Caracterização da atenção ao paciente com diabetes na atenção primária a partir do PMAQ-AB

Jéssica Muzy Mônica Campos Isabel Emmerick Fernando Genovez de Avelar Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem o objetivo de apresentar uma proposta de compatibilização dos instrumentos utilizados nos três ciclos do PMAQ-AB e analisar as informações de acesso, cobertura, estrutura, organização e oferta de serviços na APS relacionadas ao cuidado para DM no Brasil, segundo regiões, a partir da perspectiva das equipes de saúde da família e dos usuários. Foi realizada uma análise do grau de compatibilidade das questões do PMAQ-AB (2012, 2014 e 2017). Para análise da evolução temporal dos componentes realizou-se teste de diferença de proporção. Calculou-se a diferença percentual entre a perspectiva das Equipes e dos Usuários, por ano analisado, para Brasil. Em geral, houve melhora da qualidade do cuidado e realização de exames, com exceção do pé diabético. Foram encontrados resultados piores para o Norte em relação às demais regiões. Apesar da melhora estrutural e na qualidade da atenção reportada pelas equipes, foram evidenciadas lacunas significativas na qualidade do cuidado ao paciente com DM no SUS. No cenário de investimento escasso e crescente prevalência de DM, os obstáculos tornam-se cada vez mais desafiadores e, por isso, o monitoramento e avaliação da qualidade dos serviços prestados são tarefas precípuas do SUS.

Palavras-chave:
Diabetes Mellitus Tipo 2; Complicações do Diabetes; Atenção Primária à Saúde; Exames Médicos; Qualidade da Assistência à Saúde

Introdução

A prevalência de Diabetes Mellitus (DM) tipo 2 no Brasil era de 9,2% em 2013, variando de 6,3% na região Norte a 12,8% no Sudeste11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120.. Destes, estima-se que aproximadamente metade desconheça ter a doença11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120.,22 Guariguata L, Whiting D, Weil C, Unwin N. The International Diabetes Federation diabetes atlas methodology for estimating global and national prevalence of diabetes in adults. Diabetes Res Clin Pract 2011; 94:322-332.. O crescimento progressivo de pacientes com DM tipo 2 se deve a fatores como envelhecimento, transição nutricional e urbanização. Estudo da International Diabetes Federation estimou que o Brasil tinha a quinta maior população com diabetes (16,8 milhões) em 2019, atrás apenas da China, Índia, Estados Unidos e Paquistão33 International Diabetes Federation (IDF). IDF Diabetes Atlas 2019. 9th edition. IDF; 2019.. Além disso, o DM está entre as doenças que mais causam perda de anos de vida saudável44 GBD 2013 Mortality and Causes of Death Collaborators. Global, regional, and national age-sex specific all-cause and cause-specific mortality for 240 causes of death, 1990-2013: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2013. Lancet 2015; 385:117-171..

Com acesso a serviços de saúde, tratamento adequado, adesão terapêutica e acompanhamento contínuo, pessoas com DM podem ter boa qualidade de vida. Entretanto, quando negligenciada, essa doença pode ocasionar graves complicações transitórias e/ou permanentes, tais como, neuropatia, retinopatia, cegueira, nefropatia, pé diabético e amputações11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120.. Diante disso, o Ministério da saúde estabeleceu em 2013 um protocolo para rastreio e cuidado da pessoa com DM na Atenção Primária à Saúde (APS)55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estratégias para o Cuidado Da Pessoa Com Doença Crônica: Diabetes Mellitus. Brasília: MS; 2013.. Nesse protocolo, elencou-se uma relação de exames clínicos e rotinas assistenciais que, quando adequadamente executadas, permitem a identificação precoce da doença, bem como seu tratamento55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Estratégias para o Cuidado Da Pessoa Com Doença Crônica: Diabetes Mellitus. Brasília: MS; 2013..

É importante ressaltar que, além do ganho em qualidade de vida da população, a adequação da assistência à saúde ao paciente com DM pode evitar custos desnecessários para o Sistema Único de Saúde (SUS)66 Rosa R, Nita ME, Rached R, Donato B, Rahal E. Estimated hospitalizations attributable to Diabetes Mellitus within the public healthcare system in Brazil from 2008 to 2010: study DIAPS 79. Rev Assoc Med Bras 2014; 60:222-230.,77 Saraiva JFK, Hissa MN, Felício JS, Cavalcanti CAJ, Saraiva GL, Piha T, Chacra AR. Diabetes mellitus no Brasil: características clínicas, padrão de tratamento e custos associados ao cuidado da doença. J Bras Econ Saude 2016; 8:80-90..

O monitoramento e avaliação da adequação da atenção ao paciente com diabetes são essenciais para evitar o agravamento da doença e óbitos. Sabe-se que, assim como a prevalência, o cuidado ao paciente com diabetes apresenta ampla variação no território nacional11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120.. Conhecer as lacunas no sistema de saúde permite a avaliação e reformulação de políticas públicas e estratégias para enfrentamento do problema do DM, especialmente num país de dimensões continentais como o Brasil. No entanto, é fundamental a manutenção deste monitoramento, uma vez que identifica pontos de otimização na política de assistência à saúde.

O Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) foi instituído em 2011 com o objetivo de ampliar o acesso e melhorar a qualidade da APS, garantindo um padrão de qualidade no país e maior transparência e efetividade das ações governamentais88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.654, de 19 de julho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e o Incentivo Financeiro do PMAQ-AB, denominado Componente de Qualidade do Piso de Atenção Básica Variável - PAB Variável. Diário Oficial da União 2011; 20 jul.. Os três ciclos disponíveis (2012, 2014 e 2017) apresentam importantes informações relacionadas ao DM. Apesar de sua relevância, ressalta-se que ao longo dos ciclos algumas questões foram modificadas, dificultando a continuidade do monitoramento.

Destaca-se que no contexto brasileiro ainda se utiliza a expressão “atenção básica” em iniciativas adotadas pelo governo, na composição de abreviaturas de ampla utilização, tais como PMAQ-AB, PNAB, SIAB, que de outra forma ficariam incompreensíveis. Entretanto, adotamos o termo “Atenção Primária à Saúde”, que aquele vigente na literatura internacional99 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Paris: UNESCO; 2002..

Este artigo tem o objetivo de apresentar uma proposta de compatibilização dos instrumentos utilizados nos três ciclos do PMAQ-AB e analisar as informações de acesso, cobertura, estrutura, organização e oferta de serviços na APS relacionadas ao cuidado para DM no Brasil, segundo regiões, a partir da perspectiva das equipes de saúde da família e dos usuários.

Materiais e métodos

Foram utilizados como fonte dos dados os instrumentos de avaliação externa do PMAQ-AB dos ciclos de 2012, 2014 e 2017. De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), em 2012 foram contabilizadas 43.947 Unidades Básicas de Saúde (UBS) no país, entretanto, o banco de dados do ciclo 1 contou com 38.812 UBS, 88,3% do previsto1010 Mendes LV, Campos MR, Chaves GC, Silva RM, Freitas OS, Costa KS, Luiza VL. Disponibilidade de medicamentos nas unidades básicas de saúde e fatores relacionados: uma abordagem transversal. Saude Debate 2014; 38(n. esp.):109-123.. Nos ciclos 2 e 3 foram aferidas 24.055 UBS (62% do quantitativo de 2012) e 30.346 (78,2%), respectivamente. Foram utilizados os Módulos II, dirigido às equipes de saúde da família, e Módulo III aos usuários das UBS.

Compatibilização de Questões

Os instrumentos do PMAQ-AB sofreram alterações no período analisado. Ao comparar o ciclo 1 (2012) com os ciclos 2 (2014) e 3 (2017) nota-se que algumas perguntas foram acrescidas, suprimidas ou modificadas, tornando necessária à sua compatibilização, com uma detalhada descrição dos critérios adotados.

Foram utilizados alguns recursos de compatibilização entre os anos para garantir a maior comparabilidade possível, com o mínimo de perda de informações, conforme descrito a seguir: (a) Uso de perguntas com sinônimos ou perguntas similares, sem alteração de sentido, ou com pequenas mudanças; (b) Uso de perguntas com tipo de resposta diferente (mudança de resposta única para resposta múltipla, ou de resposta categórica para contínua); (c) Uso de categorias de resposta complementares (quando em um ano a pergunta é feita no sentido positivo e em outros, no negativo); e, (d) Uso de perguntas proxy do constructo aferido (quando as perguntas se referiam ao mesmo conceito ou a um conceito similar, mesmo que a população alvo seja diferente).

Na análise das perguntas compatibilizadas, realizou-se uma classificação quanto ao grau de comparabilidade das mesmas, sendo eles: (1) Total: Quando a formulação da pergunta é exatamente a mesma; (2) Alto: Quando há pequenas alterações na forma de perguntar, mas não alterando seu sentido (como quando se utiliza sinônimos ou compatibiliza categorias de resposta similares/complementares); e, (3) Médio: Quando há alterações significativas na forma de perguntar, mas ainda é possível comparar (quando os termos utilizados não são sinônimos, mas se referem a um mesmo conceito/objeto de análise, ou quando se refere a um grupo populacional diferente). Perguntas com comparabilidade baixa, que exigem maior esforço para aproximação de conceitos ou objeto investigado foram excluídas da análise. Algumas perguntas foram mantidas mesmo estando disponíveis para apenas um ou dois anos, dada a sua relevância para o tema.

As compatibilizações realizadas no Módulo II (equipes) foram descritas no Quadro 1 e as referentes ao Módulo III (usuários), encontram-se no Quadro 2. Nestes quadros pode-se observar a identificação da pergunta no presente artigo, caracterizada por “QE” (Questão Equipe) ou “QU” (Questão Usuário), seguida da variável original utilizada na compatibilização, a categoria ou categorias de resposta utilizadas e o grau de comparabilidade, segundo critérios definidos anteriormente.

Quadro 1
Compatibilização das perguntas do módulo 2 (Equipes de Saúde da Família) do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), entre os anos 2012, 2014 e 2017.
Quadro 2
Compatibilização das perguntas do módulo 3 (usuários) do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), entre os anos 2012, 2014 e 2017.

Análise

A partir da compatibilização foram estimados os respectivos percentuais de resposta para cada questão, tanto do Módulo II - Equipe (Tabela 1) como para o Módulo III - Usuário (Tabela 2). Para ambos, realizou-se testes de diferença de proporção entre os anos de 2012, 2014 e 2017 para Brasil, com nível de significância de 5%.

Tabela 1
Cobertura, estrutura e organização e oferta de serviços na Atenção Primária à Saúde, relacionados ao cuidado para Diabetes Mellitus, segundo regiões. Brasil, 2012, 2014 e 2017.
Tabela 2
Aspectos demográficos e socioeconômicos dos usuários e informações de acesso, estrutura e adequação de serviços na Atenção Primária à Saúde relacionados ao cuidado para Diabetes Mellitus, segundo regiões. Brasil, 2012, 2014 e 2017.

As perguntas passíveis de pareamento e comparação entre os módulos de Equipe e Usuários encontram-se apresentadas na Tabela 3, de modo a facilitar a análise. Adicionalmente, para esta última tabela, calculou-se a diferença percentual entre a perspectiva das Equipes e dos Usuários, para cada ano analisado, somente para Brasil.

Tabela 3
Comparação entre questões compatíveis do Módulo II (Equipes) e Módulo III (usuários), nos ciclos 1, 2 e 3 do PMAQ AB, segundo regiões. Brasil, 2012, 2014 e 2017.

As análises foram realizadas no pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 21.

Resultados

No Módulo 2 (Equipes) das 28 questões selecionadas, apenas 4 mantiveram-se sem alterações ao longo dos ciclos. A maioria das questões (17) tiveram alta compatibilidade e ara 6 questões encontrou-se alterações significativas, mas ainda foi possível compará-las utilizando-se uma aproximação conceitual ou proxy. A pergunta QE16 sobre a oferta ações educativas e de promoção da saúde para prevenção e tratamento de DM foi descontinuada após 2012. Outras questões desse módulo, como QE05, QU06, QE11, QE17, QE19, QE20, QE27 e QE28, estavam indisponíveis para um dos anos (Quadro 1).

No Módulo 3 (Usuários), das 26 perguntas selecionadas, metade não sofreu alterações entre os ciclos, 11 tiveram pequenas modificações, mantendo a alta comparabilidade e duas questões foram descontinuadas a partir de 2012 (QU16 e QU17). Diversas questões desse módulo também foram excluídas em um dos ciclos, sendo elas QU04, QU08, QU09, QU10, QU11, QU12, QU14, QU15, QU24 e QU26 (Quadro 2).

Na Tabela 1 apresenta-se a caracterização da cobertura, estrutura, organização e oferta de serviços na APS segundo as equipes. Quanto à cobertura (QE01), verificou-se que o percentual de equipes que apontaram ter população descoberta pela AB no entorno do território de abrangência pouco mudou entre 2012 e 2017, chegando a 34,4% no último ano. Regiões como Norte (52%) e Centro-Oeste (55%) apresentaram percentuais mais elevados. Observou-se grande avanço na implementação de prontuário eletrônico (QE02), especialmente no Norte e Nordeste que passaram de 3,5% e 1,3% das unidades com prontuário em 2012 para 12,0% e 8,5% em 2017.

Ainda em relação à estrutura das unidades, quase todas as equipes reportaram em todos os anos que os usuários que chegam à UBS espontaneamente buscando atendimento têm suas necessidades escutadas e avaliadas (QE03). A proporção de equipes que diz realizar atendimento de urgência e emergência (QE04) aumentou no período em todas as regiões.

Em 2017 apenas a região Norte (86,1%) ainda não estava próxima dos 100%. Desde 2012, quase todas as equipes diziam que suas respectivas unidades contavam com uma central de marcação de exames (QE05). Em relação à proporção de equipes que reportam ter reserva de vagas quando necessário (QE06), programação de consultas e ações para usuários de programas ou grupos prioritários que necessitem de cuidado continuado (QE07) e para usuários com diabetes (QE08), estas ficaram em torno de 90% em todos os anos.

Em relação atenção, a proporção de equipes que diz renovar receitas para os usuários de cuidado continuado/de programas como hipertensão e diabetes, sem a necessidade de marcação (QE09) aumentou em todas as regiões no período analisado, chegando a 94,3% em 2017. Em 2012, entre 32,5% (Centro-Oeste) e 56,2% (Sudeste) das equipes relataram que as unidades dispunham de protocolos para a priorização dos casos que precisavam de encaminhamento (QE10). Em 2014 esse percentual quase dobra na maioria das regiões e em 2017, praticamente atinge a totalidade.

Quanto à existência de protocolos específicos para pacientes com diabetes (QE11), em 2012 aproximadamente 70% das unidades do país o tinham. Em 2017, 90%, com exceção da região Norte (75%). Em 2012 já se fazia uso de ficha de cadastro ou acompanhamento de pessoas com DM (QE12), em praticamente todas as unidades (92,8% no Brasil). Em 2014 este indicador fica abaixo de 90% para todas as regiões, e retorna ao patamar inicial em 2017.

O percentual de equipes que possui registro de pessoas com DM com maior risco/gravidade (QE13) no país passou de 52% em 2012 para 80% em 2017. Apesar de ter aumentado, a região Norte (69,4%) destaca-se negativamente, reportando cerca de 10 pontos percentuais a menos em relação ao observado no nível nacional. A programação de consultas e exames de pessoas com DM (QE14) apresentou crescimento gradual entre os anos para todas as regiões, atingindo 89,1% no país em 2017. A coordenação de fila de espera e acompanhamento dos usuários com DM (QE15) era feita por cerca de metade das equipes em 2012, valor que praticamente dobra no país em 2017, chegando a 80,9%.

Quanto ao suporte e rastreamento das pessoas com diabetes, o percentual de equipes que ofertava ações educativas, de promoção, prevenção e tratamento de DM (QE16) era de 89,5% em 2012 no país. A proporção de realização de grupos de apoio (QE17) aumentou significativamente entre os anos em todas as regiões, chegando a 71,5% no país. Apesar disso, mesmo no último ano a região Norte apresentou 60% de realização, abaixo da medida nacional. A programação de visitas dos ACS (QE18) foi reportada pelas equipes para grande parte das unidades em 2012 e aumenta progressivamente, chegando a quase 100% em 2017. Já a programação de visitas dos ACS para pacientes com diabetes faltosos (QE19) que ocorria em 88% das equipes, diminuiu para 73% em 2014, sendo menos acentuada nas regiões Norte e Centro-Oeste. Apesar do crescimento, a proporção de equipes que realizam o agendamento das consultas para pessoas com DM em qualquer dia da semana e horário (QE20) permanece baixa, 60% no Brasil. Nas regiões Norte (49%) e Nordeste (51,4%) esse valor é ainda inferior.

Em relação aos exames indicados para pessoas com diabetes, as equipes em quase sua totalidade reportaram que solicitam e realizam os exames de creatinina (QE21), perfil lipídico (QE22), eletrocardiograma (QE23), hemoglobina glicosilada (QE24), glicemia de jejum (QE25) e urina (QE26), em todos os anos investigados. A proporção de equipes que reportaram realizar exame do pé diabético cresceu significativamente entre os anos, em todas as regiões, passando em média de 57,8% para 80,1%. A proporção de realização de exame de fundo de olho (QE28), apesar de continuar baixa, cresceu nas regiões Norte e Nordeste, chegando a 29% e 38,6% em 2017, enquanto as demais regiões apresentaram diminuição nesse percentual. Em 2017 a realização de exame de fundo de olho segundo as equipes era de 32,9% no país.

A Tabela 2 descreve aspectos demográficos, socioeconômicos dos usuários e informações de acesso, estrutura e adequação de serviços na APS relacionados ao cuidado para Diabetes Mellitus. Verificou-se que cerca de 80% dos usuários respondentes são do sexo feminino (QU01). Os idosos (QU02) somam aproximadamente 22% dos respondentes, variando de 15% nas regiões Norte e Nordeste a quase 30% no Sul e Sudeste.

A proporção de entrevistados que sabem ler e escrever (QU03) aumentou gradualmente no período analisado, passando de 84,8% para 94,6% no Brasil. Até 2014, 1/3 dos respondentes possuíam trabalho remunerado (QU04) no país, sendo este percentual mais alto no Sul (44,1%). Em 2012, a proporção de entrevistados que era beneficiária do Programa Bolsa-Família (QU05) caiu para todas as regiões em 2014 (31,6% no Brasil) e se manteve em 2017.

Ao analisar o acesso ao serviço de saúde, verificou-se que entre 2012 e 2017, no Brasil, mais de 80% dos entrevistados reportava residir próximo à unidade de saúde (QU06). Em todos os anos investigados, aproximadamente metade dos entrevistados disse que normalmente consegue marcar consulta para o mesmo dia (QU07), com exceção da região Sudeste (28,4% em 2017). A proporção de usuários que dizia conseguir ser escutado quando vai à unidade de saúde mesmo sem marcar (QU08) era de 66,5% em 2012 e passou para 74,3% em 2017.

Em 2012, o percentual de usuários que relatou que as orientações recebidas pelos profissionais sempre atendem às suas necessidades (QU09) era de 52% no país, sendo inferior nas regiões Norte (42,5%) e Centro-Oeste (45,9%). Esse percentual aumentou em 2014, ficando acima de 80% em todas as regiões exceto no Norte (75,3%). Em 2014, mais de 87% dos usuários achavam que a equipe buscava resolver suas necessidades na própria unidade (QU10). No país, 63% procuraram atendimento na última vez que tiveram problema de saúde que consideraram de urgência (QU11). Na região Norte esse percentual foi inferior, sendo 56% em 2017 e na região Sul foi superior (70%).

Em relação à estrutura e adequação da atenção, quase todos os respondentes acharam que o consultório para o atendimento é um lugar reservado com privacidade (QU12) (94,6%). A proporção de usuários que relatou que os profissionais faziam exame físico nas consultas (QU13) passou de 74% em 2012 para 69,2% no país. A maior diminuição aconteceu nas regiões Sudeste e Sul que passaram de 78,9% e 76,4% em 2012 para 69,9% e 70% em 2017, respectivamente. Sobre o recebimento de orientações sobre os cuidados para sua recuperação (QU14), foi reportado por 73% dos entrevistados em 2014. O percentual dos que apontaram sempre terem recebido orientações da equipe sobre os sinais que indicam melhora ou piora (QU15) foi similar (67,7% em 2014).

Quase todos os entrevistados (95,3%) declararam que nas consultas os profissionais fazem anotações em seus prontuários ou fichas (QU16). Apenas metade (50,3%) deles disse que os profissionais se lembravam do que aconteceu nas suas últimas consultas (QU17) em 2012.

Apesar de continuar baixo, o percentual que disse ter facilidade para falar com os profissionais que o atenderam (QU18) aumentou, passando de 46,1% em 2012 para 54,3% em 2017. Em 2012, apenas 25% dos usuários disseram que os profissionais os o procuraram para saber o que aconteceu e retomar o atendimento, quando estes interromperam o tratamento ou faltaram consultas (QU19). Em 2014 há uma leve queda em todas as regiões, mas em 2017 o valor praticamente dobra, chegando a 51,6% no país.

Foi constatado que a proporção de pacientes com DM (QU20) variou de 9,4% (Norte e Nordeste) a 16,5% (Sudeste) em 2017, sem grande variação em relação aos anos anteriores. Quanto aos aspectos específicos da atenção ao paciente com diabetes, verificou-se em 2012 quase 90% dos usuários disseram ter se consultado com médico por causa da diabetes nos últimos seis meses (QU21). Em 2014 há um pequeno decréscimo nessa proporção, passando para 83% no Brasil e voltando a crescer em 2017 (86,4%).

A proporção de pessoas com diabetes que fizeram exame de sangue nos últimos seis meses (QU22) foi de aproximadamente 90% em todo o período. Apesar de ter aumentado, a realização do exame dos pés nos últimos seis meses (QU23) foi de menos de 35% no país em 2017. A região Norte destaca-se negativamente com apenas 25,3% de realização deste exame mesmo no último ano. Menos da metade dos usuários relatou ter recebido orientações dos profissionais sobre o cuidado com os pés nos últimos seis meses (QU24). O percentual de usuários que relatou já sair do atendimento com a próxima consulta marcada foi de 34,6% em 2012, caindo para 28,3% em 2014 e subindo para 39% em 2017. Entre as regiões, o Sul apresentou percentual mais baixo nesse último ano, com 31,2% e Norte e Nordeste os mais altos, 39,6% e 46,7%, respectivamente. O uso de medicamento para diabetes ficou em torno de 90% para todo o período.

A análise comparativa entre a perspectiva das equipes e usuários aponta que a percepção dos usuários e das equipes em relação à escuta e prestação de orientações melhorou entre 2012 e 2017, reduzindo consideravelmente a diferença entre eles. A perspectiva das equipes sobre a prestação de atendimento de urgência melhorou entre 2012 e 2017, porém não há variação na percepção dos usuários, o que faz com que a diferença entre eles aumente (Tabela 3).

Quanto à programação de consultas e ações para usuários com DM, não se observou importante variação entre os grupos e a diferença entre as perspectivas se mantém alta, sendo superior a 50%. Sobre a busca ativa dos usuários quando há interrupção do tratamento ou falta da consulta, encontrou-se a maior diferença entre as perspectivas, a despeito da diminuição do reportado pela equipe de 2012 para 2014 e do relato dos usuários ter praticamente dobrado entre 2012 e 2017 em todas as regiões.

A pergunta que teve menor variação entre equipe e usuário e em todos os anos foi sobre a realização de exame de glicemia em jejum. Há uma variação de cerca de 10% entre as equipes e usuários na realização do exame de glicemia, embora todos os valores encontrados sejam altos (acima de 87%). Quanto ao exame do pé diabético, a perspectiva das equipes sobre a sua realização melhorou entre 2012 e 2017, porém não houve variação na percepção dos usuários, o que faz com que a diferença entre ambos aumente

Discussão

A APS constitui uma relevante ferramenta de organização do acesso aos serviços no sistema de saúde. O monitoramento e avaliação do processo de implantação da APS tem sido a aposta para a melhoria do cuidado de saúde prestado em todo o mundo. As ações de prevenção e promoção da saúde são as premissas responsáveis por sua efetividade na orientação do fluxo de cuidado99 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Paris: UNESCO; 2002.. Neste estudo, não foram encontradas variações consideráveis para a cobertura da APS nos três ciclos do PMAQ. Entretanto, como apontado por Kovacs et al.1111 Kovacs R, Kristensen SR, Costa DRT, Gomes LB, Gurgel Junior GD, Sampaio J, Powell-Jackson T. Socioeconomic inequalities in the quality of primary care under Brazil's national pay-for-performance programme: a longitudinal study of family health teams. Lancet Glob Health 2021; 9(3):e331-e339., com o passar dos ciclos, há uma melhoria do score do PMAQ nas áreas geográficas com menor nível econômico, apontando para a relevância da implementação do programa para diminuição da desigualdade na saúde. Na perspectiva dos usuários, em geral, verificou-se melhora na estrutura das unidades de saúde e na adequação da atenção aos pacientes.

Os achados desse artigo vão ao encontro do observado em estudos que apontam maior número de equipes nas regiões Nordeste e Sudeste, e menor na Norte1212 Salazar BA, Campos MR, Luiza VL. A Carteira de Serviços de Saúde do Município do Rio de Janeiro e as ações em saúde na Atenção Primária no Brasil. Cien Saude Colet 2017; 22(3):783-796.. De modo geral, a região Norte destacou-se negativamente em relação às demais quanto ao acesso, estrutura e adequação da atenção à saúde.

Frente à importância da APS e as diferenças regionais, torna-se fundamental a priorização do cuidado em saúde no que concerne a promoção e prevenção, em especial, ao paciente com DM, em virtude da alta prevalência e das consequentes complicações em detrimento a ausência ou inadequado cuidado. Apesar disso, observou-se que somente 50% dos usuários que disseram que os profissionais os procuraram quando estes interromperam o tratamento ou faltaram consultas.

É importante a orientação adequada, os fluxos assistenciais bem delimitados. Assim, a organização do fluxo de cuidado por intermédio da APS permite poupar os finitos recursos na área da saúde, uma vez que o custo de prevenção é bem menor frente ao tratamento e ocasionalmente as complicações provocadas pela doença e consequentes necessidade de re-internações66 Rosa R, Nita ME, Rached R, Donato B, Rahal E. Estimated hospitalizations attributable to Diabetes Mellitus within the public healthcare system in Brazil from 2008 to 2010: study DIAPS 79. Rev Assoc Med Bras 2014; 60:222-230.. Ressalta-se que os custos não se limitam ao financeiro, estes refletem também um impacto social considerável, bem como denota uma percepção por parte do usuário de baixa qualidade de serviço prestado.

No cuidado dos pacientes com diabetes, a realização de exames periódicos é fundamental na prevenção de agravos decorrentes da enfermidade. O acompanhamento do paciente, assim como preconizado no protocolo de DM no país, constitui-se uma estratégia financeiramente mais sustentável, pois espera-se um custo mais elevado do tratamento para os indivíduos que vivem há mais tempo com a doença ou que desenvolveram complicações, pela maior demanda por medicamentos e frequência da realização de exames1313 Rosa MQM, Rosa RDS, Correia MG, Araujo DV, Bahia LR, Toscano CM. Disease and Economic Burden of Hospitalizations Attributable to Diabetes Mellitus and Its Complications: A Nationwide Study in Brazil. Int J Environ Res Public Health 2018; 15(2):294.

14 Ferreira JBB, Borges MJG, Santos LL, Forster AC. Internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde em uma região de saúde paulista, 2008 a 2010. Epidemiol Serv Saude 2014; 23:45-56.
-1515 Saraiva JFK, Hissa MN, Felício JS, Cavalcanti CAJ, Saraiva GL, Piha T, Chacra AR. Diabetes mellitus no Brasil: características clínicas, padrão de tratamento e custos associados ao cuidado da doença. J Bras Econ Saude 2016; 8:80-90.. Assim como observado por Muzy et al.11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120., verificou-se para exames preconizados para o paciente com diabetes, uma demanda superior à oferta.

A realização do exame do pé diabético cresceu consideravelmente entre os anos, segundo as equipes. Entretanto, esse resultado não se confirma na perspectiva dos usuários, que reportaram a realização do exame em apenas 1/3 da população em 2017. Menos da metade dos usuários relatou sequer terem recebido orientações dos profissionais sobre o cuidado com os pés. A baixa realização do exame dos pés também foi reportada em outros estudos, nos quais apontou-se para a possível associação com a maior incidência de feridas nos pés e amputações11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120.,1616 Fernandes FCGM, Santos EGO, Morais JFG, Medeiros LMF, Barbosa IR. O cuidado com os pés e a prevenção da úlcera em pacientes diabéticos no Brasil. Cad Saude Colet 2020; 28(2):302-310.. Com isso, torna-se ainda mais grave a falta de ferramentas de monitoramento contínuo da realização do exame, diante da sua relevância e do baixo custo de execução.

A realização de exame de fundo de olho pelas equipes continuou baixa, chegando a 32,9% no país em 2017. A literatura aponta que há uma demanda maior que a oferta de serviços de acompanhamento para os pacientes com diabetes, tal como a insuficiente realização de exame de fundo de olho (40%), com ampla variação regional (Norte 25% - Sudeste 52%), refletindo-se em uma alta prevalência de retinopatia11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120.,1717 Galvão FM, Silva YP, Resende MIL, Barbosa FR, Martins TA, Carneiro LB. Prevalência e fatores de risco para retinopatia diabética em pacientes diabéticos atendidos por demanda espontânea: um estudo transversal. Rev Bras Oftalmol 2021; 80(3):e0006.. Destaca-se ainda o baixo ou nenhum conhecimento sobre essa complicação entre os usuários do SUS1818 Hirakawa TH, Costa WC, Nakahima F, Ferreira AIC, Ribeiro LB, Ticianeli JG, Sequeira BJ. Knowledge of diabetic patients users of the Health Unic System about diabetic retinopathy. Rev Bras Oftalmol 2019; 78(2):107-111..

Ainda que o exame de hemoglobina glicada seja um dos exames essenciais para pessoas com diabetes1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Portal da Secretaria de Atenção Primária a Saúde [Internet]. 2021 [acessado 18 mar 2020]. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/noticia/11777.
https://aps.saude.gov.br/noticia/11777...
, somente 70% dos indivíduos relataram que o fizeram no último ano. Nota-se que, mais da metade dos pacientes diagnosticados com diabetes apresentou alterações nos exames, indicando que a doença não estava controlada11 Muzy J, Campos MR, Emmerick I, Silva RS, Schramm JMA. Prevalência de Diabetes Mellitus e suas complicações e caracterização das lacunas na atenção à saúde a partir da triangulação de pesquisas. Cad Saude Publica 2021; 37:e00076120. e evidenciando problemas no rastreio e monitoramento. As deficiências na atenção à saúde do paciente com diabetes levam à maior morbidade, internações (15%) e idas a emergências (27% - PMAQ). A realização dos exames de monitoramento do cuidado ao paciente com DM é atividade precípua da APS, e fundamentais para reduzir a carga do DM e suas complicações crônicas.

A busca de atendimento em emergência e urgência constitui um importante indicador de qualidade de serviço, bem como de acesso a medicamentos e adesão a terapia medicamentosa. Os achados apontam um aumento da busca por serviços de urgência e emergência, indicando potenciais problemas no processo de cuidado. Neste sentido, o aumento da busca por atendimento emergencial pode ser utilizado como um evento sentinela e viabilizar a inferência sobre outros indicadores importantes a serem monitorizados, visando compreender os entraves no fluxo do cuidado que tenham impacto sobre a qualidade da APS2020 Chaves LA, Santos DMSS, Campos MR, Luiza VL. Use of health outcome and health service utilization indicators as an outcome of access to medicines in Brazil: perspectives from a literature review. Public Health Rev 2019; 40:5..

A consulta médica é um momento de encontro com o profissional de saúde e abrange as atividades de aferição de parâmetros clínicos de baixa complexidade, acompanhamento nutricional, orientação e verificação a adesão terapêutica e avaliação do tratamento medicamentoso e ajustes de prescrição. Apesar do aumento no período investigado, o percentual de usuários que relatou já sair do atendimento com a próxima consulta ainda era baixo em 2017 (39%). Ressalta-se que a boa organização da atenção e a continuidade do cuidado podem refletir uma melhoria do acesso a medicamentos e tratamento2121 Ferreira MSM. Assistência ao idoso na atenção básica: um estudo do programa academia da saúde, com evidências do PMAQ-AB 2012 e 2014 [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2018. e no controle glicêmico2222 Maeyama MA, Pollheim LCF, Wippel M, Machado C, Veiga MV. Aspectos relacionados à dificuldade do controle glicêmico em pacientes com Diabetes Mellitus tipo 2 na Atenção Básica. Braz J Dev 2020; 6(7):47352-47369., principalmente no contexto de doenças crônicas. Destaca-se que a renovação de receitas não necessariamente reflete otimização do cuidado, outrossim pode indicar que há uma fragilidade do sistema de saúde, apontando para um acompanhamento não adequado.

De modo geral, este estudo evidencia o descompasso entre o aumento da prevalência de DM, e a rede serviços necessários ao acompanhamento do paciente com DM. Não foi observada uma melhora tão considerável nos indicadores dos usuários, quando comparamos às equipes. Ao analisar as perguntas compatíveis entre os grupos, vê-se que a diferença entre a perspectiva da equipe e do usuário é mantida, se reduz muito pouco ou até aumenta. Apesar de uma melhora no acesso e estrutura aos serviços de saúde, isso pouco se refletiu na atenção específica ao paciente com diabetes. Em geral os indicadores que melhoraram para esse grupo são os que já estavam em níveis aceitáveis. O menor acesso a serviços e estrutura nas regiões Norte e Nordeste podem ser refletidos na baixa proporção de pacientes com DM, o que evidencia falhas no rastreio e consequentemente, na adequação da atenção.

No cenário retratado a situação já era preocupante, mas espera-se ainda uma piora com o iminente aumento da prevalência de pessoas com diabetes e com a amplificação das lacunas na assistência à saúde, potencializadas pelo desfinanciamento do SUS. Há ainda o agravante da pandemia de COVID-19 a partir de 20192323 Werneck GL, Carvalho MS. A pandemia de COVID-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cad Saude Publica 2020; 36:e00068820., que pode ter levado ao abandono do tratamento, à menor frequência de exames e consultas médicas2424 Malta DC, Gomes CS, Silva AGD, Cardoso LSM, Barros MBA, Lima MG, Souza Junior PRB, Szwarcwald CL. Uso dos serviços de saúde e adesão ao distanciamento social por adultos com doenças crônicas na pandemia de COVID-19, Brasil, 2020. Cien Saude Colet 2021; 26(7):2833-2842. e mudanças no estilo de vida2525 Malta DC, Gomes CS, Barros MBA, Lima MG, Almeida WDS, Sá ACMGN, Prates EJS, Machado ÍE, Silva DRPD, Werneck AO, Damacena GN, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, Montilla DER, Szwarcwald CL. Doenças crônicas não transmissíveis e mudanças nos estilos de vida durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2021; 24:e210009. entre pessoas com doenças crônicas.

No contexto da pandemia de COVID-19, com o número avassalador de casos e a crise no sistema de Saúde, a APS tem papel fundamental no controle da curva de crescimento da pandemia e para a garantia de suficiência de leitos de UTI e um caminho alternativo mais seguro e eficiente para o enfrentamento da pandemia, visando prevenir o colapso do sistema de saúde2626 Avelar FG, Emmerick ICM, Muzy J, Campos MR. Complicações da COVID-19: desdobramentos para o Sistema Único de Saúde. Physis 2021; 31(01):e310133.. Quanto mais tempo demorar a transmissão pessoa a pessoa, mais administrável será a situação pelo SUS2727 Campos MR, Schramm JMA, Emmerick ICM, Rodrigues JM, Avelar FG, Pimentel TG. Burden of disease from COVID-19 and its acute and chronic complications: reflections on measurement (DALYs) and prospects for the Brazilian Unified National Health System. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00148920.. Considerando os pacientes com DM, esse acompanhamento faz-se ainda mais relevante visto que há características bioquímicas e o risco adicional que esta doença pode determinar para a progressão de COVID-192828 Maddaloni E, Buzzetti R. Covid-19 and diabetes mellitus: unveiling the interaction of two pandemics. Diabetes Metab Res Rev 2020; 36(7):e33213321.. Pacientes com COVID-19 que têm diabetes têm risco duas vezes maior de desenvolver doença grave. Da mesma forma, esses pacientes também apresentam risco quase duas vezes maior de mortalidade devido à doença COVID-192929 Kumar A, Arora A, Sharma P, Anikhindi SA, Bansal N, Singla V, Khare S, Srivastava A. Is diabetes mellitus associated with mortality and severity of COVID-19? A meta-analysis. Diabetes Metab Syndr 2020; 14(4):535-545..

O escopo desse artigo não abarca a saúde suplementar, ou ainda os indivíduos que não estão sendo acompanhados por nenhum serviço de saúde. Os dados aqui apresentados refletem a atenção à pessoa com diabetes já inserida no serviço público. Destaca-se que mesmo tratando-se apenas de pessoas que já tiveram acesso ao diagnóstico as condições do acompanhamento não são ideais, especialmente quando comparadas as perspectivas do usuário e as equipes da APS.

Considerando os três ciclos do PMAQ-AB, é importante ressaltar que em 2012, pode ter havido um viés de participação voluntária, pois apenas as unidades que se consideraram melhor avaliadas aderiram ao processo de avaliação externa, culminando em melhores resultados na perspectiva das equipes. No segundo ciclo, em 2014, houve uma reformulação importante na construção do instrumento, com a exclusão dos módulos específicos sobre doenças crônicas, o que acarretou uma perda de continuidade das pesquisas. Já em 2017 houve um resgate do instrumento de 2012 referente a esses módulos específicos, bem como uma ampliação de cobertura das equipes, se aproximado da totalidade do cadastro.

Por fim, é lamentável a perda do PMAQ-AB, que até então era a única ferramenta do SUS de monitoramento de alguns serviços preconizados no protocolo de atenção ao paciente com diabetes, como o caso do exame do pé diabético. Vale ressaltar ainda que a perda de perguntas essenciais em alguns anos ou mesmo a incompatibilidade devido a alterações nos instrumentos reduzem a longitudinalidade das comparações. Apesar disso, a partir dos dados do PMAQ-AB, este estudo evidenciou diferenças regionais entre as perspectivas de equipes e usuários e entre os anos, o que reforça as potencialidades e a relevância da produção contínua dessas informações.

Considerações finais

Apesar da melhora estrutural e na qualidade da atenção reportada pelas equipes, há uma distância importante entre esta perspectiva e a dos usuários. É possível que o usuário não perceba ou compreenda tão claramente a prestação do serviço pela equipe ou que a equipe reporte prestar um atendimento melhor do que o foi entregue de fato. Apesar disso, as divergências aqui apresentadas mostram-se importantes e merecem atenção, pois evidenciam lacunas significativas na qualidade do cuidado ao paciente com DM no SUS.

O cenário atual da saúde no Brasil é desafiador, o evento da pandemia de COVID-19 que se iniciou em 2019, apresenta-se como mais um fator complicador neste contexto de investimento cada vez mais restrito no campo da saúde. Frente a todos os desafios já relatados pela APS no que concerne ao tratamento ao paciente que vive com DM, a atual situação sanitária nos defronta particularmente com obstáculos cada vez mais desafiadores.

Sob esta perspectiva de crise e constrangimentos na saúde é importante ressaltar que a atual situação pandémica que o mundo atravessar nos permite identificar pontos de sujeições em que o sistema de saúde e outras estruturas de apoio a ele vinculadas terão que se deparar para o seu efetivo enfrentamento.

Vale lembrar que, os problemas, outrora já existentes, não deixam de se manifestar e nem o impedimento de novos surgirem, de maneira que se faz fundamental a ideia de reconhecimento de fragilidades e ações de suporte ao sistema vigente, de maneira a tentar dar resposta aos problemas antigos e novos.

O cenário apresentado em 2012, apesar de não ser ideal, deu-se num contexto de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Com a crescente prevalência de DM e redução no investimento em saúde pública, é precípuo refletir sobre o cuidado da pessoa com diabetes nos próximos anos. Assim, o atual cenário pandêmico exacerba condições de saúde antes já fragilizadas e consequentemente causa maiores discrepâncias a resolução de problemas e garantia de acesso e qualidade de serviços de saúde.

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (PPGSP/ENSP/Fiocruz) pelo apoio financeiro para a publicação deste artigo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2021
  • Aceito
    11 Maio 2022
  • Publicado
    13 Maio 2022
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