COVID-19 nas prisões: o que o telejornalismo (não) mostrou - um estudo sobre os critérios de noticiabilidade na pandemia

Felipe A. Diuana Vilma Diuana Patricia Constantino Bernard Larouzé Alexandra Sanchez Sobre os autores

Resumo

Para analisar a cobertura telejornalística da pandemia de COVID-19 nas prisões brasileiras e sua visibilidade, foram examinadas 213 matérias veiculadas entre março e dezembro de 2020, encontradas no serviço de buscas da plataforma digital de vídeos por streaming Globoplay. A maior parte foi ao ar em março, abril e julho, com importante redução nos meses subsequentes. As reportagens, sobre números de mortes ou infectados, medidas de prevenção e prisão domiciliar ou liberdade para grupos de risco da COVID-19, foram divulgadas principalmente nos jornais locais. Os órgãos de saúde quase não foram ouvidos. Das 19 notícias apresentadas nacionalmente, 12 abordam os “presos famosos” e a legitimidade da prisão domiciliar ou a liberdade para grupos de risco da COVID-19. As pautas sanitárias e de garantia do direito à saúde das pessoas privadas de liberdade ficaram limitadas às dificuldades para a efetivação nos presídios das medidas de proteção e a sustentar a necessidade de medidas restritivas à movimentação no interior das prisões e nos intercâmbios com o exterior para limitar a circulação do vírus. Em geral, a forma e a visibilidade dadas ao tema não contribuem para ampliar a percepção dos telespectadores sobre as condições sanitárias das prisões e o fato de que a saúde é um direito de todos, sem qualquer distinção.

Palavras-chave:
COVID-19; Prisões; Saúde; Jornalismo; Mídia

Introdução

Em 2020, ano marcado pela crise sanitária global causada pela pandemia de COVID-19, o alastramento da doença em uma escala sem precedentes na história recente causou abalos em diversos meios, que tiveram que lidar com o desconhecimento da doença e suas consequências sanitárias e sociais. Nesse cenário, este artigo se volta para o sistema penitenciário, uma vez que as condições de encarceramento e a intensa circulação de pessoas que cruzam os muros das prisões favorecem a transmissão do vírus, tanto para fora quanto para dentro das prisões. Assim, “uma estratégia de controle da COVID-19 que não englobe o contexto penitenciário não será sustentável”1Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Escritório de Ligação e Parceria no Brasil. Prevenção e medidas de controle nas prisões [Internet]. 2019. [acessado 2021 jun 18]. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/covid19/preveno-e-medidas-de-controle---prises.html
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Desde o início da pandemia, a OMS assinalou o alto risco de disseminação da COVID-19 nas prisões, especialmente em países de baixa e média renda com altas taxas de aprisionamento e condições desumanas de encarceramento, como o Brasil. A superlotação (média de 170%), o encarceramento em celas coletivas e mal ventiladas, as condições precárias de higiene e as deficiências do sistema de saúde prisional “são responsáveis por expressiva morbidade de presos no país, com taxas elevadas de incidência de doenças infecciosas”22 Sánchez A, Roma Sánchez de Toledo C, Camacho LAB, Larouze B. Mortalidade e causas de óbitos nas prisões do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00224920.. A necessidade da implementação nas prisões de medidas para o controle de transmissão, proteção e assistência à saúde é salientada a fim de garantir o direito da pessoa privada de liberdade (PPL) à vida e à saúde.

Destaca-se que nas prisões as “estratégias de prevenção contra a COVID-19 não podem ser limitadas, como em muitos estados, à interdição de visitas, à suspensão das transferências entre unidades e à interrupção de atividades em grupo”33 Sánchez A, Simas L, Diuana V, Larouze B. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? Cad Saude Publica 2020; 36(5):e00083520.. Recomenda-se que sejam também adotadas medidas judiciais de desencarceramento, pois “uma resposta de saúde à COVID-19 apenas em ambientes fechados é insuficiente”, dado que “a superlotação constitui um obstáculo intransponível para prevenir ou responder à doença”44 UNAIDS Brasil. Declaração conjunta do UNODC, OMS, UNAIDS e ACNUDH sobre a COVID-19 em prisões e outros locais fechados [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 18]. Disponível em: https://unaids.org.br/2020/05/declaracao-conjunta-do-unodc-oms-unaids-e-acnudh-sobre-a-COVID-19-em-prisoes-e-outros-locais-fechados/
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No entanto, o reconhecimento do direito à saúde das PPL não é evidente, tampouco a implementação das políticas públicas que deveriam garanti-lo. Estas, como lembram Penteado e Fortunato55 Penteado CC, Fortunato I. Mídia e políticas públicas: possíveis campos exploratórios. Rev Bras Ci Soc 2015; 30(87):129-141., constituem, na prática, campos onde diferentes atores, governamentais e não governamentais, atuam, influenciando e pressionando sua efetivação a partir de diferentes perspectivas.

Nesse momento de intensa procura por informações relacionadas à COVID-19, a mídia de massa se destacou nos debates sobre a pandemia como um importante ator não governamental. Em meio à proliferação das fake news nas redes sociais, as informações dos veículos jornalísticos tradicionais adquiriram confiança junto ao público. A televisão, que parecia ter seu lugar de destaque ameaçado pelo advento das redes sociais, recuperou seu prestígio. O tempo dedicado ao jornalismo nas TVs abertas aumentou. Segundo Silva66 Silva CEL. Pandemia dá ânimo ao jornalismo, mas acelera o fim de veículos [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 18]. Disponível em: https://www.insper.edu.br/noticias/pandemia-do-coronavirus-da-animo-ao-jornalismo-mas-acelera-o-fim-de-veiculos/
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, a Rede Globo chegou a dedicar 11 horas de sua grade diária ao telejornalismo. O desafio de informar com credibilidade, diante da estratégia adotada pelo Governo Federal, que se recusava a reconhecer a gravidade da situação, fizeram com que a presença de especialistas, médicos, infectologistas e epidemiologistas se tornasse frequente nos telejornais para informar e analisar a pandemia.

Como observa Miguel77 Miguel LF. Os meios de comunicação e a prática política. Lua Nova 2002; 55-56:155-184., embora mídia e política sejam dois campos distintos, exercem influência entre si, em especial na definição da agenda política. Neste campo, a visibilidade de cada questão exerce forte influência nas deliberações públicas sobre elas. Isso ocorre, segundo o referido autor, não apenas pelo fato de o cidadão dar mais importância aos temas que recebem maior destaque nos meios de comunicação, mas porque a maior visibilidade funciona como pressão sobre os atores integrantes do campo para que deem uma resposta ao problema. No entanto, lembra Miguel77 Miguel LF. Os meios de comunicação e a prática política. Lua Nova 2002; 55-56:155-184., ao pautar um assunto como relevante, a imprensa não é neutra, pois “fornece os esquemas narrativos que permitem interpretar os acontecimentos”77 Miguel LF. Os meios de comunicação e a prática política. Lua Nova 2002; 55-56:155-184., privilegiando alguns aspectos em detrimento de outros, a partir dos chamados critérios de noticiabilidade. Nessa construção narrativa, ela própria sofre influências, que vão desde a dependência do campo político, como fonte de informação e recursos de financiamento, até interesses políticos e econômicos.

Desse modo, entendendo que a mídia pode ser um espaço para o debate público em torno da definição e adoção de estratégias, bem como agir como um ator que pode interferir na percepção das questões em pauta sobre o enfrentamento da COVID-19 nas prisões, este estudo procurou conhecer como foi realizada a cobertura midiática a respeito da pandemia de COVID-19 no sistema penitenciário brasileiro e a visibilidade dada ao tema.

Vale ressaltar que, apesar da relevância da temática, não se encontrou, até o momento, nenhuma produção que se volte para este assunto, crucial para se conhecer os sentidos atribuídos às demandas dessa população vulnerável e marginalizada nas narrativas dos telejornais brasileiros.

Metodologia

A pesquisa, realizada em grande parte em paralelo aos acontecimentos, abrange as matérias de vídeo veiculadas durante o ano de 2020 pela Rede Globo e obtidas a partir do serviço de buscas da plataforma digital de vídeos por streaming Globoplay, de acesso livre, que disponibiliza trechos e matérias dos programas e telejornais da referida rede, veiculados primeiramente na televisão aberta. Essa rede foi escolhida por ser a única a proporcionar uma plataforma on-line e gratuita para pesquisa de matérias divulgadas na televisão, tanto em seus canais principais quanto em suas afiliadas espalhadas pelo país.

Nessa plataforma, a pesquisa das matérias se limita ao título de cada vídeo. Foram usados os seguintes termos de busca, “covid” e “coronavírus” associados a cinco termos ou palavras-chave selecionadas: “prisão”, “presídio”, “CNJ”, “prisão domiciliar” e “audiência de custódia”.

O material encontrado foi dividido por telejornal veiculado, abrangência de veiculação (local ou nacional), estado ou unidade federativa para o qual a matéria foi transmitida e o horário de exibição do telejornal em que foi exibida. Da mesma forma, foram separadas a data de cada matéria, assim como título, URL (endereço eletrônico) e duração do vídeo. Também se analisou se cada matéria contou com um entrevistado ou analista, comentarista ou consultor especializado no tema.

Por fim, com base na frequência dos temas, foram selecionadas oito categorias para classificar as matérias, podendo uma mesma matéria se enquadrar em mais de um tema: 1) “Prisão domiciliar ou liberdade para grupos de riscos da COVID-19”, 2) “Prisão domiciliar por estar com COVID-19 e desobedecer medidas de prevenção”, 3) “Números de mortos e/ou infectados nas prisões”, 4) “Testagem da população prisional”, 5) “Pedido de interdição de presídio devido aos riscos da COVID-19”, 6) “Medidas de prevenção contra a COVID-19 em presídios”, 7) “Denúncia de superlotação e/ou negligência nas medidas de prevenção” e 8) “Fuga de presidiários com sintomas ou casos de COVID-19”. As matérias idênticas, com a mesma URL, encontradas por mais de uma combinação de palavras-chave, foram contabilizadas uma vez apenas, assim como vídeos catalogados em endereços eletrônicos diferentes mas com conteúdo igual. No caso de matérias repetidas veiculadas em telejornais diferentes, não houve descarte de resultados, considerando assim todo o material encontrado. Por fim, foram descartadas matérias que não possuíam relação com o tema abordado.

Como os primeiros casos conhecidos de COVID-19 surgiram no Brasil ao final de fevereiro, as primeiras matérias encontradas sobre a COVID-19 nas prisões datam de março de 2020 e as buscas se estendem até o final do mês de dezembro do mesmo ano.

Entendendo-se as matérias jornalísticas como discursos que possuem materialidade, sendo, “ao mesmo tempo, processo de comunicação e prática social”88 Lerner K, Gradella PA. Mídia e pandemia: os sentidos do medo na cobertura de Influenza H1N1 nos jornais cariocas. Rev Eco-Pos 2014; 14(2):33-54., e considerando que, longe de simples representações de fatos, as notícias expressam um sistema de crenças, valores, interesses e relações de poder dentro de determinado campo, buscou-se identificar: a) visibilização e valorização pelos noticiários da magnitude do problema da COVID-19 nos presídios; b) informação, debate e avaliações das medidas adotadas pelas autoridades para conter a disseminação do vírus e tratar as pessoas presas infectadas; e c) instituições reconhecidas como relevantes para opinar nesse campo e quais valores eles veiculam.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz (Parecer 4.168.197, de 22 de julho de 2020).

Resultados e discussão

Ao todo, foram levantadas 276 matérias divulgadas na Rede Globo e afiliadas entre março e dezembro de 2020. Dessas, foram descartadas 43 matérias duplicadas e 20 que não tinham relação com a temática abordada. Assim, 213 foram analisadas. As buscas que mais obtiveram resultados utilizaram os termos combinados “covid” e “presídio” (96 matérias) e “coronavírus” e “presídio” (54).

Distribuição temporal e temática das matérias: da visibilidade inicial ao quase esquecimento

Ao analisar a distribuição temporal dessas matérias a partir do primeiro resultado encontrado, em 16 de março, percebe-se que os períodos com maior quantidade de notícias exibidas a respeito da COVID-19 nos presídios brasileiros foram março, abril e julho (Gráfico 1).

Gráfico 1
Número de matérias sobre COVID-19 nas prisões veiculadas pela TV Globo e suas afiliadas por mês (março-dezembro de 2020).

Nos dois primeiros meses pesquisados, a Rede Globo (incluindo suas afiliadas) veiculou um total de 87 matérias sobre o assunto: 45 em março e 42 em abril. A maioria das reportagens nesse espaço de tempo foi incluída nas temáticas “Prisão domiciliar ou liberdade para integrantes dos grupos de riscos para a COVID-19” e/ou “Medidas de prevenção contra a COVID-19 em presídios”, tais como suspensão de visitas ou higienização dos ambientes prisionais. Essas notícias expressam preocupações sanitárias com a disseminação do coronavírus no interior das unidades prisionais e sua expansão para fora dos presídios. Elas fazem referência a dois grandes grupos de medidas que estavam sendo adotadas para a prevenção da transmissão entre a população prisional. De um lado, as medidas desencarceradoras, de caráter jurídico, apoiadas na Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que recomendou aos magistrados que considerassem, em suas decisões, a reavaliação das prisões provisórias, a antecipação da progressão de regime às pessoas presas pertencentes aos grupos de risco, e que em alguns casos optassem pela prisão domiciliar. De outro lado, as medidas restritivas de atividades e de circulação de pessoas e materiais no interior das prisões, e entre elas e seu exterior, medidas de caráter administrativo adotadas pelos sistemas prisionais de cada estado e pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no que se refere ao sistema penitenciário federal99 Brasil. Portaria nº 5, de 16 de março de 2020. Suspende as visitas, os atendimentos de advogados, as atividades educacionais, de trabalho, as assistências religiosas e as escoltas realizadas nas Penitenciárias Federais do Sistema Penitenciário Federal do Departamento Penitenciário Nacional como forma de prevenção, controle e contenção de riscos do Novo Coronavírus. Diário Oficial da União 2020; 16 mar..

Em julho 2020, o Brasil vivia um pico da pandemia, registrando até então mais de 32 mil óbitos (o maior número em um único mês em 2020) e cerca de 126 mil casos da doença (no ano, atrás somente do mês de dezembro), segundo o Ministério da Saúde1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). COVID-19 no Brasil [documento da Internet]. 2020. [acessado 2020 jun 24]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br
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. Nesse período, a COVID-19 se alastrava também na população prisional do país. De acordo com o CNJ1111 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Boletim Quinzenal sobre Contágios e Óbitos no Sistema Prisional e no Socioeducativo 2020; 29 jul. [acessado 2021 jul 26]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/07/Monitoramento-Semanal-COVID-19-Info-29.07.20.pdf
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, de março a julho já tinham sido notificados 11.269 casos entre as PPL, com 74 óbitos, o que poderia justificar as 43 matérias encontradas nesse mês, a maioria delas enquadrada na temática “Números de mortos e/ou infectados nas prisões”.

Observou-se, contudo, que em outubro e dezembro apenas uma matéria foi veiculada nos telejornais da rede. Isso apesar dos dados oficiais do CNJ indicarem que, a partir de agosto, o crescimento no total de casos entre as pessoas presas se manteve estável e que, no último mês do ano, foram informados aproximadamente 3.500 casos de COVID-19 nas prisões brasileiras, com cinco óbitos. A quase ausência de notícias sobre a COVID nas prisões nesses meses finais do ano pode traduzir a banalização do tema, que passa a ser negligenciado pela mídia, como é o caso de doenças altamente endêmicas nas prisões, como a tuberculose, e, de maneira geral, a saúde e as condições de vida das PPL.

É possível também perceber quais assuntos, dentro da temática mais ampla envolvendo a situação da COVID-19 nos presídios, geraram maior número de notícias (Gráfico 2). Em primeiro lugar, 105 matérias veiculadas abordavam a questão do número de mortes ou de doentes/nas prisões, seja entre as PPL ou os funcionários. Em segundo lugar, 90 vídeos tratavam das medidas de prevenção nos presídios, seja ao abordar a proibição de visitas ou as demais providências internas para prevenir o alastramento do novo coronavírus. Já a terceira temática mais frequente versa sobre os pedidos ou concessões de prisão domiciliar para detentos em grupo de risco da COVID-19, a maior parte delas tratando o assunto de forma geral e quantitativa ou divulgando algum caso de destaque, os chamados “presos famosos”.

Gráfico 2
Número de matérias sobre COVID-19 nas prisões segundo a temática, veiculadas pela TV Globo e suas afiliadas (março-dezembro 2020).

Poucas foram as matérias que, aliadas aos dados frios de número de casos ou total de presos colocados sob o regime domiciliar, foram além das informações oficiais divulgadas pelas assessorias das unidades prisionais. Apesar de largamente conhecidas, as condições sanitárias em que vivem os cerca de 800 mil presos brasileiros, a limitada oferta de ações de prevenção e assistência à saúde e a superlotação dos presídios brasileiros, inclusive com denúncias à ONU e à OEA1212 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Notícias, covid e prisões no Brasil: leia íntegra da denúncia enviada à ONU e à CIDH sobre "ação genocida do governo" [Internet]. 2020. [acessado 2020 jun 24]. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/627/covid-e-prisoes-no-brasil-leia-integra-da-denuncia-enviada-a-onu-e-a-cidh-sobre-acao-genocida-do-governo
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contra a gestão da COVID-19 nos presídios brasileiros, apenas 19 das reportagens exibidas traziam denúncias, com dados numéricos, de superlotação e/ou de negligência na adoção de medidas de prevenção à COVID-19 dentro dos presídios.

A testagem da população prisional e de funcionários dos presídios também foi assunto encontrado em 37 resultados. A maioria das notícias se refere a testes realizados após um primeiro caso suspeito, motivador do exame nos demais, sem problematizar a efetivação ou não das medidas de prevenção, após a descoberta dos casos.

Apenas nove matérias exibidas abordaram pedidos de interdição de presídios (com proibição do ingresso de novos detentos) devido ao risco da COVID-19; cinco delas falavam de algum caso em que um indivíduo foi sentenciado a prisão domiciliar por estar com COVID-19 e desobedecer a medidas de prevenção; e uma única matéria abordou um caso de fuga de presidiários com sintomas ou com COVID-19 em um presídio em Aracaju (SE).

Vale ressaltar que, ao somar o total de matérias por tema, encontra-se um resultado maior do que o total de matérias coletadas, pois foi possível identificar mais de um assunto em várias reportagens.

A abrangência territorial: tratadas regionalmente, poucas matérias são levadas ao âmbito nacional

Ao examinar a abrangência dos telejornais nos quais as matérias relacionadas à COVID-19 nos presídios foram veiculadas, percebe-se que o assunto foi muito pouco abordado em âmbito nacional - inclusive, apenas cinco das 213 matérias analisadas foram exibidas no Jornal Nacional, o principal programa jornalístico da emissora. Considerando todos os telejornais com veiculação para todo o Brasil, totaliza-se somente 19 matérias.

Já nos telejornais locais foram encontradas 194 reportagens sobre a COVID-19 nas prisões. Observa-se que foi por meio deles que a maior parte das notícias que abordam as condições das unidades prisionais ou o número de detentos infectados pela COVID-19 foi transmitida. Esses telejornais locais se tornaram responsáveis quase exclusivos por veicular as informações a respeito da COVID-19 nos presídios e nas populações prisionais de sua região, deixando ao âmbito nacional pouquíssimas situações de caráter noticioso, a maioria delas envolvendo criminosos de renome, conforme será analisado mais adiante.

Dessas 194 matérias veiculadas localmente, 112 foram exibidas nos noticiários dos estados da região Sudeste, onde se concentra um terço dos presídios brasileiros e cerca de 52% da população prisional do país1313 Santos T, organizadora. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN. Atualização - junho de 2016. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública/Departamento Penitenciário Nacional; 2017.. Nessa região, Minas Gerais e São Paulo lideram a lista, com 35 e 21 matérias, respectivamente, e o Espírito Santo, com 12 matérias. No entanto, se a presença de presídios e da população prisional nesses estados pode ser fator relevante para o maior número de notícias sobre a COVID-19, não é suficiente para explicar a (in)visibilidade do tema nos noticiários do estado do Rio de Janeiro (população prisional de cerca de 48 mil pessoas), com apenas nove matérias nos telejornais locais entre março e dezembro de 2020 (Gráfico 3).

Gráfico 3
Número de matérias sobre COVID-19 nas prisões veiculadas pela TV Globo e suas afiliadas segundo a unidade da federação onde foram exibidas (março-dezembro de 2020).

O que foi veiculado nacionalmente?

Entre as 19 matérias veiculadas para todo o Brasil pela TV Globo e suas afiliadas no em 2020 (Quadro 1), 12 abordam a temática da prisão domiciliar ou da liberdade para grupos de risco do novo coronavírus, e só quatro a temática do número de mortos e/ou infectados nos presídios (apenas um abordando o cenário nacional como um todo). Três matérias abrangem as medidas de prevenção nas unidades prisionais, ao passo que uma trata de um pedido de interdição de novos ingressos no presídio e outra única reportagem denuncia superlotação ou negligência na prevenção e assistência a doentes com COVID-19 nos presídios.

Quadro 1
Matérias sobre a COVID-19 nas prisões veiculadas nacionalmente pela TV Globo e suas afiliadas (março-dezembro de 2020).

A partir desses dados, já se pode observar que os assuntos que obtiveram maior destaque nos telejornais nacionais da TV Globo foram as concessões, pedidos e negações de prisão domiciliar, que dominaram os noticiários exibidos para todo o país - em especial quando o detento em questão era uma figura pública ou notória. Tal apontamento se torna mais claro ao elucidarmos que, após nova recomendação do CNJ1414 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação nº 78, 15 de setembro de 2020. Acrescenta o art. 5-A à Recomendação CNJ nº 62/2020, que trata das medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo Coronavírus - COVID-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, e altera o art. 15, para prorrogar sua vigência. [documento da Internet]. 2020. [acessado 2020 jun 24]. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246
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a respeito da questão, não foram encontradas quaisquer notícias sobre o tema nos telejornais de abrangência nacional, conforme analisado abaixo.

A cobertura nacional: foco no desencarceramento dos “presos famosos” em detrimento do direito à saúde das outras pessoas presas

Nessa seção, as matérias veiculadas nos telejornais nacionais serão analisadas mais detalhadamente, a fim de compreender quais informações relacionadas à COVID-19 nos presídios foram veiculadas para todo o país no ano de 2020.

De maneira significativa, no dia 17 de março, a notícia sobre as “fugas, rebeliões ou tumultos em cinco presídios de São Paulo” foi a primeira a ganhar espaço em um telejornal nacional. Nas palavras da âncora do jornal ao anunciar a matéria, “tudo aconteceu depois que o Governo do Estado suspendeu a saída temporária do regime semiaberto por causa do novo coronavírus”. Em frente à penitenciaria em Mongaguá, cidade do litoral paulista, uma repórter informa que 577 presos fugiram pela porta da frente, 176 foram recapturados e 400 ainda estavam foragidos. Ela relata que a rebelião durou quatro horas, com oito agentes penitenciários feitos reféns, e diz que a unidade prisional, que tem capacidade para 1.700 presos, estava com 2.800, informando também que familiares dos detentos denunciavam as condições de encarceramento, inclusive falta de água e comida. A reportagem é ilustrada com imagens de muitos presos em fuga, saindo pela porta da frente de um dos presídios, além de presos recapturados sendo levados de volta pela polícia, com camburões e helicóptero em ação. Informa ainda que a prefeitura local determinou que “por uma questão de segurança da população, as escolas não terão aulas”, e faz um pedido “para que as pessoas fiquem em casa”. Esse cenário dá o tom da reportagem, que segue com a narração de rebeliões em outros presídios, enquanto imagens do fogo que os presos fugitivos teriam ateado num canavial são apresentadas.

Coincidentemente, essas imagens, que reforçam o estigma de violência que marca a população prisional e o perigo que ela representa para as pessoas em liberdade, foram divulgadas no mesmo dia em que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a já citada Resolução nº 62, que recomendou aos magistrados que considerassem, em suas decisões, a reavaliação das prisões provisórias, bem como a antecipação da progressão de regime às pessoas presas pertencentes aos grupos de risco e, em alguns casos, optassem pela prisão domiciliar. De acordo com o documento, deveriam ser beneficiados os presos provisórios, as pessoas que cometeram crimes sem violência, e presos pertencentes ao grupo de risco da COVID-19: idosos, portadores de doenças crônicas, imunossupressoras, portadores de doenças respiratórias e outras comorbidades.

No mesmo dia, reportagens locais deram destaque às recomendações aos juízes feitas pelos tribunais de justiça estaduais para adoção de prisão domiciliar para detentos em grupo de risco da COVID-19. Em algumas afiliadas da TV Globo, como em Minas Gerais, um especialista em ciências criminais foi chamado para explicar a necessidade da medida. Ele o fez com base na superlotação dos presídios, na emergência de saúde pública no estado e na necessidade de proteger a saúde das pessoas presas, dos familiares, oficiais de justiça e advogados. Além disso, informou que os detentos que viessem a ingressar no sistema ficariam em isolamento em unidades de ingresso por período de 15 dias antes de adentrar de fato o sistema. Em outra emissora, no estado de Santa Catarina, essas medidas foram apresentadas e discutidas por um colunista da NSC, que as justificou com base em “uma preocupação nacional” (sic) com rebeliões nos presídios de São Paulo que teriam sido motivadas por restrições impostas como medidas de prevenção da COVID-19 nas prisões. Nesse sentido, as medidas determinadas na referida resolução seriam dirigidas a minorar os riscos de rebeliões e fugas. Essa reportagem, que termina com uma observação do âncora do telejornal sinalizando a necessidade de “cuidado acima de tudo”, assinala o perigo que envolve o sistema prisional e as pessoas privadas de liberdade.

Assim, nos telejornais locais, dependendo do comentarista convidado, a Resolução era interpretada primordialmente como medida para reduzir a superlotação dos presídios e enfrentar a emergência de saúde pública ocasionada pela pandemia ou impedir rebeliões ocasionadas pelas medidas restritivas adotadas nos presídios.

A continuidade da cobertura nacional da COVID-19 no sistema prisional transcorre entre notícias de concessões, pedidos e negações de prisão domiciliar, em especial quando o detento em questão é uma figura pública ou notória, condenada por crimes sexuais ou por corrupção. Esses são crimes que provocam intenso repúdio e desaprovação social, gerando afetos que, por contiguidade, se estendem à medida que se sustenta a liberação da prisão.

A única reportagem exibida pela Rede Globo em âmbito nacional trazendo uma denúncia sobre a situação dos presídios brasileiros em meio à pandemia foi televisionada no dia 22 de abril, no programa Combate ao Coronavírus. Nela, eram mostrados números e detalhes da situação dos presídios no Rio de Janeiro, após o primeiro registro oficial de morte por COVID-19 em uma unidade prisional do estado, apontando que outras 14 mortes não entravam nos registros oficiais, apesar de estarem relacionadas a sintomas da doença, de acordo com o Mecanismo Estadual para Prevenção e Combate à Tortura, órgão vinculado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Na reportagem, a representante do Mecanismo também denunciou a irregularidade de uma portaria, publicada em 20 de março de 2020, pela Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SEAP) e pela Polícia Civil, que suspendeu a perícia nos corpos de detentos mortos por causas naturais no estado do Rio de Janeiro. A reportagem, que também ouve um defensor público do estado, esclarece que, sem perícia, é impossível saber o motivo das mortes e, consequentemente, avaliar o impacto do novo coronavírus nas prisões. A transmissibilidade do vírus em ambiente prisional também é abordada em breve entrevista com pesquisadora da Fiocruz, que alerta para o problema tendo em vista a superlotação e as condições de encarceramento no estado. Antes da exibição da matéria, o apresentador anunciou que, pelos dados da época, pelo menos 60 pessoas haviam contraído a doença em presídios brasileiros, com 154 casos suspeitos e duas mortes.

No mesmo dia 22 de abril, ainda no programa Combate ao Coronavírus, tratando das dificuldades do enfrentamento à doença nos presídios, o apresentador compara a situação nesses estabelecimentos com as instituições de longa permanência para idosos, para assinalar a dificuldade de implantar o isolamento dos doentes, os problemas de suspender a visitação e o trânsito dentro e fora das prisões, questionando a qualificação e a proteção da saúde dos trabalhadores nas prisões.

Ainda no mês de abril, uma notícia no Hora 1 destacou a situação no Ceará após o estado registrar a primeira morte de um detento por conta do coronavírus. A reportagem informa que, antes de ser encaminhado para a unidade de saúde onde faleceu, o detento estava no convívio com outros presos, e relata que a Secretaria da Administração Penitenciária comunicou que a ala onde ele estava fora isolada e nenhum outro preso apresentara sintomas. A reportagem não cita se houve a realização de testes para detecção da doença entre os contatos daquele detento.

A questão só voltou à pauta nacional no dia 9 de julho, com uma “nota seca” (isto é, notícia lida pelo apresentador do telejornal, sem qualquer imagem de ilustração) de 24 segundos no Bom Dia Brasil sobre o avanço do coronavírus nos presídios mineiros. Nela, a jornalista informa que 324 detentos testaram positivo, sendo que 159 eram de um único presídio, o que representava 80% de toda a população prisional daquela unidade. Informa ainda que um preso de 28 anos morreu por causa da doença. Embora enfatizando, com o gestual, pesar por aquele óbito, nenhuma questão foi colocada quanto à contaminação em massa que ocorreu no referido presídio.

No dia seguinte, o Jornal Nacional noticia que um grupo de advogados do coletivo de advocacia em direitos humanos pediu ao STJ a concessão de prisão domiciliar a “todos os presos do Brasil” que pertencem ao grupo de risco do novo coronavírus. O âncora do jornal assinala que, para fundamentar seu pedido, os advogados argumentam que os presos nestas circunstâncias também devem ter os mesmos benefícios concedidos a um ex-assessor parlamentar e sua mulher. Cabe à jornalista apontar que, na ação proposta, os advogados elencaram uma série de decisões judiciais indeferindo pedidos em casos de presos com câncer, hepatite C, diabetes e hipertensão, que os colocavam em situação de maior risco de agravamento da COVID-19, deixando entrever a diferença de tratamento dada aos presos “comuns” e àqueles que desfrutavam de notoriedade.

Após essa matéria, voltam as notícias sobre concessão de prisão domiciliar a “presos famosos”, só interrompida, no dia 22 de julho, quando, no Jornal Hoje, a Globo exibiu uma reportagem de dois minutos e meio, com entrevistados, sobre a interdição temporária da Cadeia Pública de Porto Alegre, o maior presídio do Rio Grande do Sul. Essa medida, tomada por decisão da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre devido ao alto número de casos de infectados pelo coronavírus, além de proibir a entrada de novos presos, impede a circulação interna. A reportagem, que mostra grades e mãos de presos para fora, assinalando a superlotação, informa que naquele presídio, com capacidade para 1.800 presos, estão 4.160 pessoas e acrescenta que, segundo a direção, três apenados testaram positivo e dez estavam isolados com sintomas da COVID-19. A reportagem apresenta ainda a juíza da referida Vara de Execuções Criminais, que informa que os presos “vão sendo isolados na medida em que apresentam sintomas”, porque o vírus já havia se disseminado em outras galerias. Nesse sentido, ela entende que a única solução seria “fechar por 15 dias, que seria o prazo de uma quarentena, para saber quantas pessoas estão contaminadas lá dentro, para saber como agir”. A notícia segue informando que a interdição também pretende evitar uma pressão ainda maior sobre os hospitais do estado, que se encontram lotados. Vale ressaltar que, apesar de assinalar a grave condição de superlotação do presídio e do risco de exposição à doença em que se encontram as pessoas privadas de liberdade naquele estabelecimento superlotado, a aplicação de medidas desencarceradoras não foi trazida à cena como forma de enfrentar o problema. O discurso validado pela fala judicial se atém à já citada declaração de “fechar por 15 dias [...] para saber como agir”.

Só um mês depois dessa reportagem o tema da COVID-19 nas prisões volta a reaparecer nos telejornais nacionais, trazendo a notícia da revogação da concessão de prisão domiciliar e o consequente retorno à cadeia de um ex-médico condenado por crimes sexuais no exercício da medicina.

A derradeira notícia em âmbito nacional veiculada na TV Globo em 2020 sobre o tema da pandemia nas prisões ocorreu no dia 15 de setembro, um dia depois das alterações feitas pelo ministro Luiz Fux1414 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Recomendação nº 78, 15 de setembro de 2020. Acrescenta o art. 5-A à Recomendação CNJ nº 62/2020, que trata das medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo Coronavírus - COVID-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, e altera o art. 15, para prorrogar sua vigência. [documento da Internet]. 2020. [acessado 2020 jun 24]. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246
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na Resolução nº 62 do CNJ. Nesse dia, o Jornal Nacional informou que, “na prática, a mudança do ministro Fux deixa claro que benefícios como a reavaliação de prisão provisória e a concessão de regime domiciliar não podem ser aplicados a condenados por organização criminosa, lavagem de dinheiro, corrupção, violência doméstica e crimes hediondos”. Essa notícia, repetida no dia seguinte pelo âncora do jornal Hora 1, com o mesmo texto, encerra as notícias veiculadas nacionalmente nos telejornais da Rede Globo sobre a COVID-19 nas prisões.

Verifica-se assim que, com poucas exceções, os presos “comuns” só chegaram ao noticiário nacional em situações envolvendo rebeliões e violências, ou no máximo como contraponto “destituído de direitos” daqueles presos notórios a quem todos os direitos são garantidos. Uma afirmação que pode levar tanto a interpretações com base em noções como igualdade e justiça social quanto servir a interpretações punitivistas de exclusão de direitos e manutenção das penas privativas de liberdade, independentemente das condições de vulnerabilidade a que essas populações estejam expostas.

No geral, observa-se que, apesar da pandemia que atinge o país e do número de pessoas infectadas e mortas em razão da COVID-19 nas prisões brasileiras, não foram as pautas sanitárias e de garantia de direito à vida e à saúde das PPL que se tornaram assunto levado à atenção do público brasileiro, mas sim um debate envolvendo, por um lado, a prisão como um espaço de risco social e, por outro, a aplicação das medidas desencarceradoras, tratadas ora como privilégio para poucos, ora como fator de insegurança para a população geral, pelo risco de libertar “presos perigosos”. A imprensa repercutiu, sem discutir, as tensões existentes entre o direito à saúde, entendido como um direito de todos sem qualquer distinção, e certas concepções de segurança, baseadas na segregação e no encarceramento em massa como forma de garantir a segurança pública.

Considerações finais

A realização deste estudo proporcionou uma observação mais detalhada da cobertura da imprensa televisiva sobre a pandemia de COVID-19 no sistema penitenciário brasileiro. O material coletado não tem a pretensão de retratar a totalidade de notícias veiculadas nos telejornais da Rede Globo acerca do tema: não há garantias de que todos os vídeos sejam publicados na plataforma da Globoplay e algumas matérias podem não ter sido encontradas por não terem em seu título as palavras-chave utilizadas. Contudo, estimamos que nosso estudo fornece uma avaliação adequada das matérias sobre o tema divulgadas pela emissora, seus conteúdos e a repercussão do COVID-19 nas prisões do país.

Chama atenção que as matérias ganharam mais espaço nos telejornais locais do que nos de abrangência nacional, “regionalização” que contribui para desvincular a situação de saúde nas prisões das ações e decisões tomadas em âmbito nacional. Tratadas de modo regional, essas notícias afastam a percepção de que as políticas de saúde e as políticas de encarceramento se articulam, na verdade, na interseção dos três poderes e das três esferas de governo, além de envolverem importantes organizações da sociedade civil, inclusive as acadêmicas, sendo portanto tema de interesse nacional

Outro ponto relevante consiste na verificação de que, nas notícias analisadas, quase não se encontrou referências ao estado de saúde das PPL com COVID-19, nem às condições ou à qualidade da assistência prestada a elas. Nas matérias sobre os óbitos, foram informados apenas o número de mortos e repetidas as informações prestadas pelas administrações penitenciárias de que não houve casos de outros presos com sintomas, ou que os casos detectados foram isolados.

Não foram observadas referências à importância da testagem para o diagnóstico e o controle da transmissão, nem à necessidade de vacina para a população prisional, assunto vital como “instrumento de reversão de iniquidades em saúde”1515 Simas L, Larouze B, Diuana V. Por uma estratégia equitativa de vacinação da população privada de liberdade contra a COVID-19. Cad Saude Publica 2021; 37(4):e00068221. para populações especialmente vulneráveis como a população carcerária.

As referências às medidas de proteção, apesar de importantes, limitaram-se a reafirmar as dificuldades para sua efetivação no contexto penitenciário e a sustentar a necessidade de medidas restritivas à movimentação interna e à entrada de novos presos, além da suspensão ou limitação da circulação com o exterior, evidenciando tratarem-se de medidas que buscavam evitar principalmente a difusão do vírus a partir das prisões e a pressão sobre a rede de saúde extramuros.

Observou-se que, para tratar do assunto, os órgãos de saúde quase não se fizeram presentes no debate, já que as fontes das notícias eram, em sua maioria, informações oficiais divulgadas pelas assessorias das administrações penitenciárias ou por canais da justiça criminal. Também não houve repercussão na mídia de ações e conquistas de movimentos sociais em prol da saúde das PPL.

No Brasil, desde 2014, a saúde nas prisões é regida pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade (PNAISP)1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2014; 3 jan., que tem por objetivo garantir o direito à saúde e o acesso das PPL ao Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, sua ausência no debate ou a pequena visibilidade dada a suas participações limitaram a discussão do problema aos atores do campo da justiça e do sistema penal, não favorecendo a percepção, pela população, de que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade, além de um direito, é também essencial à garantia da saúde coletiva.

Por fim, é importante destacar que, ao concentrar o debate na concessão da liberação judicial de “presos famosos” e na injustiça de seu favorecimento, o discurso fortalece a percepção de que, se estes favorecidos permanecerem presos, “a justiça está feita”, deixando na obscuridade a reflexão sobre onde está de fato a justiça, que impõe o isolamento sem cuidados e sem direitos às pessoas anônimas privadas de liberdade.

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  • Financiamento

    Programa Inova Fiocruz-Geração de Conhecimento - Enfrentamento da Pandemia e Pós-pandemia COVID-19: Encomendas Estratégicas 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2021
  • Aceito
    26 Maio 2022
  • Publicado
    28 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br