. Em se tratando de idade, tal fato, pode estar associado a sobrecarga de trabalho e responsabilidades familiares ou mesmo aos cuidados pessoais, como a ausência de atividades físicas e hábitos deletérios, comuns em adultos2828. Noronha DD, Martins AMEBL, Dias DS, Silveira MF, Paula AMB, Haikal DSA. Qualidade de vida relacionada à saúde entre adultos e fatores associados: um estudo de base populacional. Cien Saude Colet 2016; 21(2):463-474..

A amostra do presente estudo foi composta predominantemente de mulheres, assim como em outros estudos populacionais assistidos através do amparo social3232. Zimmermann CR, Espinola, GM. Programas sociais no Brasil: um estudo sobre o programa bolsa família no interior do nordeste brasileiro. Cad. CRH 2015; 28(73):147-164.,3333. Magalhães KA, Cotta RMM, Martins TCP, Gomes AP, Siqueira-Batista R. A habitação como determinante social da saúde: percepções e condições de vida de famílias cadastradas no programa Bolsa Família. Saúde Soc 2013; 22(1):57-72.. Esse é um dado que representa a responsabilização do gênero feminino em decidir sobre a aplicação do orçamento recebido. O efeito líquido de ser beneficiário do programa é positivo para as mulheres, que passaram a ter maior contribuição no mercado e na jornada de trabalho, sem ofertar mão de obra quase gratuita3434. Tavares PA. Efeito do Programa Bolsa Família sobre a oferta de trabalho das mães. Econ Soc 2010; 19(3):613-635.,3535. Mota DM, Schmitz H, Silva Júnior JF, Rodrigues RFA. O trabalho familiar extrativista sob a influência de políticas públicas. Rev Econ Sociol Rural 52(1):189-204..

Porém, a família beneficiária do PBF reforça a composição hierárquica tradicional, com definições específicas distribuídas entre o marido e a esposa3636. Pires A. Orçamento familiar e gênero: percepções do Programa Bolsa Família. Cad Pesqui 2012; 42(145):130-161.. Conforme Pires3636. Pires A. Orçamento familiar e gênero: percepções do Programa Bolsa Família. Cad Pesqui 2012; 42(145):130-161., a participação no PBF feminina é marcada por tensão, pois apesar das mulheres exercerem autoridade na gestão financeira doméstica, essa relação apenas se estabeleceu devido ao seu papel de mãe. Conforme os resultados encontrados, o homem tem uma percepção melhor de qualidade de vida, quando comparado ao sexo feminino. Assim, mesmo com pertencimento das mulheres dentro de uma política com a garantia de direitos firmados, ainda não há a promoção da equidade de gêneros.

O delineamento do presente estudo, embora cuidadosamente traçado, por ser de caráter transversal não permite a verificação das relações identificadas no decorrer do tempo, o que impossibilita o estabelecimento de relações de causa e efeito, bem como verificações mais aprofundadas sobre as origens dos achados. Isso aponta para a necessidade de novos estudos, a fim de se apurar os dados aqui encontrados. Sugere-se, inclusive, que delineamentos qualitativos sejam utilizados em estudos futuros, a fim de que se possa melhor entender as percepções e os significados das relações familiares, bem como da qualidade de vida para as pessoas que vivem nos contextos de pobreza e de extrema pobreza.

Assim, conclui-se que níveis moderados e altos de coesão podem impactar positivamente para a melhor qualidade de vida das pessoas em estado de pobreza no município de São Carlos. Tais achados merecem aprofundamento no sentido de se verificar a possível inferência dos mesmos para toda a população beneficiária do PBF no Brasil, já que as características socioeconômicas dos beneficiários desse programa são as mesmas em todo o país.

Referências

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    Shorrocks A, Davies J, Lluberas R. Thought leadership from Credit Suisse Research and the world's foremost experts Geneva: Research Institute; 2014. (Global Wealth Report 2014).
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    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – 2013 [acessado 2010 Dez 16]. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2016
  • Revisado
    16 Mar 2017
  • Aceito
    18 Mar 2017
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