Pés descalços e descamisados: uma degustação do processo punitivo ou um retrato social?

Ludmila Abrante Garcia Weslen Santana Padilha Lecymar Paraguassu Batista Santos La Rubia Victoria Cristina Gonçalves Villanova Sobre os autores

Resumo

Este trabalho é uma manifestação crítica a respeito do processo de admissão de pessoas privadas de liberdade (PPL) na porta de entrada das unidades prisionais do Rio de Janeiro, que passam por situações desfavoráveis, como a naturalização da invisibilidade do perfil vulnerável dos sujeitos reclusos, bem como a apresentação destes nas audiências de custódia, com parte de suas vestimentas e calçados retirados por policiais. O perfil seletivo da PPL não coincide com a população que comete delitos e crimes, pois para a privação de liberdade operam filtros socioeconômicos, políticos, raciais e culturais importantes e decisivos. Portanto, a audiência de custódia é uma política pública voltada a coibir violações e garantir direitos fundamentais. Cabe aos órgãos fiscalizadores orientar ações que identificam as violências institucionais, que não deixam marcas físicas, para que se cumpra de fato o objetivo da audiência de custódia, que é a garantia dos direitos humanos.

Palavras-chave:
Direitos humanos; Sistema prisional; Audiência de custódia; violência

Introdução

É inegável o avanço do debate sobre os direitos humanos na perspectiva da segurança pública, mesmo de forma polarizada, em que ainda persistem narrativas como “direitos humanos para humanos direitos”, reproduzidas nos mais diversos espaços da sociedade. A questão é que no sistema prisional do Rio de Janeiro, paralelamente ao crescimento desenfreado da população privada de liberdade (PPL), faz-se necessário o distanciamento do estigma de Estado de Coisas Inconstitucional (ECI). O ECI foi um reconhecimento, em setembro de 2015, do Superior Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, das violações generalizadas de direitos fundamentais do sistema prisional brasileiro e da reiterada inércia estatal.

Com mais de duas décadas de atuação como agente penitenciária, percebi que a implementação de monitoramento por câmeras no interior das instituições de privação de liberdade, bem como ações efetivas nas esferas fiscalizadoras e correcionais para o enfrentamento de violações por parte do Estado, tem surtido efeito no contexto da redução de violências físicas. O ingresso de servidores na segurança pública com formação superior, interessados no cumprimento do dever pautado na Constituição, também contribui para que a cultura da naturalização de violações de direitos no sistema prisional seja mitigada.

Se o aumento da vigilância e das punições de policiais envolvidos nesse processo de custódia reduzem a prática de violências físicas, diversas práticas de torturas que não deixam marcas ainda são cometidas cotidianamente, sendo naturalizadas e aceitas também pela PPL como parte do processo da execução penal.

Em seis meses atuando como policial penal nas audiências de custódia (AC) de Benfica, no Rio de Janeiro, a partir de março de 2021, vi um grande número da PPL sem partes dos seus vestuários. Um misto de indignação e curiosidade me levaram a uma investigação para entender o porquê dessa prática.

Os relatos de dezenas de presos convergiam para duas explicações: ao serem detidas nas delegacias, as PPL são informadas de que calças compridas, blusas e chinelos de cor e calçados fechados não são permitidos nas unidades prisionais. Outros relataram que já estavam descalços e descamisados no momento da prisão. Após a AC, vestidos com uma blusa branca emprestada pelo Estado, porém muitos descalços, quando beneficiados com a liberdade, devem devolvê-las e sair às ruas, expostos a uma situação de insalubridade e humilhação, principalmente aqueles indivíduos sem recursos ou apoio familiar no momento de sua saída do período de privação.

A realidade do processo de privação de liberdade é muito clara com relação às pessoas detidas, em sua maior parte atravessadas pelo eixo da interseccionalidade, em situação de opressão sob o ponto de vista sociológico, com questões de raça, gênero, classe e sexualidade, entre outras. Dentro desse perfil socialmente estigmatizado de uma PPL, caracterizamos as AC, cuja principal função é determinar a legalidade da reclusão, o período de cumprimento de pena, assim como constatar se houve alguma violação aos direitos fundamentais da pessoa detida.

O que se vê na prática em determinados cenários é a violação e exposição desses sujeitos a vulnerabilidades, pois o julgamento moral sobre o comportamento da PPL define como eles vivem em sociedade, descriminando e dificultando seu acesso aos direitos básicos, igualitários e universais.

Diante do que foi apresentado, este artigo é uma manifestação crítica ao processo de admissão da PPL na porta de entrada das unidades prisionais do Rio de Janeiro, passando por momentos insultuosos e estigmatizadores após suas vestimentas serem arrancadas por policiais, deixando-os vulneráveis, num contexto que é naturalizado por esses representantes do Estado. Visto que a audiência de custódia é uma política pública para coibir violações e garantir direitos fundamentais, cabe aos órgãos fiscalizadores e ao Conselho Nacional de Justiça orientar ações que identificam as violências institucionais, que muitas vezes não deixam marcas físicas, para que se cumpra de fato o objetivo da AC, que é a garantia dos direitos humanos.

Desenvolvimento

A violência é um problema social e de saúde pública que ameaça o desenvolvimento social e afeta as relações e a qualidade de vida das pessoas e da sociedade como um todo. Como consequência mais direta do aumento da violência está o aumento da população em privação de liberdade e dos problemas decorrentes das condições de vida no sistema prisional. Inicialmente, deve-se esclarecer que o processo da privação do direito de ir e vir dos sujeitos em qualquer lugar do Brasil não se inicia no sistema prisional.

Assim que o sujeito é capturado, na maior parte pela Polícia Militar, por mandado de prisão ou flagrante delito, no momento da busca pessoal (revista corporal realizada por policial no momento da prisão ou abordagem do suspeito para busca de drogas ou qualquer outro item que possa caracterizar o flagrante, além da questão de segurança), parte de suas vestimentas fica retida. Com o pretexto de que são vedados no ambiente de privação de liberdade por questões de segurança, por exemplo, os cadarços dos calçados (podem ser utilizados para enforcamento) e sapatos fechados (que podem ser usados como esconderijo), estes ficam apreendidos. Quando apresentados em delegacias (Polícia Civil) para registro da ocorrência e decisão da autoridade policial para retenção do sujeito, deverá ingressar no sistema prisional (polícia penal) para que seja apresentado em juízo no prazo máximo de 24h na AC.

A AC - implementada com a finalidade de reduzir as privações provisórias e de tomar providências diante de possíveis casos de maus-tratos e tortura no processo da apreensão da PPL, bem como garantir os direitos fundamentais - é uma antiga norma internalizada no Brasil, que apenas a partir de 2015 foi definitivamente institucionalizada, por meio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), junto aos diversos entes federativos que aderiram ao projeto, incluindo o Rio de Janeiro. No entanto, o CNJ define a audiência de custódia como:

[...] uma ação do Conselho Nacional de Justiça mediante a qual o cidadão preso em flagrante é levado à presença de um juiz no prazo de 24 horas. Acompanhado de seu advogado ou de um defensor público [...]. O juiz também avaliará se a prisão preventiva pode ser substituída por liberdade provisória até o julgamento definitivo do processo, e adotará, se for o caso, medidas cautelares como monitoramento eletrônico e apresentação periódica em juízo. Poderá determinar, ainda, a realização de exames médicos para apurar se houve maus-tratos ou abuso policial durante a execução do ato de prisão11 Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia. Brasília: CNJ; 2016. [acessado 2022 jun 4]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2016/09/0a99a0ab0eb26b96fdeaf529f0dec09b.pdf..

No interior do sistema prisional, o acesso aos chinelos é permitido somente se atender à norma imposta pelo Estado, se for do tipo havaiana e da cor branca, por isso muitos chegam descalços no momento das audiências de custódia. As pessoas detidas relataram que os itens pessoais, como telefone celular, documentos originais de identificação e quantias em dinheiro em posse do indivíduo no momento da captura (na grande maioria das reclusões), não são transferidos juntos com elas até a unidade prisional de porta de entrada, que atualmente, no Rio de Janeiro, é a Casa de Custódia Frederico Marques, em Benfica, para que sejam devidamente acautelados na sessão de custódia.

Quando a PPL é liberada após a AC para o cumprimento das medidas cautelares que não a reclusão, não é possível recuperá-los imediatamente. Os pertences deixados nas delegacias ou descartados fazem falta para que consigam retornar às suas residências com o mínimo de dignidade.

Quando esses indivíduos estão em situação de vulnerabilidade social, são direcionados à assistência social, ao Serviço de Atenção à pessoa Custodiada (APEC), para que ao menos uma tentativa de contato telefônico com a família seja realizada, uma estratégia paliativa. Mas não existe assistência material concreta com contribuições significativas para a vida desse indivíduo.

Quando liberados, esses sujeitos saem pela porta da frente sem condições mínimas de dignidade: descalços, descamisados e sem dinheiro. Não há um plano de assistência eficiente e eficaz para que consigam se deslocar até as suas casas ou seus abrigos. Muitos casos de reclusão no interior do estado do Rio de Janeiro, onde não existem bases do Tribunal de Justiça para a realização dessas AC, potencializam ainda mais essa problemática do retorno após a liberdade garantida pelos operadores do direito22 Garcia AL. Pés descalços e descamisados: uma degustação do processo punitivo no estado do Rio de Janeiro. 2021. [acessado 2022 jun 8]. Disponível em: https://www.multiplicadoresdevisat.com/_files/ugd/15557d_02f7db313da84dde9059bf3051cc0a85.pdf
https://www.multiplicadoresdevisat.com/_...
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O Superior Tribunal Federal (STF), ao classificar o sistema prisional do país como o “Estado de Coisas Inconstitucional”, considerou que as políticas públicas existentes para a gestão de um sistema prisional mais humanizado devem ser efetivamente administradas e acompanhadas, e seus resultados avaliados de forma concreta por todos os poderes do Estado e pela sociedade, uma vez que, da forma que se encontra, com diversos flagrantes de violações, o sistema de cumprimento de pena está longe de ser um aparelho ressocializador capaz de contribuir para a reinserção social do indivíduo após este ser privado de liberdade, corroborando para o aumento da violência social.

Essa observação sobre o número expressivo de PPL em audiência de custódia descalços não é inédita. Newton33 Newton EJ. Os sujos pés descalços no Palácio da Justiça. In: Newton EJ. Justificando: mentes inquietas pensam Direito, v. 14. [S.l.]: [s.n.]; 2016., defensor público que também atuou nas ACs no bairro de Benfica no Rio de Janeiro, faz uma crítica em um artigo eletrônico intitulado Os sujos pés descalços no Palácio da Justiça:

[...] a justiça age tal como uma serpente, isto é, somente alcança os que se encontram descalços. A esquerda punitiva, que delira e goza com a possibilidade de avanços das agências criminais em extratos sociais antes tidos como intocáveis, ainda não conseguiu se fazer presente no confinamento ordinário carioca, pois são os desprovidos de calçados que rotineiramente invadem as salas de audiência33 Newton EJ. Os sujos pés descalços no Palácio da Justiça. In: Newton EJ. Justificando: mentes inquietas pensam Direito, v. 14. [S.l.]: [s.n.]; 2016..

Com isso percebemos uma dura crítica à naturalização de ações aniquilantes dos direitos humanos, imposta por uma relação de opressão e destruição da dignidade humana que ameaçam a garantia de direitos fundamentais, civis, políticos e sociais. Outro ponto de destaque é o viés social da questão dos pés descalços, que ressalta o abismo social entre os julgados e os que julgam:

Enquanto atores jurídicos ostentam suas belas vestimentas, ternos, tailleurs, bolsas, sapatos famosos, a Polícia Militar traz os algemados descalços para a realização de audiências de custódia33 Newton EJ. Os sujos pés descalços no Palácio da Justiça. In: Newton EJ. Justificando: mentes inquietas pensam Direito, v. 14. [S.l.]: [s.n.]; 2016..

O Estado abandona seu povo desde o momento em que não proporciona a igualdade de oportunidades, e o adoece em consequência das iniquidades. Quando transgridem, torna-se ainda mais descartável, sem direitos a acessar o básico, como um calçado, ao menos para se apresentar ao magistrado, que se encontra muito bem-vestido, com o poder nas mãos sobre a vida do outro, que julgará se a reclusão é legal e sem violações. Na recente obra intitulada A gestão dos supérfluos, neoliberalismo e prisão-depósito, de Carlos Eduardo Figueiredo, a definição de prisão-depósito é:

[...] um dispositivo de controle e exclusão, apontado para a população de expropriados e desfavorecidos, fruto da nova dinâmica social e econômica. [...] como naufrágio do Estado social provocado pelo neoliberalismo, a prisão constitui a solução mais rápida e “eficaz” para gerir os corpos da população marginalizada44 Figueiredo CE. A gestão dos supérfluos: neoliberalismo e prisão-depósito. Rio de Janeiro: Mórula Editorial; 2022..

A realidade do processo de exclusão social e de aprisionamento atual são consequências de um estado ausente, que fomenta o crescimento econômico a qualquer preço, ao mesmo tempo em que ignora e despreza o cuidado e a solidariedade para com o outro, que se torna inimigo pelo medo (dos pobres), pela competição e pela falta de empatia44 Figueiredo CE. A gestão dos supérfluos: neoliberalismo e prisão-depósito. Rio de Janeiro: Mórula Editorial; 2022.,55 Wacquant L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan; 2003..

A PPL que chega seminua na porta de entrada do sistema prisional é a personificação literal do homo sacer de Giorgio Agamben, de vida nua, um ser matável e descartável que não merece morrer, pois não é santo o bastante, mas se alguém o matar, não deverá ser punido porque o homo sacer não era alguém importante. O que o homem de vida nua merece é o abandono de todos66 Agamben G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2010..

Logo, percebe-se uma discussão teórica entre o direito formal que está previsto e garantido na Constituição e os direitos humanos, que são da ordem da dignidade humana. Em termos de violações, os direitos humanos são mais afetados, por se referirem à preservação digna da vida.

Considerações finais

Essa degustação inicial das máquinas judiciária e penal é o retrato do abandono da finalidade social das instituições de privação de liberdade. Fica evidente que, mesmo com os esforços de setores específicos na implementação de políticas públicas que visam a garantia dos direitos humanos nos ambientes segregados das unidades prisionais, a intenção da política do aprisionamento em massa e o caráter seletivo do Estado ausente e neoliberal é o etiquetamento para a morte.

Não adianta alcançar uma política pública para determinada demanda, avançar em uma conquista aparentemente bem-sucedida, se não é implementada em forma de rede transversalizada, fortalecida e comprometida, que alcance as camadas que vivem atravessadas pelas desigualdades e iniquidades, capaz de defender os direitos humanos de forma integral e universal.

Em um Estado mínimo, com a disputa desenfreada pela sobrevivência, quem ganha e quem perde? Se as relações de opressão e violência não forem identificadas e expostas, não existe luta, e sem luta não existe vitória, todos perdem. Se a injustiça que acomete o outro não indignar quem está em volta, não há possibilidade de existir uma sociedade justa e em paz. Não faz sentido acessar os bens para sobreviver, e não para viver. Só vive com dignidade quem vive de forma igualitária, sem a hierarquização dos direitos e de classes.

No entanto, questiona-se o quanto a PPL dispõe de acesso às medidas e aoss dispositivos protetivos, pois os direitos humanos não vêm se efetivando, num contraste entre a formalidade da redação da lei e os distanciamentos na prática efetiva. Espera-se que os direitos das pessoas nas instituições de privação de liberdade não sejam ameaçados ou violados - se acontecer, que tenha a garantia de reparação -, de maneira que contemplem a justiça e o respeito. Afinal, os direitos humanos jamais devem ser negados.

Referências

  • 1
    Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia. Brasília: CNJ; 2016. [acessado 2022 jun 4]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2016/09/0a99a0ab0eb26b96fdeaf529f0dec09b.pdf.
  • 2
    Garcia AL. Pés descalços e descamisados: uma degustação do processo punitivo no estado do Rio de Janeiro. 2021. [acessado 2022 jun 8]. Disponível em: https://www.multiplicadoresdevisat.com/_files/ugd/15557d_02f7db313da84dde9059bf3051cc0a85.pdf
    » https://www.multiplicadoresdevisat.com/_files/ugd/15557d_02f7db313da84dde9059bf3051cc0a85.pdf
  • 3
    Newton EJ. Os sujos pés descalços no Palácio da Justiça. In: Newton EJ. Justificando: mentes inquietas pensam Direito, v. 14. [S.l.]: [s.n.]; 2016.
  • 4
    Figueiredo CE. A gestão dos supérfluos: neoliberalismo e prisão-depósito. Rio de Janeiro: Mórula Editorial; 2022.
  • 5
    Wacquant L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan; 2003.
  • 6
    Agamben G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2021
  • Aceito
    09 Ago 2022
  • Publicado
    11 Ago 2022
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