Violência contra professores da rede pública e esgotamento profissional

Elaine Cristina Simões Maria Regina Alves Cardoso Sobre os autores

Resumo

A expansão da rede escolar, as mudanças no modelo educacional e os problemas de financiamento mudaram profundamente o trabalho docente no Brasil, intensificando as exigências dirigidas aos profissionais. Problemas de saúde, como o esgotamento profissional, são comuns na categoria. Levantamos a exposição dos professores ao esgotamento profissional e analisamos sua potencial associação aos elementos do contexto ocupacional, inclusive a violência. Os dados foram coletados por meio de entrevistas em profundidade, com uso de dois instrumentos específicos (MBI e CESQT) e analisados estatisticamente com o Programa Stata, v.13.0. Participaram 93 professores da rede pública municipal de São Paulo com indicação de psicoterapia, das diversas regiões da cidade. O esgotamento foi associado ao sofrimento de agressão na escola (p<0,001), ao incômodo nos contatos interpessoais no trabalho (p<0,001) e ao ruído (p<0,001), entre outras 11 variáveis do contexto escolar. Entre os que apresentaram esgotamento grave, 60% haviam sofrido agressão na escola no último ano. Questões coletivas e ocupacionais se associaram ao esgotamento profissional entre os participantes. Entre elas, os conflitos interpessoais e o fenômeno da violência, que surge como elemento novo e frequente, impactam a saúde dos profissionais.

Palavras-chave:
Esgotamento profissional; Docentes; Saúde mental; Violência no trabalho; Saúde do trabalhador

Introdução

Embora a educação seja considerada um fator estratégico para o desenvolvimento pessoal e da sociedade, o trabalho do educador no Brasil tem sofrido desvalorização social e financeira11 Ribeiro MLS. História da educação escolar no Brasil: notas para uma reflexão. Paidéia 1993; 4:15-30.,22 Paiva V, Junqueira C, Muls L. Prioridade ao ensino básico e pauperização docente. Cad Pesqui 1997; 100:109-119.. Desde 1988, com a redemocratização política do país, houve mudanças importantes no modelo pedagógico e ampliação do acesso (processo conhecido como democratização do ensino33 Carvalho JSFd. "Democratização do ensino" revisitado. Educ Pesqui 2004; 30(2):327-334.), porém as dificuldades crônicas no financiamento e no planejamento do sistema educacional11 Ribeiro MLS. História da educação escolar no Brasil: notas para uma reflexão. Paidéia 1993; 4:15-30.,22 Paiva V, Junqueira C, Muls L. Prioridade ao ensino básico e pauperização docente. Cad Pesqui 1997; 100:109-119., os conflitos sociais emergentes, somados às reformulações no trabalho docente, levaram à intensificação das exigências em relação aos educadores. Autores reportam o grande número de profissionais envolvidos no trabalho docente no Brasil e sua importante função social44 Souza NA, Leite MP. Condições de trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil. Educ Soc 2011; 32(117):1105-1121.

5 Brito J, Bercot R, Horellou-Lafarge C, Neves MY, Oliveira S, Rotenberg L. Saúde, gênero e reconhecimento no trabalho das professoras: convergências e diferenças no Brasil e na França. Physis 2014; 24(2):589-605.
-66 Codo W. Educação: carinho e trabalho. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 2002.; entretanto, também é referida a ocorrência de problemas de saúde mental na categoria44 Souza NA, Leite MP. Condições de trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil. Educ Soc 2011; 32(117):1105-1121.

5 Brito J, Bercot R, Horellou-Lafarge C, Neves MY, Oliveira S, Rotenberg L. Saúde, gênero e reconhecimento no trabalho das professoras: convergências e diferenças no Brasil e na França. Physis 2014; 24(2):589-605.

6 Codo W. Educação: carinho e trabalho. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 2002.

7 Gasparini SM, Barreto SM, Assunção AA. Prevalência de transtornos mentais comuns em professores da rede municipal de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad Saude Publica 2006; 22(12):2679-2691.

8 Araújo TM, Carvalho FM. Condições de trabalho docente e saúde na Bahia: estudos epidemiológicos. Educ Soc 2009; 30(107):427-449.
-99 Souza KR, Rozemberg B. As macropolíticas educacionais e a micropolítica de gestão escolar: repercussões na saúde dos trabalhadores. Educ Pesqui 2013; 39(2):433-447., assim como a questão da violência incidente sobre o meio escolar1010 DTG. Estratégias de prevenção da violência escolar: revisão integrativa da literatura [dissertação]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo; 2018.,1111 Tancred T, Paparini S, Melendez-Torres GJ, Thomas J, Fletcher A, Campbell R, Bonell C. A systematic review and synthesis of theories of change of school-based interventions integrating health and academic education as a novel means of preventing violence and substance use among students. Syst Rev 2018; 7:190.. Considerando o caráter multifatorial das questões envolvendo o trabalho em educação, estudamos a exposição dos professores ao esgotamento profissional analisando sua potencial associação aos elementos do contexto ocupacional, inclusive a violência.

O esgotamento profissional (ou burnout) é considerado um dano à saúde relacionado ao trabalho1212 World Health Organization (WHO). International Classification of Diseases 11th Revision; 2018 [cited 2020 mar 10]. Available from: https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/http://id.who.int/icd/entity/129180281
https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/htt...
,1313 Dias EC, organizador. Doenças Relacionadas com o Trabalho: Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde (MS). Organização Pan-Americana da Saúde(OPAS); 2001. p. 191-194. [acessado 2021 out 16]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_relacionadas_trabalho1.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
. Os professores, entre outros profissionais1414 Silva ATC, Menezes PR. Esgotamento profissional e transtornos mentais comuns em agentes comunitários de saúde. Rev Saude Publica 2008; 42(5):921-929.,1515 Jenkins SR, Maslach C. Psychological health and involvement in interpersonally demanding occupations: a longitudinal perspective. J Organ Behav 1994; 15:101-127., são considerados vulneráveis a esse agravo1616 Belcastro PA, Gold RS. Teacher stress and burnout: implications for school health personnel. J Sch Health 1983; 53(7):404-407.,1717 Carlotto MS, Palazzo LS. Síndrome de burnout e fatores associados: um estudo epidemiológico com professores. Cad Saude Publica 2006; 22(5):1017-1026.. O esgotamento costuma estar associado às funções que consistem em prestar cuidados ou atenção às pessoas1818 Maslach C, Schaufeli WB, Leiter MP. Job burnout. Annu Rev Psychol 2001; 52:397-422. e encontramos instrumentos específicos para mensurá-lo, como o Maslach Burnout Inventory (MBI). Esse inventário avalia três dimensões da síndrome: a Exaustão Emocional relacionada à intensidade na demanda de trabalho; a Despersonalização ou insensibilidade aos problemas trazidos pelos usuários, um distanciamento que pode levar a atitudes negativas e até desumanizadas no trabalho, e o sentimento de baixa realização profissional e de pouco Envolvimento Pessoal pelo trabalho1818 Maslach C, Schaufeli WB, Leiter MP. Job burnout. Annu Rev Psychol 2001; 52:397-422.. O MBI é uma referência na avaliação do esgotamento e foi validado em diversos idiomas1919 Schaufeli WB, Leiter MP, Maslach C. Burnout: 35 years of research and practice. Career Develop Intern 2009; 14(3):204-220.,2020 Santos AA, Nascimento Sobrinho CL. Revisão Sistemática da prevalência da síndrome de burnout em professores do ensino fundamental e médio. Rev Baiana Saude Publica 2011; 35(2):299-319., e seus autores afirmam que o esgotamento pode ser discutido tanto em termos clínicos quanto na perspectiva da psicologia social: em termos das interrelações entre provedor e receptor de cuidados no contexto das ocupações assistenciais e de serviços1818 Maslach C, Schaufeli WB, Leiter MP. Job burnout. Annu Rev Psychol 2001; 52:397-422.. Encontramos referências a algumas versões brasileiras do MBI2121 Simões EC. Investigação de esgotamento físico e emocional (burnout) entre professores usuários de um hospital público do município de São Paulo [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014: p. 20-23.: em 1995, Carvalho2222 Carvalho MMB. Professor: um profissional, sua saúde e a educação em saúde na escola [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 1995. validou o MBI específico para educadores, apresentando quatro escalas de avaliação; porém a edição original mais recente do MBI2323 Maslach C, Jackson SE, Leiter MP, Schwab RL. Maslach burnout inventory - Manual and non-reproducible instrument and scoring guides. 3ª ed. Califórnia: Mind Garden; 2010., publicada em 2010, apresenta apenas três escalas. A versão de Lautert2424 Lautert L. O desgaste profissional do enfermeiro [tese]. Salamanca: Universidade Pontifícia de Salamanca; 1995., como a de Tamayo2525 Tamayo MR. Relação entre a síndrome de Burnout e os valores organizacionais no pessoal de enfermagem de dois hospitais públicos [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 1997., realizadas respectivamente em 1995 e 1997, não se basearam no modelo específico para educadores. Em 2002, Garcia et al.2626 Garcia LP, Benevides-Pereira AMT. Investigando o Burnout em professores universitários. Inter Ação Psy [acessado 2021 out 16]. 2002; 1(1):79-89. Disponível em: https://gepeb.files.wordpress.com/2011/12/investigando-o-burnout-em-professores-universitc3a1rios.pdf
https://gepeb.files.wordpress.com/2011/1...
referem a utilização do MBI-ED (Educators Survey), da edição de 1986 do inventário americano. Considerando as reformulações e a edição mais recente do inventário, optamos por realizar uma nova versão brasileira do MBI para uso nesta pesquisa.

Para mensuração do esgotamento, encontramos também a validação brasileira do Cuestionario para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo (CESQT)2727 Gil-Monte PR, Carlotto MS, Câmara SG. Validação da versão brasileira do "Cuestionário para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo" em professores. Rev Saude Publica 2010; 44(1):140-147.; que apresenta quatro dimensões para avaliação do esgotamento: Ilusão pelo Trabalho, relativa a expectativas; Desgaste Psíquico, relativa à demanda emocional no trabalho; Indolência e Culpa. O CESQT inclui a avaliação de aspectos cognitivos e físicos do esgotamento2828 Gil-Monte PR, Carretero N, Roldán MD, Núnez-Román EM. Prevalencia del síndrome de quemarse por el trabajo (Burnout) em monitores de taller para personas com discapacidad. Rev Psicologia del Trabajo y de las Organizaciones; 21(1-2):107-123..

Neste estudo buscamos identificar quantitativa e qualitativamente as fontes de esgotamento entre os professores, e ampliar a compreensão dos fatores que contribuem para o desenvolvimento desse agravo à saúde relacionado ao trabalho. Apesar do número expressivo de professores envolvidos na rede educacional da cidade de São Paulo, aproximadamente 50 mil2929 Secretaria Municipal de Educação (SME). Portal Institucional/Secretaria Municipal de Educação/Diretorias Regionais de Educação [Internet]. São Paulo: SME; 2020. [acessado 2020 nov 12]. Disponível em: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/mapa-dres/, localizamos poucos trabalhos sobre a saúde mental dos docentes desta cidade até o momento; destacando-se os de Macaia et al.3030 Macaia AAS, Fischer FM. Retorno ao trabalho de professores após afastamentos por transtornos mentais. Saude Soc 2015; 24(3):841-852., Giannini et al.3131 Giannini SPP, Latorre MRDO, Ferreira LP. Distúrbio de voz e estresse no trabalho docente: um estudo caso-controle. Cad Saude Publica 2012; 28(11):2115-2124. e de Paparelli3232 Paparelli R. Desgaste mental do professor da rede pública de ensino: trabalho sem sentido sob a política de regularização de fluxo escolar [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2009.. Verificando, em nosso meio, a escassez de estudos sobre associação do esgotamento em relação ao contexto ocupacional em que atuam os professores, pesquisamos sua ocorrência entre educadores da rede pública de ensino, das diversas regiões da cidade de São Paulo.

Métodos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM); registrada na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), CAAE: 12684613.5.0000.5421.

Foram convidados para participar todos os professores com indicação de psicoterapia, que procuraram o ambulatório de saúde mental do HSPM da cidade de São Paulo, entre maio de 2013 e maio de 2014. A pesquisa teve grande aceitação: dentre os 101 convidados, 93 participaram efetivamente; dois optaram por não participar, quatro não atenderam aos critérios de inclusão, e o registro de duas participantes foram ilegíveis (elas estavam sem seus óculos). Os participantes trabalhavam nas quatro regiões da cidade, de modo proporcional ao total de docentes de cada região.

Critérios de inclusão: professores ativos ou licenciados; professores readaptados ativos ou licenciados (a readaptação funcional é decorrente de perícia médica: devido às condições de saúde, o readaptado sai da sala de aula e é direcionado para outras funções); e professores aposentados por motivos médicos.

Critérios de exclusão: professores aposentados; servidores em outras funções relacionadas à educação (agente escolar, diretor, coordenador pedagógico) e professores em tratamento psicoterápico há mais de oito semanas.

Entrevista: após o consentimento de participação na pesquisa e durante entrevista em profundidade, foram aplicados os questionários e um roteiro de tópicos para recepção, caracterização e elaboração das queixas motivadoras da demanda por atendimento psicológico. Todos os formulários foram oferecidos para anotação pelo próprio punho do participante durante a entrevista com a pesquisadora.

Levantamento das questões ocupacionais: foi desenvolvido formulário para diagnóstico de 90 questões acerca do ambiente e organização do trabalho.

Avaliação de esgotamento

Para ampliar a coleta de dados e tornar mais consistente a apuração da síndrome entre os participantes, optamos por utilizar dois inventários específicos para diagnóstico de esgotamento em educadores. Isso também permitiria realizar a comparação dos resultados entre os instrumentos:

Maslach Burnout Inventory - Educators Survey (MBI)2323 Maslach C, Jackson SE, Leiter MP, Schwab RL. Maslach burnout inventory - Manual and non-reproducible instrument and scoring guides. 3ª ed. Califórnia: Mind Garden; 2010., traduzido para o português sob a autorização de Mind Garden, Inc., Contrato de Tradução Número TA-346;

Cuestionario para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo (CESQT), também conhecido como “Spanish Burnout Inventory” ou SBI, validado entre professores no Brasil2727 Gil-Monte PR, Carlotto MS, Câmara SG. Validação da versão brasileira do "Cuestionário para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo" em professores. Rev Saude Publica 2010; 44(1):140-147..

Análise de dados

Os instrumentos psicológicos foram analisados de acordo com suas instruções específicas. Os resultados do MBI e do CESQT são expressos em forma de categorias, o que permite estudá-los em relação às variáveis, também categorizadas, do contexto escolar.

As análises estatísticas de associação entre as variáveis ocupacionais e os resultados de cada escala do MBI e do CESQT foram feitas por meio do teste Qui-quadrado e do teste Exato de Fisher, usando o programa Stata, versão 13.0.

As entrevistas e o roteiro permitiram aos participantes a manifestação de sentimentos e eventos não previstos pelos questionários. Fatos e percepções ligados à sua experiência como docentes puderam ser acolhidos e posteriormente contribuíram à compreensão da dinâmica do trabalho e suas consequências.

Resultados

Nossa amostra de estudo apresentou distribuição proporcional ao total de educadores nas quatro regiões da cidade. O site da Secretaria de Educação do município de São Paulo2929 Secretaria Municipal de Educação (SME). Portal Institucional/Secretaria Municipal de Educação/Diretorias Regionais de Educação [Internet]. São Paulo: SME; 2020. [acessado 2020 nov 12]. Disponível em: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/mapa-dres/ refere que as escolas são gerenciadas por 13 Delegacias Regionais de Ensino (DREs): cinco delas pertencem à região Leste da cidade; quatro estão na Zona Sul; três no Norte; enquanto na região Oeste há apenas uma DRE. De acordo com as informações da Secretaria de Educação do Município de São Paulo3333 Portal da Transparência. Prefeitura de São Paulo. Portal da Transparência/e-sic acesso à informação/pedidos respondidos/protocolo 44205 de 2019. São Paulo: Prefeitura de São Paulo; 2019 [acessado 2020 mar 10]. Disponível em: http://transparencia.prefeitura.sp.gov.br/acesso-a-informacao/Paginas/default.aspx e o levantamento do local de trabalho dos participantes, observamos que a distribuição proporcional da amostra foi muito próxima à distribuição de alocação de professores nas quatro regiões da cidade, em 2014. As Figuras 1 e 2 apresentam as duas distribuições.

Figura 1
Distribuição percentual por região de trabalho do total de docentes de São Paulo em 2014.

Figura 2
Distribuição percentual por região de trabalho dos participantes no estudo, em 2013-2014.

Entre os 93 participantes, 90,3% eram mulheres. No momento da avaliação, 64,5% da amostra estava na ativa; 14,0% em readaptação funcional; 18,3% em licença médica e 3,2% em licença por acidente de trabalho. A idade dos participantes variou de 28,6 a 69,1 anos, com média de 46,4 anos e desvio-padrão de 9,1 anos. 7,5% da amostra tinha mais de 60 anos na época do estudo e apenas 3,2% dos participantes tinham menos de 29 anos de idade.

O tempo de trabalho como professor variou de 3,1 a 41,6 anos, sua média correspondeu a 21,1 anos com desvio-padrão de 8,3 anos. Entre as mulheres da amostra, 33,3% já haviam excedido o tempo de trabalho exigido para a aposentadoria - até aquele momento, o tempo necessário para aposentadoria das mulheres correspondia a 25 anos de trabalho docente. Além disso, na amostra feminina, segundo a escala de Envolvimento Pessoal pelo Trabalho do MBI, as participantes com mais de 25 anos de carreira apresentaram menos esgotamento, comparando com as professoras com menos tempo na carreira (p=0,036). Esta associação se repetiu na amostra total de participantes. Os 50,5% que possuíam mais de 22,5 anos de trabalho docente, quando comparados ao grupo de professores com menos anos na carreira, apresentaram menos esgotamento nas escalas: Exaustão Emocional MBI (p=0,001) e Desgaste Psíquico CESQT (p=0,007).

Em relação à escolaridade: 3,2% da amostra concluiu apenas o nível médio de escolaridade (não fez graduação), e 42,0% relataram ter concluído estudos de pós-graduação. No entanto, no roteiro de questões abertas foram observados erros ortográficos ou gramaticais (acima de três) em 17,2% dos registros. Nas respostas por escrito de 33,33% dos participantes encontramos falhas de articulação escrita, ou ausência frequente de pontuação, ou de acentuação. E 34,41% dos entrevistados expressaram de modo muito restrito suas próprias ideias e sentimentos por escrito.

Examinamos as associações entre os resultados dos inventários MBI e CESQT, verificando que houve concordância entre seus resultados. Os valores de p mais significantes ocorreram entre as escalas direcionadas a objetivos similares: Esgotamento Emocional/MBI e Desgaste Psíquico/CESQT (p<0,001); Despersonalização/MBI e Indolência/CESQT (p<0,001); Despersonalização/MBI e Ilusão pelo Trabalho/CESQT (p<0,001); Envolvimento Pessoal/MBI e Ilusão pelo Trabalho/CESQT (p<0,001) e Envolvimento Pessoal/MBI e Indolência/CESQT (p<0,001).

De acordo com suas normas de padronização estatística, o MBI e o CESQT permitem definir a intensidade da síndrome em: leve, moderada ou grave. Em nossa pesquisa, o MBI indicou que 35,48% da amostra apresentava esgotamento moderado, e 40,86% grave. O CESQT indicou 52,69% dos participantes portando esgotamento moderado, e 32,26%, grave. Segundos os dois testes, quatro pessoas (4,3%) não apresentavam a síndrome, enquanto 26,9% dos participantes apresentavam esgotamento grave simultaneamente no MBI e no CESQT.

Além das associações com o tempo de carreira docente referidas acima, foi encontrada associação entre o esgotamento e: ter sofrido violência na escola, questões relativas aos contatos interpessoais e aspectos da estrutura física e organizacional do trabalho. A Tabela 1 mostra o número total e percentual de indivíduos portadores de esgotamento aferido pelo MBI e os valores de p encontrados na análise estatística de sua associação às variáveis ocupacionais. A Tabela 2 mostra o número e a porcentagem de indivíduos afetados segundo o CESQT e os valores de p encontrados na análise estatística de sua associação às variáveis do contexto escolar.

Tabela 1
Associações entre variáveis do trabalho do professor e o esgotamento profissional aferido pelo MBI.
Tabela 2
Associações entre variáveis do trabalho do professor e o esgotamento profissional aferido pelo CESQT.

O incômodo no contato com os alunos; o incômodo no contato com os pais dos alunos; ter sofrido agressão (física ou verbal) dentro da escola no período de até doze meses antes da realização da pesquisa; sentir-se não realizado profissionalmente; sentir falta de apoio dos colegas da profissão; e sentir falta de apoio da direção/coordenação da escola mostraram associação ao esgotamento.

O incômodo do professor com barulho na sala de aula; o incômodo com o barulho da escola; considerar inaceitável, na maioria das vezes, a acústica nas salas de aula; a percepção de não participação em decisões institucionais; considerar que as atividades burocráticas são excessivas; considerar alto o número de alunos por turma; e considerar-se sobrecarregado de atividades mostraram associação ao esgotamento.

Na amostra estudada, 50,5% dos participantes relataram ter sofrido agressão (física ou verbal) na escola no período de até doze meses antes da pesquisa. Além disso, encontramos associação entre ter sofrido agressão e a presença de esgotamento segundo os dois testes: MBI (p=0,001) e CESQT (p=0,001), Tabelas 1 e 2. A violência na escola também mostrou relação com a gravidade da síndrome: entre os 25 participantes que apresentaram esgotamento grave simultaneamente nos dois inventários, 60% relataram ter sido agredidos na escola no período dos últimos 12 meses.

Discussão

Nosso objetivo foi estudar se e como as questões ocupacionais poderiam estar associadas ao esgotamento profissional apresentado pelos professores com indicação de psicoterapia. A amostra deste estudo apresentou distribuição muito próxima, proporcionalmente, ao número total de professores de cada uma das regiões da cidade. Encontramos valores de p significantes para 14 entre as 90 variáveis testadas - por definição, o valor de p é a probabilidade de ocorrência do valor observado, ou de um valor mais extremo, em uma curva de probabilidade especificada (conhecida). Nas associações encontradas entre o contexto escolar e a presença de esgotamento destacaram-se: o fato de ter sofrido agressão na escola, os problemas nos contatos interpessoais, além de questões estruturais como o ruído. Por outro lado, descobrimos que os professores com maior número de anos trabalhando na educação apresentaram níveis mais baixos de desgaste profissional que seus colegas com menos tempo na profissão. Esperávamos que o maior número de anos na carreira levasse a uma intensificação dos sintomas associados à síndrome, mas isso não ocorreu. Pelo contrário, observamos que, de acordo com os dois testes, a metade da amostra que possuía mais de 22,5 anos de trabalho docente apresentava menos esgotamento que a metade com menos tempo na profissão. Além disso, na parte feminina da amostra vimos que 33,3% já poderiam ter se aposentado, mas continuava trabalhando e apresentavam menos desgaste em relação ao envolvimento pessoal no trabalho que suas colegas com menos tempo na carreira. Esses dados podem refletir a resiliência desses profissionais, assim como o fato de que em muitas atividades são encontrados indivíduos que resistem às adversidades em suas carreiras, enquanto outros se afastam devido aos riscos à saúde a que são expostos no trabalho. Nos estudos de epidemiologia ocupacional, os indivíduos que resistem aos danos à saúde aos quais são expostos pela rotina de trabalho são identificados ao fenômeno conhecido como viés de sobrevivência. O termo sobrevivente, nesse sentido, designa um tipo especial de trabalhador, significa que para cada sobrevivente muitos outros trabalhadores deixaram suas funções3434 Bernard BP, editor. Musculoskeletal disorders and workplace factors: a critical review of epidemiologic evidence for work-related musculoskeletal disorders of the neck, upper extremity, and low back. U.S. Department of Health and Human Services; Public Health Service; Centers for Disease Control and Prevention; National Institute for Occupational Safety and Health; July 1997. [cited 2020 mar 10]. Available from: http://www.cdc.gov/niosh/docs/97-141/pdfs/97-141.pdf
http://www.cdc.gov/niosh/docs/97-141/pdf...
,3535 Garcia AM, Checkoway H. A glossary for research in occupational health. J Epidemiol Community Health 2003; 57:7-10..

Certamente existem “sobreviventes” entre os 33,3% das mulheres da amostra, que permaneciam trabalhando após completar 25 anos de trabalho docente e que apresentavam menos esgotamento relacionado ao envolvimento no trabalho, que suas colegas com menos tempo de serviço. Entre elas encontramos professoras aposentadas em um cargo e que trabalhavam para concluir o tempo suficiente para se aposentar em um segundo cargo docente. Fato que permite considerar que estão em condições mais favoráveis, pelo menos economicamente. Além disso, a preferência no acesso à transferência de local de trabalho, possivelmente contribui para o menor desgaste entre os professores com mais de 22,5 anos de trabalho docente. O critério de antiguidade na carreira favorece a escolha de locais onde se sintam mais realizados ou menos esgotados profissionalmente. Por outro lado, a maior concentração do esgotamento entre os docentes com menos tempo de profissão levanta questões sobre o abandono da carreira, bem como sobre o interesse dos jovens em aderir à docência.

Organização do trabalho e esgotamento

Em nosso estudo a questão salarial foi investigada e, apesar de não mostrar associação ao esgotamento, não deve ser minimizada. A valorização da carreira tem sofrido inúmeras perdas22 Paiva V, Junqueira C, Muls L. Prioridade ao ensino básico e pauperização docente. Cad Pesqui 1997; 100:109-119., e em recente relatório a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)3636 Organization for Economic Cooperation and Development (OECD). OECD Indicators, OECD Publishing, Paris: "Brazil", in Education at a Glance 2019; Key facts for Brazil in Education at a Glance 2019; Table D3.1a: Annual statutory salaries of teachers in public institutions, based on most prevalent qualifications, at different points in teachers' careers; 2019. [cited 2020 mar 19]. Available from: https://doi.org/10.1787/246ea76 d-en
https://doi.org/10.1787/246ea76 d-en...
informa que, no Brasil, o salário médio dos docentes (em educação básica e ensino médio) está bem abaixo da média dos países da organização (considerando a paridade do poder de compra). A desvalorização salarial prejudica a atratividade da carreira, incidindo negativamente tanto sobre a atividade profissional quanto sobre a qualificação oferecida na formação dos educadores. Os resultados do nosso estudo são concordantes aos da análise longitudinal da atividade docente realizada na Espanha, por Esteve3737 Esteve JM. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. 3a ed. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração; 1999., que descreveu o “mal-estar” dos professores como condição cujos desencadeantes são a desvalorização social, as demandas profissionais constantes, a violência na escola e a indisciplina, entre outros. Esteve considera que mudanças sociais impactaram o papel desempenhado pelos professores, diminuindo o consenso social quanto à função da escola e do professor na sociedade. Ele argumenta que a formação dos professores deve ser adequada aos novos desafios da prática educacional, deve superar as idealizações do papel do professor e se voltar para as possibilidades reais de trabalho na educação3737 Esteve JM. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. 3a ed. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração; 1999.. Aranda3838 Aranda SM. Um olhar implicado sobre o mal-estar docente [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2007. considera a violência que passou a fazer parte do meio escolar e discute o apoio dos gestores aos docentes. Segundo esses autores3737 Esteve JM. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. 3a ed. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração; 1999.,3838 Aranda SM. Um olhar implicado sobre o mal-estar docente [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2007. a qualificação adequada pode proteger os profissionais do esgotamento. Observando os erros ortográficos e dificuldade de expressar ideias por escrito (encontradas nos registros de parte dos entrevistados), nos perguntamos sobre a qualidade da formação oferecida aos professores em nosso meio.

Violência, conflitos interpessoais e esgotamento

Assim como Maia et al.3939 Maia EG, Claro RM, Assunção AÁ. Múltiplas exposições ao risco de faltar ao trabalho nas escolas da Educação Básica no Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(1); 2-13. encontramos questões estruturais do trabalho, problemas nos contatos interpessoais e violência na escola incidindo sobre os profissionais. Em nosso estudo, a questão da violência no ambiente escolar mostrou importante associação com a exaustão profissional. Encontramos esgotamento grave em 40,86% dos participantes, de acordo com o MBI e 32,26%, de acordo com o CESQT. Além disso, no grupo de participantes que apresentou esgotamento grave simultaneamente nos dois testes (26,9% da amostra), 60% relataram ter sofrido agressão na escola nos últimos 12 meses. Lembrando que é muito pequena a probabilidade de ser devida ao acaso a associação entre “ter sofrido agressão na escola” e ser portador de esgotamento (p=0,001, tanto no MBI como no CESQT). Nossos resultados são concordantes aos de Wilson et al.4040 Wilson CM, Douglas KS, Lyon DR. Violence against teachers: prevalence and consequences. J Interpers Violence 2011; 26(12):2353-2371., que apresentam associações significantes entre a violência contra professores canadenses e a ocorrência de sintomas físicos e emocionais entre eles. Aparentemente a violência nas escolas tem se configurado com características de fenômeno social, sendo objeto de estudos e revisões em diversos contextos1010 DTG. Estratégias de prevenção da violência escolar: revisão integrativa da literatura [dissertação]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo; 2018.,1111 Tancred T, Paparini S, Melendez-Torres GJ, Thomas J, Fletcher A, Campbell R, Bonell C. A systematic review and synthesis of theories of change of school-based interventions integrating health and academic education as a novel means of preventing violence and substance use among students. Syst Rev 2018; 7:190.,3939 Maia EG, Claro RM, Assunção AÁ. Múltiplas exposições ao risco de faltar ao trabalho nas escolas da Educação Básica no Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(1); 2-13.,4040 Wilson CM, Douglas KS, Lyon DR. Violence against teachers: prevalence and consequences. J Interpers Violence 2011; 26(12):2353-2371..

Minayo e Souza4141 Minayo MCS, Souza ER, organizadoras. Violência sob o olhar da saúde: infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. organizaram a revisão da produção científica brasileira sobre a violência como objeto de estudo na área de saúde. As autoras analisaram diversos tipos de estudos e enfoques metodológicos, e discutiram a questão da multicausalidade da violência e sua dialética de causa e efeito. Compreendemos que como em outras “violências”, a questão da violência nas escolas deve ser considerada a partir de sua multicausalidade, cujos determinantes não são absolutos. Por outro lado, apesar da indefinição sobre a origem da violência observada nas escolas, a associação encontrada entre ter sofrido violência e ser portador de esgotamento profissional parece mostrar a necessidade de considerar a violência também sob o aspecto de dano ocupacional. A alta prevalência de esgotamento apresentada pelos participantes e as fortes associações do esgotamento às condições ocupacionais, entre elas a questão da violência, leva à consideração sobre o risco do desenvolvimento de esgotamento na população de referência. Observamos que apesar da violência estar associada aos problemas que determinaram a indicação de psicoterapia, os participantes não procuraram atendimento devido à violência (que sofreram) e cuja ocorrência no meio escolar parece naturalizada. Entretanto se queixam dos inúmeros conflitos e problemas sociais que passaram a fazer parte da escola. Sabemos que o espaço escolar é compartilhado por indivíduos de diferentes estratos sociais, crenças e etnias. Tal pluralidade pode promover a convivência e o respeito mútuo na medida em que os conflitos sejam mediados e espera-se que os educadores conduzam essas mediações. Ou seja, é esperado que o educador lide com os conflitos na perspectiva da formação dos alunos, portanto, quando o alvo da violência é o próprio professor, a agressão pode ser vista por ele como sinal de seu fracasso. Sendo assim, na ausência de apoio institucional primordialmente no que se refere aos processos de mediação de conflitos, os professores tenderiam ao desânimo, e ao esgotamento, caso não encontrem formas para elaborar seus sentimentos. Programas institucionais e capacitação dos educadores quanto à mediação de conflitos no ambiente escolar poderiam apoiá-los neste propósito.

Apesar da resiliência demonstrada pelos professores, os conflitos presentes nas salas de aula parecem refletir as ambiguidades da sociedade em relação à educação. Segundo Azanha, citado por Carvalho33 Carvalho JSFd. "Democratização do ensino" revisitado. Educ Pesqui 2004; 30(2):327-334., a Secretaria Estadual de Educação estimava que até 1968, menos de 20% das crianças em idade escolar chegava ao quinto ano do ensino fundamental no Estado de São Paulo. Em outras palavras, no Estado mais rico e desenvolvido do país, menos de 20% das crianças em idade escolar podiam continuar sua escolarização além do quarto ano da escola primária. Até recentemente, a restrição de vagas, a retenção e a evasão escolar conferiam ao sistema educacional no Brasil um padrão de exclusão e manutenção de desigualdades sociais4242 Ferraro AR, Ross SD. Diagnóstico da escolarização no Brasil na perspectiva da exclusão escolar. Rev Bras Educ 2017; 22(71):1-26.-4343 Ferraro AR, Machado NCF. Da universalização do acesso à escola no Brasil. Educ Soc 2002; 23(79):213-241.. Segundo dados apresentados por Ferraro4242 Ferraro AR, Ross SD. Diagnóstico da escolarização no Brasil na perspectiva da exclusão escolar. Rev Bras Educ 2017; 22(71):1-26., ainda em 2010, apesar do significativo avanço mediante o preceito constitucional de universalização da educação básica, o número de excluídos da escola no Brasil chegava a mais de 3,200 milhões de crianças e adolescentes entre os quatro e os 17 anos de idade. Além dos excluídos, o processo de retenção (repetência), em 2010, atingia outros sete milhões de estudantes4242 Ferraro AR, Ross SD. Diagnóstico da escolarização no Brasil na perspectiva da exclusão escolar. Rev Bras Educ 2017; 22(71):1-26.. A mudança no padrão de exclusão para o de inclusão transformou qualitativamente todo o sistema educacional, forçando a adaptação dos profissionais e depositando na categoria tanto as expectativas do sucesso escolar do novo modelo, como as cobranças quanto a suas falhas. Além das críticas que recebe, o sistema educacional parece subfinanciado considerando-se que, segundo a OCDE3636 Organization for Economic Cooperation and Development (OECD). OECD Indicators, OECD Publishing, Paris: "Brazil", in Education at a Glance 2019; Key facts for Brazil in Education at a Glance 2019; Table D3.1a: Annual statutory salaries of teachers in public institutions, based on most prevalent qualifications, at different points in teachers' careers; 2019. [cited 2020 mar 19]. Available from: https://doi.org/10.1787/246ea76 d-en
https://doi.org/10.1787/246ea76 d-en...
, a relação custo por aluno no Brasil está bem abaixo da média assim como os salários médios dos professores.

Conclusões

Verificamos que o modelo educacional sofreu mudanças em decorrência de amplos processos sociais e econômicos. Alguns participantes mencionaram as mudanças em andamento no modelo pedagógico, apontando vantagens e falhas em sua aplicação. Consideramos que a atividade docente passa por um processo de transição acompanhado de intensa expansão de postos e demanda de trabalho, porém sofrendo perdas salariais iniciadas em período anterior à redemocratização do país. A qualificação e atratividade da carreira parecem prejudicadas. As incertezas existentes nessa transição poderiam ser somadas às questões ocupacionais que mostraram associação ao esgotamento em nossa pesquisa.

Considerando que os sintomas apresentados pelos participantes estão relacionados a questões ocupacionais, para além do tratamento médico ou psicológico dos indivíduos, seriam necessárias ações dirigidas às fontes do esgotamento, buscando a implementação de condições ocupacionais saudáveis, o que beneficiaria também a atratividade da carreira. Dentre os fatores ocupacionais associados à exaustão, destacaram-se: ter sofrido agressão na escola, os conflitos interpessoais na escola e as questões estruturais (como o ruído na sala de aula e na escola). Compreender as relações entre o esgotamento e as questões ocupacionais pode evitar a “individualização” de questões coletivas, ou seja, que os processos desencadeados e mantidos no ambiente externo ao sujeito (e capazes de afetar grande número de profissionais) sejam erroneamente considerados apenas como “questões pessoais”, restritas aos indivíduos.

Embora o esgotamento tenha sido descrito desde a década de 1970 e vários países produzam estudos sobre o assunto, os sintomas apresentados pelos professores da cidade de São Paulo parecem receber pouca atenção dos pesquisadores e dos departamentos de educação e saúde. Assim, aparentemente, constitui um campo ainda a ser estudado em nosso meio. Ações para evitar ou reduzir o esgotamento profissional dos professores incluem a melhoria de sua qualificação, remuneração e suporte dirigido aos conflitos no ambiente de trabalho. Programas para estimular o apoio da administração escolar e entre pares, poderiam lidar com questões interpessoais relacionadas ao esgotamento. Ações direcionadas à estrutura e organização do trabalho poderiam melhorar a saúde do professor, reduzir a busca por tratamentos e licenças para problemas de saúde, e seriam vantajosas tanto para os profissionais quanto para os alunos e a instituição.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2020
  • Aceito
    07 Jan 2021
  • Publicado
    09 Jan 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br