Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas

Romeu Gomes Sobre o autor

Resumo

O estudo objetivou validar agendas reivindicadas por representantes de grupos homossexuais voltadas para a atenção integral à saúde de gays e lésbicas. Para isso, foi elaborada uma matriz de agendas de saúde baseada na consulta a acervo de outro estudo, composto por 25 narrativas de representantes de 16 grupos de dez capitais brasileiras. As agendas foram consideradas validadas a partir da média de pontuações igual ou superior a sete e desvio padrão igual ou inferior a dois. As agendas validadas se relacionaram às seguintes temáticas: violência física ou psicológica; atenção às lésbicas relacionada aos cânceres de útero e mama; saúde mental; capacitação de profissionais de saúde; prevenção e atenção voltadas para a Aids; reprodução assistida para lésbicas; atenção a gays relacionada ao atendimento urológico e proctológico; desenvolvimento de materiais informativos sobre a saúde em geral; e informação e tratamento das infecções sexualmente transmissíveis. Conclui-se que os movimentos de gays e lésbicas podem ser atores importantes no âmbito da saúde coletiva, não só indicando pautas a serem consideradas nas políticas e nos planejamentos voltados para a saúde de seus integrantes, podem também ser mediadores entre os profissionais de saúde e os homossexuais que buscam os cuidados desses profissionais.

Palavras-chave:
Agendas de saúde; Lésbicas; Gays; Movimentos sociais

Introdução

O presente trabalho teve como escopo a agenda de saúde voltada para gays e lésbicas. Em relação à palavra “agenda”, Kingdon11 Kingdon JW. Agendas, alternatives, and public policies, update edition, with an epilogue on health care. Harlow: Pearson Education Limited; 2014. observa que ela pode ter vários sentidos, entre eles, destacam-se: (a) assunto anunciado para uma reunião; (b) tipo de plano que um organizador deseja que os participantes adotem; e (c) conjunto de propostas que se inter-relacionam de forma coerente. Frente aos inúmeros usos dessa palavra, o mencionado autor define agenda como uma lista de assuntos ou problemas que têm a atenção, em determinado momento, por pessoas dentro de governos ou fora deles.

Com relação aos atores externos ao governo, assumindo que as agendas são compostas por problemas, soluções, participantes e oportunidades, Joachim22 Joachim JM. Agenda setting, the UM and NGOs: gender violence and reproductive rights. Washington, D.C.: Georgetown University Press; 2007. sustenta que, ao chamar a atenção para suas questões de forma estratégica, as organizações não governamentais podem influenciar o conteúdo das agendas emergentes.

Já em relação às segundas expressões do escopo do artigo, Gould33 Gould D. Rock the boat don't rock the boat, baby: ambivalence and the emergence of militant AIDS activism. In: Goodwin J, Jasper MJ, Polletta F. Passionate politics: emotions and social movements. Chicago: The University of Chicago Press; 2001. p. 135-174. observa que os termos “lésbicas” e “gays” - apesar de obscurecerem outras minorias sexuais que costumam ser incluídas nessas categorias - têm sido usados comumente na contemporaneidade em que seus estudos foram empreendidos. Gould33 Gould D. Rock the boat don't rock the boat, baby: ambivalence and the emergence of militant AIDS activism. In: Goodwin J, Jasper MJ, Polletta F. Passionate politics: emotions and social movements. Chicago: The University of Chicago Press; 2001. p. 135-174. considera ainda que a nomeação de membros de um grupo social é algo imperfeito. Neste trabalho, a opção pelo emprego de gay e lésbica, em vez de homossexuais masculinos e homossexuais femininos, justifica-se, de um lado, pelo fato de ser empregada por vários grupos brasileiros que se constituem a partir de propósitos comuns e representam os interesses desses sujeitos. Por outro lado, a política nacional que se volta para a saúde de um coletivo que envolve esses sujeitos também utiliza tais expressões44 Brasil. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa; 2013..

Os gays e as lésbicas aqui focalizados são os cisgêneros. Diferentemente dos transgêneros (pessoas cujo sexo atribuído no nascimento é incongruente ou diferente de sua identidade de gênero atual), cisgêneros são pessoas cuja identidade de gênero e expressão correspondem ao sexo atribuído no nascimento55 Reisner SL, Biello K, Rosenberger JG, Austin SB, Haneuse S, Perez-Brumer A, Novak DS, Mimiaga MJ. Using a two-step method to measure transgender identity in Latin America/the Caribbean, Portugal, and Spain. Arch Sex Behav 2014; 43(8):1503-14.,66 Tebbe EA, Moradi B, Ege E. Revised and abbreviated forms of the genderism and transphobia scale: tools for assessing anti-trans prejudice. J Couns Psychol 2014; 61(4):581-592..

Em alguns países, os movimentos de gays e lésbicas conseguiram pautar agendas na área da saúde, principalmente por conta da articulação com outros movimentos, como o ativismo contra a Aids e o movimento feminista. A articulação de grupos de gays e lésbicas com outras identidades de gênero, a exemplo dos bissexuais e dos transgêneros, contribuiu também para que se fortalecesse a mobilização voltada para a defesa dos direitos sexuais não hegemônicos77 Gomes R. Participação dos movimentos sociais na saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2021; 26(6):2291-2300.. Rodrigues e Hernandes88 Rodrigues JPR, Hernandez MC. O arco-íris atravessando frestas: a ascensão dos debates sobre direitos LGBT na ONU. Rev Bras Cienc Pol 2020; 32:207-248. observam que, mesmo em países sem leis discriminatórias, os direitos da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) são violados, indo desde atitudes discriminatórias até assassinatos. Segundo os autores, frente a esse cenário são necessários debates acerca de uma agenda de pesquisa sobre os direitos LGBT nas relações internacionais. A necessidade desses debates reforça que o alcance dos direitos sexuais, em geral, e a atenção às necessidades de saúde, em específico, continuam sendo um desafio para movimentos LGBT em inúmeras partes do planeta77 Gomes R. Participação dos movimentos sociais na saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2021; 26(6):2291-2300..

Com base em uma pesquisa nacional de adultos de minorias sexuais e de gênero (SGM) que vivem nos EUA, Boynton et al.99 Boynton MH, Gilbert J, Shook-Sa BE, Lee JGL. Perceived importance of health concerns among lesbian, gay, bisexual, and transgender adults in a national, probability-based phone survey, 2017. Health Promot Pract 2020; 21(5):764-768. observam que, em pleno século XXI, pouco se sabe sobre como lésbicas, gays e outras minorias sexuais e de gênero percebem e enfrentam seus problemas de saúde, e os autores consideram que o foco dado ao HIV/Aids, ainda que seja importante, de certa forma pode comprometer os esforços para se dar atenção a outros problemas de saúde vividos por essas minorias sexuais. Reforçando em alguma medida esse pensamento, Trevisan1010 Trevisan JS. Homocultura & política homossexual no Brasil: do passado ao porvir. In: Costa H, Bento B, Garcia W, Inácio E, Peres WS, organizadores. Retratos do Brasil homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial; 2010. p. 49-59. considera que, no que diz respeito à saúde, faz-se necessário avançar para além de programas antiaids para que a comunidade homossexual seja atendida.

Desde a década de 80 do século passado, o Ministério da Saúde do Brasil conta com a parceria desses atores sociais para o enfrentamento da mencionada epidemia. Outras questões de saúde foram objeto de discussões entre os movimentos sociais e o Ministério da Saúde, até que, em 2013, consolidou-se a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política LGBT), que valoriza a participação desses movimentos na atenção à saúde desse amplo espectro de minorias sexuais44 Brasil. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa; 2013.. Nesse documento legal, várias diretrizes que foram estabelecidas podem ser entendidas como uma agenda nacional para a atenção à saúde da população LGBT.

Bezerra et al.1111 Bezerra MVR, Moreno CA, Prado NMBL, Santos AM. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saude Debate 2019; 43(esp. 8):305-323. observam que, ainda que tenha havido muitas conquistas por causa da institucionalização de políticas públicas voltadas para a população LGBT, principalmente no sentido de ampliar sua visibilidade, o debate sobre temas relevantes para essa população tem recebido pouca atenção em periódicos da área de saúde pública.

A partir dessas considerações iniciais, com o objetivo de contribuir para o debate acerca da saúde LGBT, este artigo busca validar as agendas de saúde impulsionadas por representantes de grupos de gays e lésbicas no Brasil.

Material e método

Este trabalho se baseou em acervo de um estudo que objetivou analisar narrativas de representantes de grupos de gays e lésbicas sobre a saúde1212 Gomes R. Narrativas do movimento homossexual brasileiro sobre a saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(2):555-565., com o apoio financeiro do CNPq, e que integra a mesma pesquisa da qual faz parte este trabalho. Tal acervo abrange 25 narrativas de 16 grupos, referente a dez capitais de estados das cinco regiões brasileiras (Quadro 1), coletadas no período de fevereiro de 2019 a fevereiro de 2020. A pesquisa mais ampla foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do IFF/Fiocruz (CAAE: 88058518.5.0000.5269).

Quadro 1
Denominações dos grupos e suas localizações.

Inicialmente, foram relidas todas as narrativas para serem identificadas agendas de saúde, ou seja, identificação - com base no conceito de Kingdon11 Kingdon JW. Agendas, alternatives, and public policies, update edition, with an epilogue on health care. Harlow: Pearson Education Limited; 2014. - de assuntos ou problemas que, na opinião dos autores das narrativas, deveriam ser levados em conta na atenção à saúde de gays e lésbicas. Havia assuntos que apareciam em várias narrativas. Não foi encontrado um assunto específico que só figurasse em uma narrativa. Na edição das agendas, assuntos correlatos foram editados com uma denominação mais abrangente, e quando necessário, manteve-se entre parênteses os sentidos a ela referentes. Assim, as agendas foram redigidas com uma linguagem direta e clara, sem perder os sentidos presentes nas narrativas.

Em seguida, foi elaborada uma matriz de agendas de saúde voltada para lésbicas e gays que deveria ser atendida pelo Sistema Único de Saúde e ser submetida à validação dos autores das narrativas.

Em setembro de 2020, foram enviadas aos 25 representantes dos grupos a matriz de agendas com uma breve introdução explicativa, por meio de correio eletrônico. Nessa introdução, destacavam-se três informações. A primeira era uma solicitação para que os representantes pontuassem cada agenda com notas de zero a dez, sendo zero para agendas que não fossem nada importantes e dez para aquelas consideradas muito importantes na percepção deles. A segunda informação destacava que - independentemente de ser homem ou mulher - os narradores/as poderiam atribuir pontuações às agendas tanto voltadas para lésbicas como para gays. Por último, era informado que poderiam ser acrescentadas outras agendas que não constavam no quadro. Para isso, havia espaços em branco na matriz.

Após um mês, verificou-se que o retorno de matrizes pontuadas não chegava a um terço do conjunto dos representantes. Frente a isso, contatos telefônicos foram realizados e ocorreu novo envio por meio de WhatsApp da matriz a ser pontuada. Não se conseguiu nenhum contado com três representantes. Assim, no início de novembro de 2020, após dois meses do início da etapa de envio da matriz, resolveu-se finalizar a primeira rodada de validação.

Após o recebimento das matrizes pontuadas, utilizando critérios de Souza et al.1313 Souza LEPF, Silva LMV, Hartz ZM. Conferência de consenso sobre a imagem-objetivo da descentralização da atenção a` saúde no Brasil. In: Hartz ZMA, Silva LMV, organizadores. Avaliação em: dos modelos teóricos a` prática de programas e sistemas de saúde. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA, Fiocruz; 2005. p. 65-102. para a obtenção de consensos, foram calculadas as médias das pontuações para cada agenda e seus respectivos desvios padrões (DM). Por meio dessas medidas, foram consideradas como consenso as agendas que obtiveram médias iguais ou superiores a sete e DM iguais ou inferiores a dois. Caso houvesse a inserção de novas agendas, haveria outra rodada de validação com essas ideias e sem as ações que representavam dissenso.

Resultados

Dos 22 representantes que confirmaram participação, 13 enviaram suas matrizes pontuadas. O importante é que, com os 13 representantes que aderiram à proposta de validação, conseguiu-se assegurar a presença das cinco regiões brasileiras.

Evans e Mathur1414 Evans JR, Mathur A. The value of online surveys. Internet Res 2005; 5(2):195-219. observam que os levantamentos realizados on-line costumam obter taxas de respostas menores em comparação com outras formas de levantamentos. Sobre essa constatação, os mencionados autores consideram que deve haver mais investigações para que se explore esse fato.

Ao ter contato com as matrizes pontuadas recebidas, observou-se que apenas um dos 13 representantes dos grupos acrescentou uma agenda de saúde na matriz pontuada por ele. No entanto, o assunto era sobre o atendimento de saúde ao coletivo LGBT em geral, sem especificar uma agenda para lésbicas ou gays. Também se verificou que em nenhuma agenda havia dissenso entre o grupo de representantes. Dessa forma, não foi necessário elaborar uma nova versão da matriz para ser validada novamente pelo grupo.

Todas as agendas da matriz foram validadas, com média igual ou superior a sete e DP igual ou inferior a dois (Tabela 1). As agendas um (Combate à violência física ou psicológica voltada para pessoas homossexuais) e dois (Atenção às especificidades das lésbicas no atendimento ginecológico, envolvendo prevenção e tratamento relacionados ao câncer uterino e ao câncer de mama) obtiveram consenso absoluto entre os representantes tanto de gays quanto de lésbicas.

Tabela 1
Matriz de agendas de saúde voltadas para lésbicas e gays que deveriam ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde.

O fato de todas as agendas terem sido validadas com médias altas (igual ou acima de 9,8) e DP baixos (igual ou menor a 0,5) pode ser explicado em razão de o conteúdo delas se basear nas narrativas dos próprios representantes dos grupos que participaram da validação. Por sua vez, esses grupos, embora se situassem em diferentes estados das cinco regiões do país, eram, à época, integrantes da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Com base no conceito de tipicidade de Schutz1515 Schutz A. El problema de la realidade social. Buenos Aires: Amorrurtu; 2008., o fato de esses grupos estarem alinhados em uma associação em torno de saberes e práticas vividos pode significar que suas experiências coletivas funcionaram como um esquema de referência.

Discussão

Sobre a agenda de número um, observou-se que, nas narrativas dos representantes dos grupos, ela se afigurava como uma reivindicação que sempre vinha acompanhada da necessidade de, além de se olhar para gays e lésbicas, contemplar os travestis e os transexuais no sentido de envolver esses atores nas ações de combate à violência.

A ampliação do foco dessa agenda se relaciona ao posicionamento de Ramos e Carrara1616 Ramos S, Carrara S. A constituição da problemática da violência contra homossexuais. Physis 2006; 16(2):185-205.. Esses autores defendem a necessidade de se desenvolver um esforço maior, no interior do movimento LGBT, para incluir, além do movimento homossexual, as organizações de travestis e transexuais, pois esses grupos são os que mais vivenciam - de forma mais crítica - a violência.

A violência é um problema recorrente para os homossexuais. No Brasil, no período de 2015 a 2017, foram registradas 24.564 notificações de violência contra a população LGBT, sendo que 57,6% se relacionavam a homossexuais, das quais 32,6% lésbicas e 25% gays1717 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(supl. 1):e200006.supl.1..

Apesar de haver, desde 2004, o Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGTB e Promoção da Cidadania Homossexual1818 Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD). Brasil Sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde; 2004., só em 13 de junho de 2019 o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a omissão legislativa, tipifica as condutas homofóbicas e transfóbicas na Lei de Racismo. Essa decisão da alta corte judicial, de certa forma, relaciona-se ao pleito da agenda em questão por parte dos representantes dos grupos entrevistados1919 Supremo Tribunal Federal (STF). STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. 2019. [acessado 2021 ago 12]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNot...
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Em relação à agenda dois, voltada para a atenção às especificidades das lésbicas, envolvendo prevenção e tratamento dos cânceres de útero e de mama, encontra-se muito ligada às agendas quatro (Capacitação de profissionais de saúde para que possam lidar melhor com as necessidades de saúde específicas de lésbicas e gays) e sete (Atenção às especificidades dos gays no atendimento urológico e proctológico, envolvendo a prevenção e o tratamento de cânceres). Essas três agendas, direta ou indiretamente, relacionam-se à capacitação de profissionais de saúde, sintetizados principalmente na figura do médico.

Estudo2020 Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entrem dicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180279. realizado com médicos, no âmbito da Estratégia Saúde da Família, em dois municípios de Minas Gerais reforça a pertinência de se pautar como agenda a capacitação desses profissionais para atender ao coletivo LGBT. Na análise dos depoimentos dos entrevistados, os autores identificaram três discursos médicos que podem promover efeitos nos cuidados de saúde voltados a esse coletivo. O primeiro é o “Discurso da não diferença”, cujo conteúdo revela uma contradição não percebida, uma vez que, com a premissa de uma suposta igualdade, minimiza a diferença e tem como um dos efeitos a negação do outro. O segundo é o “Discurso do não saber”, que se focaliza no não saber quais as demandas da população LGBT. Por último, o terceiro, denominado pelos autores como “Discurso de não querer”, consiste na tentativa de justificar a ausência de integrantes do coletivo LGBT nos serviços de saúde ou por conta de decisões individuais, ou por haver necessidades específicas de saúde. Os autores concluem que esses três discursos “são potencializadores do silenciamento de questões envolvendo as condições de saúde da população LGBT, afastando-a do cuidado em saúde integral, equânime e universal”2020 Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entrem dicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180279.. Os achados desse estudo servem para ilustrar as dificuldades ou barreiras que gays e lésbicas enfrentam ao tentar acessar os serviços de saúde ou ao serem atendidos por profissionais de saúde.

Especificamente em relação à saúde mental (agenda número três), as reivindicações dos representantes dos grupos se voltam para a necessidade de se promover apoio a lésbicas e gays para viverem sua orientação sexual e enfrentarem as discriminações que sofrem por conta de suas identidades. Meyer2121 Meyer IH. Resilience in the study of minority stress and health of sexual and gender minorities. Psychol Sex Orientat Gend Divers 2015; 2(3):209-2013. observa que pesquisas apontam que, em diferentes populações, desde a infância as pessoas costumam demonstrar resiliência diante do estresse e da diversidade. No entanto, segundo o autor, minorias sociais, como a população LGBT, podem vivenciar estressores específicos adicionais aos estressores cotidianos. Sobre o estresse de minoria (EM), ele destaca duas importantes observações. A primeira se refere à importância de se compreender a resiliência como parceira na cadeia causal do estresse à doença nas pesquisas em saúde LGBT. A segunda observação diz respeito ao fato de haver um contínuo entre resiliência individual e comunitária, sendo importante reconhecer a importância da resiliência da comunidade no contexto do estresse das minorias. De certa forma, os grupos que envolvem o coletivo LGBT podem exercer um papel fundamental em termos de resiliência comunitária.

A prevenção e a atenção à Aids (agenda número cinco), com alta média de validação, continuam figurando como agenda importante para os representantes dos grupos homossexuais. Há anos que a Aids não se associa mecanicamente à homossexualidade. Segundo Barp e Mitjavila2222 Barp LFG, Mitjavila MR. O reaparecimento da homossexualidade masculina nas estratégias de prevenção da infecção por HIV: reflexões sobre a implementação da PrEP no Brasil. Physis 2020; 30(3):e300319., desde os anos 1990, os métodos de prevenção contra a Aids passaram a ser disponibilizados a todos os públicos nos serviços especializados em saúde, ainda que materiais informativos e campanhas de conscientização tivessem, ao longo dos anos, um direcionamento a homossexuais masculinos.

A agenda cinco se concentra na informação e conscientização sobre prevenção e vida com HIV. A informação deve abranger tanto métodos tradicionais - como uso e teste de preservativos - quanto novas estratégias - como PrEP e PEP.

Em reforço à permanência da agenda da Aids na contemporaneidade, pode ser citado que a 25ª edição da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, ocorrida em junho de 2021, uma das maiores paradas do gênero no país, teve como tema “HIV/Aids: Ame + Cuide + Viva +”2323 Bitar R. 25ª Parada do Orgulho LGBT+ de SP acontece neste domingo pela internet; HIV é tema desta edição. 2021 jun 6. [acessado 2021 out 29]. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/06/25a-parada-do-orgulho-lgbt-de-sp-acontece-neste-domingo-pela-internet-hiv-e-tema-desta-edicao.ghtml
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/notici...
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No que se refere à garantia da reprodução assistida para as lésbicas que desejam ter filhos (agenda seis), os representantes dos grupos enfatizam tal direito porque entendem que as lésbicas encontram dificuldades para a obtenção desse direito no âmbito dos serviços de saúde públicos. Segundo Machin e Couto2424 Machin R, Couto MT. "Fazendo a escolha certa": tecnologias reprodutivas, práticas lésbicas e uso de banco de sêmen. Physis 2014; 24(4):1255-1274., no cenário em que se considera os casais heterossexuais como os “legítimos” no que diz respeito ao uso das tecnologias reprodutivas, as aspirações de lésbicas a tais tecnologias “desafia preceitos socialmente estabelecidos sobre a importância e a posição da figura paterna na família e as regras relativas ao intercurso sexual na reprodução” (p. 1256).

As agendas 8 e 9 abordam a importância de informações especificamente relacionadas a doenças sexualmente transmissíveis e material informativo sobre preocupações gerais de saúde de gays e lésbicas. A informação, seja na forma de materiais específicos, conversas informais ou na internet e nas redes sociais, cumpre duas funções inter-relacionadas que podem ser inferidas das narrativas. A primeira delas é de ordem estratégica para que os membros dos grupos ou gays e lésbicas não filiados a grupos possam obter maior conhecimento acerca de: seus direitos, prevenção de doenças, acesso a serviços de saúde e a formas para enfrentar discriminações e/ou preconceitos. A segunda, que se sobrepõe à primeira, tem uma dimensão política, destinada a fortalecer os membros da comunidade LGBT como cidadãos, garantindo que seus direitos não sejam privados em função de sua orientação sexual e identidade de gênero.

Os movimentos voltados para esses coletivos ou os movimentos sociais em geral podem ver na informação uma via para o fortalecimento da cidadania. Para esse empreendimento, como observam Giaretta e Di Giulio2525 Giaretta JBZ, Di Giulio GM. O papel das tecnologias de comunicação e informação (TIC) no urbano do século XXI e na emergência dos novos movimentos sociais: reflexões a partir de experiências na megacidade de São Paulo. Rev Bras Estud Urbanos Reg 2018; 20(1):161-179., o acesso à informação é uma das condições fundamentais para que cidadãos exerçam um protagonismo consciente e responsável.

Considerações finais

As agendas validadas por representantes de grupos de gays e/ou lésbicas apontam para temas que são reiteradamente objetos das ações reivindicatórias dos grupos em geral, como a Aids e a violência, mas também trazem outros temas, como a capacitação de profissionais para melhor lidarem com as orientações sexuais que não se enquadram na heteronormatividade.

Em alguns locais em que se situavam os grupos, impulsionar determinada agenda pode significar defender a permanência de um direito ou benefícios existentes ou ampliar os benefícios para que alcancem mais pessoas necessitadas.

Um dos limites do presente estudo se volta para o fato de o processo de validação contar com pouco mais da metade dos representantes que se dispuseram a participar desse processo. Todavia, não se pode desconsiderar que os sujeitos do estudo, ainda que tenham expressado opiniões pessoais, eram porta-vozes de seus grupos, ampliando, por conseguinte, a abrangência do estudo.

Outro aspecto a ser observado diz respeito à validação da matriz de agendas com altas pontuações. Isso pode indicar que tal matriz conseguiu refletir as reivindicações ou demandas presentes no acervo das narrativas analisadas como fonte secundária deste trabalho.

Conclui-se que os movimentos de gays e lésbicas são atores potencialmente importantes na arena da saúde pública, não apenas propondo questões importantes que devem ser consideradas nas políticas públicas e ações para melhorar a atenção à saúde das pessoas LGBT, mas também promovendo a mediação entre profissionais de saúde e homossexuais que buscam serviços de saúde.

Agradecimentos

O autor agradece ao CNPq pela viabilização da pesquisa e aos representantes dos grupos visitados pela sua importante contribuição para o aprofundamento do objeto do estudo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2021
  • Aceito
    30 Dez 2021
  • Publicado
    02 Jan 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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