Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência

Martha Cristina Nunes Moreira Francine de Souza Dias Anahi Guedes de Mello Sara Wagner York Sobre os autores

Resumo

Nesse ensaio teórico assumimos o capacitismo como uma gramática que sustenta diversos duplos que hierarquizam e discriminam corporalidades reputadas dissidentes. Sustentamos esse argumento partindo da violação de direitos à saúde e à vida das pessoas com deficiência, pessoas travestis, transexuais e intersexos e das crianças e adolescentes em práticas de vigilância e correção, que sustentam as instituições de saúde e educação, e a Língua.

Palavras-chave:
Discriminação social; Gênero; Saúde da Pessoa com Deficiência; Criança; Adolescente

Introdução: gramáticas e lugares situados

Este ensaio se inspira na noção de gramática de Honneth1Honneth A. A Luta pelo reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos sociais. Coimbra: Ed. 70: 2011. para quem a palavra reconhecimento é fundamental. De acordo com o autor, as lutas por reconhecimento não se confundem com empoderamento/empowerment. Com isso ele se distancia de certos ideais de capacidade e de produtividade que hoje constituem o ethos da/o/e/x sujeita/o/e/x neoliberal, baseado na concepção de pessoa que habita um corpo-propriedade, conforme modelos contemporâneos jurídicos sobre o estatuto do corpo.

As gramáticas do reconhecimento nos reenviam à alteridade e à reciprocidade: reconhecer a/o/x outre para que possa reconhecer-se a si mesmo22 Simmel G. Questões Fundamentais de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar; 2006.. E nesse caso não há como tomar o lugar da/o/e/x outre, seja para falar por ela/ele/elx, seja para produzir um movimento que parece “generoso”: oferecer-lhe “uma voz”. A voz de quem é colocada/o/e/x em posição de subalternidade tende a ser calada, o que representa uma operação moral de subtração de autoridade legitima e epistêmica sobre sua existência.

O reconhecer, nas dinâmicas da interação social, significa, assumir os conflitos22 Simmel G. Questões Fundamentais de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar; 2006.. Nas interações operam mediadores de forma e de conteúdo, e os elementos deste último possibilitam o resgate de afetos, idiossincrasias, das características que nos fazem únicas/os/xs (a especificidade) e, ao mesmo tempo, coletivos (a generalidade). Já a forma nos permite compartilhar o reconhecimento dos direitos de cada pessoa e está no alicerce do vínculo gerado nas interações sociais.

Para Honneth1Honneth A. A Luta pelo reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos sociais. Coimbra: Ed. 70: 2011., o Direito é uma figura fundamental para o reconhecimento social. Reconhecendo a pessoa jurídica, produzimos a comunicabilidade, o respeito, o vínculo e a reciprocidade. Como luta, o reconhecimento pressupõe a existência e a valorização de sujeitas/os/es/xs morais, de fato e de direito. Mas, somente reconhecer a pessoa jurídica não basta. A construção política do corpo, nos discursos jurídicos contemporâneos, não raramente está separada da noção de pessoa33 Mauss M. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de "eu". In: Mauss M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify; 2003. p. 367-397. e das suas experiências corporais. Porquanto seus alicerces são sustentados por racionalidades que mercantilizam e padronizam o corpo, e o tornam propriedade, em um movimento que apaga possibilidades de sujeitas/os/es/xs políticas/os/es/xs e de corporeidades outras, singulares e diversas.

Acionamos Foucault44 Foucault M. Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2004. na crítica à sujeita/o/e/x soberana/o/e/x, universal. A/o/e/x sujeita/o/e/x se constrói em jogos de verdade, onde normas, disciplinas e práticas históricas de sujeição operam com a pretensão de dizer verdades, normalizar atos, comportamentos, costumes e desejos. Para o autor, é na dimensão política dos processos de subjetivação, enquanto práticas de resistência contra o saber-poder estabelecido, que se produzem novos modos de existência, remetendo-se a outras experiências sensíveis, às singularidades, todas sempre ancoradas em um exercício ético, político e estético.

Buscamos aproximações teóricas, políticas, éticas e morais que privilegiem a experiência encarnada, o corpo no mundo e em interrelação e interdependência com outros corpos. Interrogamos os discursos de sujeição, múltiplos e reticulares, que operam sobre corpos interpretados como “sem autoridade” de fala: crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e pessoas intersexo, transsexuais e travestis. Com base nas experiências das autoras, exploramos outros sentidos de reconhecimento das corporeidades múltiplas. São as/os/es/xs sujeitas/os/es/xs de direitos como aquelas/es/xs que habitam um corpo único, composto por características singulares que não descaracterizam sua humanidade, ao contrário, afirmam sua multiplicidade de ser e estar no mundo.

O artigo se assume um ensaio, na reflexividade autocrítica e na liberdade de quem escreve, com o abandono de certezas e evidências55 Castiel LD. Ensaios fora do tubo. A saúde e seus paradoxos. Rio de Janeiro: Fiocruz/Hucitec; 2021.. Essa perspectiva reverbera na pluralidade de vozes e lugares situados, no modo como os temas são lançados, abordados e enlaçados, na maneira como as experiências são valorizadas e se tornam matéria-prima na sua tessitura. Essa construção nos permite falar em primeira pessoa do plural e borrar certas racionalidades na produção teórica da saúde coletiva, ao apresentar fragmentos de pensamentos e reflexões “sem cair na necessidade de apresentar um sistema completo de pensamento”(p.44)55 Castiel LD. Ensaios fora do tubo. A saúde e seus paradoxos. Rio de Janeiro: Fiocruz/Hucitec; 2021..

Partilhamos um encadeamento de ideias que transitam por estranhezas e desvios55 Castiel LD. Ensaios fora do tubo. A saúde e seus paradoxos. Rio de Janeiro: Fiocruz/Hucitec; 2021., onde a discussão sobre capacitismo assume a interpretação de estrutura. Isto é, que opera como uma lógica, uma gramática de usos e sentidos que, na chave corponormativa, desqualifica as pessoas com deficiência e também pessoas intersexo, travestis, transexuais, as crianças e os adolescentes. As duas últimas, diminuídas pelo adultocentrismo, estão subalternizadas no interior da estrutura do patriarcado, onde o modelo do homem, adulto, branco, hétero, predomina, invisibilizando também as mulheres e outras orientações de gênero e sexualidade.

O capacitismo como uma gramática transversal a outras formas de discriminação nos permite dialogar com o conceito de interseccionalidade, tal como assumido por Akotirene66 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen; 2019.: uma categoria criada por feministas negras para situar seus corpos em avenidas identitárias cruzadoras de opressões de raça, classe e gênero, que mais recentemente passou a incluir outros marcadores sociais, como a deficiência. A interseccionalidade é tomada nesse texto como chave analítica relevante das gramáticas capacitistas e, consequentemente, nos ajuda a aprimorar o pensamento crítico no interior da saúde coletiva. Ressaltamos que quando esses cruzamentos encontram as crianças intersexo ou com deficiência, os seus efeitos se exponenciam.

Para perseguir esse argumento, situadas em lugares de intelectuais orgânicas e agentes em rede, ancoramos nossas experiências na reflexividade de práticas militantes, acadêmicas e profissionais nos campos da saúde, antropologia e educação. Nos orientamos pelo direito a ter direitos, o que perpassa o reconhecimento do diálogo com reciprocidade e alteridade, buscando explicitar a lógica capacitista que opera subalternizando os corpos de crianças, pessoas com deficiência, pessoas trans e intersexo.

Assim, assumimos o desconforto com as gramáticas de gênero nas flexões singulares e plurais de pronomes, substantivos e adjetivos, que desde o início deste texto aparecem primeiro no feminino, seguida de outras representações separadas por barra (o/e/x). Essa escolha rompe com uma representação que generaliza77 Gesser M, Block P, Mello AG. Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. In: Gesser M, Böck GLK, Lopes PH, organizadoras. Estudos da Deficiência: anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: CRV; 2020. p.17-35. um masculino de referência. O capacitismo, aqui relido como gramática, implica que as gramáticas de gênero sejam revistadas nas suas flexões, provocando deslocamentos nas experiências de leituras visuais e sonoras de textos, nas dimensões estética, política e ética de cada corpo. Dobrar a gramática para que ela contemple as singularidades que nos constituem.

A lógica capacitista e as metamorfoses interseccionais

Destacamos duas formas de interpretar o capacitismo. Primeiro, no sentido de “discriminação” contra pessoas com deficiência, ou seja, “quando uma pessoa não enxerga com os olhos, não ouve com os ouvidos e não anda como um bípede, ela é lida como ‘deficiente’ e passa a ser percebida culturalmente como ‘incapaz’”(p.101)88 Mello AG. Corpos (in)capazes: a crítica marxista da deficiência. Jacobin Brasil 2020 (n. esp.):98-102.. Segundo, enquanto “estrutura” de opressão marcada pelo imperativo do dispositivo da “capacidade corporal compulsória”99 McRuer R. Compulsory able-bodiedness and queer/disabled existence. In: Snyder SL, Brueggemann BJ, Garland-Thomson R, organizadoras. Disability Studies: enabling the humanities. New York: Modern Language Association of America; 2002. p. 88-99. que naturaliza e hierarquiza capacidades pela forma, aparência e funcionamento de corpos para o que é normal, saudável, belo, produtivo, útil, independente e capaz. Sintonizadas com Campbell1010 Campbell FK. Contours of Ableism: the production of disability and abledness. New York: Palgrave Mcmillan; 2009., concebemos o capacitismo como “uma normatividade corporal e comportamental baseada na premissa de uma funcionalidade total do indivíduo”(p.101)88 Mello AG. Corpos (in)capazes: a crítica marxista da deficiência. Jacobin Brasil 2020 (n. esp.):98-102., em que o natural é ter um corpo sem deficiências, doenças ou quaisquer outros ‘defeitos’ aparentes.

Essa leitura provoca que outras corporalidades além da deficiência sejam lidas como ininteligíveis ou atípicas, em uma hierarquia de corpos onde, no quadro das gradações, os corpos atípicos das pessoas com deficiência estão no topo da estrutura capacitista88 Mello AG. Corpos (in)capazes: a crítica marxista da deficiência. Jacobin Brasil 2020 (n. esp.):98-102.,1010 Campbell FK. Contours of Ableism: the production of disability and abledness. New York: Palgrave Mcmillan; 2009.. Por isso, é correto a analogia do capacitismo estar para as pessoas com deficiência, como o racismo está para as pessoas negras e indígenas, o adultocentrismo para as crianças e adolescentes, e o sexismo para as mulheres e pessoas travestis, trans e intersexo.

Outrossim, se na lógica capacitista outros grupos sociais podem discursivamente ser lidos como “menos capazes”, então o capacitismo como uma lógica estruturante de opressão também opera interseccionalmente77 Gesser M, Block P, Mello AG. Estudos da Deficiência: interseccionalidade, anticapacitismo e emancipação social. In: Gesser M, Böck GLK, Lopes PH, organizadoras. Estudos da Deficiência: anticapacitismo e emancipação social. Curitiba: CRV; 2020. p.17-35., dobrando o duplo capaz/incapaz em outras operações de gramáticas morais: no racismo (que hierarquiza brancos, negros e indígenas), no sexismo (que hierarquiza homens e mulheres), nos comportamentos LGBTfóbicos (homossexuais versus heterossexuais; transgêneros versus cisgêneros; e intersexos versus endosexos) e no adultocentrismo que hierarquiza adultos e crianças e adolescentes, submetendo estes últimos aos primeiros.

Desse modo, a lógica capacitista não só convida a hierarquização entre corpos, sujeitas/os/es/xs e diferenças, mas também implica a percepção de que todo pensamento binário é em si capacitista, uma vez que pressupõe corpos e sujeitas/os/es/xs ontologicamente “em falta” em relação a outres hegemônicas/os/es/xs. Assim, o racismo, sexismo, LGBTfobia e adultocentrismo são sistemas de opressão atravessados pelo capacitismo.

Outro autor, Davis1111 Davis LJ. Enforcing Normalcy: disability, deafness, and the body. London, New York: Verso; 1995. argumenta que pelo fato de o corpo deficiente ser “uma figura muito mais transgressora e desviante”(p.5), não faz sentido o silêncio das ciências sociais e humanas - acrescentamos as ciências da saúde - e dos movimentos progressistas “de esquerda” em relação à ausência da deficiência como categoria analítica nos estudos e lutas implicados com as questões do corpo e da construção social do gênero, da raça, da sexualidade e da classe, por exemplo. Essa exclusão opera como um analisador que revela a recusa em reconhecer a deficiência como legitima, e busca afastar a matriz eugênica e biomédica da deficiência como patologia1212 Mitchell DT, Snyder SL, organizadores. The Body and Physical Difference: discourses of disability. Foreword by James I. Porter. Ann Arbor: The University of Michigan Press; 1997.,1313 Ávila ES. Capacitismo como queerfobia. In: Funck SB, Minella LS, Assis GO, organizadoras. Linguagens e narrativas: desafios feministas, v. 1. Tubarão: Ed. Copiart; 2014. p. 131-156.. Ao dirigir sua crítica ao movimento LGBTI+, Ávila1313 Ávila ES. Capacitismo como queerfobia. In: Funck SB, Minella LS, Assis GO, organizadoras. Linguagens e narrativas: desafios feministas, v. 1. Tubarão: Ed. Copiart; 2014. p. 131-156. valoriza a inclusão do capacitismo como matriz de discriminação interseccional nas teorias e práticas feministas, decoloniais e queer. Isso, a fim de enfrentar a “hostilidade horizontal”, prática discursiva que reduz “alguns projetos emancipatórios como sendo menos urgentes que outros, inviabilizando, assim, o potencial político de interromper a proliferação de campos de opressão ao separá-los entre si”(p.141)1313 Ávila ES. Capacitismo como queerfobia. In: Funck SB, Minella LS, Assis GO, organizadoras. Linguagens e narrativas: desafios feministas, v. 1. Tubarão: Ed. Copiart; 2014. p. 131-156..

Assumir a importância da deficiência como categoria de análise epidemiológica, por exemplo, pode fortalecer a saúde coletiva na superação dos sistemas de opressão sustentados pelo capitalismo neoliberal, intimamente imbricados na corponormatividade de nossa estrutura social. Essa na qual o patriarcado, a branquitude e a cisheteronormatividade também são estruturantes e estão estruturalmente implicadas entre si.

Nas próximas seções, acionaremos as dobras do capacitismo com gênero e infância, demarcando também seu lugar como um conceito que se dobra no interior das “categorias de articulação” nos termos de Piscitelli1414 Piscitelli A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Soc Cult 2008; 11(2):263-274.. Isto é, não se trata somente da relação entre “deficiência e gênero”, ou entre “deficiência e infância”, mas da diferença em seu significado amplo, no sentido de pensar cada dobra como uma “unidade formada por essa articulação [que] é uma estrutura complexa que as relaciona por suas diferenças e semelhanças”(p.268)1414 Piscitelli A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Soc Cult 2008; 11(2):263-274.. Com essa proposta analítica, não iremos abordar a dobra em relação à raça, considerando os limites do lugar de autoria, reconhecendo a potência dessa discussão nas dobras com deficiência, gênero, orientação sexual e geração.

A gramática capacitista nas corporeidades intersexo

A racionalidade secular e tradicional opera sobre chaves analíticas díspares e binárias, e justifica práticas cisheteronormativas compulsórias1515 Rich A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas 2010; 4(5):17-44.,1616 York SW. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des(a)fiando e ocupando os "cistemas" de Pós-Graduação [Internet]. [acessado 2022 abr 19] 2020. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/16716.
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. Essas operam sobre os corpos de pessoas trans/travestis e intersexo, que se fundem, primeiramente, pelas dinâmicas poucos (d)escritas em cartilhas normativas. Compreende-se por cisgeneridade ou cisheteronormatividade ou cis-hetero, todo corpo que, emulado pelo binômio sexo/gênero1717 Rubim G. El tráfico de mujeres: notas sobre la economía política del sexo. Nueva Antropol 1986; 95:142. escape a essas classificações. Com isso se sustenta uma crítica às políticas públicas que, fundadas nessa racionalidade, excluem sujeitas/os/es/xs trans/travestis e intersexo na diversidade de seus corpos de serem e estarem no mundo.

Foucault1818 Foucault M. Herculine Barbin. O diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: Ed Francisco Alves; 2001. permite análises importantes ao evocar o caso de Herculine Barbin e seu diário, analisando a medicalização corretiva do seu corpo intersexo. Pesquisadores do campo do gênero e sexualidades, como Mauro Cabral, Amiel Vieira, Thais Emília - entre outres ativistas (re)unidas/os/es/xs em torno desse debate da legitimidade do corpo intersexo -, passaram a disputar no cenário político transnacional seu reconhecimento, como bem nos inspira Honneth1Honneth A. A Luta pelo reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos sociais. Coimbra: Ed. 70: 2011.. Estas, pouco ou nada corroboravam com a argumentação médica que, já presente na análise foucaultiana, fazem-se presentes ainda em 2020, reiteradamente, na prática cirúrgica de adequação genital diante do corpo intersexo. Nessa operação de correção de corpos intersexo reside uma das dobras da lógica capacitista, que autoriza alguns corpos como mais legítimos que outros e que faz ruir a possibilidade de reconhecimento como base para futuros processos de engajamento em grupos, de construção de autorrespeito, autorrealização e autoestima.

Ao adequarmos o corpo intersexo a uma racionalidade binária, ele assume de modo compulsório uma transgeneridade imposta pela cisgeneridade. Dessa forma, o corpo que opera dentro de outras perspectivas é acionado por gramáticas do capacitismo para ganhar fluência no CIStema binário mandatório. Com efeito, o corpo intersexo que poderia ou não ter uma leitura dentro da binariedade, é colocado compulsoriamente em um mundo não pensado para ele.

Em pesquisas que mesclam relatos autoetnográficos e histórias de vida, essas sujeitas/os/es/xs imprimem suas marcas na experiência humana que, ao nosso ver, reverberam uma crítica aos aspectos capacitistas presentes na prática médica corretiva, assentada em padrões tidos como esteticamente aceitáveis. Tais corpos e sujeitas/os/es/xs divergentes são reiteradamente destituídos de políticas públicas que lhes atendam1616 York SW. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des(a)fiando e ocupando os "cistemas" de Pós-Graduação [Internet]. [acessado 2022 abr 19] 2020. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/16716.
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, e, portanto, do seu direito à vida pública.

A pandemia da COVID-19 mobilizou a ampliação desse debate a nível nacional, por meio de atividades realizadas em ambiente virtual. Nessa história do tempo presente, várias lives foram produzidas por atores centrais dessa discussão e uma voz uníssona ecoou em todas elas: o fim da prática médica de adequação compulsória dos corpos intersexos em recém-nascidas/os/es/xs1919 Fernandes T, Santos E, York S. Ciberfeminismo em tempos de pandemia de covid-19: lives e seus multiletramentos críticos transmisión en vivo y sus multiletramentos críticos. Ver. Binacional Brasil-Argentina: Diálogo entre as ciências 2020; 9(2):82-101..

As insuficiências dessas práticas clínicas corretivas, operando em uma gramática capacitista binária, se associam a um outro saber-poder de disciplina binária concretizada na língua. Como uma tecnologia de gênero insuficiente, a língua não contempla os corpos intersexo. Os atributos linguísticos e gramaticais não contemplam suas especificidades, por isso, neste ensaio, o exercício de escrever e promover uma leitura não binária nos pronomes e suas flexões é intencional. Aos homens cisgêneros ou transgêneros, empregamos artigos específicos para o corpo, gênero, sexo ou expressão. Já para as mulheres travestis, cisgêneras ou transgêneras, adere-se ao uso de artigos da mesma forma: ela, dela, aquela, nela. Sujeitas/os/es/xs intersexo devem contar com alguma propriedade da língua que melhor lhes atenda. Como sugerido por alguns/algumas pesquisadores/as/xs, teóricos/as e atores/atrizes da cena social, é preciso contar com aspectos não-bináries que corroborem para alguma cidadanidade2020 França ANM. Movimentos sociais e o Programa Rio Sem Homofobia: uma trajetória de luta por políticas públicas e o reconhecimento da cidadania LGBT no Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2018. desses indivíduos. A cidadanidade é uma categoria trabalhada por França2020 França ANM. Movimentos sociais e o Programa Rio Sem Homofobia: uma trajetória de luta por políticas públicas e o reconhecimento da cidadania LGBT no Rio de Janeiro [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2018., preocupada com a condição fundante das/os/es/xs sujeitas/os/es/xs para lutar por políticas públicas e garantias.

Nesse momento vale recorrer à memória e experiência de uma das autoras que, lecionando para dois alunes intersexos em uma escola pública do interior do estado do Rio de Janeiro2121 Gonçalves JR, Pimenta SW. Morte Anunciada: Reflexões de uma mulher travesti sobre o assassinato de Dandara. In. Jesus DM, Melo GC, Tchalian V, Gonçalves JR. Corpos transgressores: Politicas de resistências. Campinas: Pontes; 2018. p. 17-23., pôde testemunhar a não compreensão destes pelos aspectos sexistas binários adotados pela unidade. Com um compromisso pessoal de enfrentar essa lógica discriminatória, não inclusiva e capacitista, ela recorda ter incluído em suas aulas questões que sugeriam maior número de registros relacionados à diversidade sexual e de gênero. Isso significou, por exemplo, que em uma das provas do ensino fundamental (6° ao 9° ano), as partes do corpo humano na língua inglesa, disciplina lecionada, passaram a contar com três opções para a parte genital, lendo-se em português e inglês, respectivamente, pênis/penis, vagina/vagina e intersexo/intersex.

Essa variação nas duas línguas foi compreendida com leveza e rapidez pela maioria das alunas/os/es/xs. Nos estudantes mais jovens, de até 12 anos, houve rápida assimilação do conteúdo; já entre as/os/xs estudantes mais velhas/os/es/xs, de 13 a 16 anos, o tema foi recebido de modo jocoso. Quanto às famílias, houve apenas um casal de responsáveis que procurou a escola, pedindo explicação pormenorizada sobre aquele conteúdo abordado para um universo de 400 alunas/os/es/xs.

Essa experiência memorializada nos serve como aposta em rotas de fuga para corpos que emergem, sobrevivem e resistem. Isso porque há que lembrar que tudo é produção, sobretudo, de sentidos. O corpo crip - entendido como afirmativo da deficiência como característica pessoal - merece ser evocado por reivindicar a legitimidade de um corpo que escapa aos binarismos a partir de um pensamento anticapacitista. Ele nos ajuda a perceber que apesar de as práticas ortodoxas da escrita serem revisitadas por grandes teóricas/os/xs, é necessário questionar a exigência de adequação daquele que não pode entregar o que uma sociedade toda e/o/x impele.

Apoiamo-nos no termo diverCISdade, enquanto uma diversidade que se elabora como esteio aceito que não ampara todos os corpos e sujeitas/os/es/xs. Segundo Brah2222 Brah A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cad Pagu 2006; 26:329-376., o termo se abre como estética inclusiva que se projeta como questão contingente, operando sobre a diferença transformando-a de desigualdade, exploração e opressão em expressão legitima de igualdade, diversidade e formas democráticas de agência pública.

Ainda, vale retomar a experiência memorializada sob os efeitos da corponormatividade de uma visão interpretada como “errada ou fora de lugar”. Uma cena recordada como analisador destes movimentos, é destacada por York1616 York SW. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des(a)fiando e ocupando os "cistemas" de Pós-Graduação [Internet]. [acessado 2022 abr 19] 2020. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/16716.
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quando sua deficiência visual monocular era objeto de chacota, nomeada como caolho. Na sua infância seu corpo denunciava seu aleijamento, seu contexto crip, submetendo sua deficiência a um julgamento corponormativo.

Imerso no capacitismo das diverCISdades, o corpo que tensiona múltiplas gramáticas precisa estar “apto” senão o preço da política dessas gramáticas, sempre hegemônicas, atuarão prescritivamente para retirá-lo de cena. Ao pensarmos a partir de várias perspectivas e chaves analíticas, mais do que acionar aspectos normativos e excludentes, apresenta-se o sentido do possível a cada corpo não autorizado, não legitimado e não representável à sociedade.

A gramática capacitista nas dobras com a lógica adultocêntrica

Não temos a criança e a infância como universais. Assim, como trabalhamos com desnaturalizações de corpo e gênero nas seções anteriores, falamos de construções sociais, o que não significa que deixem de existir as sujeitas/os/es/xs concretas/os/es/xs com suas necessidades. Destacamos que as crianças e adolescentes intersexo e com deficiências são legítimos em sua existência. Orientar-se pela ideia de construção social é reconhecer a historicidade e a potência política da vida. É compreender que crianças são várias, infâncias são múltiplas e que sobre sujeitas/os/es/xs concretas/os/es/xs incidem expectativas, valores, investimentos. Encenam-se debates, locais de fala e ausências, apagamentos. A partir disso, as suas necessidades mais básicas transformam-se em demandas que são social e culturalmente construídas. Estamos alimentadas pelas humanidades nessa construção que pretende fazer pensar a saúde coletiva.

No caso das crianças, a gramática sensibiliza o imaginário da proteção, mas um imaginário que a relega à condição de ser menor, quase um não sujeitas/os/es/xs. Essa proteção é um mecanismo essencial para que a criança construa o mim a partir da relação consigo e com as/os/es/xs outres de referência. Como um cuidado essencial, ela faz parte dos chamados processos de sociação22 Simmel G. Questões Fundamentais de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar; 2006. que colocam a criança em contato com normas para a ação e com as expectativas da/do/de/dx outre. Assim, ela/o/e/x compartilha e participa de interações sociais reguladas. Nesse processo operam três movimentos de construção assentados na intersubjetividade e na interdependência: “autorrespeito”, “autoestima” e “autorrealização”.

Se nas interações sociais falharem as dimensões da reciprocidade no reconhecimento da/do/de/dx outre como sujeita/o/e/x de direitos, irá falhar o que se nomeia autoestima. Ou seja, se em Honneth1Honneth A. A Luta pelo reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos sociais. Coimbra: Ed. 70: 2011. ganha destaque o radical “auto”, é importante que esse auto não seja interpretado como um isolamento individualista, mas um auto que se constrói na intersubjetividade, no jogo das relações. Ou seja, é preciso internalizar referências múltiplas no jogo intersubjetivo.

A “autorrealização” se relaciona com a consciência de que a/o/x outre existe e é diferente de mim e, portanto, nela/o/x reside o reconhecimento. Além disso, a “autorrealização” aciona a consciência de que somos seres únicos, e transforma-se em “autorrespeito”. Honneth1Honneth A. A Luta pelo reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos sociais. Coimbra: Ed. 70: 2011. associa a sociedade ao campo da intersubjetividade e da autonomia como possibilidade de dependência positiva. Segundo o autor, o indivíduo vincula-se a uma rede de relações intersubjetivas e, portanto, é estruturalmente dependente das/os/xs outres indivíduos.

O direito a ter direitos passa pela reflexão sobre ações que comprometem as dimensões do “autorrespeito”, da “autoestima” e da “autorrealização” como constituintes da autonomia. Esta se identifica com o conceito de interdependência, que não deixa de nos remeter às bases de apoio. Autonomia, portanto, não se confunde com independência. Ela aciona o gerenciamento de redes e vínculos que se reconhecerão na interação com o autorrespeito, considerando a/o/x outre como detentor/a/e/x de direitos. Ela ganha o sentido de gerenciamento das suas dependências, com base naquilo que reafirma a todas/os/es/xs como interdependentes. Como nos lembra Butler, “Nuestras leyes y normas sociales se basan en ese modelo en el que somos seres individuales y adultos que no dependen unos de otros y nunca lo han hecho”2323 Butler J. Yo quiero ser mas debil [Internet]. [acessado 2022 abr 19]. Disponível em: https://www.elsaltodiario.com/gsnotaftershave/judith-butler-yo-quiero-ser-mas-debil.
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. A independência é uma ficção e não deve se confundir com autonomia, esta que refere vinculação, gerenciamento de dependências e interdependências, associações em redes.

A esfera de valorização social se liga à capacidade de a/o/x sujeita/o/e/x reconhecer a/o/x outre enquanto um ser valioso/a/x. Se os grupos sociais querem ter participação e estima social, devem sair da sua esfera privada para que suas atividades sejam reconhecidas exteriormente. Na perspectiva do reconhecimento dos direitos da criança, recorremos a Alanen2424 Alanen L. Estudos feministas/estudos da infância: paralelos, ligações e perspectivas. In: Castro LR, organizador. Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro: Ed. Nau, FAPERJ; 2001. p. 69-92.. A autora, sustentada pelos estudos feministas da infância, defende a necessidade de enfrentar e desconstruir a perspectiva adultocêntrica. Isso implica avançar na direção de uma perspectiva participativa e emancipatória, antídoto para desconstruir uma postura epistemológica que reduz e subjuga as crianças e adolescentes a um lugar menor, menos legítimo, subjugado, de alguém a ser vigiado, corrigido. A partir dessa ideia, sugerimos que a lógica capacitista pode se dobrar de diferentes formas no caso das crianças e adolescentes, dentre as quais destacamos duas: 1) pelo não reconhecimento de suas formas de expressão e de existência que desafiam os ideais de desenvolvimento típico; 2) pelo não reconhecimento - por parte das/os/xs adultas/os/es/xs de sua referência - de que são sujeitas/os/es/xs de uma experiência que se dá em seu corpo.

Se falamos de crianças no plural, esta pluralidade deve rimar com a diversidade de raça/etnia, identidade de gênero, orientação sexual, faixa etária, deficiência. classe e os quadros complexos e raros de saúde. Nessa direção, Goodley et al.2525 Goodley D, Runswick-Cole K, Liddiard K. The DisHuman child. Discourse 2016; 37(5):770-784., assinalam a necessidade de situar conceitos que organizariam a existência humana, como desenvolvimento, família e sexualidade, sustentando o diálogo entre crianças e jovens com deficiência nas gramáticas de abusos, negligência e marginalização. Assim, também exploram a associação entre o corpo da pessoa com deficiência e a monstruosidade. Nesse caso, viver com uma deficiência cognitiva severa, por exemplo, é ser sequestrada/o/e/x da categoria de humano, por não estar inscrito nas gramáticas da capacidade, de um modelo esperado de corpo e desenvolvimento. Na base desse modelo que desumaniza as crianças e adolescentes com deficiência, estão situados os ideais de “normalidade”, “estado normal” e “corponormatividade”.

Ao resgatarmos as gramáticas do capacitismo, reconhecemos, ainda, a crítica à postura adultocêntrica, por ser uma conduta que julga crianças e adolescentes como seres a serem vigiados, controlados e corrigidos e que é fundante de uma certa forma de produzir saúde e educação com base em um “vir a ser”, em um desenvolvimento baseado em padrões de referência de comportamentos e moralidades. Por isso, acreditamos que uma perspectiva feminista decolonial que politize a deficiência é necessária para que possamos fazer-se “corpos em aliança”2626 Butler J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2018., transgredindo todas as fronteiras dos CIStemas corponormativos, incorporando e valorizando as diferentes possibilidades de habitar corpos atípicos.

Apoiado em autores/as que discutem teorias de justiça corporal, Ortega2727 Ortega F. Deficiência como um desafio para uma teoria da justiça corporal. In: Pinheiro R, Gerhardt TE, Silva Junior AG, Di Leo PF, Ponce M, Venturiello MP, organizadores. Cultura do cuidado e cuidado na cultura: dilemas, desafios e avanços para efetivação da integralidade em saúde no Mercosul. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS-UERJ, ABRASCO; 2015.(p.229) demonstra o modo como uma “compreensão instrumental da corporeidade” orienta discursos jurídicos contemporâneos que expressam noções de corpo, que classificam como cidadãs/ãos/nes inferiores aquelas/es/xs que escapam a essas normatizações. O autor se apoia no conceito de “dis-cidadania” - dis-citizenship - para demarcar a cidadania desigual que se produz nessas relações. Pessoas com deficiência, pessoas trans e intersexos, assim como crianças e adolescentes e outros grupos sociais, vivenciam cotidianamente essa cidadania inferior, fruto de uma lógica capacitista orientada por uma leitura de corpo integralmente funcional e produtivo que essas/es/xs sujeitas/os/es/xs não poderiam verdadeiramente alcançar.

Discursos que corroboram a inferioridade da infância nas relações sociais podem ser percebidos em diferentes contextos. Um dos mais marcantes é a ideia de infantilização, presente em discursos morais e críticos sobre deficiência e envelhecimento, por exemplo. A lógica capacitista é também operada quando movimentos de pessoas com deficiência ou de pessoas idosas reivindicam um tratamento não infantilizado, respeitando a/o sujeita/o/e/x na sua autonomia para a tomada de decisões. Nesse exemplo discursivo, a infância é tomada como lócus de inferioridade, de escuta menorizada ou inexistente, lugar de não reconhecimento, de invisibilidade. Reivindica-se o reconhecimento da/do/dx adulta/o/e/x, ou seja, o reconhecimento de um/a outre digna/o/e/x de respeito, um/a outre que não é criança. No caso do período gestacional, a lógica de produtividade e os ideais de capacidade atravessam a infância de diferentes modos. São diversas as tecnologias de monitoramento fetal que se constituem como dispositivos produtores de subjetividade, construindo os referenciais de normalidade esperados pelas famílias e pela sociedade. O que escapa ao padrão frequentemente é recebido como inesperado, indesejável, trágico.

Quando se trata de crianças com deficiência, padrões de desenvolvimento são esperados para cada caso; contudo, dispositivos dessa natureza são expostos de tempos em tempos. Um exemplo recente reside na experiencia de vida das crianças nascidas com a síndrome congênita do vírus Zika, cujas existências criaram para si modelos próprios de desenvolvimento ainda desconhecidos por especialistas. Diante de tal desconhecimento, uma das primeiras expressões da lógica capacitista emergiu nos discursos que questionaram a continuidade de tais existências marcadas por características tão singulares, colocando em questão, mais uma vez, a capacidade da vida que escapa aos padrões corporais hoje reconhecidos.

As expectativas em torno da sexualidade das crianças também compõem as relações sociais desde a gestação, quando referências de gênero lhes são atribuídas antes mesmo do nascimento. Roupas, acessórios, brinquedos e até mesmo cores são pensadas de modo a produzir distinções que se baseiam no binarismo feminino-masculino, gerando profundas tensões quando não correspondidas no decorrer do desenvolvimento da criança. Tais conflitos atravessam o campo da saúde desde a mais tenra idade, pois uma das pautas em torno da diversidade de gênero é o cuidado baseado em terapias hormonais em crianças, questão ainda tratada com polêmica em vários setores da sociedade brasileira.

Por razões distintas, a diversidade corporal, em torno do gênero, do adoecimento crônico complexo ou da deficiência, compõe infâncias e organizam as relações das crianças e adolescentes no e com o mundo. Contudo, é recente o reconhecimento dessa singularidade a partir de discursos explícitos em dispositivos normativos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), apesar de mencionar a liberdade religiosa e de crença, a não discriminação por motivo de deficiência, cor e raça, condição de saúde e situação familiar, dentre outros, não reconhece o gênero como categoria estruturante das relações sociais2828 Haraway D. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu 1995; 5:7-41.. Na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), crianças são consideradas especialmente vulneráveis. Esta última, em relação à saúde, é a primeira legislação brasileira sobre o tema a destacar o “respeito à especificidade, à identidade de gênero e à orientação sexual da pessoa com deficiência”(Art. 18, p. 4º, VI)2929 Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União 1990; 16 jul..

Estes e outros dispositivos inspiraram, no ano de 2018, a elaboração da Resolução Conjunta Nº 1, entre o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA) e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE). Este documento tratou especialmente do atendimento de crianças e adolescentes com deficiência no Sistema de Garantia de Direitos (SGD) e apresentou importantes diretrizes, dentre as quais destacam-se o atendimento junto aos demais públicos e sem segregação, o livre exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, o respeito à sua orientação sexual e identidade de gênero, além do não tratamento diferenciado de sua faixa etária3030 Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015; 7 jul..

Tais diretrizes contribuem para a formulação de políticas públicas, linhas de cuidado e de atenção dispostas a enfrentar a lógica capacitista constituinte das relações sociais, com possibilidade de estimular outras percepções acerca da categoria infância e da multiplicidade de modos de ser criança. As barreiras produzidas e reproduzidas por essas práticas discriminatórias incidindo sobre o corpo, demandam reflexões suficientemente fortes para subverter ideias normalizadoras de corporeidade, capacidade e autonomia. Os estudos sobre deficiência (Disability Studies) têm se apresentado como importante ferramenta teórica nessa direção.

Sob o bordão “Eu sou meu corpo”, apostamos que esse ensaio implica na necessidade de deslocarmos a compreensão da/o/e/x sujeita/o/e/x epistemológico para a/o/e/x sujeita/o/e/x encarnado, produzindo e valorizando locais de fala a partir de saberes localizados e parciais2828 Haraway D. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu 1995; 5:7-41., com suas histórias de vida e experiências encarnadas. O local de fala parte da posição e situação relacional de quem se autoriza com domínio, usando também o corpo como um conjunto de significações vividas que seguem no sentido de seu próprio equilíbrio. No caso das mulheres com deficiência, muitas das vezes elas foram ignoradas e/ou desacreditadas como sujeitas pelo feminismo, em nome de uma homogeneização da categoria “mulher”, contribuindo também para o apagamento da dimensão da experiência da deficiência e de suas intersecções com sexualidade, raça/etnia e classe. Esse raciocínio não é diferente do apresentado neste ensaio, com as experiências das crianças e das pessoas intersexo.

Considerações finais

Ao escrevermos sobre as gramáticas do capacitismo, nossa intenção é também “ocupar a deficiência” com a pluralidade de nossas posições e lugares de contestação, mostrando como a deficiência emerge enquanto categoria de análise por estar sempre nas relações com outros marcadores sociais de diferença, tais como o gênero e a infância apresentados neste ensaio.

Ao ampliarmos a discussão sobre capacitismo para além de uma lógica restrita à avaliação e discriminação do corpo com deficiência, também reconhecemos a necessidade de ampliar essa discussão para contemplar outras matrizes de opressão, principalmente o racismo, lacuna já reconhecida e justificada neste ensaio.

Assumimos a lógica capacitista como uma gramática que organiza de forma disciplinar, dispersa e efetiva, um conjunto de racionalidades. Estas operam na instituição de autoridades baseadas no ideário da capacidade corponormativa, na língua e em uma moralidade que se assume nas práticas e saberes que corrigem ou defendem a correção dos corpos com deficiência e intersexo.

Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio as autoras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2022
  • Aceito
    13 Maio 2022
  • Publicado
    15 Maio 2022
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