Políticas sociais: conceitos, trajetórias e a experiência brasileira

Hayda Alves Sobre o autor
2018

A publicação do livro “Políticas sociais: conceitos, trajetórias e a experiência brasileira”, é bastante oportuna no aniversário de 30 anos da Constituição Federal (CF) de 1988. Se a primazia e a legitimidade dos direitos sociais marcaram seu nascimento no bojo de uma agenda democrática, as ameaças e os riscos de seu desmantelamento marcam este aniversário. Este momento exige reflexões acerca do legado da seguridade social, em que pese a gênese e a trajetória das política sociais (PS), cujo marco igualitário reside na Carta Magna. Esta legitima a indissociabilidade entre PS e cidadania, e se impõe como eixo balizador de análises acerca dos direitos de proteção social. Tais elementos são explorados pelas autoras à partir de uma teia explicativa que possibilita compreender como se operou a legalidade e a dinamicidade operacional das PS ao longo dos anos, bem como, problematizar sua porosidade às transformações catalizadas por movimentos reformista e às mudanças na conjuntura econômica, social e política – um processo concomitante à maturação da própria democracia11. Fleury S. Revisitar a Teoria e a Utopia da Reforma Sanitária. In: Fleury S. Teoria da reforma sanitária: diálogos críticos . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 31-85. , 22. Sorj B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2004. .

Este livro não se restringe à organização cronológica de fatos históricos, mas enreda elementos fundantes de um projeto civilizatório, no qual a constituição das PS e sua trajetória, desvelam ideologias33. Chauí M. O que é ideologia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 2008. emergentes sobre as formas de intervenção do Estado. Assim, possibilita ao leitor entender os caminhos trilhados na expansão de alguns direitos, tecer críticas à ausência ou insuficiência de outros e, ainda, atentar para a regressão de algumas conquistas da seguridade social, que apesar de plasmadas constitucionalmente carecem de mediação via PS. Isto torna esta publicação uma importante fonte teórica e inspiração às práticas e aos argumentos em favor da proteção social.

O livro é dividido em três capítulos totalizando 202 páginas. Faz parte da coleção “Temas em Saúde” publicada pela Editora Fiocruz em formato pocket book . Cumpre a função de sintetizar, a partir de uma linguagem acessível, conceitos densos como cidadania, welfare state , seguridade social; e apresentar pautas emergentes na agenda pública, como o debate sobre o papel regulador do Estado na economia e o enfrentamento das mazelas sociais produzidas pelo mercado, além das contradições em torno das disputas do orçamento público que repercutem na expansão e na retração de direitos sociais.

No primeiro capítulo “O que são e como surgiram as PS” as autoras apresentam definições e sentidos a partir de autores e obras clássicas. Destacam as PS modernas como uma invenção posterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), indissociável da noção de cidadania e disseminada dos países desenvolvidos para o mundo. Apresentam modalidades historicamente construídas de proteção social: assistencialismo; seguro social e seguridade social.

A partir de um recorte sócio-histórico situam os primórdios das PS nas primeiras ações estatais de combate de pobreza na Europa do século XVI (Lei dos Pobres de 1601 e Lei do Condado de Speenhamland de 1975 na Inglaterra). Trata-se de ações de cunho assistencialistas marcadas por uma ideologia “moral” para definir os “merecedores” e o limite da assistência. Apesar datados historicamente, estes elementos deixaram vestígios que sustentam ideologias33. Chauí M. O que é ideologia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 2008. e práxis em torno de diversas PS, como, por exemplo, aspectos acerca do desenho operacional das atuais políticas de combate à pobreza.

Na virada do século XIX para o século XX, são destacados antecedentes previdenciários que influenciaram o Brasil e o mundo na edificação de sistemas de proteção social: o modelo de seguro-social na Alemanha de Bismarck (autoritário, conservador; corporativista); e o modelo de seguridade social inglês ( welfare state ) – cuja referência é o Relatório Beveredge – de caráter universal que visa segurança e igualdade: princípios de cidadania social (Thomas H. Marshall).

Ao final do capítulo as autoras passam pela obra de Gosta Esping-Andersen para explicar os diferentes regimes de welfare state (liberal, corporativista e social-democrata) em âmbito internacional. Tipologia que inspirou diferentes referenciais analíticos sobre a trajetória e o legado das PS, especialmente no Brasil11. Fleury S. Revisitar a Teoria e a Utopia da Reforma Sanitária. In: Fleury S. Teoria da reforma sanitária: diálogos críticos . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 31-85. .

No segundo capítulo “Políticas sociais no Brasil: o Brasil tem um Estado de bem-estar social?” as autoras pontuam divergências na literatura. Alguns estudiosos consideram que herdarmos um tipo conservador de welfare state e outros refutam a utilização dessa classificação para além do velho mundo. Ao longo do capítulo, apresentam a trajetória de PS no Brasil à partir de marcos históricos anteriores à Constituição de 1988:

(1)Marco meritocrático-corporativista ( cidadania regulada, termo cunhado por Wanderley Guilherme dos Santos). Inicia-se nos anos 1920 e ganha força a partir do nascimento da previdência social na Era Vargas (1930-1945), alcançando o período do regime democrático (1946-1964). Entre ações reivindicatórias de proteção social via movimento operário sindical, valorização do trabalhador assalariado urbano e populismo; erguem-se PS funcionais a um projeto civilizatório (político, econômico e ideológico33. Chauí M. O que é ideologia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 2008. ) conservador e nacionalista.

- No governo militar (1964 a 1984) nota-se a consolidação e a expansão de um modelo restrito, tutelar, com centralização política e financeira no nível federal. Além do clientelismo e da baixa efetividade do gasto social, o caráter assistencialista e caritativo das PS foi materializado em práticas filantrópicas difusas dentro do aparato estatal.

(2)Marco da proteção social como direito de cidadania.

- Com a CF de 1988, ocorreu a transição de um modelo de seguro social para o de seguridade, pautado nos direitos sociais, na igualdade e na justiça, elevando o patamar de cidadania. A partir de então, combinam-se três paradigmas que integram a noção de seguridade: universalista na saúde e na previdência rural, o contributivo na previdência urbana – mantendo-se excluídas camadas sociais urbanas sem capacidade contributiva e o padrão seletivo na assistência. A educação também passou a ser entendida como direito social de imprescindível universalização.

Especialmente com os anos de 1990 verifica-se importantes esforços para “transformar o direito proclamado em direitos sociais reconhecidos, efetivados e protegidos” por meio da criação de uma engenharia institucional capaz de financiar e desenvolver PS a partir de políticas setoriais de proteção social: na saúde com o Sistema Único de Saúde (SUS) e na previdência com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A partir dos anos 2000 houve ações de ampliação e institucionalização da assistência social, como a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e de programas focalizados de transferência de renda condicionada. Sua seletividade, constrangimentos e competitividade com o financiamento face às políticas setoriais de caráter universal, tencionam transformações na noção de cidadania. Destaca-se no período algumas políticas transversais ou integradas, como as ações afirmativas voltadas para a igualdade racial e de gênero, e políticas voltadas para segmentos específicos (população do campo, juventude, etc.).

Para fechar o capítulo, as autoras elaboraram um quadro com a evolução das PS de 1988 a maio de 2006 segundo períodos de governo.

O capítulo apresenta um painel sistematizado das PS, bastante profícuo a reflexões sobre como determinados valores inerentes ao projeto democrático em ascenção22. Sorj B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2004. resignificaram e enriqueceram a noção de cidadania11. Fleury S. Revisitar a Teoria e a Utopia da Reforma Sanitária. In: Fleury S. Teoria da reforma sanitária: diálogos críticos . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 31-85. , 22. Sorj B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2004. emergente na atualidade.

Ao final, no terceiro capítulo, tecem reflexões sobre as tendências enunciadas no Brasil e no plano internacional, cujas escolhas políticas e princípios normativos desafiam as referências históricas sobre políticas de bem-estar social. A tendência atual são PS pautadas no princípio de ativação, via inserção de pessoas no mercado de trabalho ( workfare ) ou no investimento social.

Ao fim e ao cabo, as autoras revelam preocupações, pontos de erosão e fragmentação da proteção social no Brasil, produto de reformas estruturais e econômicas construídas em um contexto de crise política e institucional. Estas incluem formas diversas de destituição de direitos sociais sob o manto do ajuste fiscal. Nesta perspectiva, a obra apresenta elementos capazes de problematizar como argumentos técnico-políticos engendram ideologias33. Chauí M. O que é ideologia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 2008. capazes escamotear princípios igualitários da seguridade social, resultando em diferentes formatos de desproteção social. A diversidade de políticas sociais face aos anseios da expansão da democracia deflagrou contradições, trajetórias inesperadas e entendimentos forjadamente polarizados sobre a noção de cidadania. Em meio à diversificação das PS numa arena marcada por legados de lutas signatárias de bandeiras universalistas, combativas à hegemonia econômica nesta agenda, verifica-se a resistência da cidadania universal signatária da utopia do projeto democrático constitucional11. Fleury S. Revisitar a Teoria e a Utopia da Reforma Sanitária. In: Fleury S. Teoria da reforma sanitária: diálogos críticos . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 31-85. . Em outra via, a noção de cidadania se transforma à medida em que absorve demandas múltiplas e difusas – as quais não se restringem à tradicionais reivindicações classistas ou corporativistas –, e que incorporam novos anseios, vozes e disputas22. Sorj B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2004. .

Em uma conjuntura de retrocessos no campo dos direitos, conquistas e aumento do abismo social, ganham força determinadas concepções, ideologias e práticas que mitigam o ideário constitucional de justiça, direitos e igualdade. Cabe questionar: que tipo de proteção social será pavimentada à partir desse legado? As autoras advertem: “os contornos se delineiam, mas os resultados ainda são imprevisíveis”.

Referências

  • 1
    Fleury S. Revisitar a Teoria e a Utopia da Reforma Sanitária. In: Fleury S. Teoria da reforma sanitária: diálogos críticos . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 31-85.
  • 2
    Sorj B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2004.
  • 3
    Chauí M. O que é ideologia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense; 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jun 2019
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