O drama dos artistas na pandemia brasileira

Rafael da Silva Malhão Arlei Sander Damo Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar os dramas experenciados por artistas brasileiros durante o período da pandemia da COVID-19. A investigação integra um dos eixos de uma pesquisa mais ampla, acerca dos impactos sociais da pandemia no Brasil. Inicialmente, argumenta-se que a pandemia é um evento crítico com múltiplas escalas, que impacta de modos desiguais as populações, como é o caso dos profissionais do mundo artístico, em si mesmo um campo heterodoxo em termos de especialidades, remuneração, que já vinha sofrendo com os impactos da redução de investimentos em políticas públicas na área cultural desde meados da década de 2010. Tendo em vista as medidas de enfrentamento à pandemia, dentre as quais a restrição às aglomerações, os eventos artísticos foram interditos e os profissionais impossibilitados de atuar de maneira convencional, gerando problemas de ordem econômica e sofrimento psíquico. O artigo explora o relato dramático de alguns desses profissionais, destacando as estratégias adotadas para fazer frente à crise decorrente da impossibilidade de atuação, da escassez de políticas públicas para o setor e o desdém às artes e à cultura por parte da elite política e econômica nacional. Foram realizadas entrevistas em profundidade com artistas cênicos, músicos e DJs entre os meses de agosto e dezembro de 2020.

Palavras-chave:
Arte; COVID-19; Infraestrutura; Economia; Internet

Eventos críticos, escalas e mundo artístico

De um ponto de vista socioantropológico, pandemias constituem uma modalidade de megaevento não planejado que interrompe o fluxo da vida ordinária em escalas diversas e suscitando crises de natureza e extensão variadas. O conceito de escala que faremos uso aqui incorpora algo mais do que a simples ideia de amplitude - de índices geográficos, econômicos, casos diagnosticados, óbitos etc. - ou de qualquer outra variável com conotação quantitativa. Dados quantitativos são essenciais para a compreensão dos eventos pandêmicos e dos impactos ou dos meios de remediá-los. Todavia, há uma realidade que os acompanha, porque uma pandemia não acontece, concretamente, entre populações que já não estejam situadas do ponto de vista social, econômico e cultural. Daí porque quanto maior a escala, em perspectiva quantitativa, mais diversificados são os efeitos de uma pandemia sobre as populações.

O conceito, tal qual operacionalizamos aqui foi forjado por Tsing11 Tsing AL. The Global Situation. Cult Anthropol 2000; 15(3):327-360., no contexto da intensificação da globalização, no qual se confrontavam abordagens distintas, uma delas enfocando a suposta homogeneização das identidades e tradições - decorrentes do aumento dos intercâmbios de pessoas, informações e coisas - e outra afirmando as resistências locais e até o enriquecimento dessas tradições a partir da alocação de recursos exógenos. Com o conceito de escala, Tsing11 Tsing AL. The Global Situation. Cult Anthropol 2000; 15(3):327-360. pretendia escapar dos maniqueísmos e, sobretudo, enfatizar os aspectos discursivos, as conexões entre eventos de naturezas distintas e as controvérsias suscitadas.

A pandemia é um evento crítico22 Das V. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. New Delhi: Oxford University Press; 1995. com múltiplas escalas, que impacta de modos desiguais as populações. Pensar a pandemia a partir da noção de eventos críticos implica ir além das mudanças de rotinas mais óbvias, que para certos segmentos de pessoas não implicou mais do que uma reacomodação temporária dos modos de vida. Certos eventos são críticos justamente porque implicam num potencial disruptivo cujos efeitos podem ser prolongados e até irreversíveis - como no caso de morte. A utilização do conceito inspirado em Das22 Das V. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. New Delhi: Oxford University Press; 1995. sugere um olhar mais acurado para a violência inerente à disrupção e as formas desiguais com que pessoas e grupos sociais são alcançados - ou não - pelas biopolíticas reparatórias. Neste sentido, pode-se afirmar, desde o ponto de partida, que os profissionais do mundo artístico, em si mesmo um campo heterodoxo em termos de especialidades, competências e remunerações, estiveram entre os grupos mais impactados pelas medidas necessárias de enfrentamento à pandemia. A restrição às aglomerações e, por extensão, o cancelamento de eventos artísticos impossibilitaram as atuações de maneira convencional.

O artigo explora o relato dramático de alguns desses profissionais, destacando os dilemas e as principais estratégias adotadas para fazer frente à crise decorrente da impossibilidade de atuação e da escassez de políticas públicas para o setor. Como seria de esperar, o prolongamento da pandemia e a precariedade do trabalho de muitos desses profissionais, gerou angústia e adoecimento, confirmando uma constatação já explicitada pela mesma Das33 Das V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press; 2015., de que o potencial de aflição e corrosão da vida cotidiana variam significativamente quando um mesmo evento - a pandemia, por exemplo - encontra cenários já precarizados. Enquanto o trabalho de Das33 Das V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press; 2015. explora a relação do adoecimento com a pobreza e seus impactos na vida cotidiana, aqui procuramos mostrar a aflição que o evento pandêmico, ameaçador por si só, gerou entre artistas que se viram impedidos de atuar, com enorme dificuldade de adequar suas performances ao meio digital e desassistidos pelas políticas públicas, num contexto político e cultural brasileiro de desvalorização da arte e da cultura.

O presente artigo é o resultado de uma das frentes de pesquisa do projeto Rede Covid-19 Humanidades (https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br), que tem como objetivo identificar os impactos sociais da pandemia entre profissionais da saúde e grupos sociais vulneráveis previamente definidos - idosos, população em situação de rua, cicloentregadores, entre outros. Os artistas foram incorporados à pesquisa na medida em que se estendeu o tempo de duração da pandemia e, por extensão, das restrições a eventos que promoviam aglomerações. As entrevistas que subsidiam as reflexões apresentadas aqui ocorreram entre os meses de agosto e dezembro de 2020, por videoconferências síncronas ou por meio de mensagens de áudio assíncronas, através de aplicativos de troca de mensagens (Whatsapp). As entrevistas seguiram uma combinação da técnica de “entrevista narrativa” que é “considerada uma forma de entrevista não estruturada, de profundidade, com características específicas”44 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: Bauer M, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2008. p. 90-113.(p.95) com “entrevistas episódicas”55 Flick U. Entrevista episódica. In: Bauer M, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2008. p. 114-136.. O fio condutor da interlocução foi a reflexão dos entrevistados sobre os impactos da pandemia em relação as suas trajetórias profissionais desde uma perspectiva autobiográfica e foram codificadas com o auxílio do software Nvivo 12. A fase de preparação das entrevistas foi realizada por meio de uma pesquisa de material jornalístico sobre os impactos da pandemia no setor de entretenimento com o intuito de elencar os tópicos que estruturariam a interlocução.

Performatividade, infraestruturas e transposições

Uma das principais questões suscitadas nas entrevistas, que impactou a quase totalidade dos interlocutores, foi a dificuldade de adequação das performances às infraestruturas remotas. Em que pese o trabalho remoto tenha se tornado rotina com a pandemia, com estratégias mais ou menos bem-sucedidas, há certas especificidades próprias ao mundo artístico que precisam ser consideradas para se compreender as razões pelas quais, nesta escala, a transposição do formato convencional para o remoto enfrentou múltiplas resistências. Num texto clássico sobre performance, Zumthor66 Zumthor P. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC; 2000. chamou a atenção para o fato de que esta não depende apenas da atuação dos artistas, de suas técnicas e/ou instrumentos. O cenário no qual a performance é realizada faz parte do espetáculo, pois contribui na mobilização dos artistas e do público. Até os artistas de rua, ao iniciarem suas apresentações, demarcam tais cenários - com a formação de um círculo com água, por exemplo - como condição indispensável para inscrever um espaço-tempo próprio, indispensável ao artista e ao espetáculo, mas também ao público, instado a uma transição estética: emocional, imaginária e interativa. Sem esta transição a realização artística não decola; a espetacularidade não se realiza e a performance não alcança a ressonância devida.

Para compor os cenários, as infraestruturas são, portanto, essenciais. Não basta ter um computador com acesso à internet para que o ambiente adquira um componente propício à realização ou à assistência de determinada performance; há a necessidade de câmeras, por vezes mais de uma, com os smartphones convertidos em câmeras auxiliares, o que por vezes demanda conhecimentos técnicos em informática que não fazem parte da rotina dos artistas. Uma aula remota pode suportar sons com ruídos, imagens distorcidas e até travamentos eventuais, mas isso não é tolerado para o caso de uma performance musical. Há que se considerar, ainda, que uma das razões pelas quais os espectadores são levados a procurar por espetáculos ao vivo é justamente a interação - com o ambiente, o artista, o público etc. Se for o caso de escolher uma gravação, a internet e as plataformas de streamings já dispõem de quantidade e variedade de produções qualificadas, que desencorajam, de saída, as iniciativas de artistas não consagrados, como no caso de alguns dos músicos de boteco ou de Disc-jockey (DJs) que entrevistamos.

Mais sensível do que outras atividades profissionais, aquelas do mundo artístico demandam a montagem de um cenário. DJs, músicos e artistas em geral necessitam equipamentos e instrumentos que não estão à disposição em suas casas. Neste sentido, houve a necessidade investimentos para a aquisição de equipamentos adequados às performances on-line ou tempo para o aprendizado de conhecimentos sobre como manipular áudio e vídeo em ambientes digitais. As experiências dos DJs, sob este aspecto, são distintas dos músicos e dos artistas cênicos, pois os DJs, em certa medida, já habitavam o espaço digital antes da pandemia, situação que acabou favorecendo-os nessa migração forçada. Apesar disso, os DJs enfrentaram uma outra ordem de problemas, atinentes aos direitos autorais.

Um outro desafio imposto pelas tecnologias digitais em atividades sincrônicas on-line foi o delay (atraso) causado, principalmente, pela qualidade do sinal de internet, mas também pela instabilidade das plataformas. Esse problema não foi privilégio dos artistas que tentaram transpor suas performances para o meio digital. Muitos deles também tiveram complicações com as atividades docentes - aulas de instrumentos, de teatro (infantil, sobretudo) e de expressão corporal - usadas como complementação de renda. Esse problema da infraestrutura de transmissão de áudio e vídeo para a internet acrescentou uma camada de dificuldade para aulas em que há a necessidade de observação, correção e adequação de técnicas corporais específicas, como ajustes nas posições dos dedos de uma criança no braço do violino para que ela possa tocar a nota ou acorde correto ou na execução de um movimento de expressão corporal. O delay e a dificuldade de comunicação direta dificultaram e mesmo desestimularam a realização de muitas atividades, com o cancelamento de aulas particulares e consequente perda de renda. Em linhas gerais, as dificuldades com a infraestrutura tecnológica acrescentaram mais desafios à já instável condição financeira dos artistas.

O delay intensificou o cansaço pelo excesso de atividades digitais, como destacou Personal Kid (43 anos, artista cênico e professor de teatro, dança e educação física); as dificuldades de adaptação das aulas de dança para o contexto on-line eram quase intransponíveis, pois as demonstrações de parte do professor não eram são acompanhados pelo aluno. Se para outras atividades o delay não chegou a constituir um problema incontornável, para aulas/ensaios de dança, de teatro e música ele tornou a atividade maçante, cansativa e desestimulante, para professor e aluno.

As dificuldades apresentadas suscitam um debate que esteve muito em voga no início da popularização da Internet, sobre exclusão digital77 Santos LG. Informação após a virada cibernética. In: Santos LG, Kehl MR, Kucinski B, Pinheiro W. Revolução tecnológica, internet e socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2003. p. 9-33.,88 Martins H, Garcia JL. A Hegemonia cibertecnológica em curso: uma perspectiva crítica. In: Martinho TD, Lopes JT, Garcia JL, organizadores. Cultura e Digital em Portugal. Lisboa: Ed. Afrontamento; 2013. p. 19-37.. Naquele momento o ponto focal tinha uma dimensão geopolítica internacional; se pensava em como se dariam as relações com as tecnologias digitais - no confronto entre as do Norte e as do Sul Global -, tendo havido políticas de transferência tecnológica, o que não significou uma produção de igualização completa. Castells99 Castells M. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura, Volume I. São Paulo: Paz e Terra; 2011. pautou a dimensão das desigualdades tecnológicas que se desenhavam dessa forma: “as redes globais [que] incluíam algumas pessoas e territórios e excluíam outros, induzindo, assim, uma geografia de desigualdade social, econômica e tecnológica”(p.II). O debate nas sociedades “desenvolvidas” centrava-se entre os que eram “nativos digitais” e os “naturalizados digitais”, os que tiveram que se adaptar as mudanças emergentes88 Martins H, Garcia JL. A Hegemonia cibertecnológica em curso: uma perspectiva crítica. In: Martinho TD, Lopes JT, Garcia JL, organizadores. Cultura e Digital em Portugal. Lisboa: Ed. Afrontamento; 2013. p. 19-37.(p.25). Com a pandemia houve a necessidade de um letramento digital acelerado diante da migração massiva das atividades laborais, o que em termos tecnopolíticos e econômicos apresenta-se como uma grande oportunidade para as big-techs1010 Morozov E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora; 2018.. Aos trabalhadores, no mais das vezes, o resultado é a exaustão psíquica e cognitiva, tendo o planeta se transformado um laboratório de testes para os limites e possibilidades da economia da atenção em um capitalismo informacional1111 Crary J. Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify; 2014.. É possível, neste sentido, inferir que a ascensão da economização da atenção é acompanhada em sentido inverso pela despolitização da relação com as tecnologias, em especial com as digitais. Como observado por Morozov1010 Morozov E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora; 2018., acerca da condição atual da relação humanos e tecnologias: “[...] sensores, celulares e aplicativos: são esses os tampões de ouvido da nossa geração. O fato de não percebermos mais como eles eliminam tudo o que cheira a política em nossas vidas é, por si só, revelador: a surdez - a injustiça e à desigualdade, mas acima de tudo ao nosso próprio e lamentável estado das coisas - é o preço que pagamos por essa dose de conforto imediato”(p.80).

O que fica evidente é que as infraestruturas técnicas são fundamentais tanto para o desenvolvimento das habilidades artísticas e pedagógicas quanto para a distribuição das desigualdades como destaca Personal Kid:

Eu tava em projetos sociais aonde tinha que dominar tudo para explicar para o aluno. Eu não sabia também. [...] Então me deparo com uma máquina que tem que saber todos os comandos, e o que fazer, e ainda ajudar o outro que está do outro lado da tela como fazer.

A esta dimensão do letramento digital soma-se a dimensão do investimento econômico e adaptação do espaço para a manutenção das atividades profissionais, como destaca Diana (25 anos, cantora e professora, licenciada em música e mestranda em educação):

Gastei muito mais dinheiro agora com minhas aulas on-lines [...]. Eu tinha lá meu espaço com piano; eu chegava e dava minha aula. Agora tive que comprar um teclado bom, comprar quadro, comprar um microfone, comprar um ring light (que eu não sabia que podia ser tão caro!). Então, é um investimento.

Monetização: transformação dos agenciamentos mercadológicos artísticos

Os agenciamentos mercadológicos1212 Callon M. Qu'est-ce qu'un agencement marchand? In: Callon M, Akrich M, Dubuisson-Quellier S, Grandclément C, Hennion A, Latour B, Mallard A, Méadel C, Muniesa F, Rabeharisoa V. Sociologie des agencements marchands: Textes choisis. Paris: Presses des Mines; 2013. p. 325-441. no mundo artístico não passaram ilesos pela pandemia, antes pelo contrário, contribuíram para constituí-la enquanto um evento crítico22 Das V. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India. New Delhi: Oxford University Press; 1995.. Todas essas formas de atuação no mercado artístico demandam distintas ativações ou reativações de agenciamentos mercadológicos, modos pelos quais uma dada performance é passível (ou não) de se tornar uma mercadoria ou, para ir direto ao ponto, de vir a ser monetizada.

As produções artísticas não nascem prontas para o mercado, elas precisam ser ajustadas a partir de uma série de agenciamentos, que em geral são heterogêneos e variáveis conforme os diferentes circuitos, em termos de natureza, qualidade, especificidade, entre outros. No mundo pré-COVID-19 muitos artistas cênicos tinham no fomento público à cultura um dos principais instrumentos de viabilização das suas atividades laborais, ajustados a circuitos vinculados a escolas e projetos sociais mantidos por meio de investimentos públicos. Já os DJs são menos susceptíveis a tais agenciamentos, exceto aqueles vinculados à cultura hip hop, em que a sua atuação está vinculada a produção de eventos culturais que buscam consolidar essa expressão da cultura urbana. Entre os músicos a distinção se dá entre aqueles que têm um trabalho autoral, com atuação independente, e aqueles que não têm. Essa distinção é válida para a proposição de projetos que se beneficiam dos mecanismos de financiamento público, embora músicos não autorais atuem como convidados em projetos que vão desde a gravação de álbum de artista já consagrado até a narração ou canto em livros de áudio infantis.

Portanto, para os artistas cênicos o Estado é um agente central na constituição do seu mercado, seja pelo fomento direto à cultura seja via educação, transitando entre os circuitos educacionais - com suporte estatal - e aqueles voltados para o entretenimento, agenciados pela indústria cultural, em que o Estado se restringe a um papel de regulação. O que diferencia o tipo de composição é o bem simbólico oferecido como produto. Os músicos autorais tendem a recorrer mais aos mecanismos públicos de financiamento da cultura, enquanto os músicos que trabalham majoritariamente com covers tendem a constituir seu mercado no circuito do entretenimento, como é o caso dos DJs. Então, os DJs, podemos dizer, estão mais acoplados ao que seria o mercado de entretenimento, que, de modo geral, se articula prescindindo dos financiamentos estatais, ainda que não completamente.

No contexto pandêmico emergiu a necessidade de reconfiguração dos agenciamentos já estabelecidos. O sucesso no meio digital - de influenciadores, por exemplo - ainda é desafiador à compreensão das ciências sociais, uma vez que algumas performances aparentemente banais conseguem monetizar somas vultosas sem que haja uma estratégia precisa para isso. Monetizar bens culturais não é impossível, mas os caminhos são pedregosos e com a pandemia a concorrência só aumentou. Na migração para o digital, configurada como uma das poucas alternativas disponíveis, houve a necessidade de adaptar o processo de passivação dos bens, isto é, transformações que proporcionassem as condições para que os objetos fossem valorados de forma positiva e angariando um público disposto a pagar pelo consumo desses produtos1212 Callon M. Qu'est-ce qu'un agencement marchand? In: Callon M, Akrich M, Dubuisson-Quellier S, Grandclément C, Hennion A, Latour B, Mallard A, Méadel C, Muniesa F, Rabeharisoa V. Sociologie des agencements marchands: Textes choisis. Paris: Presses des Mines; 2013. p. 325-441.(p.356-357).

As condições materiais da vida artística já eram um desafio antes da pandemia, em geral havendo mais oferta do que demanda ou a concentração da demanda, o que produz diferenças abissais entre as diferentes possibilidades de ganhos. Mesmo os artistas que já tinham seus circuitos de ativação e agenciamentos mercadológicos estabelecidos enfrentaram dificuldades, mas pode-se dizer que os impactos foram mais drásticos na base da pirâmide, onde se concentram aqueles que dependem do fomento estatal combinado à participação em editais privados veiculados pela Lei Rouanet (Lei nº 8.313/1991), além do trânsito em diferentes eventos sociais, feiras e atividades comunitárias. A Lei Rouanet é o principal mecanismo de fomento ao setor cultural no Brasil, ela funciona por meio do incentivo fiscal, movimentando um volume de verbas significativamente superior ao que é movimentado por meio dos fundos de cultura estaduais ou pelo Fundo Nacional de Cultura (FNC). A lei foi instituída no ano de 1991 pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), com o intuito de incentivar a captação de verbas pelos artistas com a contrapartida de isenção fiscal para as pessoas físicas ou jurídicas que subsidiassem atividades culturais.

As táticas1313 Certeau M. A invenção do cotidiano: Artes de fazer Vol 1. Petrópolis: Editora Vozes; 1998. de monetização dos artistas da base da pirâmide se assentam, prioritariamente, na articulação de agenciamentos locais que, por seu turno, estão fortemente vinculados ao fluxo ordinário da vida. As pessoas não deixaram de ouvir música durante a pandemia, mas foram canceladas as feiras locais (em cujas programações há shows), as festas comunitárias (bailes, matinês) e até os sepultamentos tiveram seus rituais abreviados - entre os serviços funerários em grandes centros urbanos é corrente a oferta de performances musicais para homenagear os mortos1414 Neves MFA, Damo AS. Dinheiro, emoção e agência: uma etnografia no mercado funerário de Porto Alegre. Mana 2016; 22(1):7-36..

Como passar este circuito convencional para à produção on-line? No espaço digital há uma ampla oferta de conteúdo gratuito, o que resulta em uma resistência por parte do público em pagar por conteúdos, tanto mais se forem de qualidade duvidosa. A monetização por meio das plataformas digitais demanda escalas de público, cliques e horas de conteúdo que muitos artistas não dispõem ou não dispunham quando da emergência da pandemia; seus públicos eram mais localizados, um tipo de mercado que não demandava a produção de conteúdo digital para sua manutenção.

A experiência e a percepção das exclusões tecnológicas não são homogêneas entre DJs, músicos e artistas cênicos, bem como nas formas de se posicionar diante da migração forçada para o ambiente digital. Os DJs, mais familiarizados com as tecnologias digitais, não relataram problemas de ambientação, mas enfatizaram a preocupação com as plataformas de live streaming, uma vez que suas apresentações poderiam ser bloqueadas por direitos autorais. Os DJs entrevistados argumentaram que suas performances contribuem na divulgação do trabalho de outros artistas e que as plataformas digitais precisam adotar políticas de direitos autorais distintas em relação a eles. Uma alternativa pensada para esse conflito no triângulo DJs-plataformas de streaming-gravadoras foi um cadastro específico para DJs, distinto dos demais usuários, que permitisse a execução de músicas de forma menos restritiva pelos direitos autorais. Do ponto de vista dos DJs, as execuções musicais ajudariam na divulgação do trabalho do artista que produziu a música. Ou seja, não seria apenas uma apropriação para benefício próprio, e sim uma contribuição para a construção e fortalecimento do campo cultural de uma forma mais ampla, seria uma espécie de trabalho de divulgação cultural.

Em um primeiro momento os DJs passaram por um período de experimentação das diferentes plataformas para conseguirem construir parâmetros de prós e contras, pois a monetização, o acesso facilitado e a regulação por direitos autorais andam juntas. Em um primeiro momento as apresentações transitaram entre as principais plataformas e redes sociais como Facebook, Instagram e Youtube; logo em seguida vieram compor este ecossistema de transmissão on-line a Twitch (de propriedade de Amazon, com foco em transmissões ao vivo de jogos eletrônicos e suas competições: https://www.twitch.tv/p/pt-br/about/) e a Shotgun (plataforma dedicada exclusivamente à transmissão de festivais, shows e festas). Nesta plataforma os espectadores podem selecionar eventos, festas, coletivos e artistas a partir de sua localização geográfica, nacional e municipal (https://pro.shotgun.live/pt). A Shotgun logo se estabeleceu como a preferida dos DJs, que passaram a contar com táticas de contribuição dos espectadores por meio de plataformas de financiamento via QR code ou aplicativos de carteira eletrônica.

A combinação entre plataformas mais permissivas com relação aos direitos autorais e as de financiamento e carteiras eletrônicas associadas formaram o ecossistema de transmissão ininterrupta e com alto potencial de monetização. Outra possibilidade acrescida a esse ecossistema foram as plataformas e softwares de multistream, como Restream e o OBS Studio, isto é, serviços que permitem a transmissão de live stream em todas as redes sociais e plataformas de vídeo simultaneamente, o que contornou dois problemas de uma só vez: a democratização dos acessos e a utilização de materiais protegidos por direitos autorais sem com isso ter a transmissão inviabilizada. Talvez por estes motivos a Twitch tenha se estabelecido como o canal principal de transmissão. Além de sua postura permissiva com relação aos direitos autorais, qualidade de áudio e vídeo superiores, a plataforma disponibiliza uma ferramenta chamada raid, que permite a quem faz a transmissão a transferência do seu público para outra live por ele indicada. Tal ferramenta vem influenciando na organização das transmissões dos DJs e criando redes de apoio. Afinal, nem todos os DJs são publicamente reconhecidos, mas em alguns casos são reconhecidos por seus pares, o que permite com que os DJs mais famosos apoiem seus colegas transferindo seu público para os colegas menos famosos.

O DJ Trance (39 anos, porto alegrense e em setembro de 2020 contava com 47 milhões de plays no Spotify) aponta para um possível futuro das plataformas de streaming em que a experiência proporcionada se assenta em conteúdos musicais:

A minha percepção, [...] é de que vai existir um Netflix de festas. [...]Hoje se eu for fazer uma live eu não vou conseguir rentabilizar, mas vejo que esse é o movimento que começa pelos majors.

Em certo sentido, a Twitch e Shotgun prefiguram este movimento. Afinal, oferecem serviços de streaming direcionados a públicos específicos segundo preferencias musicais, a produção de conteúdo não depende das plataformas, mas sim dos seus usuários, que, inclusive, podem criar assinaturas pagas para os conteúdos por eles produzidos, gerando uma monetização direta.

Estes são os desafios que os DJs têm enfrentado e são em parte compartilhados com os músicos. Já para os artistas cênicos o cenário é mais adverso, pois muitos tinham, no cenário pré-pandemia, a monetização das suas atividades decorrente de prestação de serviço para o poder público local, produções independentes e a atuação em eventos, feiras e mesmo nas ruas. Com a migração para o digital muitos não dispunham da escala de seguidores e horas de conteúdos exigidos pelas plataformas on-line para a monetização imediata, tampouco a possibilidade de viabilizá-las no curto prazo. As alternativas foram desenvolvidas com os meios disponíveis, como aulas de educação física com teatro para crianças e a recitação diária de poesias pelo Whatsapp. Mas o foco se voltou para os editais de financiamento públicos e privados. Porém, estas alternativas seguem processos de seleção e implementação com temporalidades que não são compatíveis com as urgências de uma pandemia global em que todas, ou quase todas, as fontes de renda foram cortadas ou restringidas abruptamente, pelo fato de as atividades culturais serem consideradas não essenciais.

Além dos editais públicos e privados como forma de monetização de suas atividades, os artistas se viram obrigados a se dedicarem a transformação do seu savoir-fair em conteúdos pedagógicos. Os cursos e outros produtos artísticos com fluxo contínuo, como as poesias diárias enviadas por um aplicativo de mensagens, conseguem estabelecer um fluxo constante de monetização, ao mesmo tempo que ativa novas redes de circulação para o trabalho artístico, mas os ganhos mostraram-se, em geral, limitados.

No que concerne à monetização, os artistas cênicos precisaram adaptar a linguagem e os formatos específicos para se integrarem ao mundo digital, concorrendo de forma inglória com a grande quantidade de conteúdos gratuitos já disponíveis. O primeiro desafio foi em relação à questão estética, como no caso dos artistas de teatro, instigados a transpor para o espaço de uma tela a experiência de palco sem que isso se confundisse com um cinema experimental. O segundo foi a disputa pela audiência com o conteúdo gratuito, já disponível para um formato digital, inclusive no que concerne à monetização - através de patrocínios publicitários, por exemplo.

Precarização do trabalho artístico

O diretor de cinema britânico Ken Loach lançou em 2016 o filme I, Daniel Blake, que retrata a saga de um marceneiro que após sofrer um ataque cardíaco é aconselhado pelos médicos a não voltar ao trabalho, tal condição faz com que ele precise recorrer aos benefícios estatais. É aí que inicia a sua saga, pois todos os procedimentos para acesso e manutenção dos benefícios estão no mundo digital, ou seja, a burocracia estatal de assistência social é digital, pressupondo que seus usuários têm à disposição os meios tecnológicos de acesso, bem como o letramento digital para acessá-la, o que não é o caso. A dramática luta pela sobrevivência, entre as urgências cotidianas e a burocracia digital, acaba com a morte do personagem, vitimado por um segundo ataque cardíaco. O drama de Daniel Blake ilustra, em boa medida, o drama dos artistas brasileiros na pandemia.

Em primeiro lugar, traz à tona a precarização das condições de trabalho que vem se consolidando nas últimas décadas por meio de uma guerra ideológica e sedimentação dos processos de trabalho plataformizado1515 Antunes R, organizador. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo; 2020.,1616 Scholz T. Cooperativismo de plataforma: contestando a economia do compartilhamento corporativa. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Editora Elefante, Autonomia Literária; 2016. a partir das aplicações das TICs na mediação e gerenciamento de quase todas as formas de trabalho do mundo contemporâneo. A precarização, as incertezas financeiras e a impossibilidade de contar com mecanismos de bem-estar social que já faziam parte do cotidiano dos artistas antes da pandemia acentuaram-se com ela - não das celebridades, que dispõem de poupança, obviamente. Embora muitos dos entrevistados se mostrassem reticentes para tratar de seus próprios casos de sofrimento psíquico, muitos reportarem-se ao sofrimento de colegas e amigos, dada a falta de suporte durante a pandemia e da desvalorização das artes e da cultura que assolaram o país nos últimos anos. A entrevistada Street Art, ao contrário de muitos dos seus colegas, relatou sua própria experiência de adoecimento associado as condições de trabalho no período de isolamento:

Então, eu procurei ajuda psicológica, né! Pra aguentar o tranco. E aí tenho tentado me cuidar bastante, mas é muito estressante. Eu desenvolvi mais outras coisas, doença de pele eu tive, a minha imunidade super baixa. Várias coisas assim físicas [...], muita dor nas costas, [...]. Todas as coisas agora acontecem pelo computador, e ao contrário do que as outras pessoas acham, os artistas não puderam parar de trabalhar, eles migraram toda a sua atuação para esse lugar. Então a gente passa horas sentados na frente do computador [...].

Em segundo lugar, vêm as condições tecnológicas precárias para o enquadramento nas seleções para obtenção de fomento para projetos, bem como o letramento digital específico que estas exigências requerem. Tais desafios ficam evidentes na fala de Bertolt (38 anos, ator, diretor e professor de teatro):

Então o que aconteceu comigo, por exemplo: ganhei alguns projetos on-line e acabei não sobrando nada porque eu fiquei pagando para outros profissionais poderem gravar, editar, e quando eu vi eu fiz o projeto, quase morri trabalhando, criei como artista, fiz tudo e não ganhei nada. [...] É uma coisa meio estranha.

Para evitar o tipo de adversidade apresentada por Bertolt, o DJ Trance afirma que, “hoje o artista tem que conhecer bastante de vídeo também, de streaming, de arrecadação, tem que abrir o leque dele”.

As carreiras independentes no mundo artístico surgiram na Europa por volta do final do século XVIII e início do século XIX1717 Elias N. Mozart: Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1995., e à época foram vistas como uma conquista, pois até então os artistas eram empregados das cortes e/ou das igrejas e, portanto, sujeitos ao arbítrio de tais instituições, tanto do ponto de vista estético quanto econômico. Atualmente, a atuação independente constitui a regra desse campo profissional, independente da especialidade artística, e a tendência é um mercado com estrutura piramidal, em que alguns poucos atingem o topo e concentram o interesse do público e amealham os recursos disponíveis, enquanto a extensa maioria luta pela sobrevivência, não raro conciliando a carreira artística com outra ocupação. Viver exclusivamente da arte é um desafio e, na maioria dos casos, uma renúncia aos bens materiais que outras ocupações permitem.

Em um contexto de crise como este suscitado pela pandemia, a vulnerabilidade - naturalizada e por vezes até romantizada - associada às carreiras artísticas independentes ficou escancarada, tendo o empreendedorismo se voltado contra os empreendedores. Ao contrário do suposto glamour que se tem tentado acoplar ao termo, o que se destaca nesse caso é a vulnerabilidade. O discurso do empreendedorismo de si tende a acentuar a competição entre os indivíduos ao mesmo tempo que corrói os mecanismos de solidariedade coletiva1818 Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016..

A precarização do trabalho artístico fez com que pouquíssimos artistas tivessem alguma reserva financeira no início da pandemia, condição indispensável para realizar as adaptações necessárias ao mundo digital. Os poucos casos em que os artistas tinham reservas econômicas, elas foram feitas em trabalhos fora do mercado artístico, à exceção de um grupo de celebridades, que são a exceção à regra, como temos enfatizado. Neste contexto, a primeira reação foi de desespero, motivada pelo desconhecimento do que significava um fenômeno como uma pandemia global e também pela consciência da precariedade das condições de trabalho. O tempo foi um fator decisivo para que fosse possível controlar o desespero a partir de uma nova rotina, como destaca N. Rodrigues (51 anos, de Porto Alegre, artista e diretor de companhia de teatro):

Depois de dois, três meses, que tu entende como é que tudo tá acontecendo à tua volta, tu precisa entender o que é que tu vai fazer de verdade, no sentido prático.

As adaptações emergem da combinação da adversidade com a necessidade de manter as atividades profissionais, como destaca Wonderland (55 anos, artista cênica e visual):

Eu comecei um tanto quanto trancada e tem que aprender muito, muito. Tô aqui me alfabetizando nessa área virtual. É um outro jeito de tu trabalhar. Não que eu esteja gostando 100%, mas [...] eu tô vendo que tem outras possibilidades. [...] A gente vai descobrindo.

Num segundo momento, e não tendo alternativas, houve a tentativa de reorientar as atividades e as habilidades. Alguns optaram por focar em atividades fora do mercado da arte, como o artesanato, o design, a dedicação exclusiva à pesquisa acadêmica mantida por bolsa e a produção de conteúdo para as redes sociais de terceiros, por exemplo. Como sublinha DJ Marley (28 anos, atua na região de Porto Alegre e da serra gaúcha):

Comecei a estudar design e pequenas edições de vídeo. E aí, eu faço esses materiais para dois amigos de São Paulo.

Situação corroborada pela opção da musicista Bethânia (27 anos, artista autoral de Santa Maria):

Optei por tocar na minha outra ocupação, que é de fazer cosméticos artesanais.

Ao mesmo tempo começam a se formar redes de solidariedade para apoio mútuo, com vistas a garantir que os artistas tivessem as condições mínimas de subsistência naquele momento de distanciamento, com uma crise sem perspectivas de término.

Antes mesmo da pandemia, alguns artistas já integravam o ecossistema de financiamentos públicos e privados. Porém, a simples participação em qualquer edital público demandava a entrega de materiais audiovisuais de alta qualidade já finalizados, além dos projetos escritos. Tais processos foram descritos como cruéis, afinal colocavam os artistas em disputa entre si, em um momento de urgência, para avaliar quais tinham mais “méritos” para receberem uma verba pública. N. Rodrigues descreveu a competição dessa forma: “é quase como os “Jogos Vorazes”, né? Onde um está concorrendo com outro pra continuar vivo. É muito cruel!”. Ou, como Street Art (27 anos, mestranda em artes visuais e artista de rua), que questiona a concepção de sucesso dos processos seletivos adotada pelos gestores, bem como o trabalho prévio envolvido para a participação nestes processos:

E eles fizeram mais um [edital] agora, que é de oficinas, e com a mesma ideia: filma, nos manda e depois a gente aprova, sabe? [...] Aí a gente olhou assim e disse: não! Os caras fizeram um edital que teve quinhentos milhões de inscritos; eles entendem isso como sucesso! O desespero, eles entendem como sucesso! Isso dá muita raiva!

A dimensão do desencaixe tecnológico se completa com a dimensão da técnica e dos procedimentos estatais. Estas duas camadas de uma mesma questão se manifestam de formas específicas, como incompreensão dos procedimentos burocráticos das seleções públicas, a estética e o trabalho prévio necessários para a participação nestes processos, isso antes mesmo de se ter qualquer sinalização que há a possibilidade de ser contemplado pela política pública. Após o acesso a elas, se o projeto for selecionado, é mais uma das queixas em relação às “peculiares” dos editais públicos. A simples existência de uma política não significa que ela consiga amenizar as dificuldades para as quais foi pensada. Então, mesmo que, em alguma medida, os poderes públicos municipais tenham feito um esforço para sanar as dificuldades técnicas relacionadas aos processos seletivos, ainda assim permaneceu um hiato entre a capacidade dos artistas em responderem às demandas dos editais e o que realmente estava sendo avaliado para a concessão dos benefícios. Não houve por parte do poder público um investimento em desenvolver formas alternativas de contrapartida dos artistas que não estivessem relacionadas ao ambiente digital ou de processos seletivos mais ágeis e inclusivos em todas as suas etapas. Algo que vem sendo construído em seleções realizadas por instituições privadas que se valem dos mecanismos de incentivo fiscal, como a Lei Rouanet.

Conclusão

Os profissionais do campo artístico se encontram entre os que tiveram mais impactos negativos com as restrições decorrentes da pandemia. Se tais restrições eram indiscutivelmente necessárias, segundo os próprios entrevistados, há que se destacar o agravamento das condições econômicas e o sofrimento psíquico potencializados pela ausência de políticas públicas eficazes e pela desvalorização da arte e da cultura que tem assolado este campo de atuação nos últimos anos. Tão ou mais desesperadora do que a perda da ocupação e da renda, prolongadas pela resiliência da pandemia, foi a percepção de que da ausência de suporte do poder público ou a - a lentidão e a burocratização delas.

Em que pesem as adversidades, acompanhadas de sofrimento psíquico, a migração para o mundo digital configurou-se como uma alternativa, mas com escassos resultados. A oferta de bens artísticos já se encontra consolidada nos meios digitais, de modo que os neófitos que se aventuram nesse empreendimento enfrentaram uma concorrência estabelecida, não dispondo de tempo, competências e recursos necessários à reconversão satisfatória. Para os artistas que residiam em localidades mais afastadas dos centros urbanos, com a infraestrutura de rede precária, o problema foi lidar com as limitações e a obsolescência dos equipamentos.

Sob muitos aspectos, portanto, a disrupção desencadeada pela pandemia no “mundo artístico” evidenciou a precariedade laboral de um segmento duplamente impactado pelas políticas neoliberais que assolam os trabalhadores contemporâneos1919 Pochmann M. Tendências estruturais do mundo do trabalho no Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(1):89-99.. De um lado, entregues à própria sorte, tal qual outros trabalhadores do setor de serviços, vítimas das políticas neoliberais individualizantes; de outro, vítimas de uma outra face dessas políticas, que desdenha a reflexividade, a arte e a cultura em detrimento de atividades ditas “produtivas” e que, na verdade, alimentam a complexa máquina autodestrutiva chamada antropoceno, da qual a pandemia da COVID-19 é, em boa medida, um subproduto bem ilustrativo2020 Akinruli LCMC, Akinruli SA. Antropoceno, Arqueologia e Memória Social: a pandemia de Covid-19 como um evento crítico. Tessituras 2020; 8(1):227-236..

Os esforços no sentido de reconfiguração das linguagens e no formato da monetização foram marcados por iniciativas individuais, num segmento já notabilizado pela atuação independente, e os resultados foram, de modo geral, desapontadores do ponto de vista da remuneração, embora os investimentos no aprendizado das ferramentas digitais sejam vistos como positivos. A ausência de políticas públicas eficazes foi reclamada por quase todos os entrevistados - em menor proporção entre os DJs, já habituados ao circuito do entretenimento - indicando não apenas dificuldades inerentes a uma crise sanitária de enormes proporções, senão um desdém pelas artes e pelos profissionais que se dedicam a elas, um quadro desolador num país à deriva, governado por uma elite que se orienta pelo retrovisor.

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  • Financiamento

    Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2022
  • Aceito
    12 Jul 2022
  • Publicado
    14 Jul 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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