Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula

Hêider Aurélio Pinto Soraya Maria Vargas Côrtes Sobre os autores

Resumo

O objetivo do artigo é analisar as características da política de regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante os governos Lula (2003-2010) e o processo de disputa em torno de sua mudança defendida pelos dirigentes do Ministério da Saúde, integrantes do movimento sanitário. Trata-se de um estudo de caso que utilizou o process tracing como estratégia metodológica e, como fontes, documentos e entrevistas. Utilizaram-se os recursos teóricos dos estudos sobre processo político e a teoria da mudança institucional gradual. Os principais resultados são a compreensão do arranjo institucional relacionado à política e a identificação de atores individuais e coletivos que atuaram para sua conservação ou mudança. Constataram-se três restrições político-institucionais à mudança: a oposição da comunidade de política “medicina-liberal”, que exercia influência sobre a política, a falta de apoio ou resistência do Ministério da Educação às mudanças propostas e a decisão do núcleo do governo de não levar adiante propostas que, ao mesmo tempo, tivessem que ser aprovadas no Legislativo e contassem com a oposição da “comunidade” da medicina-liberal. Predominou um equilíbrio que tendeu à reprodução do status quo e do arranjo institucional vigente, apesar de ter havido alterações incrementais na política.

Palavras-chave:
Recursos humanos em saúde; Educação médica; Política pública

Introdução

O artigo tem por objetivo analisar as características da política de regulação, formação e provimento de médicos durante os governos Lula - 2003 a 2010, bem como o processo de disputa em torno de proposta de mudança defendida pela comunidade política do movimento sanitário (CP-M Sanitário), que não veio a ocorrer. Uma mudança nessa política que considerasse tal proposta, como a promovida pelo Programa Mais Médicos (PMM), só se concretizou em 2013, no governo seguinte. O argumento que desenvolvemos no artigo é o de que, apesar das insuficiências na oferta e formação médicas para atender às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e das demandas crescentes de gestores municipais por médicos, atores coletivos em situação vantajosa com a política então vigente mobilizaram os recursos de que dispunham para impedir a concretização da proposta de mudança.

A questão das insuficiências na oferta e formação médicas em relação às necessidades dos sistemas de saúde é um tema presente na literatura nacional e internacional e nas discussões governamentais no Brasil desde o fim dos anos 196011 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.,22 World Health Organization (WHO). Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva: WHO; 2010.. Na primeira década deste século, durante, portanto, os dois mandatos do presidente Lula, tais insuficiências constituíam-se em uma questão objetiva relacionada à profissão médica. A taxa de médicos por mil habitantes no Brasil em 2000 era de apenas 1,7. A percepção pública de agravamento dessas insuficiências foi intensificada pelo crescimento da participação do macrossetor saúde na economia, resultando na expansão dos postos de trabalho médico sem o crescimento proporcional das vagas de graduação em medicina33 Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Relatório final: estudo de levantamento de aspectos demográficos, de formação e de mercado de trabalho das profissões de saúde nível superior no Brasil entre 1991 e 2010 [relatório técnico de projeto]. Belo Horizonte: UFMG; 2014.,44 Girardi SN, Carvalho CL, Maas LD, Farah J, Freire JA. O trabalho precário em saúde: tendências e perspectivas na Estratégia de Saúde da Família. Div Saude Debate 2010; 45:11-23.. O número de médicos graduados na década foi equivalente a apenas 69% dos novos postos de trabalho criados. A medicina foi a única profissão de saúde a aumentar, no período, a relação candidato/vaga, a remuneração média e a empregabilidade33 Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Relatório final: estudo de levantamento de aspectos demográficos, de formação e de mercado de trabalho das profissões de saúde nível superior no Brasil entre 1991 e 2010 [relatório técnico de projeto]. Belo Horizonte: UFMG; 2014.. Tanto as vagas de graduação quanto as de residência médica estavam concentradas nas cidades maiores e mais ricas, bem como nas regiões Sudeste e Sul33 Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Relatório final: estudo de levantamento de aspectos demográficos, de formação e de mercado de trabalho das profissões de saúde nível superior no Brasil entre 1991 e 2010 [relatório técnico de projeto]. Belo Horizonte: UFMG; 2014.,55 Aléssio MM. Análise da implantação do programa mais médicos [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2015..

Nesse cenário, atores individuais e coletivos em posição vantajosa na estrutura institucional que tratava das políticas de regulação, formação e provimento de médicos - particularmente aqueles que representavam os interesses da profissão médica55 Aléssio MM. Análise da implantação do programa mais médicos [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2015.

6 Campos GWS. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec; 1988.

7 Machado MH. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997.

8 Feuerwerker LCM. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. São Paulo: Hucitec; 2002.
-99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021. - resistiam à mudança. Outros - como gestores do SUS e integrantes da CP-M Sanitário1010 Côrtes SV. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. - defendiam, elaboravam e difundiam propostas de mudança, interpretando as regras institucionais vigentes como prejudiciais ao bom funcionamento do SUS. Pleiteavam que a questão das insuficiências na oferta e formação médicas passasse a receber atenção do governo federal, sendo reconhecida como uma questão de política (issue) a ser incluída na agenda governamental.

Integrantes da direção do Ministério da Saúde (MS) durante o Governo Lula entendiam que as insuficiências na oferta e formação médicas limitavam a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade dos serviços do SUS99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Ao longo do período, propuseram alteração nas regras da regulação profissional com vistas a aumentar a quantidade, melhorar a distribuição e prover médicos nas áreas com maior necessidade. Defendiam, além disso, reorientação da formação médica em função das necessidades do SUS, que se mostrava insatisfatória55 Aléssio MM. Análise da implantação do programa mais médicos [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2015.,99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.,1111 Dias HA, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cien Saude Colet 2013; 18(6):1613-1624.,1212 Petta HL. Formação de médicos especialistas no SUS: descrição e análise da implementação do programa nacional de apoio à formação de médicos especialistas em áreas estratégicas (Pró-Residência). Rev Bras Educ Med 2013; 37(1):72-79..

O artigo oferece uma resposta a esse aparente paradoxo: o objetivo dos dirigentes do MS de inserir a questão na agenda do governo e de formular e implementar políticas para resolvê-la e o fato de que isso não ocorreu. A literatura tem abordado a política de regulação, formação e provimento de médicos no Brasil, porém os estudos focalizam a descrição e a análise de problemas na área33 Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Relatório final: estudo de levantamento de aspectos demográficos, de formação e de mercado de trabalho das profissões de saúde nível superior no Brasil entre 1991 e 2010 [relatório técnico de projeto]. Belo Horizonte: UFMG; 2014.,44 Girardi SN, Carvalho CL, Maas LD, Farah J, Freire JA. O trabalho precário em saúde: tendências e perspectivas na Estratégia de Saúde da Família. Div Saude Debate 2010; 45:11-23., cada solução apresentada ao debate público1212 Petta HL. Formação de médicos especialistas no SUS: descrição e análise da implementação do programa nacional de apoio à formação de médicos especialistas em áreas estratégicas (Pró-Residência). Rev Bras Educ Med 2013; 37(1):72-79. ou o conjunto das ações do governo federal no período1111 Dias HA, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cien Saude Colet 2013; 18(6):1613-1624.. Neste estudo, indaga-se por que a questão não foi incluída na agenda governamental de modo a produzir uma mudança abrangente, focando as disputas em torno da alteração ou manutenção da política. O que impediu a alteração na política de regulação, formação e provimento de médicos, apesar dos esforços de mudança de atores individuais e coletivos? As seções seguintes tratam, respectivamente, dos métodos utilizados no estudo, dos resultados encontrados e da discussão desses resultados à luz do referencial teórico empregado.

Métodos

O presente estudo de caso utilizou como estratégia metodológica da pesquisa o process tracing, que usualmente examina trajetórias históricas, documentos, transcrições de entrevistas e outras fontes para verificar se possíveis explicações derivadas de teorias são válidas ou devem ser modificadas ou refinadas considerando as diversas variáveis intervenientes em um caso, objetivando identificar cadeias e mecanismos causais1313 Bennett A, Checkel JT, organizadores. Process tracing: from metaphor to analytic tool. Cambridge: Cambridge University Press; 2015.. Consideramos que as “cadeias e mecanismos causais” são construtos teóricos elaborados pelos pesquisadores, que focalizam dimensões da realidade apontadas pelas teorias como passíveis de influir ou determinar um evento ou um fenômeno, sendo aplicadas à empiria com o objetivo de formular teorias de médio alcance que expliquem o evento ou fenômeno.

Não houve alteração significativa na política de regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula, apesar de dirigentes situados em postos de decisão no MS considerarem a política vigente insuficiente às necessidades do SUS. Na busca de uma explicação para esse fato, dirigimos o olhar para três dimensões explicativas e para a caracterização do processo em análise. (1) A primeira dimensão é formada pelos atores individuais e coletivos e seus interesses e ideias, que agiam nos dois subsistemas, se posicionando na disputa e problematizando a política vigente com vistas à sua permanência ou transformação. (2) A segunda é composta pelo arcabouço institucional vigente nos subsistemas de saúde e de educação superior, formado por um conjunto de regras legais e administrativas. (3) A terceira se refere a padrões institucionalizados, “tradicionais” de relação entre decisores governamentais e atores societais. No respectivo processo político em análise, todos esses fatores se encadearam em momentos e espaços de decisão, formando a trajetória da política nos dois subsistemas no período, identificando as tentativas de alterações que tiveram ou não sucesso, como pode ser visto no Quadro 1.

Quadro 1
Estratégia de reunião de evidências no estudo.

A análise documental compreendeu o período do governo Lula, de 2003 a 2010. Priorizou a normatização oficial de ações da política de regulação, de formação e de provimento médicos (leis, decretos, portarias, resoluções e outros documentos de instituições estatais), documentos de organizações da sociedade civil, tanto das entidades médicas quanto daquelas da “Reforma Sanitária”, bem como discursos publicados na mídia e meios próprios de comunicação, sejam das entidades médicas e da Reforma, ou de representantes do Governo. A análise bibliográfica buscou apoiar o estudo na resposta das questões e hipóteses de pesquisa e na compreensão dos processos analisados, abrangendo um período mais amplo, a partir do início da segunda metade do século XX, quando se ampliou no país o debate sobre a formação de recursos humanos em saúde11 Maciel Filho R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.,99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021., até 2010. Foram analisados trabalhos acerca das principais ações e programas do período, a respeito do tema recursos humanos em saúde e posições das organizações da profissão médica.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 19 informantes-chave que tiveram participação na formulação governamental das políticas de regulação, formação e provimento no período de 2003 a 2018, cujas características estão apresentadas no Quadro 2. Entre eles, 12 ocuparam posições com poder de decisão no período focalizado neste artigo, de 2003 a 2010. Utilizaram-se técnicas de análise de conteúdo1414 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2014. e de análise crítica de discurso político1515 Fairclough I, Fairclough N. Political discourse analysis: a method for advanced students. New York: Routledge; 2013. para tratar as entrevistas, combinando tanto categorias analíticas, como atores, ideais, instituições, questões, problemas e soluções, quanto premissas discursivas1515 Fairclough I, Fairclough N. Political discourse analysis: a method for advanced students. New York: Routledge; 2013., tais como objetivos, valores, preocupações, circunstâncias, cursos de ação e consequências. A pesquisa que deu origem a este artigo foi realizada para a defesa de uma tese de doutorado em Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, aprovada no CEP-UFRB (n°05760818.9.1001.0056).

Quadro 2
Entrevistados.

A análise empreendida utiliza principalmente os recursos teóricos oferecidos pelos estudos sobre processo político (public policy process)1616 Birkland TA. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge; 2016.

17 Majone G. Evidence, argument, and persuasion in the policy process. New Haven: Yale University Press; 1989.
-1818 Stone DA. Causal stories and the formation of policy agendas. Pol Science Quarterly 1989; 104(2):281-300. e a teoria da mudança institucional gradual (TMIG)1919 Mahoney J, Thelen K. A theory of gradual institutional change. In: Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2010. p. 1-10.. O primeiro conjunto de estudos forneceu os instrumentos analíticos para que enfatizássemos as relações sociais entre organizações e atores, individuais e coletivos, societais e governamentais, caracterizando seus interesses, suas ideias e ações. Atores individuais e coletivos laçam mão, frequentemente, de análises de políticas públicas que se constituem em ferramentas retóricas usadas para caracterizar um problema que pode vir a ser objeto de políticas, uma vez que ingresse na agenda governamental1616 Birkland TA. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge; 2016.

17 Majone G. Evidence, argument, and persuasion in the policy process. New Haven: Yale University Press; 1989.
-1818 Stone DA. Causal stories and the formation of policy agendas. Pol Science Quarterly 1989; 104(2):281-300.. Por isso, a caracterização de um problema de política pública é tanto um julgamento normativo quanto o estabelecimento da existência objetiva de uma questão ou fato. Nesse sentido, os estudos contemporâneos sobre processo político governamental compõem um quadro analítico que permite ressaltar o papel de atores estatais e societais, individuais e coletivos, com suas ideias, na formação da agenda governamental, em contextos em que regras, concebidas como instituições, balizam as possibilidades de definição de problemas de políticas públicas e suas soluções.

A TMIG1919 Mahoney J, Thelen K. A theory of gradual institutional change. In: Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2010. p. 1-10. concebe as instituições sobretudo como instrumentos distributivos carregados de implicações de poder, e que por isso são repletas de tensões. As regras institucionais têm efeitos desiguais para a alocação de recursos, dessa forma, atores em posições dominantes, no ambiente institucional ou societal, podem conseguir projetar instituições que correspondam às suas preferências para que mantenham ou melhorem sua condição privilegiada e realizem seus objetivos. Contudo, para garantir a estabilidade de um arranjo institucional, é necessário mobilizar continuamente apoio político, fazer com que os responsáveis pela aplicação das regras as cumpram e resolver ativamente, a seu favor, as ambiguidades institucionais. Com isso, a “conformidade” (compliance) - entendida como efetivo cumprimento e subordinação às regras - é uma variável crucial para a análise da estabilidade e da mudança institucional. Na TMIG, a mudança se torna possível quando se rompem os equilíbrios vigentes, o que pode ser desencadeado por dispositivos distintos e acontecer devido a fatores externos e/ou internos ao arranjo institucional, dependendo das características do processo em análise. Para os autores, as características do contexto político e do arranjo institucional influenciam quais estratégias de mudanças têm maior ou menor chance de êxito. Em contextos com forte poder de veto às mudanças e baixa discricionariedade, a estratégia mais exitosa seria a de “mudança em camadas”, em que se evita entrar em conflito com os atores mais bem posicionados no arranjo institucional vigente e opta-se por criar novas regras sem alterar significativamente as anteriores. A discricionariedade é entendida como o grau de liberdade com o qual o ator pode aplicar as regras conforme seus objetivos. Se o poder de veto à mudança pretendida é mais fraco, terá mais chance de êxito a estratégia denominada “deslocamento”, quando há mobilização ativa contra as regras vigentes, buscando substituí-las por novas.

Este estudo examina dois subsistemas de políticas públicas, os de saúde e de educação superior. Os subsistemas são considerados como estruturas de poder estratificadas que distribuem recursos políticos e materiais desiguais, embora também sejam arenas de embate entre os indivíduos e os grupos que defendem diferentes soluções para problemas de políticas públicas2020 Adam S, Kriesi H. The network approach. In: Sabatier PA, editor. Theories of the policy process. Colorado: West Press; 2007. p. 129-154.. Ao mesmo tempo, são unidades setoriais de nível mesossocial de produção de políticas públicas que apresentam autonomia relativa em relação ao macro sistema político, tendo dinâmicas, regras e arranjos institucionais próprios2121 True JL, Jones BD, Baumgartner FR. Punctuated-Equilibrium Theory: explaining stability and change in public policy making. In: Sabatier PA, editor. Theories of the policy process. Cambridge: Westview Press; 2007. p. 155-188.. A TMIG permitiu que analisássemos as regras e os arranjos institucionais nos dois subsistemas para verificar se e de que modo atores em posições vantajosas usaram tais regras para impedir mudança na política de formação e provimento de médicos no Brasil durante os governos Lula, apesar das pressões para que isso ocorresse.

Os estudos sobre processo político auxiliam para que os atores individuais e os coletivos sejam analisados, com seus interesses e suas crenças, que agem em subsistemas de políticas públicas. Empreendedores de políticas são atores individuais chave que criam ou aproveitam oportunidades e meios para colocar problemas e soluções que defendem em evidência, e também buscam viabilizar um processo político favorável para a decisão de entrada do problema e da solução na agenda institucional2222 Kingdon J. Agendas, alternatives and public policies. Washington: Longman Classics in Political Science; 2011.. Eles exercem liderança e produzem coordenação em comunidades de política, que podem ser entendidas como grupos mais ou menos coesos de atores individuais e coletivos, com diferentes posições institucionais (Estado, mercado, organizações da sociedade civil) e relações entre si, que compartilham objetivos e ideias acerca de quais devem ser os resultados de políticas setoriais, atuando de maneira coordenada para afetar processos decisórios e tornar os seus posicionamentos predominantes no governo2323 Côrtes SV, Lima LL. A contribuição da sociologia para a análise de políticas públicas. Lua Nova 2012; 87:33-62.. Neste estudo foram especialmente analisados os objetivos, as ideias e as ações dos empreendedores de política e das comunidades de política que agiram para promover a mudança enquanto outros procuraram mantê-la ou alterá-la minimamente.

Resultados

A análise da literatura, dos documentos e das entrevistas permitiu a identificação de empreendedores de política que lideravam três comunidades de política e que buscaram influir na área de regulação, formação e provimento de médicos com vistas a manter ou alterar a política vigente. Uma delas era a CP-M Sanitário1010 Côrtes SV. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009., composta por acadêmicos, gestores e trabalhadores de saúde, principalmente no âmbito do SUS, líderes de entidades sindicais, profissionais e de outras organizações da sociedade civil da área de saúde. A CP-M Sanitário defendia os princípios da Reforma Sanitária e do SUS, e que as políticas de formação, regulação e provimento de médicos fossem decididas sobretudo no âmbito do subsistema saúde, considerando as necessidades do SUS. Durante o governo Lula, compunham o primeiro escalão do MS figuras icônicas dessa comunidade de política, como Sérgio Arouca, Gastão Wagner, Maria Jaeger, Saraiva Felipe e Francisco Campos. Eles lideravam um grupo expressivo de integrantes da administração superior do MS que demonstrava forte sentimento de pertença e defendia os valores da comunidade.

Foi identificada também a atuação de duas outras comunidades políticas, tendo em vista a ação coordenada de seus membros e o fato de compartilharem valores e visão sobre os resultados desejáveis na política em foco nesse estudo e na política nacional de saúde: as comunidades de política de defesa da regulação pelo mercado (CP-R Mercado) e defesa da medicina liberal (CP-M Liberal)99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. A primeira era composta por representantes de organizações do complexo médico-industrial-financeiro da saúde e de instituições de ensino superior (IES) privadas, bem como por seus apoiadores, tais como parlamentares, servidores e dirigentes vinculados aos poderes Legislativo e Executivo. Defendia que o mercado regulasse a distribuição, a remuneração, o escopo de práticas, a oferta e o conteúdo da formação dos profissionais de saúde. A CP-M Liberal era liderada por dirigentes das entidades médicas. Membros desta comunidade representavam a categoria médica em fóruns consultivos e decisórios ministeriais, particularmente nas áreas de saúde e educação. Também a integravam parlamentares, gestores de serviços de saúde e de instituições de formação. A CP-M Liberal defendia a manutenção do status quo caracterizado pela autorregulação profissional da medicina, concebida predominantemente como uma profissão liberal. Advogava, ainda, o monopólio da profissão sobre as práticas de saúde de maior valor simbólico e econômico, a livre escolha dos médicos quanto à atuação, bem como a imposição, pelas entidades médicas, de condicionantes extramercado, visando ao controle de preços da força de trabalho e dos serviços médicos99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

O arranjo institucional responsável pelas decisões acerca das políticas de regulação, formação e provimento médicos envolvia o Congresso Nacional (CN), o Mistério da Educação (MEC), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o MS. O exercício profissional no Brasil tem forte presença do Estado, em um modelo de relações de trabalho de origens corporativas2424 Viscardi CMR. Corporativismo e neocorporativismo. Est Hist 2018; 31(64):243-256.. As profissões, entre elas a médica, são regulamentadas por lei federal aprovada pelo CN. O MEC é responsável pelas decisões relacionadas à formação em nível de graduação e pós-graduação, inclusive a residência médica, definindo, entre outros aspectos, as competências que devem ter os egressos dos cursos. Outro indicativo da presença estatal é a necessidade de que profissões regulamentadas tenham conselhos profissionais, criados por lei - CFM na Medicina -, que devem ser dirigidos por pessoas eleitas pelos membros da própria profissão. Esses conselhos são responsáveis pela regulamentação infralegal e pela fiscalização do exercício profissional. Parte importante da definição de competências e titulação de especialistas não é regulada pelo MEC, pois é feita pelas sociedades de especialidades médicas e reconhecida pelo CFM. O MS, por sua vez, opina sobre mudanças na legislação que trata das profissões de saúde em tramitação no CN e participa de fóruns de discussão no MEC que decidem a respeito da formação médica. Sua influência nas políticas em análise é relativamente pequena se comparada ao observado em outros países com sistemas públicos de saúde abrangentes, como Reino Unido, Canadá e Espanha55 Aléssio MM. Análise da implantação do programa mais médicos [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2015.

6 Campos GWS. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec; 1988.

7 Machado MH. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997.
-88 Feuerwerker LCM. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. São Paulo: Hucitec; 2002.,1111 Dias HA, Lima LD, Teixeira M. A trajetória da política nacional de reorientação da formação profissional em saúde no SUS. Cien Saude Colet 2013; 18(6):1613-1624.,2525 Girardi SN, Fernandes Jr H, Carvalho CL. A regulamentac¸a~o das profisso~es de sau´de no Brasil. Espac¸o para Sau´de 2000; 2(1):1-21..

Durante o governo Lula, a maioria dos integrantes do primeiro escalão do MS pertenciam à CP-M Sanitário99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Sua intenção era implementar políticas de acordo com os princípios e as propostas que defendiam. Uma das áreas a serem mudadas era a que se referia à política de regulação, formação e provimento de médicos. As mudanças propostas visavam, sobretudo, aumentar o poder do MS na área, estabelecendo que as necessidades do SUS deveriam ser o principal critério de decisão sobre a política a ser adotada. O centro de produção e de coordenação da ação na defesa dessas propostas estava na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), do MS, criada em 2003 (Decreto nº 4.726). A SGTES foi comandada, desde sua criação até julho de 2005, por Maria Luísa Jaeger, responsável, junto com o grupo que ocupou os cargos de direção superior da secretaria no período, pela sua estruturação. A SGTES e os integrantes do grupo eram membros da CP-M Sanitário e podem ser considerados como empreendedores da proposta de mudança nas políticas da área. Com a troca de ministro da Saúde em julho de 2005, quando Humberto Costa, do PT, foi substituído por Saraiva Felipe, do MDB, Francisco Campos assumiu a direção da SGTES e parte da equipe diretiva da SGTES foi trocada. O novo secretário e sua equipe também integravam a CP-M Sanitário, porém tinham uma filiação societal menos identificada aos movimentos sindical e sociais, que caracterizava o grupo anterior (entrevistas [E] 3, 9, 12, 13 e 17).

Três frentes institucionais eram vistas pelos empreendedores das propostas de mudança como fundamentais para alterar a política de regulação, formação e provimento de médicos: o CN, o núcleo de governo, marcadamente o presidente, seu entorno e a Casa Civil, e principalmente o MEC (entrevistas 3, 9 e 13). As possibilidades de alterações no arcabouço legal não eram promissoras. No CN, muitos parlamentares eram médicos e identificados com as ideias defendidas pela CP-M Liberal. Na legislatura 2003-2007, dos 626 deputados titulares e suplentes que assumiram o mandato, 71 eram médicos, o que corresponde a 11,3%. No Senado eram 8 em 119, o que representava 6,7% do total2626 Brasil. Câmara dos Deputados. Quem são os deputados [Internet]. [acessado 2021 jun 19]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/deputados/quem-sao/resultado?search=&partido=&uf=&legislatura=52&sexo=&pagina=16
https://www.camara.leg.br/deputados/quem...
. Apesar de alguns desses médicos integrarem a CP-M Sanitário, como Jandira Feghali, dr. Rosinha e Saraiva Felipe, a maioria era mais sensível às demandas da CP-M Liberal. Os membros desta comunidade, fossem eles parlamentares ou representantes das entidades médicas, exerciam poder de veto a propostas de mudança na legislação vigente sobre regulação, formação e provimento médicos discutidas no CN99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Além disso, havia uma tendência de o CN ser conservador ao tratar de mudanças nas regras das profissões já regulamentadas (E 3, 6, 9, 12, 13, 15 e 18).

Dadas as dificuldades no CN, os empreendedores da mudança, em especial os dirigentes da SGTES, direcionaram seus maiores esforços para reduzir o papel do MEC na área e ampliar a influência do MS na formação médica, considerando as necessidades do SUS. O MEC, além de decidir sobre a formação, regulava a residência médica por meio da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), cuja maioria dos membros era representante de entidades médicas (Decreto nº 91.346/1985). Entre os nove integrantes da CNRM, quatro representavam o governo federal e cinco, entidades médicas - CFM, Associação Médica Brasileira, Federação Nacional dos Médicos, Associação Nacional dos Médicos Residentes e Associação Brasileira de Educação Médica. Além disso, o MEC constituia comissões de especialistas, consultivas e ad hoc, que examinavam e opinavam sobre temas relacionados à formação de profissionais. Quanto à formação dos médicos, o MEC costumava consultar essas comissões e esses órgãos do próprio Ministério, como o antigo Departamento de Hospitais Universitários. Não era apenas a ação de integrantes da CP-M Liberal junto à CNRM, ao Conselho Nacional de Educação e à direção do MEC que poderiam impor obstáculos à mudança, havia um modo institucionalizado, histórico, de relação entre a categoria médica e o MEC, além de respeito ao poder simbólico do saber médico acerca de suas práticas, que também dificultava a aceitação de propostas de mudança (E 3, 5, 9 e 12). Predominava uma visão de que na medicina, por ser uma formação profissional, eram as entidades médicas que deveriam, em diálogo com as IES, orientar a formação99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

Dirigentes da SGTES direcionaram sua ação principalmente para alterar os papeis do MEC e do MS na formação de profissionais de saúde. O ministro da Educação, Cristovam Buarque, e o núcleo do governo, em 2003, se mostravam dispostos a transferir, do MEC para o MS, o poder de decisão sobre a formação dos profissionais de saúde. A CNRM e as instâncias do MEC que tratavam da área seriam deslocadas para o MS. A troca de ministro, em janeiro de 2004, quando Tarso Genro assumiu o MEC, estancou o processo. Conforme um dirigente da SGTES à época afirmou: Chegou-se a montar uma [normatização] que ia ser assinada [...] passando tudo para a gente. [...] Vinha tudo, CNRM, vinham todas as direções [áreas do MEC responsáveis pela formação em saúde]. Ele topou. [...] Mas aí Lula o demitiu (E 13).

Alertada da possibilidade de transferência do poder de decisão sobre a política para o MS, onde perderia sua posição privilegiada no processo decisório, a CP-M Liberal reagiu. As fortes reações da CP-M Liberal, combinadas à posição da nova direção do MEC, que reproduzia a compreensão hegemônica no subsistema educação de que a regulação deveria ser exercida pelo MEC e não pelo MS ou pelo SUS, obrigou os representantes do MS a recuar da tentativa de exercer maior influência na área99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Paralelamente, a CP-M Liberal continuou, daí em diante, a exercer poder de veto sobre “visões estatistas” que procuravam restringir a autorregulação profissional ou que visassem alterar suas posições privilegiadas na estrutura institucional, garantidas pela manutenção do arcabouço institucional vigente. O trecho da entrevista de um dirigente do MS expressa essa situação:

As corporações médicas eram muito fortes, elas controlavam o aparelho formador, elas tinham um peso muito grande no Conselho Nacional de Educação, elas comandavam a formação no âmbito da residência médica. E elas se contrapuseram a isso [a tentativa de mudança]. Ao mesmo tempo, os ministros [do MEC] [...] entenderam que essa nossa busca por vincular formação médica às necessidades do SUS, era uma interferência na autonomia do MEC [...] nós não conseguimos avançar, pela força da corporação e pela posição do MEC (E 9).

Entre 2003 e 2010, os empreendedores da mudança na política que estavam na direção do MS apresentaram diversas propostas de alteração no modo como se organizava a regulação, a formação e o provimento de médicos no país99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Além da tentativa frustrada de transferir para o MS a atribuição de ordenar a formação em saúde, destacamos aqui quatro delas, tendo em vista o envolvimento do núcleo de governo e, na maioria dos casos, do CN no processo decisório que conduziu à sua implementação ou insucesso: (1) serviço civil obrigatório, (2) acordos internacionais sobre diplomas médicos, (3) Revalida e (4) alteração da Lei do Fundo de Financiamento do Estudante do Ensino Superior (Fies). A proposta de implantar no país o serviço civil obrigatório consistia em tornar compulório aos médicos recém graduados a prestação de serviços remunerados aos SUS, em regiões subatendidas, por um período determinado. Sua implementação dependia de aprovação de lei federal. A celebração de acordos internacionais tinha por objetivo o reconhecimento mútuo entre países de diplomas de médicos formados e também dependia de aprovação do CN, no caso, do Senado. A alteração no Fies previa a concessão de moratória e abatimento da dívida de médicos que usaram o Fies e que optassem pela atuação na Estratégia de Saúde da Família em áreas subatendidas ou que fizessem residência médica em especialidades consideradas prioritárias pelo MS. A alteração também dependia de aprovação do CN. A criação do Revalida, denominação usual do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira, dependia unicamente de decisão do MEC99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

As propostas do serviço civil obrigatório e de celebração de acordos internacionais de reconhecimento mútuo de diplomas médicos foram discutidas com o núcleo do governo durante os anos de 2003 e 2004. Assim como ocorrera com a transferência de atribuições de formação em saúde do MEC para o MS, foram recusadas. Em comum, as três negativas tinham a posição frontalmente contrária da CP-M Liberal e a falta de apoio ou resistência do MEC. Porém, o serviço civil obrigatório e os acordos internacionais dependiam adicionalmente de aprovação no CN, o que tornava a sua defesa mais custosa para o governo, ainda mais com a clara oposição da CP-M Liberal. Não havia disposição do núcleo de governo em fazer esse enfrentamento, pois avaliava-se que deslocar a questão para a arena de disputa do Legislativo traria desgaste político maior do que o ganho setorial da medida (E 12, 13 e17). O trecho de entrevista de dirigente do MS durante o governo Lula revela a presença do efeito restritivo que a oposição da CP-M Liberal exercia sobre as decisões do núcleo do governo, bem como a escolha de propostas de alteração na política que não provocassem essa oposição.

[Fizemos] a avaliação de todas as coisas que já tinham sido feitas no MS que envolviam formação e provimento, [...] quais iniciativas a gente achava que eram mais negociáveis com as entidades médicas. [...] A gente foi avaliando essas possibilidades que não tinham um enfrentamento drástico (E 17).

Esse cenário levou o MS, a partir de 2005, a se acomodar a essas limitações do contexto político-institucional e levar adiante apenas proposições que tivessem apoio do MEC e da CP-M Liberal. Um dirigente do primeiro escalão do MS, em entrevista, utiliza de uma metáfora para caracterizar a situação: É aquela história do círculo de giz que você traça e o peru se sente preso ali dentro. [...] Você não sai fora do círculo. [...] Todas as ações [que fizemos] se colocam ainda dentro do círculo (E 3).

Os empreendedores vinculados à CP-M Sanitário, que dirigiam o MS, avaliavam que havia acentuada inadequação na formação e insuficiência na oferta de médicos às necessidades do SUS. Para eles, isso limitaria, no médio prazo, a consecução de alguns objetivos do governo, como a melhoria da qualidade da atenção e a expansão dos serviços de saúde. Durante esse período, o problema foi parcialmente contornado com medidas como a oferta de cursos diversos a profissionais que já atuavam no SUS, custeados pela SGTES, e o aumento dos repasses federais, tais como no Piso de Atenção Básica, que ampliavam a capacidade de os municípios recrutarem médicos no mercado de trabalho (E 1, 9 e 17).

Por um lado, a CP-M Liberal foi capaz de vetar mudanças que alterassem o arranjo institucional que lhe favorecia, por outro, as CP-M Sanitário, em particular seus membros na direção do MS e CP-R Mercado, conseguiram impedir o sucesso de propostas defendidas pela CP-M Liberal. Em 2009, o governo paralisou no CN o projeto de lei do “Ato Médico”, que ampliava os atos considerados exclusivos dos médicos, reputado como prejudicial ao SUS pela CP-M Sanitário. Outro exemplo foi a oposição manifesta ao governo da CP-R Mercado, que impediu que a proposta das entidades médicas de moratória na abertura de novos cursos de medicina tivesse sucesso. A moratória, além de limitar a expansão do mercado privado de ensino superior, restringia o crescimento da oferta de médicos, que interessava ao mercado privado de saúde por conter o aumento dos custos da força de trabalho médica99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

Ao final do segundo mandato do governo Lula, em 2010, foi aprovada pelo núcleo de governo a única proposta na área em análise que contava com forte oposição da CP-M Liberal, o Revalida. O presidente Lula sensibilizou-se ao tema do reconhecimento dos diplomas dos médicos brasileiros formados no exterior desde o primeiro ano do mandato, contudo, a proposta de acordos bilaterais para reconhecimento mútuo de diplomas não conseguiu progredir. No último ano de seu governo, ele exigiu uma solução ao MEC e ao MS. Estes propuseram uma na qual não foi necessário enfrentar o desgaste de tramitar no CN, que dialogou com a ideia de “meritocracia” defendida pela CP-M Liberal, por ser concedido apenas àqueles que fossem aprovados no exame, e que promoveu apenas uma alteração incremental e que pouco modificava o arranjo institucional vigente, pois as IES seguiram com a atribuição de validar os diplomas e podiam optar por aderir ou não ao novo exame nacional (E 3, 9, 12 e 13).

Discussão

As abordagens neoinstitucionalistas do processo político ajudam a compreender como estruturas político-institucionais dão oportunidades ou restringem a ação de atores individuais e coletivos que, mesmo no topo das hierarquias sociais, são levados a adotar atitudes que contribuam com resultados diferentes de seus objetivos e de suas ideias2323 Côrtes SV, Lima LL. A contribuição da sociologia para a análise de políticas públicas. Lua Nova 2012; 87:33-62.. Entre elas, destacamos a TMIG1919 Mahoney J, Thelen K. A theory of gradual institutional change. In: Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2010. p. 1-10. que possibilitou que analisássemos as características dessas estruturas, a atuação e as estratégias de atores nelas bem posicionados que conseguiram impedir mudanças na política de regulação, formação e provimento de médicos no período analisado que fossem além de alterações incrementais. Três restrições político-institucionais foram identificadas como as mais importantes para a relativa estabilidade da política: 1) a forte oposição de alguma das três comunidades de políticas com maior influência no processo; 2) a falta de apoio ou resistência do MEC às mudanças propostas; e 3) a decisão do núcleo do governo de não levar adiante propostas que, ao mesmo tempo, tivessem que ser aprovadas no CN e contassem com a oposição de uma dessas comunidades. O núcleo do governo avaliava que deslocar a arena de disputa para o CN nesta situação apresentava um potencial de desgaste político maior do que o provável ganho setorial da medida.

A primeira estratégia tentada pelos empreendedores da mudança, que dirigiam o MS e eram vinculados à CP-M Sanitário, foi a de “deslocamento”1919 Mahoney J, Thelen K. A theory of gradual institutional change. In: Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2010. p. 1-10., ao tentarem mudar o arranjo institucional para ampliar o papel do MS no processo de decisão sobre a política. O insucesso da tentativa, a manutenção do status quo, tendo em vista a forte resistência da CP-M Liberal e a “conformidade” da direção do MEC às regras e às tradições que atribuíam às entidades médicas e às IES poder discricionário perante a política impulsionou uma mudança de estratégia na direção do MS, em sua maioria integrantes da CP-M Sanitário.

Em especial a partir de 2005, considerando as limitações do contexto político-institucional, os dirigentes do MS optaram por desenvolver uma estratégia de “mudança em camadas”1919 Mahoney J, Thelen K. A theory of gradual institutional change. In: Mahoney J, Thelen K, editors. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press; 2010. p. 1-10., na qual apenas davam seguimento às propostas em que havia acordo com o MEC, respeito ao limites dados pela CP-M Liberal e que não alteravam profundamente o status quo. Por outro lado, a oposição do MS ou da CP-R Mercado impedia que medidas defendidas pela CP-M Liberal fossem aceitas pelo núcleo de governo, como o projeto de lei do Ato Médico e da moratória de abertura de novos cursos de medicina. No Quadro 3 são apresentadas as principais propostas de mudança na política de regulação, formação e provimento médicos que ingressaram no processo político no período de 2003 a 2010 e as posições das três comunidades de política e da direção do MEC, indicando se havia necessidade de mudança legal, se foi implementada e quando o foi ou quando saiu da agenda de debates do governo.

Quadro 3
Principais propostas de mudança, legais ou administrativas, na política: posições das comunidades de política, da direção do MEC - 2003/2010.

A única solução que não contou com a oposição de nenhuma das comunidades de política e nem da direção do MEC foi a mudança da Lei do Fies, que teve o acordo do núcleo do governo para que fosse votada no CN. A única proposta que conseguiu ser implementada mesmo tendo a oposição de uma comunidade, no caso a CP-M Liberal, foi o Revalida, contudo, sua implementação dependia unicamante do MEC, não sendo necessária a aprovação do CN. Além disso, o presidente Lula a defendia, o que foi decisivo para que o MEC não resistisse à medida, mesmo com a contrariedade da CP-M Liberal. O poder de agenda do presidente é reconhecido na literatura como importante fator de mudança institucional em subsistemas setoriais, especialmente no Brasil2727 Limongi F, Figueiredo A. Poder de agenda e políticas substantivas. Legislativo brasileiro em perspectiva comparada. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2009.. À exceção do Revalida, só prosperou o que foi “tolerado” pelas três comunidades e pela direção do MEC.

Assim, de 2003 a 2010, não foi alterado o arranjo institucional em análise nem foi implementada mudança na regulação do trabalho médico ou na política de provimento, pois a mudança da Lei do Fies foi apenas um estímulo para a atuação de médicos em áreas subatendidas, e o Revalida, embora pudesse ampliar a quantidade de médicos no mercado de trabalho, o que não ocorreu99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021., não foi articulado a instrumentos de provimento a áreas com necessidade identificadas pelo MS. Foram implementadas medidas incrementais de menor impacto que tentaram alterar o perfil da formação médica, mas sem mudar o equilíbrio institucional vigente na área e sem fazer uso de instrumentos de política existentes para regular o sistema federal de ensino superior.

Ainda assim, foram constituídos legados, ideacionais e institucionais, decisivos para a formulação, viabilização e implementação do Programa Mais Médicos (PMM), três anos depois, que, em outro contexto, veio a mudar a política de formação, regulação e provimento de médicos no país, mesmo sofrendo forte oposição da comunidade de medicina liberal. Assim, não há possibilidade de explicar como o PMM foi possível sem analisar, nesse período, o agravamento do problema da insuficiência de médicos, a falta de uma política que o enfrentasse, a trajetória dessa política caracterizada por tentativas de avanço e de vetos, os aprendizados posteriores com essas experiências e tentativas, bem como os recursos que as mesmas legaram à decisão, à formulação e à implementação do PMM99 Pinto HA. O que tornou o Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jul 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2021
  • Aceito
    03 Jan 2022
  • Publicado
    05 Jan 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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