Retrato da atenção básica no Brasil: gastos e infraestrutura em municípios brasileiros

Helder Kiyoshi Kashiwakura Andréa de Oliveira Gonçalves Ricardo Rocha de Azevedo André Nunes César Augusto Tibúrcio Silva Sobre os autores

Resumo

O trabalho apresenta a relação entre a alocação de recursos financeiros e a tipologia da infraestrutura básica local de saúde em amostra inicial de 5.570 municípios do Brasil. Trata-se de uma pesquisa explicativa com uso da análise de correspondência múltipla e regressão quantílica entre variáveis de gastos/controle e a tipologia da estrutura das Unidades Básicas de Saúde. As correspondências entre a tipologia e variáveis representativas dos gastos mostram que tipologias inferiores estão relacionadas com menores gastos per capita nessas variáveis, e vice-versa. A regressão quantílica apresentou relação positiva com a tipologia da infraestrutura nos dois ciclos avaliados. Há evidência das variáveis de gasto estarem relacionadas, de maneira positiva, à infraestrutura, permitindo entender que alocar mais recursos leva a melhor infraestrutura. No entanto, há a necessidade de melhoria na governança dos recursos financeiros da saúde, pois municípios com indicadores socioeconômicos inferiores têm infraestrutura nas categorias inferiores. Conclui-se que há grande multiplicidade de atores e os múltiplos critérios para alocação e descentralização de recursos trazem dificuldades de coordenação e integração entre os entes, restringindo a adequada priorização na alocação dos recursos.

Palavras-chave:
Atenção primária à saúde; Gastos em saúde; Infraestrutura sanitária; Governança

Introdução

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), nos anos 1990, levou a atenção básica (AB) a desempenhar importante papel no sistema universal de saúde no Brasil. Nos últimos anos, mesmo com todo o progresso na saúde, a operação desses serviços ainda não é satisfatória, devido às desigualdades regionais, ao desperdício de recursos na prestação de serviços, à subutilização dos leitos hospitalares e ao gasto pouco eficaz dos recursos públicos11 Guerra M. Modelo de alocação de recursos do sistema único de saúde para organizações hospitalares: serviços de alta complexidade [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2013.. Nesse sentido, a gestão local da saúde desempenha papel central e estratégico na antecipação da resolução de problemas, pois a saúde é também um indutor para o desenvolvimento de uma nação. Além de ser um direito essencial, financiado em grande parte por recursos públicos. Assim, ao pensar a alocação dos recursos, é necessário observar se essa é eficiente, eficaz e efetiva, já que a prestação desse tipo de serviço representa a porta de entrada no SUS, ao enfatizar a oferta de serviços por meio de um modelo orientado pela demanda como um fator de redução de custos e de integralidade das ações de saúde22 Cordeiro H. Descentralização, universalidade e equidade nas reformas da saúde. Cien Saude Colet 2001; 6(2):319-328..

No âmbito do sistema de saúde, a AB é prioridade, já que as Unidades Básicas de Saúde (UBS) podem ser o principal equipamento de saúde em nível local, capaz de resolver até 85% dos problemas de saúde da comunidade33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual de estrutura física das unidades básicas de saúde: saúde da família. 2. ed. Brasília: MS; 2008.. Assim, uma das formas de se efetuar esse tipo de análise é relacionar a composição dos equipamentos básicos de saúde locais aos recursos alocados.

Devido ao crescimento de gastos com saúde, a alocação de recursos públicos tem sido alvo de preocupação de natureza acadêmica e orçamentária em muitos países, inclusive o Brasil. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde44 Organização Panamericana de Saúde. Health in the Americas, 2007. Washington (DC): OPAS; 2007., os gastos com saúde representavam 3% do PIB mundial em 1948 e passaram para 8,7% do PIB em 200444 Organização Panamericana de Saúde. Health in the Americas, 2007. Washington (DC): OPAS; 2007.,55 Piola SF, Servo LM, de Sá EB, de Paiva AB. Financiamento do Sistema Único de Saúde - Trajetória recente e cenários para o futuro. Anal. Econ. 2012; 30..

Diante desse cenário, é importante saber se os recursos descentralizados refletem a infraestrutura disponibilizada para os usuários. Embora pareça evidente que um maior nível de gasto gere maiores investimentos em infraestrutura, essa relação não é necessariamente clara em países em desenvolvimento66 Filmer D, Hammer J, Pritchett L. Health policy in poor countries: weak links in the chain [Research working paper nº WPS 1874]. Washington (DC): World Bank; 1997. Disponível em: http://documents.worldbank.org.,77 Atun R. What are the advantages and disadvantages of restructuring a health care system to be more focused on primary care services. Copenhagen: World Health Organization Publisher; 2004. Disponível em: http://www.euro.who.int/document/e82997.pdf.. Se por um lado há significativa correlação entre o aumento das despesas com a atenção básica e o melhor acesso à saúde66 Filmer D, Hammer J, Pritchett L. Health policy in poor countries: weak links in the chain [Research working paper nº WPS 1874]. Washington (DC): World Bank; 1997. Disponível em: http://documents.worldbank.org., por outro, países que ainda não atingiram a maturidade em termos de governança dos recursos públicos não apresentam forte correlação nesse aspecto, devido à existência de outros fatores que interferem na gestão do sistema de saúde77 Atun R. What are the advantages and disadvantages of restructuring a health care system to be more focused on primary care services. Copenhagen: World Health Organization Publisher; 2004. Disponível em: http://www.euro.who.int/document/e82997.pdf..

Sob esse enfoque, este artigo apresenta resultados de pesquisa nacional realizada entre 2016 e 2019, intitulada Retrato da atenção básica no Brasil, sob a perspectiva da governança orçamentária. Particularmente, analisa-se a relação entre o comportamento da alocação dos recursos financeiros públicos em saúde e a tipologia da infraestrutura básica local de saúde nos municípios brasileiros. A hipótese diretriz formulada sugere que o maior dispêndio de recursos financeiros per capita leva a uma melhor infraestrutura dos equipamentos locais de saúde.

É interessante observar as diferentes interpretações da abrangência e do escopo da atenção básica que levaram à utilização de termos distintos para a forma de organizar os sistemas de serviços de saúde nos diversos países. Optou-se aqui por manter os termos originalmente utilizados em cada trabalho citado. No entanto, nesta pesquisa, o termo atenção básica é empregado por conta dos documentos utilizados pelo Ministério da Saúde no Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ).

Observa-se que a qualidade da governança dos recursos públicos é essencial para o desenvolvimento88 Rajkumar AS, Swaroop V. Public spending and outcomes: does governance matter? J Dev Econ 2008; 86(1):96-111. de uma nação, sobretudo em países com recursos escassos e resultados pobres de gestão de políticas públicas, como o Brasil, dada a evidência de que as instituições orçamentárias interferem substancialmente em áreas como a AB. Isso explica a maior ou menor efetividade das despesas públicas na provisão de melhores condições sociais.

Em estudo99 David GC. Atenção primária nos municípios brasileiros entre 2007-2010: desempenho, gasto, eficiência e disparidades [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2015. que estimou o efeito dos gastos no desempenho da AB e a eficiência econômica, evidenciou-se que nos municípios brasileiros a AB tem melhor desempenho do que os demais níveis de cuidado (média e alta complexidade), o que leva a concluir que há relação positiva entre gasto e desempenho da AB, mas há grandes disparidades regionais em relação ao gasto e ao desempenho da AB no Brasil99 David GC. Atenção primária nos municípios brasileiros entre 2007-2010: desempenho, gasto, eficiência e disparidades [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2015..

Estudo realizado em 20071010 Varela PS, Farina MC. Relação entre gastos com saúde, índice de esforços da atenção básica em saúde e tipologia da estrutura do sistema de saúde dos municípios do estado de São Paulo. Rev Adm Mackenzie 2007; 8(3):153-172. apresentou uma análise, a partir de categorias dos municípios paulistas, de gastos em saúde com recursos próprios por habitante, transferências do SUS por habitante, tipologia da estrutura do SUS e índice de esforço da AB. Nesse estudo, observou-se que os municípios com maior índice de esforço em AB eram os que apresentavam maior valor de despesa com recursos próprios por habitante e que possuíam estruturas mais simples de atendimento à saúde, o que indica que investem, predominantemente, nas ações de promoção e prevenção da saúde1010 Varela PS, Farina MC. Relação entre gastos com saúde, índice de esforços da atenção básica em saúde e tipologia da estrutura do sistema de saúde dos municípios do estado de São Paulo. Rev Adm Mackenzie 2007; 8(3):153-172..

Quanto à infraestrutura, há pesquisas que estabelecem uma tipologia da infraestrutura de saúde dos municípios brasileiros1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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e outras que tratam da infraestrutura de saúde1212 Scatena JH, Tanaka OY. Distribuição dos estabelecimentos de saúde no Brasil: para qual modelo caminhamos? Rev Adm Pública 1998; 32(4):7-25.

13 Guimarães C, Amaral P, Simões R. Rede urbana da oferta de serviços de saúde: uma análise multivariada macrorregional - Brasil; 2002. In: Anais do XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP; 2006 Set 18-22; Caxambu. p. 1-8.
-1414 Simões R, Guimarães C, Godoy N, Velloso T, Araújo T, Galinari R, Chein F. Rede urbana da oferta de serviços de saúde: uma análise espacial multivariada para Minas Gerais. In: Seminário sobre a Economia Mineira; 2004. Belo Horizonte: CEDEPLAR, UFMG. p. 1-27.. Esses trabalhos analisaram a distribuição e a qualidade da infraestrutura básica de saúde disponível em regiões específicas, porém nenhum deles estabeleceu uma relação da tipologia da infraestrutura com os gastos públicos.

Dessa forma, apenas o aumento de gastos públicos não é suficiente para a melhoria dos resultados nos serviços de saúde1515 World Bank. Making services work for poor people: world development report 2003. Washington (DC): World Bank; 2003., pois é difícil encontrar relações consistentes entre aumento nos gastos e resultados que demonstrem a importância de se alocar mais recursos para indivíduos de baixa renda. Assim, a infraestrutura de instalações de saúde é um componente importante de um sistema de saúde e não deve ser subestimado1616 Savigny D, Adam T, editors. Systems thinking for health systems strengthening. Geneva: World Health Organization; 2009..

Há também um estudo que analisou os gastos em saúde de 2001 a 2006 com relação ao percentual do PIB per capita e evidenciou que o Brasil gasta mais em saúde que outros países vizinhos com maiores níveis de renda1717 Ferraz OL, Vieira FS. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Rev Bras Ci Soc 2009; 52(1):223-51.. Entretanto, conforme os autores, a análise dos indicadores de saúde da população brasileira em comparação aos outros países, que resultou em indicadores piores1717 Ferraz OL, Vieira FS. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Rev Bras Ci Soc 2009; 52(1):223-51., gerou a falsa impressão de que o país estivesse investindo suficientemente em saúde para suas possibilidades econômicas. Tais resultados, observados na Tabela 1, não se alteraram substancialmente de 2014 a 2017. Utilizando-se outro indicador de resultado na saúde (morte entre 15 e 60 anos), verifica-se que o Brasil não difere muito de outros países em termos de gasto total per capita e percentual do PIB. Mesmo que alguns países tenham melhorado no quesito alocação de recursos, o Brasil gasta mais, proporcionalmente ao PIB, do que Uruguai, Chile e Colômbia, por exemplo. No entanto, o índice de mortalidade no Brasil continua bem pior do que nesses países.

Tabela 1
Comparativo, entre países, do PIB per capita, gasto e desempenho em saúde, de 2001 a 2006 e 2014 a 2017.

O Banco Mundial15 já havia apontado na mesma direção: ao comparar gasto e indicadores de saúde, como expectativa de vida, mortalida de in fantil e mortalidade materna, o Brasil revela um nível intermediário de desempenho entre os países de renda média e na América Latina. Alguns países (Tabela 1) apresentam desempenho melhor do que outros com níveis semelhantes de gasto e desenvolvimento econômico, o que sugere que fatores adicionais podem influenciar a efetividade do gasto público na saúde - como políticas que o direcionam às necessidades da população mais pobre - e a melhor qualidade do gasto, que poderia gerar melhoria dos resultados na área de saúde. Um aspecto evidenciado é que valores mais altos de gastos em saúde em níveis de alta complexidade podem ter pouco impacto nos indicadores gerais de saúde1818 Banco Mundial. Governança no sistema único de saúde (SUS) do Brasil: melhorando a qualidade do gasto público e gestão de recursos. Brasília: Banco Mundial; 2007. p. 42..

Materiais e métodos

A respeito da alocação de recursos, fez-se uso de dados de acesso público que tratam de despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) gerenciados pelo Ministério da Saúde (MS) por meio do SIOPS/DATASUS para 5.570 municípios, classificados por Execução Financeira por Bloco (exercícios financeiros de 2007 a 2017), Classificação Econômica da Despesa (de 2002 a 2017) e Subfunção da Despesa (de 2002 a 2017), conforme previsto na cartilha do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

A base de dados sobre infraestrutura compõe-se de dados sobre as UBS, disponibilizados pelo PMAQ, referentes ao primeiro ciclo de avaliação (2012), no total de 38.812 UBS, em 5.543 municípios1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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, e ao segundo ciclo de avaliação (2014), totalizando 24.997 UBS em 5.072 municípios.

Na análise da composição dos equipamentos básicos de saúde locais, estabeleceu-se uma classificação para a infraestrutura de saúde disponibilizada, que é a sua tipologia1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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, originada do PMAQ, referentes ao primeiro e segundo ciclos, disponibilizados pelo Departamento da Atenção Básica do Ministério da Saúde. Na definição da tipologia, foram adotadas cinco classificações: (1) reprovada, que representa ausência de estrutura de serviço de saúde. São UBS que não cumprem requisitos mínimos na prestação de atendimento1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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; (2) rudimentar, apresentam importante insuficiência de equipes, do elenco de profissionais, de serviços disponíveis e de equipamentos e insumos. São UBS que sequer realizam atendimento ao grupo materno-infantil e tampouco poderiam ser consideradas prestadoras de uma atenção primária seletiva1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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; (3) restrita, caracterizada pela insuficiência de equipamentos e de equipe de saúde. São UBS que necessitam, principalmente, de investimentos em infraestrutura geral e na prestação de serviços de saúde bucal1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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; (4) regular, UBS com equipes de saúde da família e saúde bucal que, com baixo investimento para a melhoria da infraestrutura de equipamentos e insumos, alcançariam o padrão de referência. Por possuírem dificuldade de acesso à internet, podem requerer investimentos em telecomunicações1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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; (5) padrão de referência, UBS que dispõem de condições elementares para funcionamento e prestação de escopo de ações em AB. Funcionam cinco ou mais dias na semana em dois ou três turnos de atendimento e ofertam consultas médicas, enfermagem e odontologia1111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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Os dados orçamentários/financeiros referentes à alocação de recursos foram atualizados monetariamente pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo, medido pelo IBGE), ano base 2017. Para a análise dos gastos foram calculados valores per capita para cada montante anual nos municípios, segundo dados da população local, disponibilizados pelo IBGE, do período de 2002 a 2017. O cálculo dos valores per capita (_cpt) foi obtido da divisão do montante alocado anualmente em cada município pela população existente em cada ano (censo ou estimativa do IBGE). As variáveis foram dispostas em três blocos: categoria econômica, subfunção e bloco de gastos (Quadro 1). Em seguida, realizou-se o teste qui-quadrado para esclarecer se a distribuição das variáveis por categoria foi aleatória ou se ocorreu um padrão determinado por interdependência entre as variáveis.

Quadro 1
Variáveis sobre gastos.

No primeiro momento, realizou-se a análise de correspondência (AC)19-21 por pares de variáveis, em que foram analisados os gráficos com melhor representatividade, isto é, melhor correspondência entre pares de categorias de variáveis, sendo consolidada em tabelas de correspondência de categorias de variáveis. Essa análise foi utilizada para complementar as evidências não passíveis de ser verificadas na análise de regressão múltipla, pois os pressupostos desse tipo de técnica são mais rigorosos que os daquela.

No segundo momento, utilizou-se a análise de regressão quantílica (RQ)2222 Koenker R. Quantile regression. New York: Cambridge University Press; 2005.

23 Hao L, Naiman DQ. Quantile regression. California: Sage Publications; 2007.
-2424 Santos PM. Regressão quantílica aplicada ao estudo de seleção genômica para características assimétricas de suínos [dissertação]. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa; 2016. para identificar relações entre as variáveis independentes (gastos) e a tipologia das UBS (escore das UBS) a partir da definição da tipologia e da composição dos gastos alocados na AB, a fim de verificar como cada variável de gastos influi na tipologia das UBS. Utilizou-se, ainda, outras variáveis de controle, como o índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM), o índice de desenvolvimento da saúde (IDS) e o PIB per capita.

Observa-se que a RQ não requer a pressuposição de erros homocedásticos, podendo ser utilizada quando a distribuição dos erros é heterocedástica, sendo, ainda, uma técnica robusta com relação à presença de outliers. Possui também uma representação de programação linear, o que facilita a estimação dos parâmetros2222 Koenker R. Quantile regression. New York: Cambridge University Press; 2005.

23 Hao L, Naiman DQ. Quantile regression. California: Sage Publications; 2007.
-2424 Santos PM. Regressão quantílica aplicada ao estudo de seleção genômica para características assimétricas de suínos [dissertação]. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa; 2016.. Além disso, a variável dependente escore_final apresenta distribuição não normal (assimetria negativa), o que faz com que a técnica de regressão quantílica seja a mais adequada quando se trabalha com dados não normais e com presença de heterocedasticidade2222 Koenker R. Quantile regression. New York: Cambridge University Press; 2005.

23 Hao L, Naiman DQ. Quantile regression. California: Sage Publications; 2007.
-2424 Santos PM. Regressão quantílica aplicada ao estudo de seleção genômica para características assimétricas de suínos [dissertação]. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa; 2016..

Cinco modelos de regressão foram testados, por meio do software Stata 13.0, dividindo-se as variáveis independentes pelo tipo de classificação da despesa (orçamentária e de saúde). O modelo por categoria econômica (RQ1) permite verificar o efeito comparativo de cada tipo de gasto, por exemplo se o gasto com pessoal possui mais influência sobre a tipologia do que as despesas correntes em geral. O modelo por subfunção (RQ2) possibilita observar o efeito de uma subfunção específica, por exemplo se o gasto com AB possui mais influência sobre a tipologia do que o gasto com atenção de média e alta complexidades. O modelo por blocos de gastos (RQ3, RQ4 e RQ5) permite verificar qual esfera possui gasto com maior efeito sobre a tipologia, por exemplo. Realizaram-se também os testes Jarque-Bera, para a normalidade dos resíduos, o teste VIF (fator de inflação da variância), para a multicolinearidade entre variáveis independentes, e o teste de correlação entre variáveis, para cada modelo.

Resultados e discussão

Os resultados mostraram que grande parte das UBS - participantes do PMAQ - está classificada nas tipologias 4 (51,2% no ciclo 1 e 76,8% no ciclo 2), ou seja, são consideradas regulares, o que significa que essas UBS possuem equipes de saúde da família e saúde bucal que, com melhoria da infraestrutura, alcançariam o padrão de referência 51111 Giovanella L, Bousquat A, Fausto MC, Fusaro E, Mendonca M, Gagno J. Tipologia das unidades básicas de saúde brasileiras. Novos Caminhos 2015 [acessado em 2017 Abr 12]; (5). Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/09/NovosCaminhos05_ValeEste.pdf.
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. Isso mostra que mais de 75% das UBS possuem pequenas deficiências, restando verificar as relações dessa tipologia com os gastos e como se encontra no país.

Ressalte-se, contudo, no Quadro 2, a ocorrência de importante alteração na classificação das UBS: a tipologia 3 (restrita), que apresenta insuficiência de equipamentos e equipes de saúde, teve decréscimo de 26,7% para 17,1%, enquanto a tipologia 4 (regular), que possui equipes de saúde da família e saúde bucal que, com uma melhora da infraestrutura, alcançariam o padrão de referência, teve acréscimo de 51,79% para 76,8%. Essa evolução na classificação da tipologia reflete maior disponibilização de equipamentos e de equipes de saúde, não disponíveis na tipologia 3 (restrita). Importa evidenciar como se dá a distribuição das UBS tipos 1 (reprovada) e 2 (rudimentar), nos ciclos 1 e 2, tomando-se por base os estados da federação e levando-se em conta as regiões geográficas do país.

Quadro 2
Evolução da tipologia Unidade Básica de Saúde, gastos na atenção básica e tipologia - Brasil.

Os resultados corroboram outros estudos, mesmo com metodologias diferentes, no sentido de que a alocação de mais recursos por si só não é suficiente2525 World Bank. World Development Report 2004: making services work for poor people. London, Oxford University Press [acessado 2019 jul 12]; 10(1). World Bank; 2004. Disponível em: www.worldbank.org.
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,2626 Maynard A, Bloor K. Our certain fate: rationing in health care. London: Office of Health Economics; 1998.. A análise dos gastos anuais per capita por municípios evidenciou municípios que alocam valores inferiores a R$50,00 e outros que alocam valores superiores a R$ 3.500,00. A análise da média de gastos por estado e da média dos escores demonstrou que nem sempre o estado que apresenta a maior média de gastos na AB tem a maior média de escore final, a exemplo de Pará, Pernambuco, Paraná e São Paulo, o que pode ser visto no Quadro 2, que expõe a comparação da média de gastos alocados na AB por município e o escore final, para o ciclo 2. A média dos escores do Pará se aproxima de São Paulo, enquanto a média de Pernambuco é ainda maior, embora o montante alocado por aqueles estados não chegue a 1/3 do valor médio alocado nos municípios de São Paulo, evidenciando que há aspectos relacionados à governança que precisam ser considerados.

Na infraestrutura da AB e na distribuição de recursos não são cumpridos os mandamentos definidos pela Constituição de 1988 para a perfeita coordenação e integração dos sistemas de saúde, como preconiza a governança orçamentária2727 Ostrom E. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge university press; 1990.

28 Agrawal A. Sustainable governance of common-pool resources: context, methods, and politics. Annu Rev Anthropol 2003; 32(1):243-62.
-2929 Barcelos CLK. Governança orçamentária e mudança institucional: o caso da norma geral de direito financeiro - Lei n.º 4.320/64 [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2012.. Observou-se que a AB não facilita o acesso universal ao diversificado escopo de serviços, de forma coordenada e contínua, mediante a aplicação eficiente de recursos e a prestação de cuidados de alta qualidade, que contribuem para a equidade em saúde3030 Kringos DS, Boerma WG, Bourgueil Y, Cartier T, Hasvold T, Hutchinson A, Lember M, Oleszczyk M, Pavlic DR, Svab I, Tedeschi P. The European primary care monitor: structure, process and outcome indicators. BMC Fam Pract 2010; 11(1):81., pois uma AB equipada com UBS dos tipos 1 e 2 não está habilitada a coordenar os serviços de saúde da região e a resolver os problemas da população adscrita.

Observa-se que a Figura 1 evidencia a tipologia da infraestrutura por meio da distribuição da média dos escores dos municípios por estado, indicando que a região Norte, de maior área geográfica e população dispersa espacialmente, apresenta os piores índices socioeconômicos, com a pior média de escore por estado (inferior a 0,85), enquanto as regiões Centro-Oeste e Sul apresentam as melhores médias por estado (superiores a 0,85).

Figura 1
Distribuição da tipologia por média de escore das UBS por estado (ciclo 2).

A partir dos resultados acerca da infraestrutura, caracteriza-se a relação entre a estrutura de gastos (variáveis de despesas) e a tipologia da infraestrutura básica local de saúde (UBS) por meio da análise de correspondência (AC) entre as variáveis e da análise de regressão quantílica (RQ).

A análise das evidências com a variável população revelou comportamento homogêneo dos dados observados tanto no ciclo 1 (2012) como no ciclo 2 (2014), permitindo-se afirmar que: municípios com menor porte populacional gastam mais recursos per capita com a AB, têm maiores gastos per capita federais na AB e maiores gastos per capita com recursos próprios dos municípios na AB. No entanto, possuem menores gastos federais totais per capita. Já nas variáveis de controle há evidências de menores índices de PIB, IDHM, índice de Gini de renda e mortes evitáveis de 5 a 74 anos. No entanto, no ciclo 1 (2012) não foi comprovada relação entre tipologia e população do município.

Relacionado aos resultados com a variável tipologia, a análise das evidências revelou comportamento homogêneo, porém em menor proporção de variáveis observadas, ao se comparar o ciclo 1 (2012) com o ciclo 2 (2014), a saber: os municípios com tipologias inferiores possuem menores gastos federais per capita na AB, menores gastos totais per capita com saúde e menores gastos federais totais per capita com saúde.

No entanto, as seguintes relações só se verificaram no ciclo 1: menores gastos per capita com recursos próprios na saúde e menores gastos per capita com pessoal e encargos. Quanto às variáveis de controle, possuem índices menores de PIB e IDHM no ciclo 1.

Ao se discutir os resultados apresentados por meio da análise de correspondência, verifica-se a convergência para a hipótese diretriz, de que o maior dispêndio de recursos financeiros per capita leva a uma melhor infraestrutura dos equipamentos locais de saúde. A convergência dos resultados com a hipótese é corroborada pelas correspondências entre a tipologia e as variáveis representativas dos gastos em saúde realizados nos municípios (gastos federais na AB, gastos federais totais em saúde e gastos totais em saúde), que evidenciam que as tipologias reprovada (1) e rudimentar (2) estão relacionadas com menores gastos per capita.

Acerca do comportamento dos gastos em relação ao porte populacional, os gastos totais federais per capita em saúde são menores em municípios de menor porte, o que se explica pela predominância da AB nesses municípios. Quanto à tipologia, municípios com tipologias reprovada (1) e rudimentar (2) possuem menores gastos federais na AB, aspecto que merece atenção do governo federal, responsável pelas ações estratégicas, principalmente quando se observa a necessidade de combate às desigualdades regionais e à pobreza, como define a Constituição Federal.

Os resultados evidenciados pela variável gastos totais municipais (recursos próprios) são coerentes com os apresentados em estudo anterior1010 Varela PS, Farina MC. Relação entre gastos com saúde, índice de esforços da atenção básica em saúde e tipologia da estrutura do sistema de saúde dos municípios do estado de São Paulo. Rev Adm Mackenzie 2007; 8(3):153-172., pois os municípios com maior índice de esforço em AB apresentaram maior valor de despesa com recursos próprios por habitante e correspondiam àqueles com estruturas mais simples de atendimento à saúde, o que indica investimento predominante em ações de promoção e prevenção da saúde. De certa forma, corroboram com a literatura ao defender que os serviços públicos alcancem os mais pobres. A questão é: como os governos podem garantir a distribuição equitativa dos benefícios dos serviços públicos a quem deles realmente necessita? Assim, dois fatores desempenham papel importante: (1) quando o investimento é colocado em serviços básicos, como cuidados básicos de saúde e educação primária, o número de pobres beneficiados aumenta consideravelmente; e (2) quando o investimento é usado para fornecer níveis mais altos de serviço, como atenção à saúde de alta complexidade, o número de pobres que se beneficia cai. A distribuição de gastos no nível primário é muito menos desigual3131 Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde; 6-12 de setembro de 1978; Alma-Ata; USSR. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. Declaração de Alma-Ata; Carta de Ottawa; Declaração de Adelaide; Declaração de Sundsvall; Declaração de Santafé de Bogotá; Declaração de Jacarta; Rede de Megapaíses; Declaração do México. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001. p. 15..

Ao observar a alocação de recursos e a infraestrutura, a situação é diferente, pois as regiões com condições socioeconômicas inferiores têm infraestrutura também inferior. Na CF/883232 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988., em seu artigo 196, a saúde foi inscrita como direito de todos e dever do Estado, que deve ser “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Portanto os direitos à saúde e à justiça social se configuram como direitos sociais garantidos na Carta Magna, um direito público subjetivo e um impostergável dever do Estado3333 Noronha JC, Pereira TR. Princípios do Sistema de Saúde Brasileiro. In: Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde [página na Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/MS/SAE-PR; 2013. [acessado 2019 jul 12]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/98kjw/pdf/noronha-9788581100173.pdf.

No entanto, a principal questão não é falta de recursos nem insuficiência no aumento de gastos públicos, pois é difícil encontrar relações consistentes entre aumento nos gastos e resultados que demonstrem a importância de se alocar mais recursos para indivíduos de baixa renda1515 World Bank. Making services work for poor people: world development report 2003. Washington (DC): World Bank; 2003..

Pesquisas apontam que os sistemas de saúde em países de baixa renda com forte orientação para cuidados básicos tendem a ser mais pró-pobres, equitativos e acessíveis. No nível operacional, a maioria dos estudos que comparam serviços que podem ser entregues, como na AB ou os especializados, mostra que o uso de médicos de cuidados básicos reduz os custos e aumenta a satisfação do usuário, sem efeitos adversos na qualidade dos cuidados ou nos resultados do usuário77 Atun R. What are the advantages and disadvantages of restructuring a health care system to be more focused on primary care services. Copenhagen: World Health Organization Publisher; 2004. Disponível em: http://www.euro.who.int/document/e82997.pdf.. As constatações, embora pareçam contraditórias, dependem do contexto e das condições em que são analisadas. Por exemplo, se em países com pouco ou elevado nível de desenvolvimento, se em países com boa ou fraca estrutura de governança pública.

Ao conjugar os resultados da análise de correspondência aos resultados sobre gastos e infraestrutura, na regressão quantílica se verificou que municípios de regiões com menores índices econômicos e sociais recebem menos recursos per capita e possuem, proporcionalmente, mais unidades nas tipologias reprovada (1), rudimentar (2) e restrita (3), o que reflete, ainda mais, as desigualdades socioeconômicas.

Portanto, por meio da análise de correspondência evidenciou-se a relação positiva entre gastos e tipologia da infraestrutura, porém há outra questão relevante: verificar como se dá essa relação nos municípios, considerando-se os objetivos definidos na CF/88.

A análise por meio da regressão quantílica estabeleceu a relação entre variáveis representativas de gastos e a tipologia da infraestrutura básica local de saúde. Verificou-se o sentido de cada relação, a magnitude e a significância, com estimação dos coeficientes para os quantis 0,10, 0,50 e 0,95.

Nessa etapa, obtiveram-se resultados para cada quantil de interesse ao fornecer informações sobre mudanças na distribuição da variável dependente, o que facilitou a interpretação dos resultados para um conjunto de dados que apresentem assimetria, como a variável escore_final, com possibilidade de análise da relação em regiões centrais da distribuição (por meio da mediana) e nas caudas da distribuição condicional, neste caso as tipologias 1, 2 e 52222 Koenker R. Quantile regression. New York: Cambridge University Press; 2005.

23 Hao L, Naiman DQ. Quantile regression. California: Sage Publications; 2007.
-2424 Santos PM. Regressão quantílica aplicada ao estudo de seleção genômica para características assimétricas de suínos [dissertação]. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa; 2016.. Foram analisados os efeitos das variáveis representativas de gasto sobre o escore final.

Para facilitar o entendimento dos efeitos das variáveis de gastos sobre a tipologia, foram sintetizados os resultados referentes a cada variável por quantil, excluindo-se os resultados não significativos (p-valor acima de 10%). O Quadro 3 evidencia que os gastos, em geral, influem positivamente na tipologia, com resultado semelhante ao da AC, pois todos os coeficientes com significância (p-valor menor que 10%) apresentaram sinal positivo. A hipótese diretriz pode ser considerada convergente com os resultados apresentados para as variáveis despesas correntes, despesas administrativas, despesa federal na AB, despesa federal total em saúde e despesa total em saúde, considerando-se as variáveis que apresentaram coeficientes com significância (p-valor menor que 10%) no quantil 0,5 nos dois ciclos.

Quadro 3
Efeitos das variáveis de gastos e de controle sobre a tipologia da infraestrutura de unidades básicas de saúde - Brasil.

Assim, há evidência entre as variáveis de gasto e infraestrutura de maneira positiva, o que converge para o entendimento de que a alocação de mais recursos leva à melhor infraestrutura. No entanto, há grandes disparidades regionais e sociais no Brasil, refletindo-se nas políticas de saúde, especialmente na AB, observando-se que, nas regiões Norte e Nordeste, há proporções maiores de estruturas nas tipologias reprovada (1), rudimentar (2) e restrita (3).

Constatou-se também que as variáveis referentes a gastos se relacionam à infraestrutura, mas em países em desenvolvimento, onde as instituições orçamentárias são deficientes, o aumento de gastos, exclusivamente, não garante melhoria nos resultados66 Filmer D, Hammer J, Pritchett L. Health policy in poor countries: weak links in the chain [Research working paper nº WPS 1874]. Washington (DC): World Bank; 1997. Disponível em: http://documents.worldbank.org.,77 Atun R. What are the advantages and disadvantages of restructuring a health care system to be more focused on primary care services. Copenhagen: World Health Organization Publisher; 2004. Disponível em: http://www.euro.who.int/document/e82997.pdf.,1515 World Bank. Making services work for poor people: world development report 2003. Washington (DC): World Bank; 2003.. Outros trabalhos demonstram que, em países onde há boa governança e as instituições orçamentárias são bem definidas ou efetivadas, há grandes possibilidades de os gastos se relacionarem diretamente aos resultados88 Rajkumar AS, Swaroop V. Public spending and outcomes: does governance matter? J Dev Econ 2008; 86(1):96-111.,1515 World Bank. Making services work for poor people: world development report 2003. Washington (DC): World Bank; 2003.,1818 Banco Mundial. Governança no sistema único de saúde (SUS) do Brasil: melhorando a qualidade do gasto público e gestão de recursos. Brasília: Banco Mundial; 2007. p. 42..

Os resultados desta investigação corroboram outros estudos1717 Ferraz OL, Vieira FS. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Rev Bras Ci Soc 2009; 52(1):223-51.,1818 Banco Mundial. Governança no sistema único de saúde (SUS) do Brasil: melhorando a qualidade do gasto público e gestão de recursos. Brasília: Banco Mundial; 2007. p. 42., ao constatarem que, mesmo alocando mais recursos que outros países, o Brasil possui indicadores de resultados piores nas políticas de saúde, o que converge para o posicionamento de autores que defendem que a governança orçamentária pode exercer papel fundamental na melhoria da gestão e, consequentemente, na melhor alocação de recursos em saúde, sobretudo na infraestrutura da AB.

Observe-se ainda que essa infraestrutura não deixa de refletir a alocação de recursos: há municípios que alocam menos de R$ 50,00 per capita anuais na AB, ao passo que outros alocam valores superiores a R$ 3.500,00. Em 2014, a média alocada por municípios do Pará foi de R$ 217,00, enquanto a média apresentada por Goiás foi de R$ 752,00 e a de São Paulo foi de R$ 722,00.

Análise do comportamento das variáveis de controle

Em suma, evidenciou-se que no ciclo 1 o tamanho da população está associado negativamente à tipologia, o IDS está associado positivamente à tipologia, o índice de mortes evitáveis de 0 a 4 anos está associado positivamente à tipologia, ao passo que o índice de mortes evitáveis de 5 a 74 anos está associado negativamente (Quadro 3). Ressalta-se que o PIB e o índice de Gini da renda não tiveram resultados claros quando analisados em relação à tipologia.

Ao se verificar que o IDS se relaciona positivamente com a tipologia, nota-se que o desempenho da saúde segue a lógica de alocação de recursos, ou seja, onde se aloca mais recursos há melhor infraestrutura e o desempenho também é melhor.

Evidencia-se ainda que o IDHM se relaciona positivamente à tipologia, refletindo a mesma lógica do IDS, ou seja, alocam-se mais recursos onde o IDHM é melhor, o que leva a uma infraestrutura também melhor.

Embora se esperasse que os índices de mortalidade estivessem relacionados negativamente à tipologia, não é possível estabelecer relação porque esses resultados dependem de outros níveis de atenção.

Saliente-se que o artigo 17 da Lei Complementar nº 141/20123434 Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Brasília: Diário Oficial da União 2012; 16 Jan. determina que o rateio dos recursos da União vinculados às ações e serviços públicos de saúde (ASPS) e repassados aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios deve observar as necessidades de saúde da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ASPS, de forma a atender os objetivos do inciso II do § 3.º do artigo 198 da CF/883232 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988., com vistas à progressiva redução das disparidades regionais.

Pesquisas mostram que programas de cuidados básicos destinados a melhorar a saúde em populações desfavorecidas em países menos desenvolvidos conseguiram reduzir as lacunas em saúde entre as populações socialmente privadas e as mais favorecidas socialmente3535 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco; 2005.. Isso evidencia a necessidade de uma política de saúde com vistas à melhoria das condições de infraestrutura da AB, priorizando gastos do orçamento federal nas regiões com grandes desigualdades socioeconômicas.

Conclusões

Sob a perspectiva explicativa, este artigo relacionou variáveis por meio da AC e da RQ ao mostrar que “o maior dispêndio de recursos financeiros per capita leva a uma melhor infraestrutura”.

Quanto à tipologia da infraestrutura básica local de saúde nos municípios brasileiros, constatou-se que a maioria das UBS está classificada na tipologia regular (4) (51,2% no ciclo 1 e 76,8% no ciclo 2), pois essas UBS possuem equipes de saúde da família e saúde bucal que, com melhoria da infraestrutura, alcançariam o padrão de referência (5).

As correspondências entre a tipologia e as variáveis representativas dos gastos - gastos federais na AB, gastos federais totais na saúde e gastos totais em saúde - mostram que tipologias inferiores estão relacionadas a menores gastos per capita nessas variáveis e vice-versa.

De forma semelhante, os resultados da RQ tendem a ser convergentes com a hipótese diretriz para as variáveis despesas correntes, despesas administrativas, despesa federal na AB, despesa federal total e despesa total em saúde, considerando-se as variáveis que apresentaram coeficientes com significância de pelo menos 10% no quantil 0,5 nos dois ciclos.

A evidência de que as variáveis de gasto estão relacionadas à infraestrutura de maneira positiva permite entender que alocar mais recursos leva a uma melhor infraestrutura. Todavia, há grandes disparidades regionais e sociais no Brasil, o que se reflete também nas políticas de saúde, especialmente na AB. Nas regiões Norte e Nordeste são apresentadas tipologias reprovada (1), rudimentar (2) e restrita (3).

Mais uma vez, conclui-se aqui a necessidade de melhorar a governança dos recursos da saúde, o que é evidenciado ao se verificar que as regiões com condições socioeconômicas inferiores (PIB per capita e IDHM menores) possuem infraestruturas de AB também inferiores.

Assim, observou-se que o IDHM está relacionado positivamente à tipologia, refletindo a mesma lógica do desempenho da saúde (IDS), alocando-se mais recursos onde o IDHM é melhor. Nesse contexto, é importante salientar as pesquisas que mostram programas de cuidados básicos destinados a melhorar a saúde em populações desfavorecidas em países menos desenvolvidos que conseguiram reduzir as lacunas em saúde entre as populações socialmente privadas e as mais favorecidas.

Constata-se, no entanto, que mesmo alocando mais recursos que outros países, o Brasil possui indicadores de resultados piores do que nações que alocam menos recursos nas políticas de saúde, o que converge para o posicionamento dos defensores da governança orçamentária, haja vista que essa pode exercer papel fundamental na melhoria da gestão e, consequentemente, na melhor alocação de recursos em saúde.

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  • Errata

    Ciência & Saúde Coletiva
    volume 26 suplemento 2 - 2021
    No artigo Retrato da atenção básica no Brasil: gastos e infraestrutura em municípios brasileiros/A portrait of Brazilian primary care: municipal expenditure and infrastructure in Brazilian municipalities, DOI: 10.1590/1413-81232021269.2.37112019
    p. 3403,
    onde se lê:
    Figura 1
    Distribuição da tipologia por média de escore das UBS por estado (ciclo 2).
    leia-se:
    Figura 1
    Distribuição da tipologia por média de escore das UBS por estado (ciclo 2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2019
  • Aceito
    20 Abr 2020
  • Publicado
    22 Abr 2020
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br