Da Independência ao Império: saúde e doença no Brasil do século XIX

Gilberto Hochman Tânia Salgado Pimenta Ricardo Cabral de Freitas Sobre os autores

Resumo

Como apresentação do dossiê “Da Independência ao Império: saúde e doença no Brasil no século XIX”, o artigo contrasta o “Brasil moderno” imaginado pelas elites médicas e políticas por ocasião do I Centenário da Independência, em 1922, com os inúmeros problemas e desafios no campo da saúde que a República, em sua terceira década, herdou dos períodos colonial e imperial. Além disso, destaca questões da história da saúde no século XIX que permitem aos leitores do dossiê refletir sobre as promessas civilizacionais não cumpridas de 1822-1922, à luz dos imensos desafios do ano de 2022, quando o Brasil completa duzentos anos de soberania política.

Palavras-chave:
Saúde pública; História; República; Brasil Império; Medicina

Em setembro de 1923, uma edição especial do Almanak Laemmert foi publicada com o tema do centenário da Independência do Brasil. O mês escolhido para a publicação encerrava um ciclo de solenidades e homenagens iniciado um ano antes, cujo ápice foi a inauguração da Exposição Internacional do Rio de Janeiro11 Livro de ouro comemorativo do Centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, Almanak Laemmert; 1923.. A publicação afinava-se com o espírito laudatório que permeou as iniciativas em torno da grande efeméride de 1922. Tratava-se de anunciar os notáveis avanços civilizatórios conquistados pela nação ao longo de seu primeiro século de independência. Em outras palavras, o Brasil republicano finalmente ingressaria na modernidade.

Em vários dos capítulos, destacados membros da intelectualidade da capital - entre eles Capistrano de Abreu, Afrânio Peixoto, Barbosa Lima Sobrinho e Gustavo Barroso - celebravam as conquistas do Brasil independente na cultura, nas ciências, na economia e na religião, entre outras, anunciando um belo porvir para a vida nacional. O capítulo sobre a medicina ficou a cargo de Antônio Austregésilo, prestigiado professor da cátedra de neurologia da Universidade do Brasil, e versa sobre contribuições da medicina nacional para a saúde pública e o progresso do país:

A extinção da febre amarela no Rio de Janeiro, e nas grandes cidades brasileiras, conduzida com estrondosa vitória por Oswaldo Cruz; a profilaxia rural, a vacinação obrigatória, a campanha contra as doenças venéreas, a tuberculose, lepra, ancilostomíase, o impaludismo postos em execução pelo dileto discípulo de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas; a assistência aos insanos, feita com dedicação por Juliano Moreira e Franco da Rocha; a higiene das habitações, a fiscalização dos produtos alimentícios, e tantas outras medidas firmadas pelo Departamento Geral de Saúde Pública provam como a medicina tem proporcionado à nossa imensa pátria benefícios indiscutíveis e perfeitamente pragmáticos (p. 93)11 Livro de ouro comemorativo do Centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, Almanak Laemmert; 1923..

O tom autocongratulatório e a narrativa evolutiva e positiva sobre o papel dos médicos e da medicina no primeiro centenário da Independência, sejam nos textos e ou na própria exposição internacional de 1922, encobriam muitas questões e emudeciam diversos atores. Em primeiro lugar, enfatizava o protagonismo dos médicos, todos homens, membros das elites e portadores de visões hierarquizantes sobre a sociedade, e subordinava outros profissionais de saúde importantes, como farmacêuticos e enfermeiras. Na celebração do progresso, os médicos dublês de historiadores apagaram de seus textos qualquer registro do que seria o “atraso” que, segundo eles, teria sido superado: as práticas e os praticantes de cura de origem africana e indígena que continuavam a ser agentes sociais importantes. A própria população é ator amorfo nessas celebrações, ela não tem voz, cor nem gênero. Também não há apontamentos sobre o legado da experiência colonial, da violência política no Império, das diferenças regionais e da escravidão, cujo fim se dera há pouco mais de três décadas. Para os médicos formados entre o fim do Império e o início da República, a saúde evoluíra a partir da criação de escolas médicas e de instituições sanitárias, tendo como marco o desembarque da Corte portuguesa em 1808. E sempre sob a liderança dos “sábios” da medicina diplomada.

Uma história da medicina brasileira que se ocupava das descobertas e do engenho de homens e instituições responsáveis pelo triunfo do saber médico frente ao império das doenças do campo e das cidades foi transformada por historiadores e cientistas sociais no último quarto do século XX. Tornou-se uma história da saúde no Brasil, polifônica e contextualizada, que enfatiza as profundas conexões entre saberes curativos, concepções sobre o corpo, experiências de adoecimento, políticas de saúde e aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais de nossa sociedade22 Teixeira LA, Pimenta TS, Hochman G, organizadores. História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2018..

Afinado com essa perspectiva, este dossiê retoma a análise da Independência sob o prisma da saúde e reflete parte da extraordinária ampliação de temas de pesquisa resultante de novos olhares e perspectivas teóricas e metodológicas. Nas próximas páginas, o leitor encontrará estudos sobre a saúde dos escravizados, as renhidas disputas jurisdicionais entre a medicina acadêmica e as artes curativas tradicionais, as relações entre sociedade e Estado por meio de políticas de vacinação e enfrentamento de epidemias, a criação de espaços institucionais de debate e afirmação de identidades próprias à comunidade médica local. A então capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro, não é mais a única referência. Esse descentramento aparece nos artigos que analisam importantes experiências regionais e locais, inclusive de caráter inovador. Trata-se de questões que, embora praticamente invisíveis para análises tradicionais de médicos e sanitaristas, tornaram-se incontornáveis para qualquer balanço atual sobre a história da saúde no bicentenário do Brasil independente. Quanto ao recorte cronológico, a maior parte dos trabalhos se dedica ao século XIX, com relativa ênfase nos efeitos da emancipação política do país no processo de institucionalização das instituições de saúde durante o período imperial. Contudo, alguns trabalhos avançam até o início do século XX, enfatizando também algumas das continuidades, contradições e instabilidades que marcaram a saúde no início do período republicano. O ano do primeiro centenário foi um ano de celebrações, mas também de crise política e econômica, bem como de eleições. Um século depois, em 2022, esse dossiê pretende contribuir para colocarmos sob exame crítico a promessa civilizatória da medicina e da saúde, inviável porque excludente, celebrada em 1922.

Referências

  • 1
    Livro de ouro comemorativo do Centenário da Independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, Almanak Laemmert; 1923.
  • 2
    Teixeira LA, Pimenta TS, Hochman G, organizadores. História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2022
  • Aceito
    04 Jun 2022
  • Publicado
    21 Jun 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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