Relação de fatores pessoais e ambientais com a prevalência de deficiências físicas adquiridas no Brasil - estudo de base populacional

Marina Carvalho Arruda Barreto Larissa Fortunato Araújo Shamyr Sulyvan de Castro Sobre os autores

Resumo

Objetivou estimar a relação de fatores pessoais e ambientais com a prevalência de deficiência física adquirida em adultos e idosos brasileiros. Realizado um estudo transversal com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013. A variável resposta foi: autorrelato deficiência física adquirida. As variáveis explicativas de interesse foram: sexo, raça/cor, escolaridade, classe social, trabalho remunerado, plano de saúde, água canalizada e rede de esgoto. As magnitudes das associações e seus respectivos intervalos de confiança (95%) foram estimadas utilizando a Regressão de Poisson. O autorrelato de deficiência física foi encontrado em 1,25% dos 55.369 participantes. Após completo ajustamento, o sexo masculino, raça/cor não branca, menores níveis de escolaridade, viver sozinho, não ter trabalho remunerado, plano de saúde, água canalizada e rede de esgoto foram associados a maiores prevalências de deficiência física adquirida. Esses achados evidenciam que a população mais vulnerável apresenta maior prevalência de deficiência física e os fatores pessoais e ambientais são importantes de serem avaliados em nível populacional.

Palavras-chave:
Saúde da pessoa com deficiência; Estudos populacionais em Saúde Pública; Vulnerabilidade Social

Introdução

O conceito de deficiência foi modificado ao longo dos anos, com o incremento do conhecimento sobre a saúde da população e os fatores influenciadores. Atualmente, a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), da Organização Mundial de Saúde (OMS), conceitua que as deficiências “são problemas nas funções ou estruturas do corpo como um desvio importante ou uma perda”. A deficiência pode ser influenciada (e pode influenciar) de forma positiva ou negativa nos fatores ambientais e pessoais, nas atividades e participação11 Organização Mundial de Saúde (OMS). CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2003.. Os fatores ambientes “compõem o ambiente físico, social e de atitude em que as pessoas vivem e conduzem suas vidas” e os pessoais são relativos ao contexto particular da vida de um indivíduo. Ambos são constructos importante na CIF, compondo os fatores contextuais11 Organização Mundial de Saúde (OMS). CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2003.,22 Schneidert M, Hurst R, Miller J, Üstün B. The role of environment in the International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF). Disabil Rehabil 2003; 25(11-12):588-595..

A literatura aponta que pessoas com algum tipo de deficiência relatam e experimentam disparidades sociais e apresentam maiores dificuldades em manter e conseguir um emprego33 Krahn GL, Walker DK, Correa-De-Araujo R. Persons with disabilities as an unrecognized health disparity population. Am J Public Health 2015; 105:S198-S206.,44 Martins AC. Using the International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF) to address facilitators and barriers to participation at work. Work 2015; 50(4):585-593.. Além disso, o nível educacional mais elevado apresenta associação com menor risco de adquirir uma deficiência e de lidar melhor com essa deficiência55 Bengtsson S, Gupta ND. Identifying the effects of education on the ability to cope with a disability among individuals with disabilities. PLoS One 2017; 12(3):1-13.. Um estudo observou que pessoas que moram sozinhas têm menor expectativa de vida sem deficiência quando comparados com as pessoas que vivem com parceiros; e os homens têm piores resultados do que as mulheres66 Chiu C. Living arrangements and disability-free life expectancy in the United States. Plos One 2019; 14(2):e0211894..

A pesquisa nacional de saúde dos Estados Unidos nos anos de 2001 a 2005 mostrou que indivíduos com deficiência apresentavam maior probabilidade de serem fumantes, inativos fisicamente em atividades de lazer e obesos, e outro estudo relacionou esses achados a possíveis barreiras ambientais encontradas por essa população77 Iezzoni LI. Eliminating Health and Health Care Disparities Among the Growing Population of People with Disabilities. Health Aff 2011; 30(10):1947-1954.. Dado que a deficiência é uma expressão complexa e abrangente, reconhecer a necessidade de abordagem multidisciplinar é importante para o desenvolvimento de políticas, avaliações, intervenções mais eficazes e menos centralizadas nas questões biomédicas88 Lauer EA, Houtenville AJ. Estimates of prevalence, demographic characteristics and social factors among people with disabilities in the USA: A cross-survey comparison. BMJ Open 2018; 8(2):1-7.. Entender que existe um contexto permeando a vida do indivíduo e que questões ambientais e pessoais podem vir a potencializar ou impor barreiras à funcionalidade é essencial para um melhor entendimento da condição de saúde da população.

Este estudo tem como objetivo estimar a relação de fatores pessoais (sexo, raça, escolaridade, classe social, trabalho remunerado e plano de saúde) e ambientais (água canalizada e rede de esgoto) com a prevalência de deficiência física adquirida em adultos e idosos brasileiros.

Métodos

Desenho e população de estudo

Estudo transversal utilizando dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). A PNS tem como um de seus objetivos coletar informações sobre as condições de saúde da população, fazendo parte do sistema de vigilância epidemiológica. Com os dados coletados é possível verificar a associação de doenças crônicas não transmissíveis com fatores de risco.

A amostra foi de 60.202 entrevistados sendo a pesquisa conduzida em 1.600 municípios no ano de 2013. O planejamento estatístico foi realizado para os dados serem um representativo da população brasileira99 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira MLFP, Conde WL, Souza Júnior PRB, Damacena GN, Azevedo LO, Silva GA, Theme Filha MM, Lopes CS, Romero DE, Almeida WS, Monteiro CA. National Health Survey in Brazil: design and methodology of application. Cien Saude Colet 2014; 19(2):333-342.. A coleta de dados foi por domicílio, tendo os indivíduos residentes nos domicílios particulares nas áreas rurais e urbanas como a população da pesquisa. Foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde99 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira MLFP, Conde WL, Souza Júnior PRB, Damacena GN, Azevedo LO, Silva GA, Theme Filha MM, Lopes CS, Romero DE, Almeida WS, Monteiro CA. National Health Survey in Brazil: design and methodology of application. Cien Saude Colet 2014; 19(2):333-342..

O tamanho da amostra foi de 79.875 domicílios, com suposição de uma taxa de 20% de não resposta, esperava-se uma amostra de 63.900 domicílios ou entrevistas individuais. A taxa de não resposta foi de 8,1%. O estudo apresentou perdas por: domicílios fechados ou vazios, não conseguir entrevistar após 3 tentativas, recusa de atender o entrevistador. A PNS foi aprovada por comitê de ética em pesquisa1010 Iser BPM, Stopa SR, Chueiri PS, Szwarcwald CL, Malta DC, Monteiro HOC, Duncan BB, Scmidt MI. Prevalência de diabetes autorreferido no Brasil: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(2):305-314. e o banco de dados está disponível na internet para uso.

Do total de 60.202 indivíduos que participaram do estudo, 55.369 compõem a presente análise, pois foram excluídos 4.833 indivíduos com outras deficiências (intelectual - 279; visual - 3.220; auditiva - 1.375); e por ter deficiência física congênita (41) (houve 82 casos de pessoas com mais de uma deficiência).

Variável resposta

A variável dependente foi o autorrelato de alguma deficiência física adquirida (sim ou não), sendo mensuradas por meio das perguntas “_________tem alguma deficiência física?”, “_________nasceu com a deficiência física ou a deficiência foi adquirida por doença ou acidente?”.

Variáveis explicativas

As variáveis independentes relacionadas a fatores individuais foram: Sexo (masculino, feminino), raça/cor da pele (branca, não branca [preta, parta, amarela, indígena]), escolaridade (ensino superior ou mais, ensino médio completo, ensino fundamental completo, ensino fundamental incompleto ou menos) - no questionário da PNS a pergunta era “qual foi o curso mais elevado que frequentou anteriormente” tendo as seguintes opções de reposta: classe de alfabetização, alfabetização de jovens e adultos, antigo primário, antigo ginásio, regular ou ensino fundamental ou do 1º grau, educação de jovens e adultos ou supletivo do ensino fundamental, antigo científico, regular do ensino médio ou do 2º grau, educação de jovens e adultos ou supletivo do ensino médio, superior-graduação, mestrado, doutorado -; classe social (estudada segundo o Critério de Classificação Econômica Brasil1111 Kamakura W, Mazzon JF. Critérios de estratificação e comparação de classificadores socioeconômicos no Brasil. Rev Adm Empres 2016; 56(1):55-70. e categorizada em quintis, sendo o primeiro quintil o melhor, e o último quintil, o pior); se vive com outra pessoa (sim, não); se tem trabalho remunerado (sim, não); sem tem plano de saúde (sim, não).

Já as variáveis relacionadas a fatores ambientais foram: água canalizada em pelo menos um cômodo (sim, não) e rede de esgoto (rede geral de esgoto ou pluvial, outros [fossa séptica, fossa rudimentar, vala, direto para rio, lago ou mar, outra]).

Análise estatística

As características da população do estudo foram descritas pela presença de deficiência adquirida por meio de frequências e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), e sua relação foi estimada por meio do teste de qui-quadrado de Pearson. As associações entre variáveis explicativas (sexo, raça, escolaridade, classe social, trabalho remunerado, plano de saúde, água canalizada e rede de esgoto) com a variável resposta foram estimadas usando modelo de regressão de Poisson. Posteriormente procedeu-se o ajuste mútuo por aquelas variáveis que permaneceram associadas e também pela idade. As magnitudes das associações foram estimadas por meio de razão de prevalências e seus respectivos intervalos de confiança IC95%. A ponderação amostral prevista para essa pesquisa foi incorporada ao processo de análise pelo uso do pacote survey do programa Stata 14.0 e o nível de significância foi de 5%.

Resultados

Do total 55.369 participantes deste estudo, a maioria eram mulheres (51,88%), da raça/cor da pele não branca (52,87%), com ensino fundamental completo ou menos (46,93%), viviam com outra pessoa (61,59%), se situavam nos três piores quintis de classe social (58,03%), com trabalho remunerado (59,57%), não tinham plano de saúde (69,44%), possuíam água canalizada (94,10%) e outra forma de esgoto que não a geral ou pluvial (84,20%).

O autorrelato de deficiência física adquirida foi encontrado em 1,25% dessa população, nos quais a maioria era sexo masculino (63,09%), não branco (59,75%), com ensino fundamental incompleto ou menor grau de escolaridade (65,01%), pertencem aos três piores quintis de classe social (71,99%), sem trabalho remunerado (72,77%), plano de saúde (73,78%), vivia sozinho (50,94%), com água canalizada (92,7%) e outra forma de rede de esgoto que não geral ou pluvial (85,63%) (Tabela 1). A médias de idade entre as pessoas com deficiência física adquirida foi de 54,40 anos (IC95% 52,43-56,38) e para as sem deficiência de 41,67 anos (IC95% 41,39-41,95); e para a população total estudada foi de 41,83 anos (IC95% 41,55-42,10) (dados não mostrados em tabelas).

Tabela 1
Característica da população de estudo.

A Tabela 2 apresenta as associações entre cada variável explicativa (sexo, raça, escolaridade, classe social, trabalho remunerado, plano de saúde, água canalizada e rede de esgoto) com a variável resposta. Observamos que ser do sexo masculino, da raça/cor da pele não branca, com menores níveis de escolaridade, pertencer ao pior quintil de classe social, viver sozinho, não ter trabalho remunerado, plano de saúde, água canalizada e ter outra forma de rede de esgoto que não geral ou pluvial estiveram associados a maiores prevalências de deficiência física. Após ajustamento mútuo por todas as exposições de interesse as associações permaneceram estatisticamente significantes com reduções nas suas magnitudes.

Tabela 2
Associações entre fatores individuais e ambientais com a prevalência de deficiência física. Pesquisa Nacional de Saúde, 2013.

Discussão

O estudo tem como objetivo descrever a relação de deficiência física com fatores pessoais e ambientais na população brasileira. O autorrelato de deficiência física foi presente em 1,25% (n=691) da população. Após completo ajustamento pelas exposições a nível de indivíduo e ambientais observamos maiores prevalências de deficiência em homens, pessoas não brancas, com menor escolaridade no pior quintil de classe social, sem trabalho remunerado e plano de saúde, morando em residências sem redes de esgoto e de água. Percebe-se que pessoas em maior nível de vulnerabilidade social foram as que mostraram maiores prevalências de deficiência física adquirida autorrelatada.

No presente estudo, pessoas do sexo masculino apresentaram uma maior prevalência de deficiência física em comparação ao sexo feminino. Evidências prévias apresentaram os mesmos resultados, como na pesquisa realizada em Florianópolis que avaliou o perfil de indivíduos com deficiência física1212 Nogueira GC, Schoeller SD, Ramos FRS, Padilha MI, Brehmer LCF, Marques AMFB. The disabled and public policy: The gap between intentions and actions. Cien Saude Colet 2016; 21(10):3131-3142.. Estudo realizado na Austrália1313 Gurney JK, Stanley J, York S, Rosenbaum D, Sarfai D. I. Risk of lower limb amputation in a national prevalent cohort of patients with diabetes. Diabetologia 2018; 61(3):626-635. e outro no Canadá1414 Amin L, Shah BR, Bierman AS, Lipscombe LL, Wu CF, Feig DS, Booth GL. I. Gender differences in the impact of poverty on health: disparities in risk of diabetes-related amputation. Diabet Med 2014; 31(11):1410-1417. mostraram que os homens apresentavam maior probabilidade de ter amputação em decorrência da diabetes. Soma-se que é maior a prevalência de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e incapacidade por AVC em homens1515 Bensenor IM, Goulart AC, Szwarcwald CL, Vieira MLFP, Malta DC. Prevalence of stroke and associated disability in Brazil: National Health Survey - 2013. Arq Neuro-Psiquiatr 2015; 73(9):746-750.. Essas são condições que podem levar a deficiência física adquirida. Porém, importante destacar que esse resultado não é um consenso na literatura, visto que outros estudos apresentam que mulheres tem um nível mais baixo de saúde e mais deficiência autorreferida1616 Boerma T, Hosseinpoor AR, Verdes E, Chatterji S. A global assessment of the gender gap in self-reported health with survey data from 59 countries. BMC Public Health 2016; 16(1):1-9. e estudo publicado em 2020 mostrou que a prevalência de incapacidade de pessoas que poderiam precisar de reabilitação a nível mundial é quase igual entre homens e mulheres1717 Cieza A, Causey K, Kamenov K, Hanson SW, Chatterji S, Vos T. Global estimates of the need for rehabilitation based on the Global Burden of Disease study 2019: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. Lancet 2020; 396(10267):2006-2017..

Os achados da presente pesquisa disponibilizam informações que identificam o gênero masculino como mais propenso à ocorrência de deficiência adquirida. Apesar de não ser um consenso na literatura mundial, é uma informação que pode ser usada como elemento norteador para o desenho e implementação de políticas em saúde do homem que também tenham foco na ocorrência de deficiências físicas adquiridas, como na prevenção e cuidado de condições como diabetes e AVC, e situações como acidentes de trânsito com lesões corporais que são mais comuns em homens1818 Damacena GN, Malta DC, Boccolini CS, Souza Júnior PR, Almeida WD, Ribeiro LS, Szwarcwald CL. Alcohol abuse and involvement in traffic accidents in the Brazilian population, 2013. Cien Saude Colet 2016; 21(12):3777-3786..

Este estudo detectou maior prevalência de deficiência em pessoas não brancas, em coerência com o que foi observado em estudo realizado nos Estados Unidos em 2013 com adultos não institucionalizados e apresentou que adultos negros relataram maior prevalência de deficiência geral e em todos os tipos analisados (visão, cognição, mobilidade - principalmente artrite e problemas na coluna -, autocuidado, vida independente)1919 Courtney-Long EA, Carroll DD, Zhang QC, Stevens AC, Griffin-Black S, rmour BS, Campbell VA. Prevalence of Disability and Disability Type Among Adults--United States, 2013. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2015; 64(29):777-783.. Uma das possíveis justificativas é que a população não branca possui menor nível de renda e escolaridade2020 Fuller-Thomson E, Nuru-Jeter A, Minkler M, Guralnik JM. Black-white disparities in disability among older americans: Further untangling the role of race and socioeconomic status. J Aging Health 2009; 21(5):677-698.,2121 Jacob ME, Marron MM, Boudreau RM, Odden MC, Arnold AM, Newman AB. Age, race, and gender factors in incident disability. J Gerontol A Biol Sci Med Sci 2018; 73(2):194-197.. Essas disparidades socioeconômicas acabam por interferir em diferentes áreas da vida individual e social, dados de saúde de adultos dos Estados Unidos, em 2008, mostraram que a população afro-americana apresentava menores taxas de atividade física de lazer, e taxas desproporcionais de doenças (cardíacas, hipertensão, diabetes mellitus, entre outras condições), sendo uma população mais vulnerável2222 Brand DJ, Alston RJ, Harley DA. Disability and race: a comparative analysis of physical activity patterns and health status. Disabil Rehabil 2011; 34(10):795-801.. O mesmo estudo de Brand et al.2222 Brand DJ, Alston RJ, Harley DA. Disability and race: a comparative analysis of physical activity patterns and health status. Disabil Rehabil 2011; 34(10):795-801. defende que fatores proximais como os comportamentais e fatores de risco (estresse, hipertensão, diabetes) que são frequentes em população de baixa renda podem influenciar nos resultados de saúde e de atividade física, somados também aos fatores distais como os socioeconômicos e os sociais (a população afro-americana apresentava menores níveis de renda e educação) que agem como possíveis mediadores2222 Brand DJ, Alston RJ, Harley DA. Disability and race: a comparative analysis of physical activity patterns and health status. Disabil Rehabil 2011; 34(10):795-801.. Mesmo diante dos argumentos referenciados apresentados nessa discussão, cabe ressaltar que outros fatores não estudados na presenta pesquisa poderiam influenciar na relação entre cor de pele e ocorrência de deficiências, cabendo para isso, estudos com foco exclusivo na relação entre essas variáveis, com aprofundamentos direcionados para variáveis não estudadas neste artigo.

Fortalecendo a justificativa acima apresentada, os resultados do presente estudo apontam uma maior prevalência de deficiência física para indivíduos com menor escolaridade, no pior quintil de classe social e sem trabalhando remunerado. A educação é um fator importante na inclusão social, a baixa escolaridade pode acarretar menor acesso aos serviços de saúde, a informações sobre prevenção de agravos e promoção à saúde, influenciando assim, nas ações de autocuidado1212 Nogueira GC, Schoeller SD, Ramos FRS, Padilha MI, Brehmer LCF, Marques AMFB. The disabled and public policy: The gap between intentions and actions. Cien Saude Colet 2016; 21(10):3131-3142.,2323 Krause J, Carter RE. Risk of mortality after spinal cord injury: Relationship with social support, education, and income. Spina Cord 2009; 47(8):592-596.. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em 2008 mostraram que menor escolaridade, menor renda familiar per capita e estar inativo economicamente foram associados com a incapacidade funcional2424 Andrade KRC, Silva MT, Galvão TF, Pereira MG. Functional disability of adults in Brazil: Prevalence and associated factors. Rev Saude Publica 2015; 49:89.. Uma grande quantidade de pessoas com deficiência são desempregadas, apesar dos avanços das políticas públicas voltadas a essa população1212 Nogueira GC, Schoeller SD, Ramos FRS, Padilha MI, Brehmer LCF, Marques AMFB. The disabled and public policy: The gap between intentions and actions. Cien Saude Colet 2016; 21(10):3131-3142. e até mesmo em países desenvolvidos e com políticas sociais abrangente como a Suíça, isso é uma realidade2525 Fekete C, Siegrist J, Reinhardt JD, Brinkhof MWG. Is financial hardship associated with reduced health in disability? the case of spinal cord injury in switzerland. PLoS One 2014; 9(2):e90130..

A população que morava com outra pessoa teve uma menor prevalência de deficiência, tendência que já é verificada na literatura2626 Sandstrom G, Namatovu F, Ineland J, Larsson D, Ng Nawi, Stattin M. The Persistence of High Levels of Living Alone Among Adults with Disabilities in Sweden, 1993-2011. Pop Res Pol Review 2021; 40(2):163-185.. Além disso, pessoas com deficiência vivendo sozinhas têm mais relatos de piores níveis de satisfação com a vida2626 Sandstrom G, Namatovu F, Ineland J, Larsson D, Ng Nawi, Stattin M. The Persistence of High Levels of Living Alone Among Adults with Disabilities in Sweden, 1993-2011. Pop Res Pol Review 2021; 40(2):163-185., e menor expectativa de vida e expectativa de vida sem deficiência66 Chiu C. Living arrangements and disability-free life expectancy in the United States. Plos One 2019; 14(2):e0211894.. Essas informações, em conjunto com os achados de nosso estudo, reforçam a perspectiva de que as pessoas com deficiência experimentam processo de isolamento social2727 Freeman J, Gorst T, Gunn H, Robens S. "A non-person to the rest of the world": experiences of social isolation amongst severely impaired people with multiple sclerosis. Disabil Rehabil 2020; 42(16):2295-2303.. Nesse sentido, especial atenção no processo de cuidado em saúde pode ser dado a esse segmento de pessoas com deficiência.

A relação de doença com água, saneamento e higiene já foi descrita na literatura há algum tempo e configura como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável2828 Prüss-Ustün A, Wolf J, Bartram J, Clasen T, Cumming O, Freeman MC, Gordon B, Hunter PR, Medlicott K, Johnston R. Burden of disease from inadequate water, sanitation and hygiene for selected adverse health outcomes: An updated analysis with a focus on low- and middle-income countries. Int J Hyg Environ Health 2019; 222(5):765-777.. Existem muitos estudos que relatam a importância desses elementos para o desenvolvimento infantil2929 Cumming O, Cairncross S. Can water, sanitation and hygiene help eliminate stunting? Current evidence and policy implications. Matern Child Nutr 2016; 12(Supl. 1):91-105.. No presente estudo pessoas com deficiência física mostraram menor uso de água canalizada e rede geral de esgoto ou pluvial no domicílio. Estudo multicêntrico realizado em 4 países (Bangladesh, Camarões, Malaui e Índia) verificou que a população com deficiência teve dificuldade de acesso a água em comparação aos outros moradores da mesma casa3030 Mactaggart I, Schmidt WP, Bostoen K, Chunga J, Danquah L, Halder AK, Jolly SP, Polack S, Rahman M, Snel M, Kuper H, Biran A. Access to water and sanitation among people with disabilities: Results from cross-sectional surveys in Bangladesh, Cameroon, India and Malawi. BMJ Open 2018; 8(6):e020077.. Observa-se que os fatores ambientais e pessoais dos pacientes precisam ser considerados, pois eles podem apresentar associação com deficiência.

Como já mostrado na literatura, os achados desta pesquisa reforçam que existe associação de deficiências com variáveis ligadas à vulnerabilidade social3131 Cappelli M, Bordonali A, Giannotti C, Montecucco F, Nencioni A, Odetti P, Monacelli F. Social vulnerability underlying disability amongst older adults: A systematic review. Eur J Clin Invest 2020; 50(6):e13239.,3232 Wallace LMK, Theou O, Pena F, Rockwood K, Andrew MK. Social vulnerability as a predictor of mortality and disability: cross-country differences in the survey of health, aging, and retirement in Europe (SHARE). Aging Clin Exp Res 2015; 27(3):365-372.. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS), coloca as pessoas com deficiência entre seus principais usuários, devendo estes receber proteção social básica, que tem como objetivo prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Nesse sentido, dispositivos como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) (que garante uma renda mensal à pessoa com deficiência) são encontrados. Além disso, a PNAS coloca as pessoas com deficiência também como merecedores de proteção social especial, que assiste pessoas que se encontram em risco pessoal ou social por abandono, maus tratos (físicos, psíquicos, sexuais), uso de substâncias ilícitas, em cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, trabalho infantil, entre outras. Segundo a PNAS, serviços de habilitação e reabilitação na comunidade especificamente voltados para pessoas com deficiência devem ser criados e as pessoas com deficiência seriam alvo de ações de vigilância social e proteção social3333 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Conselho Nacional de Assistência Social. Plano Nacional de Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2005.. A efetividade da PNAS ou de outras políticas de proteção social poderiam ser úteis no sentido de diminuir o impacto da vulnerabilidade social entre as pessoas com deficiência em nível populacional.

O autorrelato de deficiência física pode ser citado como a principal limitação do presente estudo. Entretanto, cabe ressaltar que essa é uma pesquisa populacional, domiciliar, de âmbito nacional, que colheu informações da população de área rurais e urbanas. Os dados permitem a obtenção de informações que possibilitam o estudo de prevalência de deficiência na população de uma forma ampla e com representatividade. Além disso, é uma pesquisa que acontece periodicamente, permitindo assim futuras comparações da evolução do perfil populacional.

Conclusões

Os resultados mostram que pessoas do gênero masculino, com cor da pele não branca, menor escolaridade, classe social mais baixa, solteiro, sem trabalho remunerado, não usuário de plano privado de saúde e sem rede de água e esgoto relataram maior prevalência de deficiência física adquirida. Esses achados mostram que a população mais vulnerável e em situações mais precárias apresentam uma maior prevalência de deficiência física e que os fatores pessoais e ambientais são importantes elementos a serem avaliado em nível populacional.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2020
  • Aceito
    17 Abr 2021
  • Publicado
    19 Abr 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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