Camargo MTLA. Medicina popular nas caatingas do Geopark Araripe Ceará. São José dos Campos: CECP, FCCR; 2019.

Rodolfo Franco Puttini Sobre o autor
2019

“Medicina popular” é um tema que se aproxima do conceito de “cultura popular”, multifacetado e polissêmico11 Bosi A. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In: Bosi A. Dialética da colonização. São Paulo, Cia. das Letras; 1983. p. 308-345.. Por isso, ambos os termos assumem denominações diversas, também no campo da saúde. Por exemplo, para a Organização Mundial de Saúde (OMS) o significado do termo “medicina popular” está identificado pelo termo “medicinas tradicionais”, utilizado para orientações de políticas públicas mundiais22 Organización Mundial de la Salud (OMS). Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2014-2023 [Internet]. 2013 [acesso 2021 mar 24]. Disponible en: https://www.who.int/medicines/publications/traditional/trm_strategy14_23/en/.
https://www.who.int/medicines/publicatio...
. Na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) o tema se encontra desenvolvido com outra denominação, “Educação Popular”, que tem sido utilizado pelo grupo temático “Educação Popular em Saúde” (EPS), ajustando-se e justificando-se a constituição “de um campo de conhecimentos, saberes e práticas, permeado pela escuta, pelo diálogo e pela ação”33 Lima LO, Silva MRF, Cruz PJSC, Pekelman R, Pulga VL, Dantas VLA. Perspectivas da Educação Popular em Saúde e de seu Grupo Temático na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Cien Saude Colet 2020; 25(7):2737..

No entanto, a controvérsia maior está colocada no campo científico da saúde, especialmente quanto aos aspectos científicos ou não-científicos das práticas de cura resultantes da medicina popular.

No campo científico da Saúde Coletiva no Brasil, a inclusão indireta da controvérsia da medicina popular tem sido incorporada pelos estudos, pesquisas e aplicações das políticas das práticas terapêuticas alternativas, complementares e integrativas, estruturadas e incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), desde 2015 pela Política Nacional de Práticas Alternativas e Complementares (PNPIC). As práticas terapêuticas alternativas e integrativas estão organizadas atualmente no PNPIC por diretrizes, que orientam a aplicação para os serviços públicos de saúde na Atenção Básica44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política nacional de práticas integrativas e complementares no SUS: atitude de ampliação de acesso. 2ª ed. Brasília: MS; 2015..

É preciso voltar ao tempo e perceber uma das raízes que desvaloriza o uso do termo “medicina popular” no atual contexto das práticas terapêuticas alternativas e integrativas (PNPIC) - diante do progresso das biotecnologias médicas na prática da saúde ao longo do século XX, seja pela atuação em saúde pública no controle das epidemias, seja pela atuação da prática do profissional da saúde no cuidado com seres humanos.

É com a teoria do campo simbólico de Pierre Bourdieu55 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2012. que percebemos as limitações do uso do termo “medicina popular”, por outra controvérsia no campo científico: enquanto o sentido do termo curandeirismo (uma categoria jurídica em vigor no atual Código Penal brasileiro, identificado como crime contra a saúde pública) representa um bem simbólico circulante no campo científico da saúde no Brasil66 Loyola MA. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel; 1984.,77 Schritzmeyer ALP. Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM; 2004., o significado de “medicina popular” representa as práticas de cura religiosas enquanto bem simbólico circulante exclusivamente no campo religioso88 Monteiro P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal; 1985.,99 Ortiz R. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes; 1978.. Há uma tendência em separar de modo distinto essas duas dimensões no campo científico (campo da saúde e campo religioso); porém, como orienta Pierre Bourdieu, a homologia estrutural entre os diferentes campos mostra que pessoas são dotadas de capital específico, posicionadas para a luta no campo1010 Jourdain A. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Petrópolis: Vozes; 2017..

É nesse contexto de lutas no campo simbólico da saúde que compreendemos a obra de Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, uma pesquisadora que atuou, e ainda atua com seus 93 anos de idade, transitando entre as áreas da Etnologia e a Farmacobotânica brasileiras.

Em seu longo percurso, entre 1972-1985 como pesquisadora no Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) até o período (1985-2002) em que compôs a diretoria do Centro de Estudos da Religião “Duglas Teixeira Monteiro” (CER), do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), foi responsável pelo Herbário Etnobotánico da mesma instituição, momento de sua produção intelectual em que sobressaem os estudos de plantas rituais afro-brasileiras utilizadas no campo religioso, a que denominou estudos etnofarmacobotânicos1111 Camargo MTLA. Herbário Etnobotânico (Banco de Dados de plantas medicinais e de rituais afro-brasileiros). As plantas do Catimbó em Meleagro de Luís da Câmara Cascudo. São Paulo: Humanitas Editora; 1999.,1212 Camargo MTLA. Plantas medicinais e de rituais afro-brasileiros II: estudo etnofarmacobotânico. São Paulo: Editora Ícone; 1998., explorados por metodologia específica1313 Camargo MTLA. Etnofarmacobotánica. Metodologia de pesquisa. Rev Dominguezia 2008; 24(2):71-75. em que incluiu o sentido de medicina popular brasileira1414 Camargo MTLA. Medicina popular: Aspectos metodológicos para pesquisa Componentes medicinais de origem vegetal, animal e mineral. São Paulo: Almed; 1985.

15 Camargo MTLA. As plantas medicinais e o sagrado: a etnofarmacobotânica em uma revisão historiográfica da medicina popular no Brasil. São Paulo: Ícone; 2014.
-1616 Camargo MTLA. Homem, natureza e crença. São Paulo:Ícone; 2018..

De uma larga bibliografia e consultas em fontes documentais primárias (fotografias, cartas) e impressas (semanários, jornais, revistas de época), este livro foi composto em sete capítulos.

Os três primeiros capítulos são dedicados à contextualização dos espaços e da religiosidade da região do sul de Ceará, do sertão cearense nos primeiros tempos da colonização, nas proximidades do atual Geopark Araripe e cidades circunscritas (Cariri, Crato, Juazeiro do Norte). Importou inicialmente registrar as reminiscências da Companhia de Jesus e sua influência na religiosidade do povo sertanejo. O Capítulo 2 relata a intensa atuação na educação pelos colégios jesuítas, as bibliotecas e a arte médica dos padres jesuítas, destacando o Padre Anchieta (1534-1597), considerado o primeiro naturalista do Brasil que descreveu a fauna e a flora da Mata Atlântica, os gêneros e as espécies animais e os conhecimentos de manipulação de remédios de época, utilizando a botânica médica com produtos minerais e animais. Lembra a autora no Capítulo 3 as reminiscências jesuíticas do campo religioso: a difusão das devoções à Virgem Maria (Nossa Senhora em rezas para curar doenças; os rosários de Nossa Senhora), devoção ao Bom Jesus, Culto aos Santos e às relíquias, e o Batismo, como principal sacramento para a salvação das almas.

Os Capítulos 4 e 5 registram a atuação específica dos dois baluartes da religiosidade cearense: o Padre Ibiapina (1806-1883) e o Padre Cícero (1844-1934), diante de um Nordeste enquanto “espaço onde a fome, as violências, as famílias desestruturadas pelos pais assassinados, a falta de água, de educação e de justiça, compunham um quadro homogêneo”(p.31). O Capítulo 5 prioriza o esclarecimento sobre a sacralidade da cidade de Juazeiro do Norte, por onde tradicionalmente em romaria os peregrinos chegam à cidade sagrada. No Capítulo 6 salienta-se os usos de plantas medicinais da caatinga, discutidas as suas aplicações no contexto da medicina popular: as espécies lenhosas, as investigações das propriedades medicinais e o destaque em seguida para a medicina do cangaço, a pimenta malagueta e o fumo.

E, finalmente, no Capítulo 7 as curas milagrosas são interpretadas pela abordagem interdisciplinar da etnofarmacobotânica. Em contraposição à explicação antropológica de Levis-Strauss sobre a eficácia simbólica das curas mágico-religiosas1717 Lévi-Strauss C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1975., Maria Tereza reconhece “dois fatores que em seus papéis funcionais justificam não mais se interpretar o sentir-se curado proveniente apenas da eficácia simbólica”(p.246): a) materialidade da farmacobotânica, em que o uso em rituais de cura por inalação, aspiração, uso tópico ou ingestão; b) fisiologia da emoção, em que os componentes físico, psicológico e social interage com o agente em situação transcendente de fé pela cura (p.193-194). O termo “fisiologia da emoção” abre um caminho para os estudos sobre as romarias religiosas como modelo de pesquisa em medicina popular, também útil para o campo da saúde (p.195).

O livro de Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo é de grande valor para os profissionais de saúde que atuam no SUS e mostra a vitalidade dos estudos e práticas da medicina popular no Brasil, entre outros interesses podemos listar: o interesse pelos estudos sobre medicinas vitalistas; cultura e medicina popular do Brasil; conhecimento de plantas medicinais.

Referências

  • 1
    Bosi A. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In: Bosi A. Dialética da colonização. São Paulo, Cia. das Letras; 1983. p. 308-345.
  • 2
    Organización Mundial de la Salud (OMS). Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2014-2023 [Internet]. 2013 [acesso 2021 mar 24]. Disponible en: https://www.who.int/medicines/publications/traditional/trm_strategy14_23/en/.
    » https://www.who.int/medicines/publications/traditional/trm_strategy14_23/en
  • 3
    Lima LO, Silva MRF, Cruz PJSC, Pekelman R, Pulga VL, Dantas VLA. Perspectivas da Educação Popular em Saúde e de seu Grupo Temático na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Cien Saude Colet 2020; 25(7):2737.
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política nacional de práticas integrativas e complementares no SUS: atitude de ampliação de acesso. 2ª ed. Brasília: MS; 2015.
  • 5
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  • 6
    Loyola MA. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel; 1984.
  • 7
    Schritzmeyer ALP. Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM; 2004.
  • 8
    Monteiro P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal; 1985.
  • 9
    Ortiz R. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda, integração de uma religião numa sociedade de classes. Petrópolis: Vozes; 1978.
  • 10
    Jourdain A. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Petrópolis: Vozes; 2017.
  • 11
    Camargo MTLA. Herbário Etnobotânico (Banco de Dados de plantas medicinais e de rituais afro-brasileiros). As plantas do Catimbó em Meleagro de Luís da Câmara Cascudo. São Paulo: Humanitas Editora; 1999.
  • 12
    Camargo MTLA. Plantas medicinais e de rituais afro-brasileiros II: estudo etnofarmacobotânico. São Paulo: Editora Ícone; 1998.
  • 13
    Camargo MTLA. Etnofarmacobotánica. Metodologia de pesquisa. Rev Dominguezia 2008; 24(2):71-75.
  • 14
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  • 15
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  • 16
    Camargo MTLA. Homem, natureza e crença. São Paulo:Ícone; 2018.
  • 17
    Lévi-Strauss C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1975.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br