Programa Nacional de Alimentação Escolar: uma política pública saudável

Darlan Christiano Kroth Daniela Savi Geremia Bruna Roniza Mussio Sobre os autores

Resumo

Este artigo analisa o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) como uma Política Pública Saudável (PPS). A Lei n. 11.947/2009 estabeleceu que os Entes Federados adquiram no mínimo 30% dos recursos advindos do FNDE em alimentos da agricultura familiar. Por sua vez, uma PPS consiste em uma política pública que leva em consideração na sua formulação, diferentes áreas que determinam a saúde da população. A exigência da compra de alimentos de agricultores familiares contempla para além da valorização da produção agrícola local, orgânica e advinda de agricultores familiares, a priorização de uma alimentação saudável para os estudantes, contribuindo para a formação de hábitos saudáveis de alimentação. Portanto, observa-se que o PNAE contribui para a promoção de saúde e pode ser compreendido como uma PPS. O PNAE ao articular ações de diferentes setores, torna a política pública mais efetiva e mais eficiente, pois gera-se resultados positivos para além da saúde, maximizando os retornos para a sociedade. Desta maneira, propõe-se mecanismos para o aprimoramento e fortalecimento do PNAE, visando complementar e reforçar ações realizadas no SUS.

Palavras-chave
Políticas Públicas de Saúde; Promoção da saúde; Alimentação escolar

Introdução

A formulação de políticas públicas vem passando por renovado interesse nos últimos 20 anos, na medida em que incorpora as contribuições de diferentes pesquisas teóricas e aplicadas em torno do comportamento dos atores sociais no processo de elaboração das políticas (denominado de ciclo político), da compreensão dos mecanismos pelos quais as ações de políticas afetam a sociedade e das avaliações de impacto das políticas realizadas. Como resultado dessas contribuições, tem-se a inovação no campo das políticas públicas, representada pelo desenho de políticas e programas mais aderentes aos problemas socioeconômicos, que por sua vez, permitem alcançar maiores retornos para a sociedade11 Secchi L. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning; 2013.,22 Menicucci T, Gontijo JGL, organizadores. Gestão e políticas públicas no cenário contemporâneo: tendências internacionais e nacionais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016..

Alguns atributos se sobressaem neste novo perfil de políticas. Um deles é a presença de ações complementares da política que perpassam diferentes áreas do conhecimento, o que confere a elas um caráter multidisciplinar, desde sua concepção estendendo-se até a avaliação final dos resultados. Outro atributo é o papel destacado para a governança da política. A governança, também conhecida como controle social, consiste em acompanhar e fiscalizar as ações realizadas, garantindo o cumprimento das ações propostas e a prestação de contas para a comunidade33 Christensen T, Laegreid P. Governance and administrative reforms. In: Levi-Faur D, editor. The Oxford handbook of governance. Oxford: Oxford University Press; 2012..

Uma modalidade de política pública que se adequa a esses pressupostos são as Políticas Públicas Saudáveis (PPS). Uma PPS consiste em uma política pública que leva em consideração na sua formulação, diferentes áreas que determinam a saúde da população. Ao articular ações de diferentes setores para enfrentar problemas da área da saúde, a política pública torna-se mais efetiva, pois atinge seus objetivos, e mais eficiente, isto é, gera resultados positivos para além da saúde, maximizando os retornos para a sociedade44 Organização Mundial da Saúde (OMS). Recomendações de Adelaide sobre políticas públicas saudáveis. In: II Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Adelaide; 5 a 9 de abril de 1988..

Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo principal analisar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – Lei n. 11.947/200955 Brasil. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica. Diário Oficial da União 2009; 17 jun. –, como uma PPS. O novo PNAE já pode ser considerado uma inovação em políticas públicas por considerar que a provisão da alimentação escolar saudável deve estar associada a iniciativas de compras sustentáveis, articuladas com o fortalecimento da agricultura familiar e a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) dos estudantes. Porém, conforme será destacado ao longo do texto, na medida em que o PNAE se credencia como uma PPS, ele deve ser alvo de maior atenção pelos formuladores de políticas públicas (policymakers) e pelos entes federados que executam o Programa. Conforme dados oficiais, em 2011 apenas 26,7% dos municípios brasileiros atingiram o mínimo de 30% de aquisição da Agricultura Familiar (AF), ampliando para 42,1% em 201666 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Programa Nacional de Alimentação Escolar. Dados da Agricultura Familiar [Internet]. [acessado 2018 Out 14]. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/pnae/pnae-consultas/pnae-dados-da-agricultura-familiar
http://www.fnde.gov.br/programas/pnae/pn...
. Verifica-se, portanto, que ainda há um grande espaço para aprimorar e avançar no PNAE, que depende da superação de alguns gargalos na execução do Programa77 Triches RM. Repensando o mercado da alimentação escolar: novas institucionalidades para o desenvolvimento rural. In: Grisa C, Schneider S, organizadores. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Ed. UFRGS; 2015..

Desta maneira, o presente trabalho traz duas principais contribuições na análise das políticas públicas, em especial o PNAE. A primeira contribuição refere-se na incorporação do conceito de PPS no âmbito do PNAE, elemento ainda não considerado nos estudos sobre o Programa, os quais enfatizam seus efeitos sobre o desenvolvimento rural, segurança alimentar e nutricional e cooperativismo77 Triches RM. Repensando o mercado da alimentação escolar: novas institucionalidades para o desenvolvimento rural. In: Grisa C, Schneider S, organizadores. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Ed. UFRGS; 2015.

8 Valentim EA, Almeida CCB, Taconeli CA, Osorio MM, Schmidt ST. Fatores associados à adesão à alimentação escolar por adolescentes de escolas públicas estaduais de Colombo, Paraná, Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33(10):1-10.

9 Zonin VJ, Kroth DC, Coletti T. Simoes W. Análise da política de aquisição de alimentos da agricultura familiar: o caso do PNAE em três microrregiões do Oeste Catarinense. In: Anais do X Encontro de Economia Catarinense; 2016; Blumenau.
-1010 Ferigollo D, Kirsten VR, Heckler D, Figueredo OAT, Perez-Cassarino J, Trichez M. Aquisição de produtos da agricultura familiar para alimentação escolar em municípios do Rio Grande do Sul. Saúde Pública 2017; 51(6):1-10.. Ao levar em conta o conceito de PPS, amplifica-se a importância do PNAE como política pública eficiente. A segunda contribuição decorre do fato de, ao analisar a experiência do PNAE desde 2009 e considerar seus desdobramentos sobre resultados da saúde e da educação, propõe-se ações para o aprimoramento do Programa, como a sua operacionalização dentro da perspectiva de uma PPS, vislumbrando maiores impactos positivos da política para a sociedade.

Para tratar do assunto proposto, este artigo se desdobra em mais quatro seções, além desta introdução. A primeira seção apresenta o que se constitui uma política pública saudável, fazendo referência ao tema da promoção de saúde, que é a base de sua proposição e discute o papel da governança deste tipo de política. A segunda seção, explora a importância que uma alimentação saudável tem para promover resultados positivos de saúde e por estimular a promoção de habilidades cognitivas e não-cognitivas na primeira infância. A terceira seção faz a análise do PNAE em âmbito de uma política pública saudável. A última seção apresenta algumas proposições de aprimoramento do Programa para torná-lo mais robusto.

As políticas públicas saudáveis: rumo a um novo paradigma

A proposição de PPS está diretamente vinculada à promoção da saúde. Esta surge a partir de uma concepção mais ampla sobre o processo saúde-doença e de seus determinantes, visando superar a visão tradicional da medicalização da saúde, em que o conceito de saúde está atrelado a ausência de doença1111 Buss PM. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção de saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.,1212 Carvalho AI, Buss PM. Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012.. A partir dos estudos ligados a promoção da saúde, a saúde passa a ser concebida como um elemento positivo e multifacetado.

Com o advento da promoção da saúde, o debate internacional acerca da política de saúde passou a ser centralizado nela, recebendo grande contribuição das Conferências Internacionais da Saúde promovidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Sendo assim, as PPS foram propostas inicialmente no âmbito da I Conferência Internacional da Saúde realizada em Ottawa (Canadá) no ano de 1986. A Carta de Ottawa1313 World Health Organization (WHO). Ottawa Charter for Health Promotion. Geneva: WHO; 1986. que sintetiza os resultados das discussões desta Conferência, sugere como o primeiro dentre cinco campos de atuação para a promoção da saúde, a elaboração e implementação de PPS.

Porém, dois anos mais tarde, na II Conferência Internacional da Saúde em Adelaide (Austrália), que as PPS ganharão fórum privilegiado, quando são objeto principal da Conferência. É neste fórum que se estabelece a primeira definição de PPS44 Organização Mundial da Saúde (OMS). Recomendações de Adelaide sobre políticas públicas saudáveis. In: II Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Adelaide; 5 a 9 de abril de 1988.:

As políticas públicas saudáveis são caracterizadas por uma preocupação explícita com a saúde e a equidade, em todas as áreas, e por uma responsabilidade no que respeita ao impacto na saúde [...]. Nesse sentido, os setores governamentais relacionados com a agricultura, o comércio, a educação, a indústria e as comunicações precisam encarar a Saúde como um fator essencial na formulação das suas políticas. Estes setores devem assumir a responsabilidade pelas decisões políticas tomadas, tendo sempre como preocupação as consequências que daí advém para a saúde. Terão, assim, de dar tanta importância à saúde como aos aspectos econômicos44 Organização Mundial da Saúde (OMS). Recomendações de Adelaide sobre políticas públicas saudáveis. In: II Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Adelaide; 5 a 9 de abril de 1988.(p.2).

Nesta definição de PPS ficam salientes três elementos. O primeiro refere-se que a saúde deve estar no centro da política pública. A defesa por esse lugar privilegiado da saúde na agenda pública decorre de seu peso no desenvolvimento humano. Para Lopez-Casasnovas et al.1414 Lopez-Casasnovas G, Rivera B, Currais L, editors. Health and economic growth: findings and policy implications. Cambridge: MIT Press; 2005., uma população saudável permite garantir (e estimular) vários atributos do desenvolvimento, como maior bem-estar, longevidade e redução das desigualdades sociais. O segundo elemento presente, refere-se à sua necessidade de incorporar os determinantes sociais da saúde nas estratégias de intervenção, ou seja, ao levar em consideração a saúde como um elemento multifacetado, as ações da política pública devem considerar os diferentes fatores que contribuem para sua promoção.

Por fim, o terceiro elemento destaca o papel estratégico da intersetorialidade e da interdisciplinaridade das políticas. A compreensão de que a saúde é determinada por diferentes fatores implica que o setor de saúde não possui condições de promover a saúde isoladamente, o que demanda ações coordenadas entre governo, setor de saúde, demais setores sociais e econômicos. A multiplicidade de determinantes da saúde influencia positiva e negativamente a saúde das pessoas1515 Santos MJH, Miguel JMP. Avaliação de impacte de políticas de diferentes sectores na saúde e nos sistemas de saúde: um ponto de situação. Rev Port Saúde Pública 2009; 27(1):5-17..

É imperioso destacar que a presença destes três elementos na formulação da PPS assegura o que na literatura de economia do setor público denomina-se de eficiência social, isto é, ao olhar de forma sistêmica para os problemas socioeconômicos é possível desenhar ações mais adequadas e que garantam maiores resultados para a sociedade, tanto em termos econômicos como sociais1616 Stiglitz J. Economics of the public sector. New York: W. W. Norton & Co.; 2000.. Por gerar maiores resultados agregados, garante-se que uma PPS seja mais eficiente comparada a uma política pública isolada, e portanto, deve ter prioridade na agenda pública1717 Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). Health care systems: efficiency and policy settings. Paris: OECD Publish-ing; 2010..

As PPS se configuram por um amplo rol de instrumentos, como mudanças na legislação, medidas tributárias, regulação de setores, campanhas de conscientização, mudanças organizacionais dentro do setor de saúde e do setor público como um todo e por ações coordenadas que apontam para a equidade em saúde, distribuição mais justa da renda e políticas educacionais e sociais.

A partir dos anos 1990, o movimento em torno das PPS recebe uma importante contribuição, advinda das discussões em torno dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS)1818 Dahlgren G, Whitehead M. Policies and strategies to promote social equity in health. Background document to WHO - Strategy paper for Europe. Geneva: WHO; 1991.. Os estudos em torno desta temática, incorporaram e deram maior peso aos fatores socioeconômicos na determinação da saúde da população, como condições de trabalho e moradia, revigorando o modelo de determinantes gerais proposto por Lalonde1919 Lalonde M. A new perspective on the health of Canadians: a working document. Ottawa: Government of Canada; 1974..

Em sintonia com essas proposições, a OMS2020 World Health Organization (WHO). Closing the gap in a generation: health equity through action on the social determinants of health. Final Report of the Commission on Social Determinants of Health (CSDH). Geneva: WHO; 2008. passou a recomendar que as políticas de saúde necessitam avançar para além do financiamento e provisão de recursos para a assistência à saúde, devendo contemplar aspectos de política econômica e social para induzir mudanças no ambiente social. Essa nova agenda da OMS para a política de saúde assumiu o título de Saúde em todas as políticas. A Saúde em todas as políticas reforça as premissas da PPS, mas dá maior ênfase para o papel da governança dessas políticas em todo o ciclo político (elaboração, execução, monitoramento e avaliação da política), com destaque para a participação da comunidade na elaboração da política pública e da avaliação de resultados. Como eixo prioritário das ações, tem-se o foco na redução das desigualdades em saúde2121 World Health Organization (WHO). Declaração de Adelaide sobre a Saúde em todas as políticas. Adelaide: Governo da Austrália Meriodional; 2010.. Essas discussões são ratificadas no I Encontro Internacional sobre a Saúde em Todas as Políticas, realizado em Adelaide (Austrália) em 2010 e na VIII Conferência Internacional sobre promoção da saúde realizada em Helsinki (Finlândia) no ano de 2013, em que teve como tema principal a Saúde em todas as políticas.

Um dos aspectos que constitui a melhoria da governança defendida pela OMS, refere-se à necessidade de integralizar as ações dos diferentes níveis de Governo, ou seja, as PPS não são de exclusividade do governo central, mas devem ser incorporadas pelos governos locais, a medida que estão mais próximos da população alvo da política e por poder fomentar a ação comunitária, que é um catalisador das PPS44 Organização Mundial da Saúde (OMS). Recomendações de Adelaide sobre políticas públicas saudáveis. In: II Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Adelaide; 5 a 9 de abril de 1988.,2121 World Health Organization (WHO). Declaração de Adelaide sobre a Saúde em todas as políticas. Adelaide: Governo da Austrália Meriodional; 2010.. É em torno desta perspectiva que surgiram iniciativas de “cidades saudáveis” no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, tendo como experiências brasileiras, as cidades de Fortaleza (CE), Curitiba (PR), Limeira (SP) e Bertioga (SP).

As “cidades saudáveis” referem-se a uma política que busca envolver todos os setores da administração municipal visando transformar a cidade em um espaço de produção social de saúde2222 Westphal MF, Mendes, R. Cidade saudável: uma experiência de interdisciplinaridade e intersetorialidade. Rev Admin Pública 2000; 6(34):47-61.. O principal elemento para viabilizar essa transformação é o desenvolvimento de PPS, isto é, políticas integradas entre diferentes setores (agricultura, educação, habitação, saneamento, transporte e lazer) visando estimular a saúde da população. O principal desafio desta intersetorialidade é a necessidade de mudar o processo de trabalho no governo municipal, que é baseado em um formato piramidal com visão tradicional de gestão pública. Estas estruturas reforçam a natureza fragmentada das políticas públicas, sendo um obstáculo para a consolidação das PPS2323 Zancan L. Cidades Saudáveis: a intersetorialidade como desafio para um novo modelo de gestão. In: Sperandio AMG, organizador. O processo de construção da rede de municípios potencialmente saudáveis. Campinas: Unicamp; 2004..

No que tange as ações para superação desta fragmentação na formulação e operacionalização das PPS em nível local, deve-se priorizar o desenvolvimento de um novo processo de planejamento e programação das ações2424 Teixeira CF. Formulação e implementação de políticas públicas saudáveis: desafios para o planejamento e gestão das ações de promoção da saúde nas cidades. Saúde Soc 2004; 13(1):37-46.. Esse processo se inicia com a instituição de equipes técnicas multidisciplinares e de diálogos junto a comunidade, sendo levado em consideração o conhecimento acumulado dos problemas de saúde da localidade e os valores éticos e políticos dos distintos sujeitos, objetivando a construção de um espaço de poder compartilhado e de articulação de interesses, saberes e práticas dos diversos atores e setores envolvidos.

A OMS2121 World Health Organization (WHO). Declaração de Adelaide sobre a Saúde em todas as políticas. Adelaide: Governo da Austrália Meriodional; 2010. cita um conjunto de ações, já testada em alguns países, que podem contribuir para mudar a cultura da formulação e operacionalização das PPS, como: i) criar alianças e parcerias entre os setores, reconhecendo interesses mútuos e compartilhar objetivos; ii) incluir responsabilidades no corpo de estratégias, objetivos e metas gerais do governo; iii) assegurar que no processo decisório, o compromisso e a responsabilidade sejam compartilhados e que os resultados sejam acompanhados; e iv) estimular consultas e diálogos junto à comunidade.

Por sua vez, a alimentação e nutrição foram eleitas como uma das quatro áreas para receber ações prioritárias na formulação das PPS na Conferência de Adelaide em 1988, sendo2121 World Health Organization (WHO). Declaração de Adelaide sobre a Saúde em todas as políticas. Adelaide: Governo da Austrália Meriodional; 2010. que “A eliminação da fome e da subnutrição é um objetivo fundamental das políticas públicas saudáveis” no intuito de assegurar o impacto positivo sobre a saúde deve ser prioridade nas ações de todos os governos.

A prioridade para a alimentação e nutrição advém em primeiro lugar do reconhecimento que alimentos saudáveis são determinantes primários da saúde. Em segundo lugar, observa-se que o mundo convive com dois fenômenos antagônicos que limitam uma dieta saudável: por um lado a subnutrição em alguns países e uma dieta rica em gorduras de outro. Destaca-se ainda que, além de alimentos saudáveis e boas práticas de segurança alimentar e nutricional promoverem a saúde, também contribuem para o fomento de práticas agrícolas sustentáveis, que geram impactos positivos na saúde dos agricultores e comunidades rurais2121 World Health Organization (WHO). Declaração de Adelaide sobre a Saúde em todas as políticas. Adelaide: Governo da Austrália Meriodional; 2010..

Em sintonia com a relação entre alimentos saudáveis e boa saúde, a próxima seção aborda a literatura de desenvolvimento humano, que vem demonstrando que a primeira infância é a fase crítica para a aquisição de habilidades e que a saúde é um dos fatores promotores do desenvolvimento de habilidades. Nestes termos, a seção reforça a relevância do PNAE nas escolas de educação básica e fundamental, não apenas para contribuir na melhoria da saúde dos alunos, mas também para contribuir no desenvolvimento cognitivo.

Alimentação saudável no desenvolvimento de habilidades (cognitivas e não-cognitivas)

Nos últimos anos, observa-se certa convergência entre as áreas de nutrição, psicologia, economia e biomedicina na explicação da relação causal “boa dieta (ou boa nutrição)/saúde/educação”. O primeiro elo dessa tríade, boa nutrição e saúde, é bem estabelecido pela literatura, demonstrando que a ingestão de uma dieta adequada possui um papel importante sobre a promoção do crescimento físico e da manutenção da saúde da criança2525 Mahan KL, Raymon JL. Krause - alimentos, nutrição e dietoterapia. 13ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2013..

Uma das maneiras de visualizar essa relação é feita pelo modelo proposto em Bhargava2626 Bhargava A. Food, economics and health. New York: Oxford; 2008., demonstrado pela Figura 1, em que os efeitos de uma dieta balanceada sobre resultados de saúde de uma criança (1 a 10 anos) são analisados considerando estágios de saúde ao longo do tempo. O autor considera três indicadores de saúde da criança (altura, peso e índice de morbidade), os quais são determinados pela ingestão de nutrientes adequados e geram efeitos cruzados e retroativos (ou feedbacks) entre eles, conforme exposto na Figura 1.

Figura 1
Representação gráfica do modelo de determinantes de indicadores de saúde proposto por Bhargava.

As características mais salientes do modelo de Bhargava2626 Bhargava A. Food, economics and health. New York: Oxford; 2008. destacam que, em primeiro lugar, as variáveis socioeconômicas, como renda familiar e tempo da mãe com os filhos afetam a ingestão de uma boa dieta (nutrientes e energia). Deve-se atentar aqui que nutrientes utilizados de forma adequada afetam positivamente a saúde: i) energia dos macronutrientes (proteína, carboidrato, lipídio) estimulam ganho de peso; ii) proteína, cálcio e ferro estimulam os ganhos em altura; e, iii) betacaroteno e ácido ascórbico contribuem para ampliar a imunidade e reduzir a incidência de doenças. Em segundo lugar, o modelo é considerado “triangular”, no sentido de que as variáveis socioeconômicas e nutrientes determinam altura e altura contribui na percepção da adequação do peso. Por sua vez, peso e altura determinam indicadores de morbidade e maior taxa de morbidade está associada a menor peso e menor absorção de nutrientes. Em terceiro lugar, a taxa de morbidade das crianças é afetada pela idade, fatores genéticos e condições do ambiente.

Esse modelo foi aplicado com crianças de 1 a 10 anos em países em desenvolvimento, como Filipinas e Quênia, em quatro períodos de tempo. Os resultados apontaram para efeitos positivos da ingestão de nutrientes sobre altura e peso das crianças e efeito negativo sobre morbidade. Pesquisas similares também foram realizadas no Paquistão e no Peru, indicando que variáveis socioeconômicas e nutricionais explicam uma substancial quantidade de fatores de morbidade infantil em países em desenvolvimento.

Pereira et al.2727 Pereira IFS, Spyrides MHC, Lyra, CO, Andrade LMB. Estado nutricional de menores de 5 anos de idade no Brasil: evidências da polarização epidemiológica nutricional. Cien Saude Colet 2017; 22(10):3341-3352. em seu estudo sobre o estado nutricional de menores de 5 anos de idade no Brasil reiteram estes achados, relacionando-os não apenas as variáveis de morbidade infantil, como também de mortalidade, inferior desempenho escolar, redução da produtividade quando adultos e maior risco de desenvolvimento de doenças crônicas.

Um elemento fundamental a ser considerado na aplicação desse modelo para países em desenvolvimento decorre que a renda familiar pode ser uma grave restrição para a boa ingestão de nutrientes, principalmente para famílias de baixa renda. Neste quesito, a oferta de uma alimentação saudável e balanceada em creches e escolas, acaba sendo suplementar e de extrema importância para as crianças garantirem boa saúde, além de apoiar o desenvolvimento escolar.

A compreensão dos efeitos de uma boa nutrição sobre resultados de saúde ganhou novos contornos através da emergência dos estudos na área da formação de habilidades2828 Heckman JJ, Mosso S. The economics of human development and social mobility. Annl Rev Economics 2014; 6(1):689-733.. Estes estudos vêm demonstrando a importância das condições iniciais de vida para a formação de múltiplas habilidades do indivíduo e como estas habilidades são importantes para captar bons resultados na fase adulta, como boa saúde, maior escolaridade e maiores ganhos salariais2727 Pereira IFS, Spyrides MHC, Lyra, CO, Andrade LMB. Estado nutricional de menores de 5 anos de idade no Brasil: evidências da polarização epidemiológica nutricional. Cien Saude Colet 2017; 22(10):3341-3352.,2929 Heckman J, Humphries JE, Veramendi G, Urzúa S. Education, health and wages. NBER Working Paper Series 2014; 19971:1-60.. Tais evidências contribuem para a explicação do segundo elo da tríade, boa nutrição gerando saúde, que por sua vez, contribui com um melhor desempenho educacional. Segundo Cunha e Heckman3030 Cunha F, Heckman JJ. The technology of skill formation. Am Economic Rev 2007; 97(2):31-47. a habilidade total de um indivíduo, formada na infância, é composta por um conjunto de três tipos de habilidades: i) as habilidades cognitivas, representada pela inteligência individual (QI, por exemplo); ii) as habilidades não-cognitivas, que se referem a paciência, disciplina e auto-controle; e iii) as habilidades físicas e mentais, relacionadas com a saúde física e mental. Nesta perspectiva, garantir boa saúde deve ser prioridade para que crianças obtenham condições de formarem suas habilidades.

Para os autores, essas habilidades são constituídas ao longo do tempo, porém há períodos críticos e sensíveis para sua formação. Além disso, essas habilidades (cognitivas e não-cognitivas) juntamente com o investimento para adquiri-las se reforçam no tempo. Neste sentido, a principal implicação para a política pública é que há necessidade de investimentos mínimos em cada fase da infância e este investimento, portanto, deve contemplar além de investimentos nas escolas e nas famílias, formas de garantir boa saúde para as crianças, as quais podem advir de uma alimentação saudável, como visto acima.

Esta complementaridade que explica por que investimentos em fases posteriores que visam remediar falhas na formação de habilidades iniciais são mais custosas e geram efeitos menores, se comparados com as fases iniciais2828 Heckman JJ, Mosso S. The economics of human development and social mobility. Annl Rev Economics 2014; 6(1):689-733.. Desta forma, seria mais eficiente investir no início da infância do que remediar, ou realizar os investimentos mais tarde. A defesa por investimentos na infância é baseada/sustentada por vários estudos analisando a relação “indicadores de saúde na primeira infância versus resultados na vida adulta”3131 Currie J. Healthy, wealthy, and wise: socioeconomic status, poor health in childhood, and human capital development. J Economic Lit 2009; 47(1):87-122..

Barbosa et al.3232 Barbosa NVS, Machado NMV, Soares MCV, Pinto ARR. Alimentação na escola e autonomia: desafios e possibilidades. Cien Saude Colet 2013; 18(4):937-945. aponta que a escola desempenha um papel fundamental no que diz respeito à formação de hábitos e estilos de vida saudáveis, pois como este é um espaço de aquisição de conhecimentos e valores, pode contribuir para a formação de uma cultura de alimentação saudável, tendo impactos na saúde ao longo da vida do indivíduo. Neste sentido, ela aparece como local propício para o desenvolvimento de ações de educação alimentar e nutricional, onde a comum prática do ato de comer pode se dar ao mesmo tempo em que a prática de educar para o ato de comer, tanto dentro como fora da escola3333 Accioly E. A escola como promotora da alimentação saudável. Cien Tela 2009; 2(2):1-9.. Em que pese a importância da alimentação saudável para aquisição de habilidades, não se pode perder de vista que, alimentação saudável é uma condição necessária, mas não suficiente para formar habilidades.

Ao abordar os efeitos de alimentos saudáveis sobre a saúde e sobre a aquisição de habilidades de jovens, dispomos de novos elementos para aprofundar a análise dos benefícios do PNAE. Nesta perspectiva, a próxima seção visa demonstrar que a inovação trazida pela Lei nº 11.947/2009, está para além do que já foi demonstrado pela literatura de desenvolvimento rural77 Triches RM. Repensando o mercado da alimentação escolar: novas institucionalidades para o desenvolvimento rural. In: Grisa C, Schneider S, organizadores. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Ed. UFRGS; 2015., isto é, ao considerar o PNAE como uma política de saúde pública, sua relevância para a sociedade eleva de patamar, e portanto, deve ser alvo de fortalecimento pelos policymakers.

O PNAE como uma política pública saudável

O PNAE no Brasil é antigo e remonta a década de 1940, quando da sua concepção3434 Chaves LG. Programa Nacional de Alimentação Escolar: compromisso com a saúde pública. Nutr Profissional 2007;3(12):22-27.. Por quase 50 anos de sua existência, o Programa manteve-se com um caráter assistencialista e centralizador, em que o Governo Federal se responsabilizava pelo planejamento dos cardápios e realizava as compras para todo o país, sem espaço para contemplar a diversidade da cultura alimentar brasileira e sem gerar impactos positivos sobre o desenvolvimento regional sustentável.

A partir de 1994, embora mais fortemente a partir de 2003, o PNAE passa a sofrer pequenas alterações rumo à descentralização de recursos para os entes federados para aquisição dos alimentos, com maior participação e fiscalização das comunidades através da criação dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAEs) e com a contemplação de uma agenda de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Essas alterações contribuíram para a criação da Lei nº 11.947/2009 que prevê a obrigatoriedade da aplicação de no mínimo 30% dos recursos advindos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) na aquisição de alimentos da Agricultura Familiar (AF). Essa lei prevê, ainda, processos de compra mais flexíveis, se comparados com a lei de licitações brasileira (Lei nº 8.666/1993), por meio de chamadas públicas3535 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Aquisição de produtos da agricultura familiar para alimentação escolar. Brasília: FNDE; 2016..

A criação da Lei nº 11.947/2009 além de atender uma demanda antiga dos movimentos sociais ligados a AF, contemplou a valorização da produção agrícola local, orgânica e advinda das pequenas propriedades rurais. Dado esses objetivos da Lei, ela pode ser apontada como uma inovação na área da política pública. O caráter inovador da política refere-se ao fato que ela avança em relação as versões anteriores do PNAE, pois na medida que ela passa a tratar a alimentação escolar como um tema multidisciplinar, torna a política pública intersetorial, que dialoga com outros setores relacionados, como a agricultura, a saúde, o meio ambiente e a assistência social. Esse caráter multidisciplinar é que vai ampliar as possibilidades de retornos sociais da política.

Alguns destes retornos podem ser claramente previstos como: i) a exigência que a aquisição dos alimentos seja feita localmente (ou regionalmente), o que fixa os recursos na região, possibilitando a geração de renda local; ii) a priorização de uma alimentação saudável, que contribui para melhorar a saúde e a aquisição de habilidades pelos estudantes, bem como para formar uma cultura de hábitos saudáveis de alimentação; e, iii) a promoção da produção local, que fortalece os circuitos curtos de produção reduzindo a necessidade de grandes deslocamentos de alimentos entre regiões, beneficiando assim o meio ambiente.

Em virtude de sua inovação, a Lei nº 11.947/2009 já foi objeto de um grande volume de pesquisas, buscando avaliar os resultados obtidos em sua implementação77 Triches RM. Repensando o mercado da alimentação escolar: novas institucionalidades para o desenvolvimento rural. In: Grisa C, Schneider S, organizadores. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Ed. UFRGS; 2015.

8 Valentim EA, Almeida CCB, Taconeli CA, Osorio MM, Schmidt ST. Fatores associados à adesão à alimentação escolar por adolescentes de escolas públicas estaduais de Colombo, Paraná, Brasil. Cad Saúde Pública 2017; 33(10):1-10.

9 Zonin VJ, Kroth DC, Coletti T. Simoes W. Análise da política de aquisição de alimentos da agricultura familiar: o caso do PNAE em três microrregiões do Oeste Catarinense. In: Anais do X Encontro de Economia Catarinense; 2016; Blumenau.
-1010 Ferigollo D, Kirsten VR, Heckler D, Figueredo OAT, Perez-Cassarino J, Trichez M. Aquisição de produtos da agricultura familiar para alimentação escolar em municípios do Rio Grande do Sul. Saúde Pública 2017; 51(6):1-10.,3636 Costa CN, Capelli JCS, Rocha CMM, Monteiro GTR. Disponibilidade de alimentos na alimentação escolar de estudantes do ensino fundamental no âmbito do PNAE, na cidade de Codó, Maranhão. Cad Saúde Colet 2017; 25(3):348-335.,3737 Gabriel CG, Calvo MCM, Vasconcelos FAG, Lacerda JT, Freitas SFT, Schmitz BAS. Avaliação da gestão municipal do Programa Nacional de Alimentação Escolar nos maiores municípios de Santa Catarina, Brasil. Cad Saúde Pública 2014; 30(9):2017-2023.. Como principais resultados, podem ser destacados como pontos positivos: a efetivação da geração de emprego e renda para os agricultores familiares e para as comunidades locais, em virtude da manutenção dos recursos do FNDE na localidade; a diversificação da cesta de produtos que passaram a ser produzidos nas propriedades rurais, contribuindo tanto para ampliar a renda, como para melhorar a alimentação da própria família do agricultor; o estímulo à cooperação, incluindo a criação de cooperativas de agricultores; a busca por novos espaços de comercialização dos alimentos, como feiras e abastecimento de supermercados locais; e, a ampliação de iniciativas de produção orgânica e/ou agroecológica. Por fim, muitas pesquisas observaram também, que houve o resgate da cultura alimentar regional, uma vez que os cardápios passaram a ser elaborados a partir dos gêneros produzidos na região.

Tais resultados positivos corroboram as premissas de uma política pública inovadora com grande impacto socioeconômico e remetem para conclusões em torno do fortalecimento e aprimoramento desse tipo de política. A necessidade de melhorias na PNAE decorre que a mesmo ainda não alcançou sua plenitude nos municípios brasileiros. De acordo com dados do FNDE66 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Programa Nacional de Alimentação Escolar. Dados da Agricultura Familiar [Internet]. [acessado 2018 Out 14]. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/pnae/pnae-consultas/pnae-dados-da-agricultura-familiar
http://www.fnde.gov.br/programas/pnae/pn...
, menos de 50% dos municípios brasileiros atingiram o mínimo de 30% na aquisição de produtos da AF em 2016 (sete anos após a criação da Lei nº 11.947) e mesmo aqueles que atingiram, apontaram para algumas dificuldades na implementação da política.

As principais dificuldades apontadas remetem para restrições relacionadas a demanda e a oferta deste mercado institucional. Em relação a demanda, verifica-se ainda grande ociosidade de recursos do FNDE destinados a AF em virtude principalmente da falta de maior engajamento destes Entes na condução do Programa99 Zonin VJ, Kroth DC, Coletti T. Simoes W. Análise da política de aquisição de alimentos da agricultura familiar: o caso do PNAE em três microrregiões do Oeste Catarinense. In: Anais do X Encontro de Economia Catarinense; 2016; Blumenau.,3636 Costa CN, Capelli JCS, Rocha CMM, Monteiro GTR. Disponibilidade de alimentos na alimentação escolar de estudantes do ensino fundamental no âmbito do PNAE, na cidade de Codó, Maranhão. Cad Saúde Colet 2017; 25(3):348-335.. Alguns exemplos de situações que dificultam o maior impacto do programa são: a formação de cardápios em descompasso com a produção local; a criação de impedimentos técnicos burocráticos na realização das chamadas públicas para a AF; pouca infraestrutura nas escolas para receber e preparar os alimentos; falta de diálogo entre os setores envolvidos com o PNAE no município (resultando na centralização da operacionalização do PNAE nas nutricionistas) e CAEs pouco atuantes.

Em relação a oferta observam-se dificuldades vinculadas especialmente a garantia da quantidade, regularidade e qualidade dos alimentos. Tais limitações resultam da falta de assistência técnica rural direcionada para este tipo de produção, dificuldades logísticas na entrega dos alimentos, excesso de exigências administrativas para a entrega dos alimentos (Declaração de Aptidão ao Pronaf-DAP, exigências sanitárias, certificações) e desinteresse dos agricultores.

Nesta perspectiva, considerando os atributos da Lei nº 11.947/2009, o PNAE pode ser compreendido como uma PPS. Tal elemento contribui substancialmente para a valorização do programa, e por consequência, agrega novos e importantes argumentos em defesa de seu aprimoramento e ampliação. A adequação do PNAE como uma PPS, pode ser realizada em termos das três condições necessárias que precisam estar presentes em uma política pública, para que ela possa ser considerada “saudável”, conforme apresentado na segunda seção e dispostas na Figura 2.

Figura 2
Caráter Inovador e Multiplicador de efeitos positivos da PNAE como PPS.

A primeira condição fazia referência para o fato que a saúde deve estar no centro da política pública. Nos termos da Lei nº 11.947/2009 observa-se que essa tem em sua centralidade o aprendizado e a saúde dos estudantes conjugado com o fortalecimento dos agricultores familiares. Embora possa se concluir que a saúde não seja o ponto de partida desta nova versão do PNAE, a preocupação com a melhoria da saúde é um tema onipresente da política. Destacam-se aqui dois aspectos: o primeiro refere-se com a preocupação da oferta de uma alimentação saudável, rica em nutrientes, para o bom desenvolvimento físico e mental dos estudantes. Esse tipo de alimentação é possível via produção local, com produtos frescos e com baixo processamento industrial, com prevalência de produtos orgânicos e/ou agroecológicos. O segundo remete ao objetivo de formar hábitos saudáveis por parte dos estudantes, tendo desdobramentos ao longo de suas vidas e para os demais integrantes da família. Ao considerar esses dois aspectos, pode-se afirmar que o PNAE atende o primeiro pré-requisito de PPS.

A segunda condição que caracteriza uma PPS refere-se a sua necessidade de incorporar os determinantes sociais da saúde nas estratégias de intervenção da política. Neste quesito, observa-se que o PNAE trata dos determinantes sociais da saúde de várias formas, como: ao estimular uma melhor qualidade alimentar e nutricional, contribui para o desenvolvimento de habilidades dos estudantes; ao propiciar a melhora da renda local para os agricultores familiares, amplia a qualidade de vida desta população; e, ao promover a produção orgânica e/ou agroecológica, estimula o desenvolvimento sustentável. A terceira condição destaca o papel estratégico da intersetorialidade e da interdisciplinaridade da política pública. Neste ínterim percebe-se que a Lei nº 11.947/2009 perpassa diferentes áreas, como educação, agricultura, assistência social, meio ambiente e saúde.

Portanto, mais do que um novo adjetivo ou rótulo, conceber o PNAE como uma PPS reforça seu caráter inovador e multiplicador de efeitos positivos sobre a sociedade, destacando a eficiência desta política pública. A maior oportunidade que se abre é na área da promoção da saúde, que é a principal estratégia de atuação do Sistema Único de Saúde brasileiro. O PNAE configura-se enquanto ação de promoção da saúde ao lidar com um fator primordial para os ganhos de saúde que é o fornecimento e o estímulo a uma alimentação saudável com foco na população infantil.

Outra oportunidade vislumbrada é a maior aproximação dos dois setores considerados chave para o desenvolvimento humano, a educação e a saúde. Muito mais que contribuir para a SAN, considerar o PNAE como uma PPS cria a necessidade de que haja maiores ações conjuntas entre os dois setores, propiciando efetivação das ações de educação em saúde. Um exemplo nesta área seria o fortalecimento do Programa Saúde na Escola que tem como objetivo contribuir para formação integral dos estudantes da rede de educação básica por meio de ações de promoção, prevenção e atenção à saúde, habilitando-os para o enfrentamento de vulnerabilidades no campo da saúde e para a criação de uma cultura de vida saudável, por meio de uma alimentação adequada, prática de esportes, desestímulo a vícios e prevenção em saúde. Sendo assim, ao considerar que o PNAE se enquadra na definição de uma PPS, a seção seguinte apresenta algumas ações de aprimoramento e fortalecimento do PNAE.

Proposições para o aprimoramento do PNAE

Presumindo que a Lei nº 11.947/2009 é uma PPS e que pode ampliar o espaço da saúde no PNAE, é natural esperar que o próximo passo seja a indicação de ações para que se possa aprimorar o PNAE em âmbito de uma PPS. Como primeira recomendação, para o fortalecimento do PNAE sugere-se a ampliação da exigibilidade da aplicação mínima dos recursos advindos do FNDE na aquisição de alimentos da AF, passando dos atuais de 30% para 100%. Essa recomendação é coerente com os ganhos sociais apresentados neste texto provindos de uma alimentação saudável. Outra justificativa para essa alteração, é que ao obrigar o uso da totalidade dos recursos do FNDE nesta modalidade, traz-se para centro da política o debate sobre a importância da alimentação e por consequência, criam-se fortes incentivos para que a sociedade se mobilize em torno desta questão, e por sua vez, ampliam-se os esforços dos entes federados na consecução destas metas.

Esta medida pode ser complementada pela ampliação dos recursos per capita direcionados a alimentação escolar da educação básica e fundamental, que hoje não superam o valor de R$ 1,07/aluno/dia letivo (referente valor pago para alunos de creche e ensino fundamental integral). Neste sentido, uma das ações poderia ser a vinculação de recursos próprios pelos entes federados para este tipo de ação, visando garantir metas relacionadas à área da Saúde e Educação.

A viabilidade da ampliação da exigibilidade de 100% dos recursos do FNDE, passa necessariamente pela superação das dificuldades encontradas na parte administrativa e de organização da produção para atendimento desta ampliação de demanda, conforme apontados pelos estudos referenciados anteriormente. Como proposta para superação das dificuldades de cunho administrativo, sugere-se capacitação técnica do pessoal envolvido com a política, como por exemplo: i) nutricionistas, para adaptação dos cardápios conforme oferta de alimentos da AF local; ii) setores de compras e jurídico das prefeituras, para adequação das chamadas públicas; iii) merendeiras, para a recepção dos alimentos e preparo das refeições; e, iv) professores e profissionais da saúde, para que realizem ações em conjunto, dentre elas Educação Alimentar e Nutricional. Para que essa capacitação seja efetivada, a Lei deveria contemplar um artigo exigindo a elaboração de um plano de capacitação técnica do PNAE para entes federados, envolvendo todos os atores responsáveis pela operacionalização do PNAE.

Para que a capacitação técnica proposta seja efetiva, são necessárias outras duas medidas conjuntas. A primeira refere-se ao fortalecimento dos CAEs. Tal fortalecimento pode vir também de cursos de capacitação, com envolvimento de Universidades, Institutos Federais e Ministério Público e de uma maior divulgação da importância deste órgão perante a comunidade. Os CAEs são responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização do PNAE, e devem cobrar ações efetivas dos atores que lidam com o processo para que se entregue os resultados previstos. A segunda medida, decorre da criação de um comitê gestor da política, que contemple o engajamento das Secretarias de Educação, Saúde, Agricultura e Administrativa na governança da política.

Uma política inovadora como a do PNAE, que exige a práxis da multidisciplinaridade, depende da articulação conjunta das ações entre estes quatro setores: a educação por lidar diretamente com o público-alvo do objeto da política que é a alimentação escolar; a saúde porque deve articular saberes para criar uma cultura saudável nos alunos; a agricultura por mobilizar os atores responsáveis pela produção dos alimentos e a Administração por tratar das questões técnicas das chamadas públicas. O engajamento dos quatro setores propiciará o planejamento da oferta adequada dos alimentos, a operacionalização dos trâmites para licitação, compra e recebimento e preparo dos alimentos e de ações que visam garantir uma cultura de alimentação e outras práticas saudáveis pelos estudantes.

Uma última proposição ao PNAE, refere-se com a preocupação da superação dos gargalos da oferta de alimentos na quantidade, diversidade e qualidade esperados. Neste campo, é imprescindível que sejam criadas equipes de Assistência Técnica Rural (ATER) que tratem da produção da alimentação escolar. Essas equipes podem ser criadas a partir dos recursos humanos já existentes nas secretarias de agricultura, mas ampliadas com parcerias de Universidades e Escolas Técnicas. A falta de ATER específica para esse tipo de produção é apontado nos estudos de caso como um dos principais gargalos para ampliar a oferta de alimentos. A criação de programas que preveem condicionalidades para os municípios, pode ser sugerido como instrumento para que se alavanque este tipo de ação. Dado o papel fundamental das cooperativas de produção da AF, estas podem ser encorajadas e subsidiadas para prestar os serviços de ATER requeridos. Os recursos para este tipo de ação poderiam advir de fontes conjuntas das áreas envolvidas, sendo na modalidade de Bolsas de ATER, mediante editais de seleção dos técnicos com validade de dois anos e passível de renovação pelo mesmo período de tempo.

O conjunto das quatro medidas articuladas, sugeridas aqui: ampliação do valor mínimo exigido para aquisição de alimentos da AF, planos de capacitação dos atores envolvidos, criação de comitê gestor intersetorial e ampliação de ATER específica, são factíveis do ponto de vista financeiro e operacional e estão amparadas pelos estudos e pesquisas que analisaram o PNAE e que versam sobre a promoção da saúde e de economia da educação. Desta maneira, tais ações possibilitariam fortalecer uma política pública inovadora e saudável que se traduz em grandes retornos para a sociedade. Em tempos em que se discute muito o uso racional de recursos governamentais, priorizar políticas públicas com grande efeito multiplicador devem ser o caminho natural a ser seguido pelo setor público.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Out 2020

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2018
  • Aceito
    11 Fev 2019
  • Publicado
    13 Fev 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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