Gestão compartilhada do tratamento com psicofármacos: inquérito com usuários de CAPS de quatro grandes cidades brasileiras

Shared decision-making of psychopharmaceutical treatment: survey with users of CAPS from four large Brazilian cities

Rafael Freitas Colaço Rosana Teresa Onocko-Campos Sobre os autores

Resumo

Neste artigo descrevemos as características do processo de negociação do tratamento com medicamentos nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de quatro grandes municípios brasileiros. Foi aplicado questionário estruturado com 1.630 usuários de CAPS nos municípios de Campinas, Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo. A maior parte dos usuários em tratamento nos CAPS não iniciou o uso de medicamento nos mesmos, mas já no primeiro contato com outros serviços de saúde. Quase todos os usuários foram medicados ao iniciar tratamento no CAPS, sendo que a maior parte deles foi medicada já no primeiro atendimento. Entre 55,2% e 40,7% (a depender do município) referiram não ter recebido informação sobre o tempo necessário de uso da medicação. Uma proporção bastante alta de usuários relatou já ter alterado a dose da medicação sozinha (40,5% a 28,7%) ou ter sido medicada contra sua vontade (35,7% a 15,6%), o que indica limites na construção de consenso entre equipe, usuários e famílias sobre o uso de medicação. Os usuários de CAPS participam pouco do processo de decisão acerca da medicação. Há problemas desde a oferta de informação até a construção de consenso envolvendo a introdução e o uso continuado do medicamento.

Key words:
Mental health services; Assessment; Psychotropic drugs; Shared decision-making; Mixed studies

Abstract

In this article we describe the characteristics of the treatment negotiation process with medications at the Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) in four major Brazilian municipalities. A structured questionnaire was applied to 1,630 CAPS users in the cities of Campinas, Fortaleza, Porto Alegre and São Paulo. Most users undergoing treatment at the CAPS did not start using medication at the CAPS, but already in the first contact with health services. Almost all users were medicated when starting treatment at CAPS and most of them were medicated at the first visit. Between 55.2% and 40.7% (depending on the municipality) reported not having received information on the time needed to use the medication. A very high proportion of users reported having changed the dose of the medication alone (40.5% to 28.7%) or having been medicated against their will (35.7% to 15.6%), which indicates limits on building consensus among staff, users and families on the use of medication. CAPS users participate little in the medication decision process. There are problems from the provision of information to problems in building consensus involving the introduction and continued use of the drug.

Key words:
Mental health services; Assessment; Psychotropic drugs; Shared decision-making; Mixed studies

Introdução

O uso de psicofármacos é sustentado no meio psiquiátrico como fundamental no tratamento de transtornos mentais graves. Pesquisadores e militantes têm questionado a coação exercida nos serviços de saúde mental visando a introdução precoce e o uso continuado de medicamentos, advogando por maior participação do usuário nas decisões sobre seu tratamento11 Sashidharan S, Saraceno B. Is psychiatry becoming more coercive? BMJ 2017; 357:j2904.,22 Whitaker R. Anatomy of an epidemic: magic bullets, psychiatric drugs, and the astonishing rise of mental illness in America. New York: Random House Digital; 2010.. Neste artigo, apresentaremos a análise das formas de construção de contratos envolvendo o uso de medicamentos durante o itinerário de tratamento de usuários da rede de atenção psicossocial que se encontravam vinculados a um CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) no momento da pesquisa AceSUS33 AcesSUS. [acessado 2018 jun 6]. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/acessus/
https://www.fcm.unicamp.br/acessus/...
,44 Onocko-Campos RT, Amaral CEM, Saraceno B, Oliveira BDC, Treichel CAS, Delgado PGG. Atuação dos Centros de Atenção Psicossocial em quatro centros urbanos no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2018; 42:e113.. O inquérito permitiu aferir aspectos importantes envolvendo o grau de participação dos usuários no estabelecimento de acordos sobre o uso de medicamentos. Adotamos como questão central deste estudo compreender, a partir da perspectiva dos usuários, até que ponto os contratos de tratamento com medicamentos são estabelecidos de forma autoritária, tendo como horizonte de tratamento a eliminação de sintomas definidos pelo médico e pela equipe de saúde ou, por outro lado, até que ponto a própria perspectiva do usuário pode ser incluída no estabelecimento de metas de tratamento e regimes singulares de uso de medicamento. São dois polos de uma relação tensa, em que, além de médico e paciente, participam outros atores sociais (como a família), direta ou indiretamente. Além disso, nos perguntamos acerca da possibilidade de pacientes de perfil “rebelde” - não dispostos a realizar tratamento com medicamentos, mas dispostos a se vincular aos serviços da rede a partir de outros tipos de oferta de cuidado - estarem encontrando barreiras ao acesso a cuidado em saúde mental por se recusarem a aderir à prescrição de medicamentos.

Inspirados pelo artigo de Bruce Levine “Anti-authoritarians and schizophrenia: do rebels who defy treatment do better?”55 Levine B. Anti-authoritarians and schizophrenia: do rebels who defy treatment do better? Journal of Critical Psychology Counselling and Psychotherapy 2012; 12(4):193., preferimos trabalhar com a categoria de usuários “rebeldes”, em vez de não aderentes (non-adherents). Reforçamos com esse termo a ideia de que a adesão não deve ser um objetivo em si e que a má adesão sinaliza problemas na relação entre equipe de saúde, usuário e família. O usuário pode se rebelar contra a prescrição, contra a equipe ou contra a família, podendo haver um fundamento ético na sua desobediência66 Didi-Huberman G. El arte de la vida otra, o cómo no ser gobernado. Revista de Estudios Literarios Latinoamericanos 2018; 5(5):4-22.. Harrow77 Harrow M, Jobe T, Faull R. Do all schizophrenia patients need antipsychotic treatment continuously throughout their lifetime? A 20-year longitudinal study. Psychol Med 2012; 42(10):2145-2155. demonstrou melhor evolução em 20 anos entre pacientes que abandonaram o uso de medicação em algum momento de seu percurso de recuperação após o primeiro surto psicótico e acrescenta que muitos deles, após a recuperação, se apresentam como survivors, sobreviventes da psiquiatria, e militam a favor de mudanças na rede de apoio à saúde mental e contra o estigma.

A experiência do Grupo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM)88 Passos E, Lima Palombini A, Onocko-Campos RT, Rodrigues SE, Melo J, Maggi PM, Marques CC, Zanchet L, Cervo MR, Emerich B. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia 2013; 41:24-38. influenciou fortemente a construção das perguntas do questionário, que buscou mapear o grau de empoderamento dos usuários frente a uma cultura psiquiátrica avessa à participação dos usuários na construção de regimes singulares de uso de medicamento, sendo a prescrição compreendida por essa perspectiva como prerrogativa do clínico e a má adesão muitas vezes associada a prejuízo de insight do paciente, sobretudo nos casos de pessoas com diagnóstico de psicose. Há experiências de sucesso em serviços de saúde mental na promoção da negociação da medicação com usuários e familiares e no incentivo ao uso de neurolépticos em dose mínima necessária, com especial atenção aos efeitos adversos dos medicamentos no tratamento de longo prazo, como recomendado por Aderhold e Stastny99 Aderhold V, Stastny P. A guide to minimal use of neuroleptics: why and how. Cambridge: Mad in America; 2015.. A inclusão da medicação como pauta no tratamento, e não como uma condição para o tratamento, altera significativamente a rotina de trabalho, desde o estabelecimento de laços com usuários até uma mudança radical na relação com familiares e equipes multidisciplinares, abrindo novas possibilidades de interação. São exemplos desses novos enquadres terapêuticos os grupos GAM88 Passos E, Lima Palombini A, Onocko-Campos RT, Rodrigues SE, Melo J, Maggi PM, Marques CC, Zanchet L, Cervo MR, Emerich B. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia 2013; 41:24-38., a consulta em psiquiatria conforme concebida por autores da psiquiatria crítica1010 Double D. Critical psychiatry: the limits of madness. New York: Springer; 2006 e os grupos de família da abordagem open dialogues1111 Seikkula J, Arnkil TE, Hoffman L. Dialogical meetings in social networks. London: Routledge; 2018.. Tratam-se de dispositivos de tratamento particularmente interessantes na gestão de conflitos relacionados ao estigma do diagnóstico e aos efeitos adversos da medicação.

Analisamos o uso de psicofármacos nos CAPS a partir do referencial da promoção de contratualidade1212 Kinoshita RT. Contratualidade e reabilitação psicossocial. Reabilitação Psicossocial no Brasil 1996; 2:55-59., entendendo que os efeitos observados a partir da prescrição de um psicofármaco se devem tanto aos efeitos diretos da droga sobre o organismo como aos significados atribuídos pelos envolvidos no estabelecimento de uma relação mediada pela medicação (equipe, família, usuário). Ao aderir a um tratamento, estabelece-se um laço social, a adesão a um determinado discurso, a uma normatividade que distribui funções. Estabelecem-se regras que servirão como base para influenciar o comportamento dos envolvidos. Espera-se que o médico se comporte como médico, que a família cuide do doente, que o doente faça o seu tratamento. Então, a prescrição de um medicamento ratifica que o doente está doente, que o médico é médico e que a família cuida do doente ao zelar pela tomada do remédio. A prescrição “controla a loucura” não apenas por seus efeitos diretos no organismo, mas por essa ratificação de lugares, reinserindo o louco no laço social e em uma relação de poder.

Alinhados com as críticas realizadas por diversos autores do campo crítico da psiquiatria, da reforma psiquiátrica e da saúde mental1313 Middleton H, Moncrieff J. Critical psychiatry: a brief overview. BJPsych Advances 2019; 25(1):47-54., investigamos o uso de psicofármacos nos CAPS tomando a construção do vínculo como decisivo no estabelecimento de um tratamento efetivo, não por garantir que a droga seja ingerida, mas pela efetivação de uma relação em que o sujeito não se confunde com o organismo, uma relação em que se exercita a liberdade de negociar os termos da relação. Retomaremos em nossas análises uma visão das políticas de saúde mental pautada pela promoção de cogestão, autonomia e empoderamento como princípios fundamentais1414 Campos GWS. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad Saude Publica 1998; 14(4):863-870., aprofundando a reflexão sobre que psiquiatria poderia nos oferecer o apoio necessário para avançar nessas políticas.

Método

Desenvolvemos um modelo de análise baseado em métodos mistos, com múltiplas estratégias de coleta de dados e ampla variedade de informantes envolvidos. Utilizamos como referência metodológica a estratégia de triangulação concomitante, que é a coleta simultânea de dados quantitativos e qualitativos, seguida pela fase de análise separada de dados, que posteriormente são comparados e integrados1515 Creswell JW, Creswell JD. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Penso Editora; 2021.

16 Creswell JW, Clark VLP. Designing and conducting mixed methods research. London: Sage publications; 2017.
-1717 Minayo MCS, Assis SG, Souza ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.. O processo implicou pelo menos duas fases de triangulações de dados e múltiplos momentos de validação coletiva de informações.

Etapas do estudo

1. Coleta de dados secundários e qualitativos sobre a composição, a organização e a efetividade da rede de saúde mental.

Essa etapa compreendeu a primeira aproximação com os campos a serem estudados e constituiu o levantamento de dados secundários que subsidiaram a construção de indicadores utilizados para discriminar características da assistência ao agravo quanto à magnitude da oferta/uso de serviços, à tendência temporal e às diferenças por localidade.

2. Análise descritiva e comparativa dos dados sobre a gestão do tratamento com psicofármacos nos CAPS de cada um dos municípios.

Um estudo descritivo qualitativo foi realizado para cada uma das cidades, dedicando especial interesse à descrição densa da rede de serviços de cada agravo e às singularidades de seu funcionamento. Para tanto, houve construção e validação coletiva no grupo de pesquisa de uma máscara padrão. Cada um dos quesitos foi preenchido por um grupo de pesquisadores de cada localidade, recorrendo a informantes-chave de cada localidade.

3. Primeira triangulação de dados com análise dos indicadores construídos a partir dos dados secundários obtidos das máscaras descritivas qualitativas das redes.

Essa etapa corresponde à primeira fase de análise dos dados. O objetivo em questão foi aprofundar a compreensão dos indicadores derivados dos bancos de dados secundários com relação às suas magnitudes, tendências e diferenças evidenciadas entre os municípios estudados, à luz das máscaras descritivas qualitativas das redes. Para o nosso objetivo específico da investigação da contratualidade envolvendo o uso de psicofármacos na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), procuramos nos concentrar no diagnóstico da oferta de atendimentos de especialistas na rede básica, cobertura de CAPS e taxa de novos acolhimentos anuais, encaminhamentos da atenção básica e internações em hospital psiquiátrico.

4. Aplicação de questionário estruturado a 1.630 usuários dos CAPS nos municípios de Campinas, Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo.

O inquérito sobre o agravo “transtorno mental grave” continha 63 questões abordando o itinerário de tratamento do usuário na rede até sua chegada ao CAPS e aspectos do tratamento ali realizado. A escolha dos municípios para compor a pesquisa tentou representar cada uma das regiões brasileiras (com exceção das regiões Norte e Centro-Oeste, onde não foi possível estabelecer parceria com nenhum centro de pesquisa). Nos concentramos na análise do bloco de questões que vai da questão 31 a 49, a seguir: (31) Antes de iniciar o seu tratamento neste CAPS, o sr. recebeu medicação para seu problema de saúde mental em algum outro serviço? (32) Quando o sr. recebeu medicação para seu problema de saúde mental pela primeira vez? (33) Desde que iniciou o seu tratamento neste CAPS, o sr. Recebeu medicação para seu problema de saúde mental? (34) Quando o sr. recebeu a medicação para seu problema de saúde mental pela primeira vez neste serviço? (35) Foi oferecido no CAPS alguma outra forma de tratamento ou atividade, além de medicação? (36) Que outra forma de tratamento ou atividade foi oferecida no CAPS para o sr., além da medicação? (37) O sr. teve a possibilidade de negociar, rejeitar, escolher ou decidir sobre tomar remédio? (38) Com quem o sr. negociou sobre o remédio? (39) O sr. já foi medicado contra sua vontade? (40) Em que situação o sr. já foi medicado contra sua vontade? (41) O sr. já sentiu dificuldade de falar com o médico ou com outras pessoas da equipe sobre diminuir, aumentar, remover ou iniciar alguma medicação para seu problema de saúde mental? (42) O sr. já alterou sozinho a dose de seu medicamento? (43) Em que situações o sr. já alterou a medicação? (44) Foi explicado para que servem suas medicações e por que você deveria usar estas medicações? (45) Quem explicou para que servem suas medicações e porque o sr. deveria usar estas medicações? (46) Foi explicado por quanto tempo o sr. deveria tomar a medicação? (47) Quem explicou por quanto tempo o sr. deveria tomar a medicação? (48) Nos últimos seis meses, faltou na farmácia alguma medicação que o sr. utiliza? (49) Onde você geralmente busca sua medicação?

Antes da aplicação do inquérito, testamos o questionário para averiguar o tempo de duração e se as questões eram compreensíveis aos usuários, sendo realizadas as alterações necessárias. O questionário foi aplicado por pesquisadores ligados à pesquisa e outros profissionais com formação em saúde mental treinados e remunerados para realização das entrevistas. Após a consolidação do banco de dados, também testamos inconsistências internas, comparando respostas contraditórias de algumas questões e pedindo novos esclarecimentos aos usuários entrevistados a respeito das respostas que nos despertaram dúvidas. Os critérios de inclusão foram aceitar participar da pesquisa e estar em tratamento no CAPS. Em Campinas e Fortaleza foi possível entrevistar todos os usuários cadastrados no intervalo de três anos em todos os CAPS (N = 393 e 601, respectivamente). Em Porto Alegre e São Paulo, além dos critérios utilizados em Campinas, optou-se por entrevistar apenas usuários encaminhados pela atenção básica (AB) (N = 351 e 297, respectivamente). A escolha se deu por interesse dos pesquisadores locais, que optaram por focar seus esforços no mapeamento da relação entre atenção básica e atenção especializada. Em todos os municípios foram excluídos da pesquisa usuários que foram considerados pela equipe de saúde mental incapazes de responder o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Em São Paulo, por se tratar de um município de maior dimensão, optou-se por não entrevistar a totalidade de usuários, mas sim realizar a amostragem de usuários, delimitando o mesmo intervalo de tempo de realização das entrevistas em cada CAPS.

5. Discussão dos resultados a partir de triangulação da análise do inquérito (etapa 4) com análise de dados secundários e qualitativos que agregaram à pesquisa informações sobre conformação da rede e seus impasses em cada um dos municípios (etapa 1).

Nessa etapa do estudo (2° triangulação) foram realizadas reuniões entre os diversos grupos locais de pesquisa, com apreciação das respostas ao inquérito à luz das sínteses sobre as características das redes de cada município que foram construídas na 1° triangulação do método, em que construímos uma síntese sobre cada rede a partir dos dados de fontes indiretas e de descrições qualitativas densas realizadas por cada grupo local de pesquisa.

Resultados e discussão

No Quadro 1 estão descritas características da rede de cada um dos municípios (resultado das etapas 1, 2 e 3 da pesquisa):

Quadro 1
Informações sobre a organização das RAPS de Campinas, Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo nas máscaras descritivas da pesquisa AceSUS, 2015.

Apresentamos a seguir, na Tabela 1, um compilado dos principais resultados do inquérito referentes ao início do uso de medicamento e à participação na negociação do uso e do acesso ao medicamento prescrito nas farmácias. Na Tabela 2 são apresentados os resultados referentes a oferta de outros tipos de cuidado além da medicação (etapa 4):

Tabela 1
Perfil do uso de medicamentos psicotrópicos entre os usuários de CAPS dos municípios de Campinas, Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo, 2015.
Tabela 2
Perfil de oferta de outros tipos de cuidado além da medicação entre usuários de CAPS dos municípios de Campinas, Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo, 2015.

As características de cada rede serão mobilizadas ao longo da apresentação e discussão de resultados, num esforço triangulação de resultados qualitativos e quantitativos (etapa 5). Observa-se que em Fortaleza o acesso a medicamentos ainda encontra barreiras, começando por dificuldades de acesso à prescrição (apenas 66,4% dos usuários iniciam o uso de medicamento em outros serviços antes de chegar ao CAPS, enquanto em Campinas essa taxa é de 86,8%), e também por falta de medicamentos nas farmácias do SUS (55,2% dos usuários relataram comprar o medicamento prescrito), enquanto nos demais municípios o acesso à prescrição de medicação encontra-se bastante facilitado, ocorrendo antes mesmo da avaliação do CAPS na grande maioria dos casos.

Nas reuniões na 2° triangulação de resultados quantitativos e qualitativos da pesquisa, grupos de pesquisa de São Paulo e Porto Alegre relataram que nesse município [qual deles? Ou ambos?] havia uma forte regulação pelo NASF do acesso de usuários com sofrimento mental agudo aos CAPS, o que poderia ser considerada uma forma de barreira de acesso a cuidados na atenção especializada. Dessa forma, só se encaminha aos CAPS casos considerados crônicos e resistentes à intervenção com medicamentos feita na AB ou em ambulatórios especializados, impedindo que casos agudos tenham acesso a intervenções de caráter psicossocial. Levantamos ainda a possibilidade de que outra barreira ao acesso estivesse sendo imposta, no caso, a recusa de oferta de tratamento a usuários não dispostos a fazer uso de medicação, como se a adesão ao tratamento fosse uma pré-condição ao cuidado em saúde mental nos serviços que compõem a RAPS. Essa hipótese encontra suporte quando analisamos os resultados de São Paulo, que mostram um perfil de usuários menos “rebeldes” nessa rede (apenas 28,7% já alterou sozinho a dose do medicamento, enquanto em Porto Alegre e Campinas essa taxa é de 40,5% e 40,2%, respectivamente.

A maioria dos usuários nos quatro municípios relatou que a prescrição se deu no primeiro atendimento no CAPS. Esse resultado chama atenção para a centralidade da medicação na oferta de tratamento dos CAPS e nos convoca ao debate sobre a necessidade de dispositivos de acolhimento e atenção à crise diferentes dos atuais, que possam fazer frente à centralidade da medicação no tratamento. Seria a medicalização do sofrimento resultado da ausência de alternativas de tratamento ao sofrimento já colocada no início do itinerário de tratamento? Se outras ofertas estivessem disponíveis desde o início do tratamento, o uso de medicamentos seria menor? Experiências como o open dialogue, na Finlândia22 Whitaker R. Anatomy of an epidemic: magic bullets, psychiatric drugs, and the astonishing rise of mental illness in America. New York: Random House Digital; 2010., e as Casas Soteria, nos EUA1818 Mosher LR. Soteria and other alternatives to acute psychiatric hospitalization: a personal and professional review. J Nerv Ment Dis 1999; 187(3):142-149., são, respectivamente, alternativas de acolhimento e atenção à crise que respondem de maneira eficaz ao sofrimento mental sem recorrer prontamente a medicamentos, com altas taxas de sucesso e evitando os efeitos adversos decorrentes do uso prolongado de neurolépticos. No caso da abordagem do open dialogue, segue-se ao primeiro contato com o serviço de saúde mental a organização de uma reunião envolvendo toda a rede de apoio familiar e comunitário do sujeito em sofrimento mental. Essas reuniões são o principal espaço de troca e mediação do tratamento, sendo os encontros com o médico muitas vezes realizados nessa mesma reunião, e não separadamente numa consulta convencional.

Ainda com relação a outras ofertas de tratamento (não medicamentoso), destacam-se os municípios de Campinas, Porto Alegre e São Paulo, com oferta mais diversificada em relação ao município de Fortaleza. Nas reuniões de triangulação, considerou-se que os resultados indicam uma maior integração em Campinas entre os CAPS e o hospital, sendo as internações psiquiátricas solicitadas quase sempre pelo CAPS após tentativa de manejo da crise no leito-noite. Ao contrário, em Porto Alegre há uma tendência de aumento da oferta de leitos psiquiátricos associada à forte regulação do acesso aos CAPS pelo NASF1919 Belo KO. Percurso em saúde mental: avaliação do acesso ao tratamento nos CAPS III no município de Campinas/SP [Internet]. 2018. [acessado 2022 maio 17]. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/332771 [link não encontrado]
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Vale a reflexão sobre a maneira como se dão as ofertas de tratamento para além da medicação. Elas seriam apresentadas como complementares à medicação, ou como alternativas legítimas e independentes para o tratamento do sofrimento mental? A introdução bastante precoce da medicação no itinerário de tratamento dos usuários do nosso estudo (com exceção dos usuários de Fortaleza, que têm dificuldade em acessar tratamento com medicamentos) sugere que as ofertas de tratamentos psicossociais provavelmente são apresentadas aos usuários e familiares como tratamentos complementares do transtorno mental, e não como alternativas ao medicamento ou como tratamentos legítimos e eficazes, independentemente do uso de medicamento. Nas alternativas apresentadas (open dialogue e Soteria Houses), por evitarem ativamente o uso do medicamento, a intervenção psicossocial é sempre exposta como opção legítima e potente, e não como terapia complementar.

Em Campinas, 39,9% dos usuários relataram negociar sua medicação com profissionais não médicos (profissionais de referência), enquanto em Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo essa taxa foi de 0,2%, 1,9% e 12,3%, respectivamente. De que maneira um profissional não prescritor se inclui no processo de negociação? Podemos levantar algumas hipóteses a partir desse questionamento. (1) Esse profissional aderiu prontamente ao discurso médico e funciona como um porta-voz desse discurso, ao mesmo tempo em que dificulta o acesso direto do usuário a esse profissional. Não seria um lugar tão diferente daquele ocupado pelo corpo de enfermagem no hospital psiquiátrico. (2) Outra possibilidade é a de que esses profissionais qualifiquem o processo de decisão acerca da medicação a partir de interpretações abrangentes dos efeitos do uso do medicamento no processo de recuperação, inclusive incentivando a redução do uso de medicação por meio do apoio ao sofrimento mental por outras vias que não a medicamentosa. Nas reuniões de triangulação dos resultados quanti-quali com a equipe de pesquisa dos diversos municípios, destacou-se como característica da formação em saúde mental do município de Campinas uma forte tradição de pesquisa sobre dispositivos de cogestão da medicação, o que aponta para a estruturação de um discurso crítico à medicalização do sofrimento2020 Onocko-Campos RT, Passos E, Palombini AL, Santos DVD, Stefanello S, Gonçalves LLM, Andrade PM, Borges LR. A gestão autônoma da medicação: uma intervenção analisadora de serviços em saúde mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2889-2898.. Vários CAPS de Campinas contam com grupos GAM em que, com ajuda de uma cartilha e de mediadores não médicos do grupo, usuários podem debater sobre a medicação e se fortalecer para negociar a medicação com seu médico.

Campinas apresenta a maior incidência de relatos de tratamento involuntário entre os usuários de CAPS. O fato de os serviços funcionarem 24 horas nesse município, e a forte tendência observada no sentido da diminuição de leitos de internação, dão sustentação à hipótese de que usuários que mantinham um contato mais estreito com serviços de urgência e internação agora estejam em maior contato com os CAPS e que um certo padrão de interação se mantenha com relação à negociação autoritária da medicação (muda o local, ficam mantidas as práticas).

Em Campinas, destaca-se a maior taxa de indicação de tratamento involuntário dentro do próprio CAPS (24,1%, contra 18,1, 7,2% e 15,2% em Fortaleza, Porto Alegre e São Paulo, respectivamente), o que reforça a impressão de que os CAPS III (24 horas) têm funcionamento diverso dos CAPS II e se apropriam de procedimentos próprios dos serviços de urgência e internação na atenção à crise, como a utilização de contenção mecânica e sedativos injetáveis. Porto Alegre se destaca na ênfase dada ao espaço de internação como local em que mais ocorre a prática de medicar contra a vontade do usuário, o que nos parece compatível com a atual tendência dessa rede de expansão de leitos psiquiátricos.

Em Fortaleza e São Paulo, a maior parte desses eventos em que usuários relataram ter sido medicados contra a vontade ocorreu em casa ou na rua (em Fortaleza, 36,4%, em São Paulo, 32,6%, enquanto em Campinas foram apenas 16,1% e em Porto Alegre 17,5%). É importante destacar o relato de usuários que disseram ser medicados contra a vontade sistematicamente nos serviços como parte habitual de seu tratamento, à exceção de Porto Alegre, onde essa taxa é bastante baixa (2,1%), quando comparada aos demais (16,8% em Campinas, 15,9% em Fortaleza e 13% em São Paulo). A identificação de tal prática como habitual no tratamento é extremamente preocupante e nos alerta para uma possível deterioração da relação entre comunidade, família e usuário, semelhante ao que ocorria no espaço restrito dos manicômios, onde o direito à escolha era negado de forma sistemática e o tratamento coercitivo era uma regra2121 Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva; 1961..

Antes de prosseguir com a análise dos resultados do inquérito, gostaríamos de propor algumas reflexões sobre o processo de negociação de medicação em um diálogo com a literatura. No processo de negociação da medicação, a equipe pode desistir de negociar com o usuário e decidir sozinha pelo tratamento. Por outro lado, o próprio usuário pode excluir a equipe do processo de decisão e alterar sozinho o regime de uso da medicação. Essa atitude pode levar ao desencadeamento de crises e ao retorno a regimes de tratamento com doses ainda mais altas de medicamento. Há controvérsias se as crises desencadeadas após a interrupção abrupta da medicação estariam relacionadas diretamente à retirada do medicamento ou se a manutenção da medicação seria capaz de prevenir a recorrência de crises que fariam parte de uma suposta evolução natural da “doença mental”. Nos colocamos, neste trabalho, alinhados a autores defensores da primeira hipótese, que compreendem o adoecimento e a crise como um processo complexo que não pode ser resumido em dois polos como crise/estabilidade1111 Seikkula J, Arnkil TE, Hoffman L. Dialogical meetings in social networks. London: Routledge; 2018.. Nesse sentido, podem tanto existir estabilidades indesejáveis quanto crises potencialmente libertadoras que precisam ser atravessadas para serem superadas. A estabilidade atingida pela inibição química de processos psíquicos não leva o sujeito a uma reapropriação de si mesmo por meio da coprodução de mecanismos de cogestão de si. A noção de estabilização pode elidir a mais completa dominação e subjugação da subjetividade. A dominação esmaga a subjetividade, é uma relação sem esperança, ao contrário da relação de poder, em que há sempre produção de resistência, subjetividade2222 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979..

Apesar de compreendermos que pode haver um fundamento ético para o abandono do uso contínuo da medicação sem negociação, entendemos a interrupção do uso da medicação como um evento negativo. Há pelo menos dois argumentos para tal posicionamento: (1) porque a interrupção dos medicamentos de uso contínuo causa síndrome de retirada, que se instala logo após a interrupção abrupta do medicamento e pode ser muito grave; e (2) porque o afastamento do usuário da relação com sua rede de apoio/poder (equipe de saúde, família) indica movimentos no próprio grupo, movimentos de exclusão e rejeição em que o sujeito psicótico se identifica como objeto excluído, rejeitado. No tratamento, é necessário usar esses eventos como analisadores do grupo e trabalhá-los como uma questão grupal. A redução da medicação necessária à sustentação do trabalho de reabilitação é sempre desejável e deve ser realizada após um longo trabalho com a família e o apoio da equipe, de forma muito cautelosa e gradual. Havendo dissenso entre as partes envolvidas (a retirada não concerne apenas ao usuário, mas à toda sua rede de apoio), as chances de sucesso da retirada são muito baixas e não devem ser estimuladas2323 Breggin PR. Psychiatric drug withdrawal: a guide for prescribers, therapists, patients and their families. New York: Springer; 2012..

Retomando a discussão dos resultados descritos na Tabela 1, podemos também observar que boa parte dos usuários já alterou sozinho a dose da medicação. Há uma pequena diferença entre os municípios de Campinas e Porto Alegre em relação aos municípios de Fortaleza e São Paulo, sendo a atitude dos usuários dos primeiros mais “rebelde” do que a dos outros dois municípios. O perfil menos “rebelde” dos usuários da cidade de São Paulo parece estar relacionado a um viés de seleção de nossa pesquisa (foram excluídos da pesquisa pacientes encaminhados ao CAPS por serviços que não fossem as UBSs), mas também pode estar relacionado a alguma particularidade do funcionamento dessa rede. A forte presença de serviços de urgência psiquiátrica e hospitais psiquiátricos em Fortaleza, a não regulação desses leitos pelos CAPS, bem como a dificuldade relatada por profissionais e pesquisadores do município com relação à atenção a crise nos CAPS, explicariam a menor taxa de pacientes “rebeldes” em tratamento nos CAPS de Fortaleza.

Também fica demonstrado que, de acordo com os usuários, os contratos de tratamento nos CAPS se sustentam com base em informações escassas sobre os efeitos da medicação, mas sobretudo com relação ao tempo necessário de tratamento. Em Campinas e Fortaleza, mais da metade dos usuários relatou não ter recebido informação quanto ao tempo necessário de tratamento com medicamento. Isso prolonga um estado de dependência indefinida do usuário em relação ao clínico e à equipe. É possível que a indefinição quanto ao tempo de tratamento com medicamento aponte para uma indefinição sobre os objetivos do tratamento e das estratégias para atingi-los. Outra possibilidade seria a de que a definição de objetivos e estratégias de tratamento estivesse sendo realizada em espaços sem a participação do próprio usuário. Quais objetivos devem ser atingidos para que a revisão da dose necessária de medicação seja efetuada? Qual grau de controle o usuário tem do processo? As metas são definidas em reuniões com a participação dos diversos atores envolvidos no processo de reabilitação (incluídos o próprio usuário e família) ou em reuniões restritas à equipe? Ou no encontro com o profissional de referência? Ou na consulta médica? O alto grau de indefinição com relação ao tempo de tratamento com medicação aponta para: (1) indefinição geral do projeto terapêutico singular (PTS) ou (2) PTS definido em espaços restritos sem a participação do usuário.

A compreensão de PTS como um conjunto de objetivos e estratégias a serem construídas ao longo do tratamento em conjunto com o usuário avança consideravelmente em relação aos manejos protocolares de casos reduzidos a diagnósticos biomédicos e tratamentos biológicos para controle de sintoma2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico. Brasília: MS; 2007.. A co-construção de objetivos de tratamento atreladas à negociação da dose da medicação poderia contribuir para o engajamento dos usuários e aproximar a prescrição no apoio à resolução de problemas definidos com o usuário, distanciando a prescrição da função de controle de sintomas definidos pelo clínico. Há uma enorme diferença na escolha pela medicação atrelada à redução de sintomas-alvo identificados pelo clínico, em relação à escolha pela medicação atrelada à compreensão dos processos subjacentes ao adoecimento, construídos ao longo do tratamento em parceria com o usuário. Essa negociação nos afasta da lógica que define a medicação como pressuposto necessário à reabilitação e nos aproxima da lógica que compreende a reabilitação como um processo singular, sendo a medicação uma das estratégias que pode compor o processo, nunca uma condição necessária à reabilitação.

As farmácias do estado de São Paulo tiveram melhor desempenho, seguidas pelas de Porto Alegre, e por último Fortaleza. Em todos os municípios, a maior parte dos usuários relatou retirar o medicamento na farmácia do próprio CAPS, o que indica uma preocupação desses serviços e da política com relação a acessibilidade e controle no uso de medicamentos. Em muitos desses CAPS a supervisão do uso de medicamentos pode se tornar bastante intensa, com a elaboração de fitas personalizadas, com medicação separada de acordo com os horários de ingestão, o que permite a prescrição de combinações complexas de medicamentos, substituindo assim a apropriação das famílias e usuários da gestão da tomada do medicamento por uma supervisão contínua das equipes e da farmácia. O controle total da ingestão de medicamentos é de grande interesse de boa parte dos clínicos e já orienta parcela das pesquisas para a criação de fármacos que possam ser rastreados ou emitam sinal que possa ser monitorado por clínicos e familiares quando devidamente ingerido2525 Belluck P. First digital pill approved to worries about biomedical 'Big Brother'. The New York Times 2017; 14 nov. [cited 2020 may 10]. Available from: https://www.nytimes.com/2017/11/13/health/digital-pill-fda.html
https://www.nytimes.com/2017/11/13/healt...
. Há espaço para qualificação da atenção farmacêutica nos CAPS. Evidenciou-se em inquérito recente com farmacêuticos de CAPS em São Paulo que a maior parte do tempo deles é dedicada a atividades gerenciais, e pouco tempo com a atenção farmacêutica direta a usuários e a discussão de casos em equipe2626 Zanella CG, Aguiar PM, Storpirtis S. Atuação do farmacêutico na dispensação de medicamentos em Centros de Atenção Psicossocial Adulto no município de São Paulo, SP, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(2):325-332.. Dentro de uma concepção de clínica ampliada, a atenção farmacêutica poderia compor os PTS, visando o empoderamento dos usuários e familiares na gestão do uso de drogas psiquiátricas.

Diferentemente dos demais municípios, em Porto Alegre a maior parte dos usuários relatou retirar o medicamento nas farmácias das UBS. Essa diferença pode indicar uma menor preocupação dessas equipes com relação ao monitoramento do uso do medicamento, que fica assim sob gestão das famílias e do próprio usuário. Campinas tem a maior taxa de usuários que relataram retirar seu medicamento em farmácias de alto custo, indicando um uso maior de “antipsicóticos” atípicos (ou de 2° geração), que estão associados a desenvolvimento de síndrome metabólica. A prescrição de novos fármacos para o tratamento de efeitos adversos e a resposta terapêutica insatisfatória torna o regime de ingestão ainda mais complexo e de difícil adesão. A participação das farmácias e equipes dos CAPS no monitoramento do uso provavelmente responde a essa convocação para a organização da tomada de medicamentos a partir de prescrições cada vez mais complexas, em que a polifarmácia é a regra, e não a exceção.

Considerações finais

Em resumo, os usuários de CAPS participam pouco do processo de decisão sobre o tratamento com medicação. Há problemas desde a oferta de informação até a construção de consenso envolvendo a introdução e o uso continuado do medicamento. As causas desses problemas de contratualidade são muitas e devem ser analisadas, levando-se em consideração a organização das redes, dos serviços e das práticas em saúde mental, além das particularidades de cada caso. Chamamos atenção em especial para os determinantes relacionados à organização das redes e do processo de trabalho nos serviços. Redes integradas, com boa articulação entre os diversos níveis de atenção, com CAPS equipados para atenção à crise e ao acolhimento noturno podem produzir efeitos interessantes na gestão do uso de medicamentos, garantindo acesso e acompanhamento a usuários considerados “difíceis” - que aqui chamamos de “rebeldes” - fora do circuito de repetidas internações no hospital psiquiátrico.

Por outro lado, essas mesmas redes, densas e integradas, podem reproduzir as práticas violentas que criticam, com a boa intenção de evitar o hospital psiquiátrico. Redes pouco densas e desarticuladas convivem com o hospital psiquiátrico de modo a selecionar usuários de perfil menos “rebelde”. Esses usuários e seus familiares perdem assim a oportunidade de elaborar as crises de forma singular, reduzindo a crise a um evento enigmático resolvido apenas por meio de períodos de reclusão e pela instituição de novos regimes de uso de medicamentos. Há ainda que se considerar os avanços no debate sobre a gestão compartilhada do uso de medicamentos por grupos e coletivos, evidenciada em nossa pesquisa pela maior participação dos profissionais de referência na discussão sobre o medicamento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jul 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2021
  • Aceito
    05 Jan 2022
  • Publicado
    07 Jan 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br