Diversidade sexual: uma leitura do impacto do estigma e discriminação na adolescência

José Carlos Pacheco da Silva Rodrigo Ribeiro Cardoso Ângela Maria Rosas Cardoso Renato Santos Gonçalves Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o impacto do estigma e da discriminação diante do sofrimento psíquico de adolescentes LGBT. Estudo qualitativo em serviço ambulatorial especializado de Saúde Mental Infantojuvenil, da Atenção Secundária da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Participaram do estudo nove adolescentes. Entrevista em profundidade viabilizou a coleta de dados, cuja análise ocorreu com utilização do software Iramuteq e da Análise de Conteúdo de Bardin. Intolerância à identidade de gênero e orientação sexual, fundamentada na heteronormatividade, viola direitos humanos e constitui relevante determinante social em saúde, e a superação dos sofrimentos psíquicos apresentados, articulada com o respeito aos direitos humanos da comunidade LGBT, constitui importante vetor para enfrentamento das iniquidades em saúde na adolescência. A discriminação de adolescentes LGBT é um determinante social que também deve ser enfrentado pelos serviços em saúde, pois ocasiona prejuízos, como a evasão escolar, falta de oportunidades, perda do vínculo familiar e comportamento suicida.

Palavras-chave:
Preconceito; Sexualidade; Adolescente; Discriminação; Diversidade de gênero

Introdução

O presente estudo tem como objetivo analisar o sofrimento psíquico vivenciado na adolescência, relacionado à discriminação e estigmatização quanto à orientação sexual e à identidade de gênero. As normas sociais que regulam o certo e o errado conformam o conjunto de comportamentos e apresentações que moldam o caráter e a identidade de uma coletividade, de modo que a opressão, intolerância, estigmatização e exclusão revelam a vulnerabilidade a que determinados indivíduos e grupos estão submetidos por não serem aceitos, tendo as diferentes expressões de sua sexualidade e identidade de gênero consideradas anormal.

O conceito de anormalidade se refere àquele que se desvia de normas e estas são constantemente variáveis11 Cohn G. Indiferença, nova forma de barbárie. In: Novaes A. Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras; 2004.. Segundo o autor, a privação econômica e sobretudo de visibilidade, civilidade, respeito, de dignidade parece ser a marca identificadora desses sujeitos.

Para Goffman22 Goffman E. Estigma: Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1988., quando normais e estigmatizados se encontram frente a frente enfrentarão de forma objetiva e direta as causas e os efeitos de determinado estigma, evidenciando a inabilidade do indivíduo para a aceitação plena, inibindo a completude do ser diante das relações intersubjetivas típicas da vida em comunidade. O estigma é então conceituado a partir da referência a um atributo profundamente depreciativo e pode se referir às abominações do corpo e às culpas de caráter individual e tribais, de raça, nação e religião.

A tentativa de se neutralizar tais diferenças - nas mídias, em discursos científicos ou em iniciativas públicas -, é constante, mas há, na mesma medida, um movimento que exige dos indivíduos a tomada de postura, a definição do lugar que ocupam na sociedade. Isso porque discriminação e estigma são conceitos correlatos, em que o estigma fornece todos os elementos para que a discriminação e as políticas segregadoras dela decorridas ganhem concreção33 Petry AR, Meyer DEE. Transexualidade e heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa. Textos Contextos 2011; 10(1):193-198..

A essência desses discursos é marcada pela heteronormatividade - mecanismo biopolítico de corpos, que estabelece o padrão heterossexual de sociedades, principalmente as ocidentais -, e os indivíduos que dela escaparem merecerão a marginalização e a violência44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013..

Nesse contexto, identificam-se várias formas de preconceito e discriminação que minimizam e disciplinam as oportunidades de vida da população LGBT, evidenciando o processo de estigmatização desse grupo. Diante disso, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT)44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013., com o objetivo de eliminar as formas de preconceito, discriminação e intolerâncias institucionais e a promoção do acesso integral à saúde dessa população no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

A sigla referente à diversidade sexual atualmente contempla mais letras e expressões de sexualidade e identidade de gênero; entretanto, optamos por uniformizar sua apresentação conforme apresentado pela política, considerando a diversidade sexual e identidade de gênero em todas as nuances e especificidades. Embora este trabalho não tenha como objetivo discutir a teoria queer, o termo “condição LGBT” é compreendido na perspectiva dessa teoria, a qual sugere que a diversidade sexual e as expressões de gênero não devem ser categorizadas de forma imóvel e preestabelecida na lógica do binarismo masculino/feminino, posto que são fluidas em um amplo espectro de possibilidades, construídas, desconstruídas e reconstruídas social e culturalmente no processo histórico55 Butler J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London, New York: Routledge; 1990.. Assim, o termo “condição LGBT” remete-se a essa percepção de fluidez e movimento, uma ideia de se estar dentro de determinada construção de sexualidade e gênero.

Atualmente, as iniciativas nas esferas dos poderes Legislativo e Judiciário visam garantir maior inserção das diversidades sexuais no âmbito legal, por meio da regularização da união civil ou da criminalização das práticas discriminatórias, exigindo do Estado respostas que garantam a dignidade humana e as liberdades fundamentais66 Silva FR, Nardi HC. A construção social e política pela não-discriminação por orientação sexual. Physis 2011; 21(1):251-265..

A proteção desse grupo considerado minoritário e que historicamente tem sido excluído das políticas de Estado também é corroborada pelas normativas internacionais, como a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), da Unesco, publicada em 2005. A DUBDH propõe a reflexão ética como ferramenta para que governos estabeleçam leis e normas adequadas, consolidando e orientando as políticas de proteção à saúde, dispondo que “nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer razão, o que constitui violação à dignidade humana, aos direitos humanos e liberdades fundamentais”77 Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Declaração universal sobre bioética e direitos humanos. Paris: Unesco; 2006.(p.8).

A adolescência definida pela Organização Mundial de Saúde como sendo o período de vida entre 10 e 19 anos completos é marcada por uma intensa transformação biológica e psicológica, constituindo uma fase de construção da identidade e de adoção de valores e comportamentos88 World Health Organization (WHO). Young Peoplés Health - a Challenge for Society. Report of a WHO Study Group on Young People and Health for All. Technical Report Series 731. Geneva: WHO; 1986.. Em meio a tantas pressões sociais, o adolescente torna-se mais suscetível a conflitos emocionais e sofrimentos psíquicos, especialmente ao se autoperceber em não conformidade com os discursos da heteronormatividade99 Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e Tentativas de Suicídio em Adolescentes com Práticas Sexuais Hetero e Homoeróticas. Saude Soc 2012; 21(3):651-667.. Nesse contexto, muitos adolescentes apresentam determinados comportamentos de risco, incluindo o pensamento de morte e a tentativa de suicídio99 Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e Tentativas de Suicídio em Adolescentes com Práticas Sexuais Hetero e Homoeróticas. Saude Soc 2012; 21(3):651-667..

Veale et al.1010 Veale JF, Peter T, Travers R, Saewyc EM. Enacted Stigma, Mental Health, and Protective Factors Among Transgender Youth in Canada. Transgend Health 2017; 2(1):207-216. compara a condição de adoecimento psíquico entre a população LGBT e os considerados jovens “heterocisnormativos”, ressaltando o maior índice de depressão, suicídio, ansiedade, desordens alimentares e abuso de substâncias psicoativas no primeiro grupo, assim como as oportunidades reduzidas de trabalho e educação, devido ao sofrimento relacionado à vivência do estigma e discriminação1111 Wishart M, Davis C, Pavlis A, Hallam KT. Increased mental health and psychosocial risks in LGBQ youth accessing Australian youth AOD services. J LGBT Youth 2019; 16(1):1-19.. Nesse sentido, compreende-se que o “sofrimento psíquico não é reservado àqueles com algum diagnóstico específico, mas é algo presente na vida de todos, que adquirirá manifestações particulares de cada pessoa”1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental. Brasília: MS; 2013.(p.14).

Portanto, a proteção dessa população constitui-se uma característica singular para garantia à dignidade humana, reconhecida como uma condição inerente ao ser humano. A dignidade humana pressupõe o respeito pelo outro, por meio da pluralidade moral e das diversidades humanas1313 Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saude Soc 2014; 23(1):157-166..

Método

Este é um estudo exploratório e descritivo, com abordagem qualitativa. Participaram dele adolescentes atendidos em um serviço ambulatorial especializado de Saúde Mental Infantojuvenil, da Atenção Secundária da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (DF). Esse serviço foi escolhido por ser considerado um centro de referência do DF na atenção à saúde do adolescente e possuir equipe multiprofissional, apresentando a especificidade do cuidado ao adolescente LGBT na perspectiva de assistência integral, com atendimentos individuais e em grupo. Tal prática visa ao fortalecimento da autonomia, pertencimento e empoderamento perante os processos de exclusão social decorrentes da identidade de gênero e orientação sexual não normativas.

A amostra de conveniência foi selecionada mediante critérios de inclusão: adolescentes autodeclarados LBGT; em atendimento no serviço no mínimo há seis meses; idade entre 12 e 18 anos; consentimento dos responsáveis. Obteve-se um grupo amostral de nove adolescentes, com sete na faixa etária entre 14 e 17 anos (77,8%) e dois com 18 anos (23,2%). Entre eles, cinco cursavam entre o 7º e o 9º anos do ensino fundamental (55,6%), três entre o 1º e o 3º anos do ensino médio (33,3%) e um havia concluído o ensino médio (11,1%).

Os dados foram coletados em entrevistas em profundidade com roteiro semiestruturado, contendo questões sobre o reconhecimento da orientação sexual e identidade de gênero não normativa, percepção e atitude da família, vivência de violências decorrentes da orientação sexual e o papel dos serviços de saúde. As entrevistas foram realizadas pelos pesquisadores nas dependências do serviço de saúde, entre abril e agosto de 2019. Todas elas foram gravadas e transcritas na íntegra e os trechos de falas dos participantes identificados com a letra A seguida do número de realização da entrevista.

Aplicou-se análise lexical dos dados com uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et Questionnaires), que possibilita análises estatísticas textuais clássicas, classificação hierárquica descendente, de similitudes, nuvem de palavras e pesquisa de especificidades de grupos1414 Camargo BV, Justo AM. Iramuteq: Um Software Gratuito para Análise de Dados Textuais. Temas em psicologia. 2013; 21(2):513-518.. O software não é um método de análise de dados, mas uma ferramenta para processá-los; ou seja, os dados devem ser interpretados sob a responsabilidade do pesquisador. Dessa forma, para a análise das categorias geradas pelo software Iramuteq, utilizou-se a Análise do Conteúdo de Bardin, modalidade temática1515 Bardin L. Análise de conteúdo. 5ª ed. Lisboa: Edições 70; 2009..

Este trabalho foi realizado com apoio da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) e seguiu as orientações propostas pela Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde.

Resultados

No corpus textual analisado com uso do software Iramuteq, utilizando como método a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), emergiram cinco classes com a seguinte distribuição de percentagem na apresentação dos resultados: classe 1, 14,8%; classe 2, 23,6%; classe 3, 14,6%; classe 4, 22,5%; e classe 5, 24,6%. Na Figura 1 é apresentado o dendograma e as respectivas denominações das classes, em conjunto com a análise lexical, ou seja, as palavras que foram consideradas mais significativas.

Figura 1
Classificação hierárquica descendente.

A Classe 1 corresponde aos relacionamentos familiares, ressaltando a participação da família no contexto de violências; a Classe 2 diz respeito a situações de sofrimento psíquico experienciadas pelos jovens; a Classe 3 exemplifica situações discriminatórias que ressaltam comportamentos violentos e os mecanismos de enfrentamento de atitudes de exclusão; a Classe 4 corresponde à importância do apoio profissional para mitigação do sofrimento; e a Classe 5 refere-se às percepções individuais, familiares e sociais dos adolescentes diante da diversidade sexual.

Os resultados das classes são apresentados a seguir conforme raciocínio facilitador da temática, desviando-se da ordem estabelecida pelo software Iramuteq, no intuito de permitir ao leitor melhor compreensão do contexto apresentado pelos adolescentes na análise temática dos seus discursos.

Relacionamentos familiares

A Classe 1 trata dos relacionamentos familiares, incluindo o posicionamento deles em relação à orientação sexual e identidade de gênero dos adolescentes entrevistados. Evidencia-se a descoberta, pela família, da orientação sexual e/ou identidade de gênero do adolescente, favorecida pelo rompimento da confidencialidade de amigos ou declaração do próprio adolescente. Observou-se que as dificuldades quanto à orientação sexual e/ou identidade de gênero não apresentou relação com a estrutura, composição familiar, classe social ou parentesco.

No entanto, os valores morais considerados tradicionais são observados como fatores que dificultaram a aceitação da orientação sexual ou da identidade de gênero dos adolescentes, e os expuseram a várias situações de violência, em especial aquelas relacionadas a valores religiosos. Esses aspectos são mantenedores de atitudes de rejeição e negação e atuam como mecanismo que potencializa o sentimento de opressão nos participantes:

É, meus pais eles então foram procurando... foram procurando entender, tanto é que me levaram para igreja, pra entender. Foi até quando tentaram falar que iam fazer um exorcismo em mim. (A6)

Minha vó é pastora, o marido dela é pastor, meus tios são pastores. E do lado da nossa casa tinha uma igreja que eles congregavam, então sempre cresci nesse ambiente religioso... e opressor, né? (A8)

Entretanto, apesar de a maioria dos participantes apontar a religião como disparadora do sentimento de opressão, há um relato que se opõe a essa afirmativa e ressalta a importância da religião como mecanismo de ajuda diante das dificuldades. Nesse sentido, o Centro Espírita constituiu um local de apoio e compreensão, proporcionando conforto e acolhimento ao adolescente em sofrimento:

Ajuda bastante (religião), porque a maioria é da minha família, que é desse Centro Espírita. Têm dias que eu chorava lá, aí eles vinham falar comigo, perguntavam o que estava acontecendo. Aí eles foram falando comigo e eu fui meio tipo que... eles vinham falar comigo e eu fui aceitando tudo. (A1)

A figura materna se destaca entre os familiares como importante apoio e conforto, favorecendo aos adolescentes desenvolverem sentimento de adequação ao próprio corpo e motivação para lutarem por seus direitos - por exemplo, nome social e uso de roupas compatíveis com a identidade de gênero. Percebe-se nesse relato que o acolhimento amoroso e de respeito à diversidade, pela mãe, atuou como mecanismo de proteção aos comportamentos destrutivos - a automutilação e o suicídio:

E a minha mãe, ela não, não sabia muito sobre esses casos, essas coisas e eu fui mostrando vídeos de meninas trans pra minha mãe, explicando como é que foi, como é que é ser uma garota trans. Depois minha mãe foi a que mais se apegou, sabe? Ficou mais protetora, ficou mais querendo saber do assunto e me ajudou bastante isso. Já pensei muito em querer desistir, só que eu tenho uma família maravilhosa que gosta de mim e eu penso nela. (A2)

Situações de preconceito e formas de enfrentamento

A Classe 3 aborda as experiências discriminatórias que podem favorecer a exclusão social, ensejando sentimento de vergonha e abandono escolar.

Entre os relatos, sobressai a fala de um adolescente com aparência feminina e orientação pansexual, que retrata o intenso sofrimento decorrente de uma violência sexual sofrida na escola, resultando no abandono escolar, medo de sair de casa e percepção da sua vulnerabilidade. A gravidade do relato aponta para a violação da dignidade humana e a impotência do Estado, representado pelas instituições de ensino, para garantir a proteção desses adolescentes:

Então, digamos que na época daquela escola eu tinha uma aparência muito mais feminina do que eu tenho agora. Então lá os meninos me achavam meio que aquele experimento que falam, né? Eu sofri uma agressão, (pausa) na escola (pausa), eu sofri um estupro coletivo de colegas da minha escola e foi uma época assim que eu quis parar mesmo de estudar por motivos de saúde mesmo, e não me senti bem no ambiente escolar, foi a época que eu me senti mais (suspira) vulnerável. (A6)

Em algumas famílias, pode-se observar a construção dos papéis sociais desde a infância, para homens e mulheres marcados por normas que definem o que é certo para cada gênero, como tamanho do cabelo, roupas, comportamento e brincadeiras. Nessa linha, a fala de uma adolescente transexual retrata punição por não manter um comportamento normativo e desejado pela família, violando os seus direitos, com exposição a uma situação que desqualificou a expressão da sua identidade de gênero e a expôs à humilhação em redes sociais:

Quando eu era criança, já havia ali resquícios de que eu não era uma pessoa cis, hétero, e eles me repreendiam muito, meus tios principalmente. O meu cabelo já era grande e as pessoas já me confundiam com uma menina, e isso pra eles foi algo: “ai, meu Deus!” Em 2017, no começo do ano, eles rasparam meu cabelo. Eles rasparam o meu cabelo, gravaram uma live no Facebook. Tava todo mundo da casa lá: minha vó, meu vô, meus tios. (A8)

Sofrimento psíquico

A Classe 2 evidencia os sentimentos dos adolescentes que experienciaram situações discriminatórias causadoras de intenso sofrimento psíquico. Situações persistentes de preconceito e violências promovem sentimentos negativos que repercutem na saúde mental dos adolescentes. O sofrimento psíquico pode ser reconhecido pelas falas sobre isolamento, medo e tristeza, que limitam a vida social de alguns adolescentes, dificultando a manutenção de uma rotina adequada e saudável. Dessa forma, o medo de sofrer novas violências limita o seu envolvimento e inclusão em diversos contextos sociais, ocasionando abandono da escola, afastamento dos amigos e perda de vínculos afetivos:

Eu já tentei suicídio quatro vezes. E eu fiquei internado muitas vezes, eu desenvolvi síndrome de pânico por causa disso. E é porque eu fiquei internado e era bizarro. A sequela mental e física é pro resto da vida, né? (A3)

É um trauma, uma cicatriz que fica ali com você. É um medo de você sair de casa, é o medo de você pegar um ônibus, é um trauma que fica, é uma cicatriz enorme que impede que você viva no meio social. (A6)

No contexto de discriminações, o preconceito perante a identidade de gênero pode apresentar-se de maneira tão significativa na vida dos adolescentes que eles se questionam sobre suas naturezas, corpos e papéis. O preconceito torna-se então disparador de um conflito identitário e gera a necessidade constante de reafirmação do gênero, como relatado a seguir por dois adolescentes transexuais:

No momento eu sempre ficava me dando gatilho de quem eu era, de quem eu sou, então eu ficava me perguntando para o espelho, sabe? Porque eu sou meio trans, aí eu ficava se perguntando pro espelho: “quem eu sou? quem de fato eu sou?” (A2)

E o tempo todo você tá sendo questionado sobre você e sobre a sua identidade... Sobre o que você tá falando, e você tem que ficar se reafirmando e aí é tipo que nem um animalzinho acuado, sabe? (A3)

Percepções da orientação sexual e identidade de gênero

A Classe 5 diz respeito à autopercepção e à percepção social diante das diversidades. O controle social sobre a sexualidade é retratado na experiência de um adolescente gay que teve um vídeo gravado enquanto se relacionava afetivamente com seu namorado. O vídeo foi divulgado na escola e o adolescente se tornou motivo de piadas. No entanto, essa experiência também evidenciou o apoio emocional das amigas que, preocupadas com a exposição a essa violência, ofereceram suporte e proteção:

Não me declarei, foi meio que descobriram. Eu beijei um menino e aí comecei a namorar com ele. Aí isso tudo começou nos jogos do interclasse da escola. Aí a gente ficou e falamos para uns amigos nossos. E esses amigos meio que gravaram a gente e a escola toda ficou sabendo do vídeo, aí um bando de menino veio me zoando, aí teve que vir um ‘bonde’ de menina pra me deixar na esquina de casa. (A1)

A invisibilidade do adolescente transexual está relacionada à estigmatização e ao sentimento de não pertencimento ao ambiente, de modo que, para assegurar a hegemonia heterossexual, é preciso limitar suas vivências, mesmo que violentamente. Ao enfrentar esse processo, um dos participantes descreve a invisibilidade transexual no contexto social e a compreensão da identidade do órgão sexual:

Só que aí algumas pessoas é, falam algumas coisas que não tem sentido. Quer dizer, por exemplo, uma coisa que nossa, a gente mais escuta é: “Você tem pinto? Deixa eu ver!”. As pessoas falam umas coisas assim (expressão corporal de dúvida) que não sei pra que falar, como se tudo que fosse é, como se um órgão sexual definisse tudo, tudo de quem você é (pausa) sendo que é bem diferente, sabe? Não é uma coisa assim que vai definir quem você é. (A4)

No cenário familiar, a fala de um adolescente transexual traz o comportamento do pai diante da sua identidade de gênero, resultando em sentimento de opressão e desconforto para se posicionar socialmente e se afirmar como sujeito de direitos, inviabilizando o desenvolvimento de um ambiente de escuta e compreensão:

Quando eu nem tinha assumido, meu pai simplesmente desconfiou e me botou contra a parede por causa disso. Ele ficava naquela coisa de pressionar e eu ficava: (movimentos corporais que simulam prisão), saca? Preso, preso, preso. Então assim, era uma coisa que sempre machucava. Eu nunca tive um espaço pra poder conversar e eles começarem a compreender a situação. Então eu sempre tive que guardar as coisas pra mim. (A4)

Assim, a autopercepção sobre o eu e a forma de viver e experimentar suas diversidades sexuais e de gênero pode apresentar-se incialmente de maneira conflituosa e longa:

Foi de nervosismo, mas no fim deu tudo certo, eu acho. É um processo muito demorado, mas no momento, assim, de contar foi tranquilo. Eu acho que a maior dificuldade, acima de tudo, é conosco, sabe? Consigo mesmo. Porque o mundo tá pesando muito e você tem que manter a sua cabeça no lugar. Então isso é a parte, assim, mais pesada. (A7)

Apoio profissional

A Classe 4 representa a assistência profissional oferecida pelo serviço de saúde e as formas de enfrentamento. A complexidade do sofrimento psíquico diante do preconceito pela condição LGBT evidencia a necessidade de espaços de acolhimento e cuidado como suporte fundamental para o seu desenvolvimento, representando um ambiente de escuta e fala para o compartilhamento de vivências e construção de redes de apoio e solidariedade:

Por esse serviço eu fui em um negócio no Ministério da Saúde chamado DiverSUS, e, mano, tipo, e isso também de empoderar adolescentes LGBTs. Eu acho que se não fosse esse serviço eu não teria contato com esse tanto de coisa, esse tanto de curso, esse tanto de porta que me abriu, sabe? (A3)

Eu gostei muito porque aqui eu consigo ter um lugar de fala, entende? Então acho que é importante para todas as pessoas que vêm aqui, vão ter um lugar de fala, vão ter onde vocês vão poder falar sobre a sua vida, o momento em que você sentir dificuldade, o momento em que você está feliz. É um lugar de fala. (A6)

Diante desses aspectos, a modalidade de atendimento em grupo denominado ‘Grupo de diversidade sexual e de gênero’, apresenta-se como uma ferramenta que favorece o desenvolvimento de relações mais protetivas entre os pares, vínculos com os profissionais responsáveis pela condução do grupo e com outros adolescentes que experimentam situações semelhantes. Essa modalidade possibilita a ampliação da rede de apoio e potencializa as formas de enfrentamento das dificuldades cotidianas:

Eles falam muito, eles ajudam muito a gente nessa questão psicológica, eles são uma ótima pessoa que te anima, que te ajuda, sabem conversar com você, e você tipo se abre com eles, sabe? É tanta história assim, que você acaba conhecendo novas pessoas, e eles começam a te ajudar. É um ajuda o outro. (A2)

Discussão

A pluralidade e a diversidade de contextos culturais dos adolescentes e suas famílias oferecem diferentes perspectivas de desenvolvimento, principalmente quanto às questões relacionadas a orientação sexual e identidade de gênero. O estigma e/ou negação da condição LBGT dos filhos podem aumentar o sofrimento, devido à dificuldade dos responsáveis em oferecer o suporte adequado ao enfrentamento das inúmeras adversidades enfrentadas em outros contextos sociais, favorecendo a manutenção dos ciclos de violência1616 Vargas P. Lecturas de Bioética: Determinantes sociales de la salud de las personas LGBT. Pediatr Panama 2017; 46(2):145-147.,1717 Braga IF, Oliveira WA, Silva JL, Mello FCM, Silva MA. I. Violência familiar contra adolescentes e jovens gays e lésbicas: um estudo qualitativo. Rev Bras Enferm 2018; 71(3):1220-1227..

Nesse contexto de exclusões, os resultados deste estudo indicam que a maioria das famílias dos participantes destaca a rigidez dos valores morais religiosos como um aspecto que compromete o vínculo familiar e reforça comportamentos de controle, vigilância, perseguição e punição. Entretanto, opondo-se a essa afirmativa, atividades religiosas são apontadas por um dos participantes como um fator de proteção, fortalecendo o vínculo familiar e a melhora do sofrimento psíquico. Esse aspecto também é descrito por Ribeiro e Scorsolini-Comin1818 Ribeiro LM, Scorsolini-Comin F. Relações entre religiosidade e homossexualidade em jovens adultos religiosos. Psicol Soc 2017; 29:e162267., os quais revelaram que, apesar de aceitar apenas relacionamentos heterossexuais, algumas comunidades religiosas acolhem e proporcionam a construção de uma rede de apoio aos jovens.

Os resultados sugerem que o preconceito experimentado pelos adolescentes advém da incompreensão das diferenças de gênero e orientação sexual. A negação da orientação homossexual se apresenta demasiadamente enraizada socialmente, repercutindo na autoaceitação, devido à rejeição imposta sobre eles1919 Eribon D. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud; 2008.. No entanto, a falta de autoaceitação está associada ao sofrimento psíquico e é evidenciada pelo medo e insegurança2020 Guimarães AN, Marqui GDS, Brum MLB, Vendruscolo C, Werner JM, Zanatta EA. Relatos de jovens homoafetivos sobre sua trajetória e implicações para a saúde mental. Esc Anna Nery 2019; 23(1):1-9.,2121 Natarelli TRP, Braga IF, Oliveira WA, Silva MAI. O impacto da homofobia na saúde do adolescente. Esc Anna Nery 2015; 15(4):664-670..

Zanatta et al.2222 Zanatta EA, Ferraz L, Klein ML, Marques LC, Ferraz L. Descobrir, aceitar e assumir a homoafetividade: situações de vulnerabilidade entre jovens. Rev Fund Care 2018; 10(2):391-398. ressaltam que a autoaceitação é um fator fundamental para favorecer a afirmação do adolescente perante o pensamento normativo, podendo promover conforto e atuar como elemento fundamental para o desenvolvimento, empoderamento e luta pelo respeito a seus direitos e pela alteridade. Os autores concluem que a autoaceitação e a demonstração de respeito e afeto no ambiente familiar atuam como importante suporte ao adolescente, fortalecendo os espaços de cuidado e permitindo a construção de projetos de vida.

No entanto, o estresse crônico gerado pela necessidade de esconder a identidade de gênero e a orientação sexual e vivenciar um contexto de aparências, associado à culpa por não corresponder às expectativas dos pais e à vergonha nos ambientes familiares pode provocar sofrimento mesmo após o indivíduo declarar sua condição LGBT. Tal fato ocorre devido às marcas deixadas por anos de exclusão e violências, tendo como consequência o aumento do risco de suicídios em comparação aos adolescentes heterossexuais99 Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e Tentativas de Suicídio em Adolescentes com Práticas Sexuais Hetero e Homoeróticas. Saude Soc 2012; 21(3):651-667.,2323 Smith BC, Armelie AP, Boarts JM, Brazil M, Delahanty DL. PTSD, Depression, and Substance Use in Relation to Suicidality Risk among Traumatized Minority Lesbian, Gay, and Bisexual Youth, Arch Suicide Res 2016; 20(1):80-93.,2424 Dunn TL, Gonzalez CA, Costa AB. Does the minority stress model generalize to a non-US sample? An examination of minority stress and resilience on depressive symptomatology among sexual minority men in two urban areas of Brazil. Psychol Sexual Orient Gender Diversity 2014; 1(2):117..

Em concordância, dados epidemiológicos revelam o crescente número de óbitos por suicídio nas últimas décadas. A Organização Pan-Americana de Saúde aponta que, no mundo, aproximadamente 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano2525 World Health Organization (WHO). Global status report on alcohol and health 2018. Geneva: WHO; 2019.. Nos Estados Unidos, uma pesquisa destacou a probabilidade de suicídio de 20% entre jovens não heterossexuais e 4% entre jovens heterossexuais2626 Hatzenbuehler ML. The social environment and suicide attempts in lesbian, gay, and bisexual youth. Pediatrics 2011; 127(5):896-903., enquanto outra relatou um índice de tentativa de suicídio de 41% entre pessoas transgêneras e 1,6% entre pessoas cisgêneras2727 Grant JM, Mottet LA, Tanis J, Herman JL, Harrison J, Keisling M. National transgender discrimination survey report on health and health care. Washington, DC: National Center for Transgender Equality and the National Gay and Lesbian Task Force; 2010..

Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde2828 World Health Organization (WHO). Preventing suicide: A global imperative. Geneva: WHO; 2014., o aumento da taxa de suicídio no Brasil, entre 2000 e 2012, foi de 10,14%, registrando em 2012 taxas de suicídio de 5,8 por 100 mil. Estudo com jovens estudantes do ensino médio de São Paulo, com idade média de 17 anos, revelou que 20,7% dos jovens heterossexuais declararam que já tiveram pensamentos suicidas, enquanto entre os jovens LGBT a porcentagem foi de 38,6%99 Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e Tentativas de Suicídio em Adolescentes com Práticas Sexuais Hetero e Homoeróticas. Saude Soc 2012; 21(3):651-667..

A negação e/ou o estigma referentes à condição LGBT dos adolescentes, identificados por rótulos, estereótipos e discriminação, ocasionam dor e sofrimento, influenciando no aumento do comportamento suicida, e, ainda, limitam os recursos e oportunidades desse grupo1616 Vargas P. Lecturas de Bioética: Determinantes sociales de la salud de las personas LGBT. Pediatr Panama 2017; 46(2):145-147..

Portanto, a discriminação e a estigmatização constituem violações à dignidade humana, considerando o processo de construção individual da identidade, que deve respeitar o indivíduo e não negar seu desenvolvimento. O estigma inferioriza a pessoa e permite que rompa com a própria dignidade humana, diminuindo suas chances de vida, além de aumentar a vulnerabilidade de indivíduos e grupos, o que repercute diretamente sobre suas condições de saúde1313 Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saude Soc 2014; 23(1):157-166..

Os resultados apontam graves episódios de violência no âmbito escolar, relacionados ao estigma e à discriminação quanto à orientação sexual e identidade de gênero. Portanto, é necessário que a escola se torne responsável pela ampliação do pertencimento social do adolescente, garantindo o respeito às diversidades culturais e morais, de modo que, ao serem vítimas de práticas estigmatizantes e discriminatórias, os estudantes tenham naquele ambiente o suporte adequado para sua proteção2929 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Ministério da Saúde (MS). Saúde e sexualidade de adolescentes. Construindo equidade no SUS. Brasília: OPAS, MS; 2017.,3030 Resadori AH, Rios RR. Proibição de discriminação por orientação sexual no ambiente escolar: Panorama do direito regional e constitucional na América Latina. Rev Cult Juridicas 2017; 4(9):249-267..

Zmyj e Wehlig3131 Zmyj N, Wehlig R. Reducing homonegativity among German adolescents: Results of a 6-week follow-up study. J LGBT Youth 2019; 16(4):435-450. ressaltam a importância de estratégias de intervenções anti-homofóbicas que proporcionem um número razoável de intervenções ministradas ao mesmo grupo de adolescentes - ao invés de atividades isoladas.

No contexto de saúde, evidencia-se a importância de espaços que acolham as demandas dos adolescentes em sofrimento psíquico e que trabalhem estratégias de empoderamento e enfrentamento. Nesse sentido, o serviço de saúde assume papel importante na efetivação de ações intersetoriais da saúde integral da população LGBT, propondo respostas ao enfrentamento das vulnerabilidades dessa população1717 Braga IF, Oliveira WA, Silva JL, Mello FCM, Silva MA. I. Violência familiar contra adolescentes e jovens gays e lésbicas: um estudo qualitativo. Rev Bras Enferm 2018; 71(3):1220-1227.,2222 Zanatta EA, Ferraz L, Klein ML, Marques LC, Ferraz L. Descobrir, aceitar e assumir a homoafetividade: situações de vulnerabilidade entre jovens. Rev Fund Care 2018; 10(2):391-398., fortalecendo vínculos entre os sujeitos e os serviços para a desconstrução de posturas heteronormativas e busca da efetivação dos direitos dos adolescentes em sofrimento psíquico, conforme os objetivos estabelecidos pela política pública afeta a essa população (PNSILGBT). A proposta dessa política é efetivar estratégias que garantam o enfrentamento das iniquidades e desigualdades, garantindo, ainda, a consolidação de um SUS universal, integral e equitativo44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013..

Entretanto, apesar de existir há uma década, com autonomia para atuar em todos os níveis de complexidade de atenção à saúde, essa política enfrenta barreiras que impactam negativamente na qualidade do acolhimento e da assistência à população LGBT. Essas barreiras se relacionam, principalmente, às resistências políticas locais, influenciadas por posições morais e que resultam em condutas discriminatórias e estigmatizantes3232 Guimarães RCP. Estigma e Diversidade Sexual nos Discursos dos (as) profissionais do SUS: Desafios para a saúde da população LGBT [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018..

Andorno3333 Andorno R. La dignidad humana como principio biojurídico y como estándar moral de la relación médico-paciente. Arbor 2019; 195(792):a501. enfatiza a importância do reconhecimento dos direitos e liberdades dos indivíduos para assegurar a dignidade humana, independentemente de qualquer condição. No entanto, violências relacionadas à condição LGBT rompem com esses aspectos, podendo ser potencializadas pelo abandono e desvalorização das políticas afirmativas em determinados momentos políticos, resultando em maior exposição das pessoas a situações de estigma e discriminação que causam exclusão social e diminuição de oportunidades na vida3434 Medeiros ES. Necropolítica tropical em tempos pró-Bolsonaro: desafios contemporâneos de combate aos crimes de ódio LGBTfóbicos. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude 2019; 13(2):287-300..

Após análise dos dados, percebe-se, em síntese, que a intolerância quanto à identidade de gênero e orientação sexual, fundamentada na heteronormatividade, viola direitos humanos e constitui expressivo determinante social em saúde. Os discursos dos adolescentes evidenciaram que fatores culturais e religiosos convergem para o cerne dos quadros clínicos e suas abordagens terapêuticas3535 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis 2007; 17(1):77-93.. A superação dos sofrimentos psíquicos apresentados, articulada com o respeito aos direitos humanos da comunidade LGBT, constitui importante vetor de enfrentamento às iniquidades em saúde na adolescência.

Considerações finais

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou análise das situações discriminatórias às quais a população LGBT é submetida cotidianamente, identificando as violências familiares e sociais diante das diversidades sexuais dos adolescentes, ocasionando minimização de oportunidades, evasão escolar, repressão quanto à sexualidade, perda do vínculo familiar e ideações e comportamentos suicidas.

Este estudo evidencia que, durante a adolescência, a estigmatização e a exclusão social vivenciadas pela população LGBT acarretam importantes prejuízos à saúde mental, como a depressão, ideação, tentativa de suicídio e suicídio. O apoio familiar e o processo de autoaceitação são mecanismos fundamentais para o enfrentamento e o empoderamento do adolescente. Diante disso, os adolescentes participantes deste estudo desenvolveram estratégias no âmbito de um serviço especializado em saúde mental infantojuvenil, espaço de cuidado e escuta que se apresentou como uma importante fonte de apoio e fortalecimento de vínculos em prol da desconstrução de posturas heteronormativas, promovendo a garantia de direitos humanos fundamentais.

Portanto, o cuidado ao adolescente LGBT em dispositivos de saúde é um importante espaço promotor de empoderamento, incluindo ações de discussão crítica quanto às vivências discriminatórias e estigmatizantes, produzidas nos diversos contextos sociais e políticos, com apropriação do direito inviolável à dignidade humana no processo de enfrentamento e resistência. Ressalta-se que, para se alcançar êxito, as ações devem ocorrer de forma articulada em rede e intersetorialmente, tendo em vista o papel dos diferentes segmentos da sociedade, incluindo qualificação para o trabalho, oferta de oportunidades de emprego, acesso à educação, lazer e cultura, entre outros. Destaca-se a necessidade da efetivação da implantação e implementação das ações da PNSILGBT e um olhar para a compreensão da realidade e das vulnerabilidades vivenciadas por esses adolescentes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2021

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
  • Publicado
    14 Abr 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br