Configurações do ativismo da parentalidade atípica na deficiência e cronicidade

Martha Cristina Nunes Moreira Sobre o autor

Resumo

Refletimos sobre as configurações da parentalidade atípica no campo da deficiência e cronicidade. A categoria êmica atípico compõe com esses campos. As simbólicas associativas são exploradas com uma etnografia nas redes digitais e entrevistas com ativistas. Indicamos processos em curso na luta anticapacitista que dialogam com agendas da Política como Cuidado. Concluímos que a “parentalidade ativista atípica” opera com significados e aprendizados de viver e conviver com a deficiência/cronicidade/raridade na proximidade com um filho/filha, não se restringindo a rupturas biográficas.

Palavras-chave:
Ativismo; Gênero; Saúde da pessoa com deficiência; Discriminação social

Introdução

A deficiência não corresponde à doença; como característica humana, opera como marcador social da diferença, nas diversidades funcionais, em interação com as barreiras sociais, físicas e interacionais. Barreiras fundamentadas em assimetrias e opressões, jogos de poder e prestígio, operadores dos rituais de discriminação. Reconhecemos a deficiência como interdependência e o Cuidado como Política11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999.

2 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015.
-33 Gesser M, Fietz H. Ethics of Care and the Experience of Disability: An Interview with Eva Feder Kittay. Rev Estud Fem 2021; 29(2):e64987..

Neste artigo a deficiência opera como campo44 Bourdieu P. O campo político. Rev Bras Cien Pol 2011; 5:193-216. no diálogo com a cronicidade. Assumimos a deficiência desmedicalizada e afirmativa, assim como a cronicidade não sendo sinônimo de doença crônica, nem muito menos de suas derivações classificatórias. Nas fronteiras e bordas dessa interpretação, há heterogeneidade e luta com estruturas de longa duração, das quais destacamos a da corponormatividade compulsória, onde se situa a exigência de padronizar, corrigir e normalizar os corpos e rotinas de vida.

As fronteiras e bordas da deficiência, como categoria analítica, política e marcador da diferença, tensiona com a perspectiva dos adoecimentos crônicos55 Barsiglini R. Adoecimentos crônicos, condições crônicas, sofrimentos e fragilidades sociais: algumas reflexões. In: Canesqui AM, organizador. Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. São Paulo: Hucitec; 2013.

6 Moreira MCN. E quando a doença crônica é das crianças e adolescentes? In: Castellanos MEP, Trad LAB, Jorge MSB, Leitão IMTA. Cronicidade: experiência de adoecimento e cuidado sob a ótica das ciências sociais. Fortaleza: Ed. UECE; 2015.
-77 Wendell S. Unhealthy Disabled: Treating Chronic Illnesses as Disabilities. Hypatia 2001; 16(4):17-33., para alcançar a categoria de cronicidade. Reconhecer um corpo com outras funcionalidades e expressões, necessidades complexas e múltiplas, significa negociar com os diagnósticos de condições de saúde crônicas, raras e complexas, marcadas pela temporalidade estendida na convivência. A categoria cronicidade engloba, mas não se reduz ou identifica à doença/condição de saúde, nem seus tempos de curso e manifestação, agudo e/ou crônico. Evoca temporalidade na experiência corporal, nos encontros, com o que é interpretado, negociado, intersubjetivamente. A cronicidade significa viver com e gerenciar a vida e o cuidado perene, e desigualmente distribuído, como expressão e característica mediadora do viver a vida e seus custos. Cronicidade e Deficiência são categorias com fronteiras em fricção permanente, para quem vive com uma condição de saúde rara e complexa. Nesta discussão se configura a parentalidade autodenominada atípica: pais, mães, filhos e filhas, em esferas onde circulam os conhecimentos e atenção à saúde, muitas vezes especializada, e processos de escolarização. Assumimos atípico como categoria êmica do campo estudado, juntamente com outras expressões, como, neurodiversas e/ou neurodivergentes, nos perfis, postagens, debates públicos. O uso da expressão atípico/a recusa o duplo normalidade/anormalidade.

Crianças e adolescentes atípicos, na deficiência, cronicidade e raridade, têm seus corpos muito mobilizados, investigados, enunciados, por inúmeros saberes e disciplinas, desenvolvendo um conhecimento encarnado/incorporado88 Wheeler V. Lauren aged 10 years: So you are thinking of having a gastrostomy? J Child Health Care 2003; 7(2):85-88.

9 Coughlan C, Liddell B, Watson M, Blair M. Rethinking complex needs with patient and carer perspectives. Lancet Child Adolesc Health 2020; 4(10):719-720.

10 Swain K. Spare a little time. Lancet Child Adolesc Health 2021; 5(2):101-102.

11 Castro BSM, Moreira MCN, Szapiro AM. Crianças e Adolescentes com Condições Crônicas Falam Sobre Saúde. Rev Polis Psique 2018; 7(3):116-135.

12 Goodley D, Runswick-Cole K, Liddiard K. The DisHuman child. Discourse 2016; 37(5):770-784.
-1313 Moreira MCN, Macedo AD. O protagonismo da criança no cenário hospitalar. Cien Saude Colet 2009; 14(2):645-652.. O status da criança e do adolescente como sujeitos - cujos direitos remetem à responsabilidade de adultos de referência, ou na falta destes ao Estado - demarca a categoria de “proteção”. Essa categoria “proteção” evoca cosmologias que podem reduzir crianças e adolescentes com deficiência, a seres “ausentes de fala sobre o que, com eles se passa”. Reunido esse imaginário às diferenças que a deficiência e cronicidade evocam, temos ainda maior possibilidade de desconsiderá-los como sujeitos que podem expressar seus saberes e desejos, em um processo ativo de invisibilização.

Na parentalidade atípica, as funções tradicionais e esperadas de pais e mães1414 Ribeiro CR, Gomes R, Moreira MCN. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(11):3589-3598., ganham outros sentidos - de defender seus filhos/filhas como sujeitos de fato e de direitos, de luta contra sua desumanização, e pela inclusão - qualificando um ativismo. Deslandes1515 Deslandes S. O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Cien Saude Colet 2018; 23(10):3133-3136. conceitua ativismo, conectando-o ao ambiente digital, problematizando seu alcance político. Entendemos o ativismo - não tomando as redes digitais como objeto, e sim lugar onde investigamos as pautas da parentalidade atípica - na conexão com o Cuidado como Política: expressando horas de estudo, dedicação e trabalho, e lutas por ações afirmativas, inclusão social, acesso a bens de cuidado, advocacy frente ao Estado e seus agentes (professores, profissionais de saúde, gestores públicos, legisladores). Em Test et al.1616 Test DW, Fowler CH, Wood WM, Brewer DM, Eddy S. A conceptual framework of self-advocacy for students with disabilities. Remedial Spec Educ 2005; 26(1):43-54. o auto-advocacy implica conhecimento de si e dos direitos, comunicação e liderança, e empoderamento. Reside nele, falar ou agir por si mesmo, tomando decisões e assumindo responsabilidades. Com Ribeiro et al.1414 Ribeiro CR, Gomes R, Moreira MCN. A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Cien Saude Colet 2015; 20(11):3589-3598. na revisão de parentalidade, Deslandes1515 Deslandes S. O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Cien Saude Colet 2018; 23(10):3133-3136. com ativismo digital, e Taste et al.1616 Test DW, Fowler CH, Wood WM, Brewer DM, Eddy S. A conceptual framework of self-advocacy for students with disabilities. Remedial Spec Educ 2005; 26(1):43-54. com auto-advocacy, reconhecemos diálogos para assumir que o ativismo da parentalidade atípica não se reduz a nenhuma dessas dimensões, mas se configura com um fenômeno contemporâneo como simbólicas associativas1717 Martins PH. O dom como fundamento de uma cultura democrática e associativa. In: Portugal S, Martins PH, organizadores. Cidadania, políticas públicas e redes sociais. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2011. p. 13-27.. A simbólica associativa contempla os fundamentos morais que impulsionam estar junto nas lutas por direitos objetivos e subjetivos, circulando dons e contra-dons, símbolos de associação e solidariedade. Reconhecemos essas simbólicas associativas no Cuidado como Política, no advocacy da parentalidade atípica.

O ativismo e luta “por” e “pelos” filhos/filhas, pode conjugar a organização de associações civis com CNPJ, e a apresentação pública no universo digital. É com essa parentalidade pública que negociamos aqui. Recorremos à perspectiva feminista da Ética do Cuidado e da Deficiência11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999.,22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015. e à Antropologia Feminista da Infância1717 Martins PH. O dom como fundamento de uma cultura democrática e associativa. In: Portugal S, Martins PH, organizadores. Cidadania, políticas públicas e redes sociais. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2011. p. 13-27.

18 Thome B. Re-visioning Women and Social Change: Where are the Children? Gender Soc 1987; 1(1):85-109.

19 Helleiner J. Toward a Feminist Anthropology of Childhood. Atlantis 1999; 24(1):27-38.

20 Alanen L. Gender and Generation: Feminism and the 'Child Question'. In: Jens Qvortrup J, Bardy M, Sgritta G, Wintersberger H, editores. Childhood Matters. Aldershot: Avebury; 1994. p. 27-42.

21 Alanen L. Estudos feministas/estudos da infância: paralelos, ligações e perspectivas. In: Castro LR, organizador. Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro: Ed. Nau, FAPERJ; 2001. p. 69-92.
-2222 Alanen L. Teoria do bem-estar das crianças. Cad Pesqu 2010; 40(141):751-775., para interpretar o acervo da pesquisa. A marginalidade da Antropologia Feminista da Infância2323 Caputo V. Anthropology's Silent 'Others': A Consideration of Some Conceptual and Methodological Issues for the Study of Youth and Children's Cultures. In: Amit-Talai V, Wulff H, editors. Youth Cultures: A Cross Cultural Perspective. London: Routledge; 1995. p. 19-41. contrasta com a urgência de reconhecimento das crianças nas sociedades, principalmente aquelas com deficiência, mais vulneráveis à violência2424 Fang Z, Cerna-Turoff I, Zhang C, Lu M, Lachman J, Barlow J. Global estimates of violence Against children with disabilities: an updated systematic review and meta-analysis. Lancet Child Adolesc Health 2022; 6(5):313-323.. Neste artigo enunciamos possíveis configurações da parentalidade atípica, no campo da deficiência e cronicidade, à luz da perspectiva das simbólicas associativas.

Interrogamos: como pautas e agendas de inclusão social são atualizadas por ativistas da parentalidade atípica, e articuladas com as diferenças de gênero, classe, território e geração traduzindo o ativismo, nas configurações de simbólicas associativas?

O Cuidado como Política e a Antropologia Feminista da Infância

Acionamos o feminismo nos marcos da deficiência como interdependência, ética e política do cuidado, atributo conceitual, transversal e constitutivo da existência humana11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999.,22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015.. Kittay11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999.,22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015. discute independência como mito neoliberal, que reduz, desumaniza e desacredita a pessoa dependente. A dependência ganha um estigma moral ou psicológico - como patológica e geradora de descrédito - nas vertentes econômicas e nas interações sociais. Esse estigma moral diluído na sociedade, e localizado no Estado, foi alvo do “ideário da vida independente” da primeira geração dos teóricos da deficiência, e ativistas nesse campo22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015.. Buscaram assumir a independência não como autossuficiência, mas como autodeterminação.

Para a autora, deficiência resgata afirmativamente o Cuidado e a dependência de redes pessoais e políticas, exigindo mais ou menos dessas redes de acordo com as expressões funcionais diversas da deficiência. Desacreditar do mito da independência, para gerir a dependência. Segundo Kittay11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999.,22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015., assumindo nossas dependências, selecionamos e otimizamos: oportunidades, esforços, faltas e lutamos por direitos políticos frente ao Estado. Kittay11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999. não opõe uma ética dos cuidados a uma ética da justiça. A autora postula uma teoria de justiça vinculada e promotora de uma ética do cuidado, distinta das teorias de justiça canônica, com princípios necessários para reconhecer nossa inevitável dependência e inextricável interdependência na vida social.

No campo da parentalidade atípica, onde cuidado às crianças e adolescentes com deficiência se situa, buscamos argumentos para uma desnaturalização e desprivatização da infância1717 Martins PH. O dom como fundamento de uma cultura democrática e associativa. In: Portugal S, Martins PH, organizadores. Cidadania, políticas públicas e redes sociais. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2011. p. 13-27.

18 Thome B. Re-visioning Women and Social Change: Where are the Children? Gender Soc 1987; 1(1):85-109.

19 Helleiner J. Toward a Feminist Anthropology of Childhood. Atlantis 1999; 24(1):27-38.

20 Alanen L. Gender and Generation: Feminism and the 'Child Question'. In: Jens Qvortrup J, Bardy M, Sgritta G, Wintersberger H, editores. Childhood Matters. Aldershot: Avebury; 1994. p. 27-42.
-2121 Alanen L. Estudos feministas/estudos da infância: paralelos, ligações e perspectivas. In: Castro LR, organizador. Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro: Ed. Nau, FAPERJ; 2001. p. 69-92., na discussão sobre maternidade, infância e feminismo. Mesmo partindo de uma infância genérica, nesses debates feministas são estratégicas as articulações entre gênero e idade/geração, acionando a maternidade, em diferentes históricos e contextos culturais, instituições e circunstâncias sociais. Gênero e geração são marcadores de partida, incorporando a raça como marcador de opressão pelas contribuições da onda feminista negra. Se para as brancas a luta era libertar as mulheres para irem além da maternidade, para as negras o espaço da casa e da maternidade se configuram espaços de luta e afirmação, nos cuidados de seus filhos e filhas, como donas de seu espaço, insubmissas à supremacia branca e relações de opressão2525 hooks b. Constituir um lar: espaço de resistência. In: hooks b. Anseios: raça, gêneros e políticas culturais. São Paulo: Editora Elefante; 2009..

As intersecções entre raça, gênero, deficiência, classe, geração e território são fundamentais nas expressões do ativismo de mães e pais “atípicos” e nas lutas antidiscriminatórias pela não desumanização de seus filhos e filhas.

Da artesania metodológica

Assumimos as redes sociais digitais como universos de pesquisa, onde situamos o ativismo da parentalidade atípica. Na imersão nas páginas do Facebook e Instagram, chegamos aos diversos perfis onde as pautas da deficiência e da afirmação de pessoas com doenças raras se colocavam. Selecionamos aquelas autonomeadas parentalidades atípicas, com atividades frequentes - englobando perfis de pais e mães - com pautas pela inclusão e diversidade, de raça, gênero, direitos das crianças e adolescentes com deficiências e doenças raras. Nosso percurso anterior nas pesquisas com o associativismo e direitos das pessoas com doenças raras, e com as mães com filhos/as com a síndrome congênita do Zika Vírus, tornaram possível incluir três mulheres com histórias de associativismo e ativismo nas redes. Fizemos convites, por mensagem privada no perfil, à quinze ativistas, e oito mulheres e três homens aceitaram participar com entrevistas por aplicativos de imagem e voz. Essas entrevistas, reuniram à observação e frequência nas páginas digitais, lives, posts, reuniões a convite que frequentamos entre os anos de 2019 e 2021.

O saber da experiência como uma autoridade moral, circula e disputa, negocia e consome evidências científicas, com as autoridades técnicas, em um lugar de reconhecimento, veiculação de ideias, organização de vocabulários para lutas políticas por inclusão social. Evocamos inclusão social, afirmando a diversidade, com Geertz2626 Geertz C. Horizontes Antropológicos.1999; 5(10):13-34., e seguimos com a etnografia como metodologia. A diversidade, anunciada e defendida no acervo estudado, comparece como diversidade funcional ou relacionada ao corpo com deficiência, nas marcas da cronicidade e raridade, e na parentalidade atípica. Intencionalmente escolhemos perfis de pais e mães de filhos/as com deficiência e condições de saúde raras e complexas, com agendas políticas afirmativas, inclusivas e críticas ao conservadorismo.

A etnografia, em tempos de pandemia, com fontes e técnicas digitais, nos aproxima de variados pontos de vista: sobre criança e deficiência, maternidade e paternidade transversalizadas pela experiência com a deficiência e a cronicidade, autonomeadas atípicas. Valorizamos a interpretação e símbolos, vocabulários e noções, que enfrentam e traduzem críticas às estruturas de longa duração, de um patriarcado racista, adultocêntrico e capacitista. O capacitismo equivale nas gramáticas da discriminação, ao preconceito contra a pessoa com deficiência, compreendendo-a nos marcos da corponormatividade. Geertz2626 Geertz C. Horizontes Antropológicos.1999; 5(10):13-34. defende a diversidade cultural dos grupos étnicos ou nacionais circunscritos, que os sistemas universais de pensamento oprimem e buscam invisibilizar.

A interpretação sustentada pela reflexividade teórica-crítica do acervo da pesquisa aprovada - CAAE 29962720.1.0000.5269 - seguiu uma artesania de sínteses de ideias e questionamentos com o Cuidado como Política e Interdependência, e a Antropologia Feminista da Infância. Submetemos os acervos das observações e entrevistas a uma leitura densa, com notas teóricas, identificação das categorias êmicas, questões colocadas ao campo das experiências, de forma a compreender a parentalidade atípica como uma configuração do ativismo por direitos de crianças e adolescentes com deficiências e situações de cronicidade. Sem recortes de falas, de posts, entrevistas, operamos com a reflexividade autoral de quem aqui escreve, considerando a provisoriedade e velocidade desse campo, em um cenário contemporâneo de digitalização da vida.

Síntese interpretativa: dialogando acervo e autores

Com relação aos entrevistados, quatro mulheres dirigem/coordenam associações com CNPJ com ou sem sede física: duas com doenças raras, uma com o campo da deficiência, e outra com uma associação vinculada ao campo do apoio às crianças e adolescentes com microcefalia em função do Zika Vírus ou outras situações de microcefalia ligadas à deficiência. As outras quatro mulheres, entre trinta e quarenta anos, assumem uma agenda crítica de base feminista - antirracista e anticapacistista - em um processo autorreflexivo crítico ao ideário de parentalidade atípica, como lugar de abandono, sofrimento, correção, culpa e restrição. Das oito mulheres participantes da pesquisa, uma discute abandono masculino, mas afirmando que foi ela que “mandou pastar” o pai dos filhos, outras seis são casadas com os pais de seus filhos, e uma é divorciada do pai da filha, mas convive com guarda compartilhada da filha adolescente. O abandono paterno não foi uma tônica nesse acervo. Com relação aos três homens cujas redes sociais digitais frequentamos e entrevistamos, somente um é divorciado da mãe de seus filhos, e compartilha ativamente a guarda destes, incluindo cuidados com o que vive com uma doença rara. Os outros dois homens se tornaram pais pela segunda vez, de bebês que não são atípicos. Ressaltamos que os homens entrevistados não são companheiros ou casados com as mulheres que entrevistamos.

Para três entrevistadas de associações institucionalizadas - duas mais antigas, relacionadas ao ativismo das doenças raras e a terceira ao ativismo da epidemia de Zika - há um simbolismo da luta a favor da identidade da “doença rara, desconhecida, do especialista”, e na terceira, mais recente, de uma luta para denunciar e cobrar a responsabilidade de um Estado ausente na epidemia de Zika. Tais símbolos ancoram significados de grupalidade, luta coletiva, apoio e ajuda mútua de forma institucionalizada com sedes físicas e um CNPJ. Nestes símbolos há uma vinculação ao “pre-ocupar-se” com o outro, numa cultura da família grande, onde a circulação das crianças e cuidados se assume sem que ninguém precise obrigar. Para a terceira entrevistada de associação com CNPJ o foco é a deficiência, e ações locais de suporte.

Há uma expectativa nesse grupo geracional que ajudar, organizar, gerar solidariedade “faz parte, constitui”. Para duas delas - que são da geração com ou próxima aos 60 anos - as redes com a igreja, favorecem o dar-se conta da diversidade e da desigualdade, aglutinam informação, orientação, denúncia de violências e abusos, uma solidariedade tecida no cotidiano, na proximidade e na informalidade. Comparecem nesse componente as histórias com trajetórias de organização sindical, lutas pelo e no trabalho. Os limites de uma institucionalidade que a internet não oferece, pela ausência da presença física, convive com o reconhecimento de que este espaço se configura como lugar de interesse para assuntos banais, comuns, que ganham likes, seguidores, milhares de visualizações. Por isso, podem ser usados para ações pontuais de celebração de datas, eventos, divulgação e lutas. A crítica feita assume que uma mobilização coletiva presencial, é necessária para as “lutas das/pelas doenças”. Há forte vinculação com os serviços de referência se desdobrando em redes de redes: referência mediadora do médico especialista, para ela própria se tornar “uma especialista” em mediação, secretariar agendas e redes de referência e orientação, em atributos que não as reduzem nem à maternidade conquistada no contato com um conhecimento que ninguém tinha, nem ao ofício de secretariar e assistir às demandas médicas. Uma identidade nas fronteiras fortemente vinculada ao Cuidado. Essa palavra é repleta de sentidos nesse campo associativo em suas simbólicas: referência qualificada, apoio, solidariedade, reconhecimento, conhecimento adquirido pela experiência.

A arena de disputas se complexifica, possibilitando ou não o surgimento de alianças entre maternidades e paternidades atípicas, e outros espaços onde o associativismo se configura. Martins1717 Martins PH. O dom como fundamento de uma cultura democrática e associativa. In: Portugal S, Martins PH, organizadores. Cidadania, políticas públicas e redes sociais. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2011. p. 13-27. articula, na perspectiva dos vínculos sociais e da dádiva entre estranhos2727 Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. In: Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naif; 2003., macro e micro processos sociais, no associativismo da constituição de alianças e solidariedades. Estas podem remeter ou não às lógicas associativas mais permanentes, acionadoras da esfera pública como lócus democrático e participativo, superando as identidades setorializadas. Essa análise nos apoia na discussão entre ver-se no associativismo nucleado na militância pela identidade da doença e/ou da deficiência, ou transbordar alcançando outras agendas afirmativas.

Para outra ativista acima dos 50 anos, com associação com CNPJ e sede, dar-se conta de que a deficiência do filho negro se deu em função da violência obstétrica, de uma cesariana feita tardiamente, delimita sua luta antirracista. Nessa trajetória, a entrevistada se reconstrói em trajetórias na educação especial, nas demandas de cuidado desse filho. Há um simbolismo em “formar-se” pela e na experiência, mas sem renunciar a um diálogo com as instituições que “diplomam”, e que permitem se apresentar publicamente não só pela maternidade, mas pela profissão2828 Moreira MCN. Trajetórias e experiências morais de adoecimento raro e crônico em biografias. Cien Saude Colet 2019; 24(10):3651-3661..

A criança com deficiência, negra, pobre, periférica, favelada e “atípica” está em maior desvantagem e mais exposta à segregação. A função simbólica do associar-se cria circuitos de orientações, referências, e suportes afetivos e morais. Remete à luta por afirmar-se, frente aos pertencimentos sociais interpretados pelas lentes da discriminação, opressão e exclusão. As violências obstétricas não são aleatórias: tem raça/cor, classe e território. Daí o termo ser atualizado como “racismo obstétrico”, pela nossa entrevistada.

O cuidado se entrelaça à “experiência de marginalização”2929 Williams M. Voice, trust, and memory: marginalized groups and the failings of liberal representation. Princeton: Princeton University Press; 1998.(p.15) para determinadas pessoas de acordo com suas marcas de pertencimento remetidas às desigualdades sociais. Essas experiências submetidas à reflexividade crítica, à necessidade de buscar referências, seus pares, lugares coletivizados, amparam suas “perspectivas”3030 Young IM. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University; 2000.(p.137) no olhar e voz sobre o mundo. Molinier e Paperman3131 Molinier P, Paperman P. Descompartimentar a noção de cuidado? Rev Bras Cien Pol 2015; 18:43-57. defendem a descompartimentalização do cuidado - retirá-lo de uma essência sentimental “psicologizada” - para implicá-lo numa teoria do “ponto de vista”. Assumir o ponto de vista, contra a invisibilização de aspectos importantes que a teoria do cuidado pode iluminar na produção dos conhecimentos, nos vínculos entre vidas singulares e processos sociais amplos. Na trajetória de uma das entrevistadas, com um processo de escolarização tardio e pobreza, ter tido uma professora que cuidava dela, inclusive levando-a para sua casa para oferecer-lhe cuidados comparece na forma como se organiza para apoiar a outras mulheres hoje. Já para um homem mergulhar em sentimentos de ambivalência, vergonha, medo, tristeza com o nascimento da filha atípica, o fez escrever um livro infantil, provocar conversas públicas com outros homens e mulheres em situação semelhante, e reunir-se em um coletivo de paternidade atípica.

A intersecção entre maternidades e paternidades atípicas e o marcador geração nos permitiu análises sobre lugares onde circulam as pautas, ideias e valores para influência e mudança. Nas mulheres acima dos 50 anos, é no espaço face a face das associações, grupos, reuniões na casa, associações de moradores, igrejas e as salas de espera dos ambulatórios, e internações nas enfermarias de hospitais públicos, que um capital associativo e de luta ganha contornos e configurações. Naquelas, entre trinta e quarenta anos as redes sociais digitais representam um capital da juventude mobilizada e com investimentos que articulam distância física e proximidade de agendas, ligadas ao reconhecimento dos aprendizados e lutas por inclusão, de base interseccional: no campo da inclusão, por direitos das mulheres, nas lutas antirracistas, anticapacitistas, e de economia solidaria. Esses ativistas entrevistados, têm escolaridade de nível superior e relações de trabalho que na pandemia possibilitaram o trabalho remoto, nas áreas do jornalismo, serviço público, comunicação e educação, com muitas sobrecargas pelos cuidados em casa e com terapias de filhos e filhas.

Não raramente esses perfis e posts são interpelados por outros agentes que com perspectivas conservadoras “atacam” ideias e ameaçam as pessoas. Em um trânsito entre exposição e riscos, luta e afirmação, algumas entrevistas enunciavam claramente que o significado de rede - quando perguntada pelas ações na internet e no plano do cuidado no ambiente de casa, escola e rua - era muito menos de ajuda e mais de proteção. E nesse caso, a proteção, ganha o sentido de defender-se não só de discursos capacitistas, mas de ódio racial. Essa diferença entre “rede de apoio e rede de proteção”, veio de uma mulher negra, da periferia, com rede familiar forte, e com diagnóstico na idade adulta de deficiência. Enunciamos como o ambiente conservador rivaliza, tensiona, fricciona com o ambiente transformador das agendas dos direitos à diferença, que os ambientes digitais potencializam. Recorremos à Zelinzer3232 Zelinzer VA. Dualidades Perigosas. Mana 2009; 15(1):237-256. e hooks2525 hooks b. Constituir um lar: espaço de resistência. In: hooks b. Anseios: raça, gêneros e políticas culturais. São Paulo: Editora Elefante; 2009., a primeira questionando as armadilhas do binarismo que o conservadorismo alimenta, construindo maniqueísmos para sustentar suas lógicas e se ampliar. Já em hooks2121 Alanen L. Estudos feministas/estudos da infância: paralelos, ligações e perspectivas. In: Castro LR, organizador. Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro: Ed. Nau, FAPERJ; 2001. p. 69-92. reavemos o significado de resistência da casa, da maternidade, da rua, para as mulheres negras. Ao pautarem a maternidade e paternidade atípica, três das mulheres negras entrevistadas pautam não somente uma luta anticapacitista - de derrubar os ideais de normalidade, preconceitos e barreiras - mas antirracista. Essa luta antirracista, denuncia o apagamento das crianças e adolescentes negros e negras com Síndrome de Down da cena pública. Por um perfil acompanhado - de um pai de um menino negro com Síndrome de Down - lemos Santoro3333 Santoro S. Uncovering Racial Disparities in Down Syndrome [Internet]. 2016 [cited 13 mar 2021]. Available from: https://pediatricsnationwide.org/2016/05/19/uncovering-racial-disparities-in-down-syndrome/.
https://pediatricsnationwide.org/2016/05...
e chegamos em Yang et al.3434 Yang Q, Rasmussen AS, Friedman JM. Mortality associated with Down's syndrome in the USA from 1983 to 1997: a population-based study. Lancet 2002; 359(9311):1019-1025. - cujos dados apontam que pessoas negras com Síndrome de Down vivem menos que pessoas brancas com a mesma condição. Outro perfil nos fez chegar em Fang et al.2424 Fang Z, Cerna-Turoff I, Zhang C, Lu M, Lachman J, Barlow J. Global estimates of violence Against children with disabilities: an updated systematic review and meta-analysis. Lancet Child Adolesc Health 2022; 6(5):313-323. que destaca a vulnerabilidade maior das crianças com deficiências às violências. Nesses perfis circulam evidências advindas de pesquisas que enfrentam as opiniões que obscurecem direitos, favorecendo compromissos com a inclusão e diversidade. E ainda, valorizam a criança e o adolescente atípicos no centro da cena do cuidado e dos processos de escolarização, vocalização de desejos, comunicação, seja ela alternativa ou não. Thome1818 Thome B. Re-visioning Women and Social Change: Where are the Children? Gender Soc 1987; 1(1):85-109., Alanen1919 Helleiner J. Toward a Feminist Anthropology of Childhood. Atlantis 1999; 24(1):27-38. e Oakley3535 Oakley A. Women and Children First and Last: Parallels and Differences Between Children's and Women's Studies. In: Mayall B, editor. Children's Childhoods: Observed and Experienced. London: Falmer Press; 1994. p. 13-32. criticam o “adultismo” ou adultocentrismo, na desconsideração da criança, como forma de enfrentar hierarquias de gênero, classe e raça.

A circulação de símbolos de lutas, articuladas às pautas da parentalidade atípica, deficiência, cronicidade e raridade - nas intersecções entre saber comum, conhecimento científico, ativismo por direitos - é uma chave importante para sustentar a agenda da inclusão social. Por que destacamos essa pauta relacionando ao que vimos discutindo até aqui? Porque a inclusão opera com seu duplo negativo, exclusão, que tem como pano de fundo processos estruturais e grandes narrativas que sustentam opressões, discriminações e justificam violências históricas contra determinados grupos: mulheres, negros, crianças, idosos, pessoas com deficiência, e povos originários.

Aqui retorna a chave analítica da deficiência como campo44 Bourdieu P. O campo político. Rev Bras Cien Pol 2011; 5:193-216.. Assim o fazemos porque as muitas desqualificações e discriminações que operam frente à pessoa com deficiência, são enfrentadas com enunciações da parentalidade atípica, seja na base associativa, seja no ativismo digital, ou ainda no histórico movimento social. Nesse campo produz-se conhecimento acadêmico, e saberes circulam, disputando a deficiência, configurando-a como categoria política e não medicalizada. Recusar-se doente, ou ver seu filho ou filha como doente, significa tensionar com as enunciações corponormativas, corretivas, classificatórias da lógica biomédica.

Nessas arenas que se organizam e são organizadoras dos interesses e discursos públicos, cabe perguntar como o simbolismo da cronicidade/raridade/deficiência/atipicidade, pode conectar símbolos de ampliação de identificações e solidariedade. A resposta provisória advém de assumir como legítima a corporeidade com deficiência/cronicidade/raridade/atipicidade. Reivindicando lugar de autoridade sobre a experiência, na afirmação de direitos ao Cuidado como Política e Justiça da Diferença22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015. reconhecendo-se negro, branco, mulher, homem, criança, adolescente, velho, jovem, trabalhador etc. Nessa direção urge evocar o conceito de interseccionalidade3434 Yang Q, Rasmussen AS, Friedman JM. Mortality associated with Down's syndrome in the USA from 1983 to 1997: a population-based study. Lancet 2002; 359(9311):1019-1025. e incluir a qualidade da categoria êmica “atípico” como um marcador identitário que pode conviver e dobrar-se sobre outros. Afirmando qualidades que se comunicam, levando a uma multireferência, ao superar segmentações setoriais, e articular traços identitários comuns3535 Oakley A. Women and Children First and Last: Parallels and Differences Between Children's and Women's Studies. In: Mayall B, editor. Children's Childhoods: Observed and Experienced. London: Falmer Press; 1994. p. 13-32., relacionando três dimensões: a da alteridade, a do reconhecimento e a do pertencimento. Tais dimensões contribuem para a reflexão sobre a interações sociais, na construção de simbólicas associativas.

Quanto à interseccionalidade3636 Piscitelli A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Soc Cultura 2008; 11(2):263-274. os marcadores sociais da diferença não equivalem às variáveis e classificações métricas. Aos marcadores sociais - gênero, raça, classe, território, deficiência, geração - correspondem sistemas de referência que nos antecedem e hierarquizam. Interseccionados, eles vão incrementar as desigualdades. Investigar a parentalidade atípica significa reconceituar o Cuidado como Interdependência11 Kittay EF. Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency. New York: Routledge; 1999.,22 Kittay EF. Dependency in Keywords in Disability Studies. New York: NYU Press; 2015., e assumi-lo como “perspectiva” e “ponto de vista”, interseccionalmente. A Ética do Cuidado como Política dialoga com o mundo do trabalho, e com as desigualdades de gênero e moralidades. Reside nas relações de cuidado a interpessoalidade, com múltiplos protagonistas (indivíduos, grupos e instituições), hierarquias na sua localização como trabalho nas diferentes fases da vida, e nas suas responsabilidades3535 Oakley A. Women and Children First and Last: Parallels and Differences Between Children's and Women's Studies. In: Mayall B, editor. Children's Childhoods: Observed and Experienced. London: Falmer Press; 1994. p. 13-32.. A interdependência e a vulnerabilidade, símbolos virtuosos de cultura, marcas humanas, retomam a diferença, como base afirmativa.

Na perspectiva geracional ou de território, as mulheres da geração entre 50/60 anos, das periferias, onde a cronicidade/raridade/deficiência constroem sentidos de associativismo, predominam as relações face a face nas organizações formais. E também a grupalidade feminina no “café e o bolo em casa”, base de seus primeiros núcleos associativos, no cuidado com as crianças atípicas que nasciam, e cujas mães, pais e até profissionais de saúde precisavam de orientação. Em uma forma lúdica de sociação e sociabilidade, na cooperação e colaboração, na interação pela conversa despretensiosa, que articula brincadeira e elabora o conflito3737 Simmel G. Questões Fundamentais de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar; 2006..

Para uma das entrevistadas - cujo ativismo se liga à epidemia do vírus Zika, e suas repercussões na microcefalia da filha - o encontro com outras mulheres, cujos filhos e filhas vivem com essa condição e outras da cronicidade e deficiência, denuncia o Estado como devedor e causador dessa condição, síndrome congênita do Zika, como extraordinária. Nessa experiência híbrida da entrevistada, urge ter uma sede para reunir, oferecer, receber, e também estar nas redes sociais digitais compartilhando conhecimentos relativos ao cuidado, produzindo artigos, frequentar ambientes acadêmicos e de audiências públicas. Ao fundar associações, a geração das mulheres acima dos 50 anos, ou aquelas organizadas a partir da epidemia de Zika, na casa dos 30/40 anos, buscam pares e símbolos compartilhados em comum - ser raro, viver com um corpo em uma sociedade que os limita, aprender com o discurso técnico e dominá-lo para ser reconhecido, buscar direitos e apoios3838 Scott P. Cuidados, mobilidade e poder num contexto de epidemia. Mana 2020; 26:e263207..

O ativismo da parentalidade atípica nas redes reinterpreta a experiência de cuidado como trabalho de ativismo. Seguimos Herzlich3939 Herzlich C. Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência privada e a esfera pública. Physis 2004; 14(2):383-394. valorizando - sem equivalência à ruptura biográfica com perdas múltiplas4040 Bury M. Chronic illness as biographical disruption. Sociol Health Illn 1982; 4(2):167-182. - o transbordamento da experiência privada da doença, para o universo da visibilidade pública, articulando o caráter cívico, político e associativo, na busca de pares e laços.

Com Tilly4141 Tilly C. Big Structures, Large Processes, Huge Comparisons. New York: Russell Sage Foundation; 1984. acionamos grandes e pequenas narrativas, na relação entre estruturas de grande e pequena duração, no conjunto das redes e simbólicas associativas2323 Caputo V. Anthropology's Silent 'Others': A Consideration of Some Conceptual and Methodological Issues for the Study of Youth and Children's Cultures. In: Amit-Talai V, Wulff H, editors. Youth Cultures: A Cross Cultural Perspective. London: Routledge; 1995. p. 19-41.. Essa digressão opera em um exercício sociológico de compreender as mudanças sociais.

Apostamos que a parentalidade atípica - nas experiências de discriminação, enfrentamento e reconstrução de processos comunicacionais, negociação com a saúde e educação de seus filhos/as - alcançam críticas as grandes estruturas sociais, do campo político44 Bourdieu P. O campo político. Rev Bras Cien Pol 2011; 5:193-216.. Denunciando outras opressões: capitalistas, patriarcais, de gênero, raciais, de medicalização da vida. A medicalização da vida opera sobre as emoções, reduzindo a ressignificação das experiências de sofrimento e corporeidade, distanciando das ancoragens socioculturais.

Acionando Tilly4141 Tilly C. Big Structures, Large Processes, Huge Comparisons. New York: Russell Sage Foundation; 1984., reconhecemos a diferença entre objetos sobre os quais ele se debruçou - movimentos sociais e a organização de Estados Nacionais - e o que esse artigo discute: o campo público do ativismo da parentalidade atípica. Não vemos nesse objeto equivalências às definições tradicionais de movimentos sociais. Mas, configurações de redes de simbólicas associativas1717 Martins PH. O dom como fundamento de uma cultura democrática e associativa. In: Portugal S, Martins PH, organizadores. Cidadania, políticas públicas e redes sociais. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; 2011. p. 13-27., reunidas às lutas críticas com processos de reflexividade poderosos, tensionados com movimentos e redes conservadoras e reacionárias de segregação na educação, concordantes com um momento do Estado brasileiro onde isso é defendido.

Quanto aos modelos de parentalidade, há uma tensão paternidade/masculinidade hegemônica e expectativas que naturalizam o abandono paterno de filhos e filhas marcados pela deficiência/cronicidade/atipicidade. Ao acompanhar páginas digitais, outros modos de ser, estar e parentar se apresentam. Em arranjos de pais separados, não se configura abandono, mas cuidados compartilhados, não interpretados como ajuda, favor ou concessão. Homens que acionam memórias de cuidado como filhos, e que evocam outras enunciações possíveis. Em uma entrevista o lamento era o quanto ele teria que reinventar outras formas de viver a paternidade, distintas de uma corporeidade da filha, onde andar, falar, receber ao chegar do trabalho ou da escola não se dariam como foi com ele como filho. Para os homens, mais que para as mulheres que acompanhamos, há um processo de retorno às referências, visões e aprendizados como filhos, acionando dores, medos, processos de saúde mental que interpelam o eixo tristeza/alegria/realização pessoal.

Uma reflexividade crítica aciona a sensibilidade de homens para - com alguma dor - reinventarem a si próprios, desconstruindo discursos capacitistas. Para os três homens entrevistados a estrutura mais colocada em crise foi a da relação ente os gêneros, com os modelos de masculinidade, parentalidade e, paternidade. Para um deles, cuja experiência aciona sua vinculação aos coletivos de poesia marginal, uma outra estrutura fortemente criticada é o do confinamento de discussões, encontros, grupos ao espaço dos hospitais especializados. Sua experiência remete às elaborações do cuidado com um filho com uma síndrome rara. Ele critica potentemente aquilo que eu denomino como uma “hospitalização das associações”, ligada a estrutura de medicalização dos cuidados. Segundo enunciam, uma criança ou adolescente com deficiência ao ocupar o espaço público concretiza-se um ato político.

Considerações finais

O ativismo da parentalidade atípica afirma a legitimidade e o direito ao cuidado como política para seus filhos e filhas. Com outros vocabulários e formas de estar legitimas no mundo, influenciam agendas: anticapacitistas, antirracistas, pelos direitos pela acessibilidade, inclusão e diversidade. Enfrentam planos conservadores de ideias sobre infância, adolescência, parentalidade de filhos e filhas com situações de vida marcadas por cronicidade/raridade/deficiências. Presentifica-se uma fricção/tensão com as desigualdades de gênero, raça, classe e território. Arranjos familiares e de cuidado dentro e fora da família, e o lugar legitimo de existência de seus filhos, filhas e deles e delas próprias, representa um movimento político.

A “parentalidade ativista atípica” reconfigura significados, símbolos e aprendizados de viver e conviver com a deficiência/cronicidade/raridade no cuidado com um filho/filha, ultrapassando rupturas biográficas e perdas. Aquisições advêm de uma reflexividade crítica sobre a experiência pessoal e o lugar no mundo, para afirmar cuidado, organização familiar e direitos.

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  • Financiamento

    Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Bolsa de Produtividade em Pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2022
  • Aceito
    18 Maio 2022
  • Publicado
    20 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br